Realizado no Parque da Juventude, o evento reuniu educadores, pesquisadores e vítimas para reivindicar o reconhecimento do massacre após 33 anos, e fortalecer ação judicial contra o Estado de São Paulo
por
Daniela Cid
Maria Clara Palmeira
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23/10/2025 - 12h

Quem caminha pela Avenida Cruzeiro do Sul e entra no atual Parque da Juventude, no bairro de Santana, em São Paulo, ao ver uma área aberta com bancos, árvores e até mesmo a estrutura de um circo, talvez não tenha consciência de que ali ocorreu um dos maiores crimes de estado da história do país. O nome “Carandiru” é conhecido nacionalmente através da indústria cinematográfica e por outras entidades que comentam sobre o famoso massacre ocorrido no dia 02 de outubro de 1992, e que hoje permeia a memória coletiva brasileira como uma lenda. 

Imagem da estrutura da antiga casa de detenção com a localização de cada pavilhão. Atualmente nesta área encontra-se o Parque da Juventude e ETEC, local onde aconteceu o evento. Foto: Daniela Cid
Imagem da estrutura da antiga casa de detenção com a localização de cada pavilhão. Atualmente nesta área encontra-se o Parque da Juventude e ETEC, local onde aconteceu o evento. Foto: Daniela Cid/AGEMT

33 anos mais tarde, no mesmo local do ocorrido, acontecia o evento Território Memória Carandiru, protagonizado por sobreviventes do massacre e familiares de vítimas. O evento teve como objetivo fortalecer o processo judicial movido pelo educador e sobrevivente do massacre Maurício Monteiro contra o Estado de São Paulo, buscando indenização e reconhecimento para sobreviventes e famílias, um pedido que já havia sido negado anteriormente por prescrição da ação. O ato também integrou a comunidade carcerária pela luta por memória e reparação: “O evento é significativo para a gente entender que essas mortes que foram provocadas pelo Estado, de pessoas que estavam sob a sua tutela, não resultaram em uma melhora, pelo contrário, tivemos uma propagação do crime, com criação de mais penitenciárias”, explica Maurício Monteiro."

O evento também contou com a presença de Camila Tourinho, Coordenadora do Núcleo Especializado da Situação Carcerária (NESC), Maíra Machado, Coordenadora do Grupo de pesquisa em Direito e Violência do Estado da FGV Direito-SP, Maria Cecília Asperti, Professora do curso de Direito da FGV e Advogada Orientadora do Centro de Assistência Jurídica Saracura (CAJU), Tâmara Nascimento, Coordenadora do centro de Referência de Promoções da Igualdade Racial (CRPIR-Carandiru), Raílda Alvez do AMPARAR e Hamilton Pereira da Silva, Assessor do Gabinete Ministerial do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. 

“Tive filho na FEBEM e no cárcere”, conta Raílda Alvez, “Essas pessoas já foram marcadas para morrer, e essas mesmas pessoas continuam morrendo dentro do sistema prisional. Quantos mais dos nossos vão morrer porque são pobres, pretos e periféricos? (...) São dadas como mortes naturais, essas pessoas são assassinadas o tempo todo nesses espaços de violência”, desabafa. Além da violência sofrida dentro do cárcere, outros temas foram discutidos, como a ineficácia da ressocialização. Edson Pereira, formado em enfermagem e egresso da Casa de Detenção, comenta sobre a dificuldade em encontrar emprego mesmo após 30 anos de cumprimento da pena: “eu sou aprovado na entrevista, mas quando pedem meu documento eles me descartam, inventam umas desculpas”, comenta Edson, “dizem que meu currículo é bom, mas pelo jeito não fala por mim, a ponto de eu conseguir provar que eu sou honesto e que eu quero trabalhar”. 

Estima-se que 3,5 mil tiros de fuzis AR-15 e submetralhadoras tenham sido disparados em apenas 20 minutos no dia 02 de outubro de 1992. A repercussão internacional da época colocou o Brasil nos holofotes e resultou em denúncias à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Até hoje, nenhuma das autoridades competentes foi punida pelo Estado. 

Fotos das 111 vítimas do Massacre do Carandiru no dia 02 de outubro de 1992, no evento de 33 anos do acontecimento. Foto: Daniela Cid
Fotos das 111 vítimas do Massacre do Carandiru no dia 02 de outubro de 1992, no evento de 33 anos do acontecimento. Foto: Daniela Cid/AGEMT

De acordo com o Centro de Assistência Jurídica Saracura da FGV (CAJU), hoje os processos de tortura contra o Estado no Brasil são imprescritíveis. O trabalho em conjunto com o Núcleo Memórias Carandiru é realizado para que o governo brasileiro reconheça o Massacre do Carandiru como uma grave violação de direitos humanos, um ato cruel de tortura. Além disso, os sobreviventes alegam que o número de 111 mortos divulgado pelo Estado não é exato, tendo muitos deles contado mais de 200 no dia seguinte ao acontecimento. 

Presente no evento, Alexandre Carvalho, formado em direito penal, professor e amigo íntimo de Maurício, relata: “O senso comum sobre o Massacre é de que ‘bandido bom é bandido morto’ e de que morreram poucos, mas o que é visto cotidianamente, de fato, é uma busca por justiça”. 

Roda de conversa entre Maurício Monteiro e representantes do CAJU (FGV) sobre imprescritibilidade de processos de tortura. Foto: Maria Mielli
Roda de conversa entre Maurício Monteiro e representantes do CAJU (FGV) sobre imprescritibilidade de processos de tortura. Foto: Maria Mielli/AGEMT

 

Memórias Carandiru: é preciso lembrar para não repetir

O Núcleo Memórias Carandiru é formado pelos educadores Maurício Monteiro, sobrevivente do Massacre no Carandiru, Helen Baum e Walter Luiz, sobreviventes do cárcere, e Nádia Lima, museóloga. O projeto realiza um roteiro quinzenal gratuito pelo Parque da Juventude, onde os educadores apresentam os locais dos pavilhões da antiga casa de detenção relatando suas experiências dentro do cárcere, enquanto os sobreviventes compartilham o que viveram no dia do massacre. Além do roteiro, este núcleo realiza pesquisas de arquivos e casos relacionados ao Massacre do Carandiru em conjunto com grupos de estudos da USP, Unifesp e FGV. O objetivo é oficializar um projeto de memória do Massacre, para que não volte a acontecer. 

Maurício Monteiro em roteiro do Memórias Carandiru, em frente ao local onde ocorreu o Massacre do Carandiru (Antigo pavilhão 9), hoje demolido. Atualmente se tornou um estacionamento de carros. Não há placas de referência histórica no local. Foto: Maria Mielli.
Maurício Monteiro em roteiro do Memórias Carandiru, em frente ao local onde ocorreu o Massacre do Carandiru (Antigo pavilhão 9), hoje demolido. Atualmente se tornou um estacionamento de carros. Não há placas de referência histórica no local. Foto: Maria Mielli/AGEMT

Reflexo da importância deste projeto de memória é o caso de Bruna Castorino Alves, filha de uma das vítimas que obteve arquivos de seu pai graças ao projeto. “Eu era uma criança quando meu pai foi assassinado em 1992. (...) Se hoje eu tenho fotos, e coisas sobre o meu pai é graças ao Maurício, que fez esse projeto maravilhoso, pois desde quando eu me conheço por gente, a única coisa que eu tinha era o atestado de óbito que diz que ele foi morto por bala na Casa de Detenção, no Massacre do Carandiru”, declara Bruna. “Eu, quando era criança, gostava de futebol, mas não entendia o porquê de eu gostar tanto, e hoje eu sei que é porque ele também gostava.” 

O roteiro é gratuito, para realizá-lo basta preencher um formulário de presença através do Instagram @memoriacarandiru para as datas disponíveis.

Confira também a videorreportagem:

 

 

Em vídeos publicados nas redes, a educadora relatou o ocorrido
por
Marcelo Barbosa Prado
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22/10/2025 - 12h

Após passar em primeiro lugar em um concurso docente para a Universidade de São Paulo (USP), a professora Érica Bispo, de 45 anos, foi surpreendida com a anulação do resultado. Aprovada para lecionar o curso “Literaturas Africanas de Língua Portuguesa”, seis concorrentes brancos alegaram favorecimento da candidata e o Conselho Universitário decidiu aceitar o pedido.

 

Antes de prestar a prova, Érica passou por uma série de problemas de saúde, o que resultou em seu afastamento da vida acadêmica. Ainda enquanto doente, a professora  viu um edital aberto na USP e decidiu que queria voltar a estudar. Foi então que ela prestou o concurso e, sem expectativas, passou no exame em primeiro lugar. “Nem consegui dormir de tanta emoção. Eu tinha sido aprovada para a maior universidade do Brasil”, disse.

Depois de um tempo sem receber notícias sobre a prova, Érica entrou em contato com o apoio acadêmico e foi orientada sobre as etapas de nomeação e posse. Ela começou a acompanhar as reuniões da Congregação da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) pelo YouTube e, durante uma das transmissões, descobriu que havia uma contestação contra o concurso.

A FFLCH chegou a homologar o resultado, mas depois revogou o processo seletivo para a disciplina. Érica iria se mudar do Rio de Janeiro para São Paulo, com o intuito de assumir o cargo e se casar. A anulação do concurso fez com que Érica ficasse doente e com uma infecção, chegando a perder mais de cinco quilos  em um mês, segundo ela, em relato dado à AGEMT. “Nesse contexto, minha vida acadêmica se tornou um escudo e fonte de forças. Organizei dois simpósios temáticos em dois congressos diferentes, além de participar de um congresso este ano. Submeti alguns artigos a revistas acadêmicas e quero concluir mais dois antes do fim do ano”, afirmou.
 

Reprodução: CAELL-USP| Arte postada nas redes sociais pelo Centro Acadêmico de Letras da USP
Arte produzida pelo Centro Acadêmico de Letras em repúdio à anulação do concurso de Érica. Reprodução: CAELL-USP- Instagram

 

Ao todo, 15 candidatos estavam inscritos no processo e as seis pessoas que entraram com recurso alegaram que a professora tinha uma “relação de proximidade com a banca avaliadora”. A acusação referia-se a algumas fotos postadas por Érica nas redes sociais, em que ela frequentava eventos dos quais pessoas da banca também estavam. Na ocasião, Érica estava em um Congresso de literatura africana e publicou a foto com a breve legenda “Entre amigos é muito bom”. Segundo ela, a imagem não comprova amizade com nenhuma das pessoas. 

Além de entrarem  com recurso na USP, esses candidatos também recorreram à justiça. Depois de passar pelo Ministério Público, o órgão entendeu que não havia irregularidades no processo seletivo.

Mesmo após o arquivamento do caso pelo Ministério Público, a FFLCH publicou uma nota nas redes sociais confirmando a abertura de um novo concurso. Enquanto  as inscrições já foram abertas, Érica segue procurando justiça. Em uma sequência de vídeos publicados, via Instagram, na segunda semana de outubro, Érica denunciou o ocorrido e abordou o tratamento que tem recebido por parte da universidade, da imprensa e de coletivos.

Na USP, o curso de letras se pronunciou sobre o acontecimento. O Centro Acadêmico de estudos linguísticos e literários Suely Yumiko, de Letras, emitiu uma nota repudiando a falta de diversidade e divulgando um abaixo-assinado em defesa de Érica. 

A AGEMT entrou em contato com a FFLCH e, em nota, eles alegam que houve diferentes análises antes da decisão. Veja a nota na íntegra:

"
A Erica foi aprovada em primeiro lugar, e a Congregação da FFLCH homologou o resultado, aprovando o relatório da banca examinadora. O processo de contratação da Érica foi iniciado pela FFLCH. Alguns candidatos entraram com recurso, o qual foi indeferido pela Congregação da FFLCH. Os candidatos, então, fizeram recurso junto ao Conselho Universitário, órgão máximo da Universidade. Após análise, a Procuradoria Acadêmica da USP recomendou a anulação do concurso, que foi aprovada pelo Conselho Universitário, que considerou que havia indícios de relações de proximidade da candidata aprovada e indicada com pessoas integrantes da banca. Essa conclusão teve embasamento em postagens em redes sociais em que, além de fotos, havia expressões de amizade. Sendo uma decisão do Conselho Universitário, a FFLCH não tem como reverter a decisão. Informamos também que, no momento da inscrição, houve três candidaturas de pessoas autodeclaradas negras (PPI), que foram deferidas pela banca de heteroidentificação da Faculdade, mas apenas a Erica realizou as provas do concurso, sendo que os demais não compareceram."

A professora acredita que isso é um reflexo do Brasil, que não vê negros em uma posição de professor universitário. “ O país se construiu sobre uma estrutura escravocrata, que, mesmo após a abolição, continuou a definir os lugares sociais que poderiam ser ocupados como negros”.

 

Mortes causadas por policiais a pessoas já rendidas reacende questionamentos sobre a segurança estatal
por
Daniela Vicente Cid
Victoria Ignez
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11/09/2025 - 12h

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025, aponta que o país vive desde 2018 queda nas taxas de mortes violentas intencionais (MVI), reflexo de políticas públicas, prevenção à violência e mudanças no crime organizado. Contudo, 14% das MVI são de autoria policial, resultando em 60.394 vítimas entre 2014 e 2024. Em cidades como Itabaiana (SE), Santos (SP) e São Vicente (SP), a violência policial responde por mais de 60% das mortes. O perfil das vítimas segue concentrado em homens negros mortos por armas de fogo. 

O anuário alerta: “Mesmo diante de reduções gerais nas MVI, o Brasil ainda falha em garantir padrões mínimos de controle institucional da ação policial.” 

Análise produzida a partir dos microdados dos registros policiais e das Secretarias estaduais da Segurança Pública e/ou Defesa Social. Imagem/Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Análise produzida a partir dos microdados dos registros policiais e das Secretarias estaduais da Segurança Pública e/ou Defesa Social. Imagem/Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 

 

Conexões entre agentes do Estado e crime organizado 

O anuário também destaca que a “licença para matar” foi historicamente concedida a quem deveria zelar pela lei. A Operação Escudo, por exemplo, motivou ação da Defensoria Pública e criação de um relatório preliminar após 11 denúncias de violações de direitos humanos, em 2023.  

Outro caso citado pelo anuário é o de Vinicius Gritzbach, morto no aeroporto de Guarulhos por militares a mando do PCC em novembro de 2024, após colaborar com o Ministério Público em denúncias de lavagem de dinheiro e envolvimento de policiais civis em extorsões. 

Em artigo publicado no jornal da USP em 2023, o pesquisador Bruno Paes Manso lembra que episódios como o Massacre do Carandiru colaboraram para a formação do PCC, com o discurso de guerra contra o sistema. Para ele, “o crescimento da violência policial e das prisões, ao invés de fragilizar o crime, disseminou as gangues pelos presídios, que já ultrapassam os 70 grupos” – Comenta, “Longe de promover a ordem e reduzir o crime, portanto, as medidas populistas como as aplicadas no passado recente vêm promovendo o caos.” 

Saúde mental dos policiais 

O anuário também aborda a vitimização de policiais. Entre 2018 e 2024, as mortes em confronto caíram, mas os suicídios aumentaram. Hoje, esta é a principal causa de morte na categoria, seguida por confrontos durante a folga e em serviço. 

Embora a PM registre mais mortes gerais devido à natureza do trabalho, as taxas de suicídio destes são semelhantes às da Polícia Civil. O perfil dos policiais vítimas de homicídios, tanto em confronto, quanto em pausa é majoritariamente de homens negros, de 40 a 44 anos. O documento não detalha os perfis em casos de suicídio. 

Fatores apontados no último anuário e relembrados neste incluem assédio moral intenso, cobrança por metas, endividamento, insegurança jurídica e desgaste pelo contato contínuo com situações de risco. O fácil acesso a armas é um agravante. 

Na Bahia, onde os suicídios de policiais cresceram 66% no último ano, tentativas de entrevista com cadetes revelaram perda de subjetividade pelo receio em falar sobre saúde mental e outros temas como as câmeras de segurança sem autorização superior, com o seguinte argumento: “tudo o que eu tenho, agora pertence ao Estado”. A Bahia também se encontra entre os dez com maior taxa de letalidade policial. 

Proteção contra aqueles que nos protegem 

A nomenclatura de registros para ocorrências de mortes geradas em confrontos com policiais mudou de “resistência seguida de morte” para “morte decorrente de intervenção policial”, buscando mais rigor na investigação. As câmeras corporais, de acordo com o anuário, vêm auxiliando nesse processo, oferecendo dupla garantia: inibir abusos e proteger agentes de acusações infundadas. Elas têm auxiliado na visibilidade dos episódios de execução de suspeitos já rendidos.  

Apesar do incentivo federal, apenas 10 estados contavam com programas de uso de câmeras corporais em funcionamento em 2024. Em São Paulo, o governo retirou a obrigatoriedade da gravação contínua, gerando embates com famílias de vítimas, como foi o caso da Operação Escudo.  

Em maio de 2025, o STF homologou acordo para ampliar o uso das câmeras no estado, porém ainda deixa brechas. O contrato com a Motorola prevê aumento de 25% nos equipamentos, chegando a 15 mil, priorizando unidades de alta e média criticidade. O uso obrigatório vale em operações de grande porte, “comunidades vulneráveis”, ou em resposta a ataques contra policiais. A ativação pode ser feita pelo COPOM ou pelo próprio agente.  

O acordo prevê ainda o desenvolvimento de indicadores para avaliar a efetividade do programa. 

Câmera na farda da PM. Foto/Rovena Rosa/Agência Brasil
Câmera na farda da PM. Foto/Rovena Rosa/Agência Brasil

 

 

 

Tema em alta atravessa diferentes núcleos sociais como trabalho, práticas esportivas e afazeres domésticos
por
Fernando Amaral
Guilbert Inácio
João Paulo Moura
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06/10/2025 - 12h

O alvorecer do dia começa a despontar no horizonte, e milhares de meninos e meninas acordam para assumir responsabilidades que deveriam ser exclusivas do mundo adulto. Nas cidades, oferecem balas nos semáforos; no campo, ajudam na colheita; em lares da periferia, cuidam dos irmãos menores. Esse dia a dia revela mais do que trabalho precoce, é a adultização forçada. 

De acordo com relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), 138 milhões de crianças se encontravam em situação de trabalho infantil em 2024. Dentre elas, 61% dos casos estavam no setor agrícola, e 54 milhões ocupavam cargos de perigo à integridade do menor. 

No Brasil, os dados também são alarmantes. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) do IBGE, em 2023 havia 1,6 milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos nessa situação. O número, embora menor do que há vinte anos, ainda apresenta uma dura realidade: 4,2% de toda uma geração que deveria estar apenas estudando, brincando e crescendo sem pressa. Entre eles, 586 mil enfrentam tarefas que colocam sua saúde em risco. 

As desigualdades regionais dão forma ao problema. No Nordeste, 506 mil meninos e meninas ajudam a sustentar suas famílias, seja na roça, seja em atividades informais nas cidades. No Sudeste, os semáforos e camelódromos mostram outra face do mesmo drama. Já no Norte, quase 7% das crianças dessa faixa etária trabalham. A cor da pele também pesa, crianças pretas e pardas, que já são maioria entre os mais jovens, representam 65% de quem trabalha antes da hora. 

A rotina é pesada. Mais de um quinto dos que estão no trabalho infantil enfrentam 40 horas ou mais de serviço por semana, jornada igual à de um adulto. Para os de 16 e 17 anos, quase um terço já vive essa realidade. A escola é um dos pontos mais afetados, enquanto quase todas as crianças brasileiras estão matriculadas, apenas 88% das que trabalham conseguem permanecer estudando. As outras veem a sala de aula ser substituída pelo balcão, pelo campo, pela rua. 

O prejuízo não é só educacional, a infância roubada também deixa marcas emocionais. Muitos aprendem cedo a conviver com a preocupação da falta de comida, com o medo do desemprego dos pais ou com a responsabilidade de cuidar dos irmãos. A pressa em amadurecer elimina o espaço do lúdico, das brincadeiras que ensinam a sonhar. 

Mesmo com a proibição legal para menores de 16 anos, com exceção aos aprendizes a partir de 14, a regra é constantemente rompida. Nas comunidades mais pobres, a urgência da sobrevivência transforma a contribuição das crianças em algo naturalizado, quase obrigatório. Assim, ser criança acaba parecendo um privilégio distante. Cada hora de trabalho antecipado é também uma hora a menos de estudo, de descanso, de prática esportiva, de futuro. 

Responsabilidades no esporte 

Esse cenário também afeta o desempenho esportivo de jovens atletas, que precisam tomar decisões e assumir responsabilidade muito cedo, sendo, em alguns casos, os principais provedores de fonte de renda das famílias. 

A fotografia mostra o atleta Cristian, sentado em um banco de reserva, olhando fixamente em direção à câmera. A foto está em preto e branco
Atualmente, Cristian atua no Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa (COTP) / Foto: R7fotografo

Em entrevista a AGEMT, conhecemos Cristian Alves Oliveira, um dos atletas que viveu essa realidade. Hoje em São Paulo, o jovem de 18 anos é originário de Belford Roxo na Baixada Fluminense (RJ) e veio sozinho para a capital paulista por causa de uma oportunidade que surgiu no começo do ano de 2025.  

Cristian chegou a São Paulo para ser o goleiro do Real Cubatense de São Bernardo dos Campos na Taça São Paulo, campeonato amador organizado pela Federação Alternativa de Desporto.  

"Eu só ia disputar esse campeonato e voltar para o Rio, mas, ao decorrer dessa competição, outras oportunidades surgiram: morar aqui e defender o clube que estou hoje. Essa chance surgiu em um momento que eu estava pensado em parar de jogar bola. Então quando recebi essa oportunidade de poder vir para São Paulo e jogar, eu agarrei como se fosse a esperança do meu futuro." Destaca o atleta. 

Presente desde sua infância, o futebol se tornou um objetivo na vida de Cristian quando tinha 15 anos. Em 2022, ele decidiu que queria viver disso, mas não conseguia focar totalmente no esporte, pois tinha que estudar e trabalhar. O goleiro lembra que arrumou seu primeiro emprego com 14 anos, em um Sacolão, para poder ajudar sua família.

"Comecei a trabalhar cedo para poder ajudar em casa e para ter minhas coisas. Eu tinha que dividir o tempo para treinar, trabalhar e estudar. Era uma rotina muito cansativa que eu tinha no Rio e, às vezes, tinha que sacrificar alguma dessas coisas porque atrapalhava um pouco no meu rendimento esportivo, mas eu não podia deixar de trabalhar e ajudar em casa."  

Três anos depois, o atleta está se dedicando só ao futebol. Ele conta que a vida na capital paulista é muito diferente de Belford Roxo, porém ele segue atrás de seu objetivo porque a família depende dele. “É uma rotina muito cansativa, mas é a oportunidade que eu pedia a Deus e ele está me proporcionando. Cheguei em São Paulo em 4 de janeiro e vim sozinho, um grande desafio para mim. Conviver longe da família não é fácil, tem que saber lidar com as emoções, saudades etc., mas sempre tento manter contato com eles porque assim ameniza um pouco as saudades.” 

A história de Cristian mostra um cenário recorrente em nosso país, pois, embora tenhamos diretrizes que regulam a prática esportiva de crianças e jovens como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/2023), outros mecanismos sociais inviabilizam a prática esportiva plena. 

Isso leva muitos, ainda novos, a abandonarem seus sonhos. Como exemplo, uma reportagem feita pela Folha de São Paulo em 2024 analisou a trajetória dos atletas que jogaram a Copa São Paulo de Futebol Junior, a copinha, em 2010. Segundo os dados obtidos, 36,9% dos atletas desistiram de tentar a carreira no esporte. 

Esses dados em um dos campeonatos mais importantes de formação de futebolistas são preocupantes. Vale destacar que o futebol é o esporte mais popular no país, ou seja, os dados em outras modalidades, como as olímpicas, devem ser mais críticos. 

O país até tem o programa Bolsa Atleta, que entrou em vigor em 2025 com o objetivo de patrocinar individualmente atletas e para-atletas de alto rendimento em competições nacionais e internacionais de sua modalidade. Contudo a maioria dos esportivas enfrentam inúmeras barreiras socioeconômicas até conseguirem chegar de fato nessas competições de alto rendimento, em que poderão vislumbrar um futuro mais otimista. 

Trabalho doméstico 

Entre as várias faces da adultização forçada, uma das mais silenciosas é a realidade de crianças que assumem tarefas domésticas para que seus pais ou responsáveis possam trabalhar fora. Longe de ser apenas uma “ajuda”, essa dinâmica transfere a elas responsabilidades que ultrapassam os limites da infância, comprometendo seu desenvolvimento emocional, social e até escolar. 

Catia Silene, psicóloga infantil, explica que, ao assumir papéis que não condizem com sua idade, essas crianças podem carregar marcas profundas para a vida adulta. “As crianças sobrecarregadas, com muitas responsabilidades inadequadas para sua idade, podem desenvolver ansiedade, estresse e um sentimento constante de pressão”, afirma.

Segundo ela, isso ocorre porque muitas vezes o esforço não é reconhecido, o que gera “baixa autoestima e a sensação de que nunca são boas o suficiente... é uma independência colocada em um lugar que não é dela”. 

A imagem, em preto e branco, mostra uma menina de costas olhando para uma pia.
Criança realizando tarefa domésticas / Fonte: Gênero e Número 

Em 2023, segundo a PNAD, da população estimada de 38,3 milhões de crianças e adolescentes, 52,6% (cerca de 20,1 milhões) realizavam afazeres domésticos e/ou tarefas de cuidado, sendo 69% de classes baixas e 57% meninas. Em famílias numerosas ou sem condições financeiras de contratar alguém para cuidar dos mais novos, é comum que o filho ou a filha mais velha seja encarregado dessa função. 

A psicóloga alerta que esse modelo pode desorganizar a noção de autoridade dentro do lar. “Às vezes os pais dizem: ‘cuida do seu irmão porque você é mais velho’. Mas esse jovem não tem maturidade para ocupar esse lugar e acaba recorrendo a formas punitivas ou ameaçadoras. Isso confunde quem é cuidado... quando isso se perde dentro da família, a confusão se projeta para a vida em sociedade” explica. 

Esse cenário, além de prejudicar a relação entre irmãos, pode gerar dificuldades sociais futuras. Uma criança que cresce sem referências claras de autoridade tende a apresentar comportamentos desafiadores e resistência a regras, tanto na escola quanto em outros ambientes. Apesar de, em alguns casos, ‘despertar’ um senso precoce de responsabilidade, a adultização no espaço doméstico tira da criança oportunidades essenciais de brincar, conviver com os demais jovens e aprender pela sua própria experiência pessoal. 

O debate sobre adultização infantil revela que, por trás da ideia de “ajuda em casa” ou de “responsabilidade precoce”, existe uma prática que limita direitos e impõe às crianças papéis que não deveriam assumir. Longe de ser um sinal de maturidade, trata-se de um processo que compromete a infância e pode deixar marcas para a vida adulta. 

Mais do que enxergar “pequenos adultos”, é preciso compreender também que se trata de um fenômeno ocasionado por desigualdades de gênero, classe e raça, do qual sobrecarregam as crianças. Encarar essa realidade como uma violação de direitos é um passo essencial para que a infância deixe de ser vista como apenas uma passagem para a vida adulta, mas sim como uma iniciação no mundo, com práticas de aprendizado, inocência e, além de tudo, protegidas. 

Episódios contam histórias reais de jovens que morreram por tiros com armas das
por
Khauan Wood
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16/06/2025 - 12h

Idealizado, produzido, dirigido e apresentado por Khauan Wood, estudante do curso de jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o podcast tem o intuito de contar histórias reais de jovens que morreram em decorrência da violência policial do Brasil.

Dados de um relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgado em abril de 2025, mostram que a taxa de mortalidade de crianças e adolescentes pela PM cresceu 120% entre 2022 e 2024, apenas no estado de São Paulo.

Com uma imersão sonora, o áudio é pensado para ser rápido. Tudo no podcast é pensado para se assemelhar a um tiro. Além disso, conta com músicas que retratam justamente a violência policial no país.

Ficha técnica

  • Idealização, direção e apresentação: Khauan Wood

  • Duração: 5min22seg

  • Orientação: Prof.ª Dra. Anna Flavia Feldmann

 

Como é o dolorido processo do descaso com a parturiente durante o parto e a importância da humanização e protagonismo feminino
por
Bruna Quirino Alves
Maria Eduarda Camargo
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09/09/2022 - 12h
Ilustração de grávida com mãos tentando agarrá-la
Ilustração: Maria Eduarda Camargo

“Ele bateu na minha perna e disse ‘Não vai nascer não? Aguenta! Faz força nessa p...’. Em seguida ele pegou uma agulha e furou a bolsa, subindo em cima da minha costela e empurrando o bebê pela barriga. Fizeram episiotomia também. Me lembro do dia seguinte - as costelas roxas, pontos em todo lugar e muita dor.” conta Marilene Martins Quirino, vítima de violência obstétrica durante o nascimento de sua segunda filha. 

Normalmente, a intervenção médica em partos deve ocorrer somente em casos específicos. Mas a realidade é outra, sobretudo no Brasil, que é o segundo país do mundo em número de cesarianas, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Em 2018, 55,7% do total de nascimentos foram cirúrgicos, atrás apenas da República Dominicana, com 58,1%. Embora salvem vidas quando necessárias, as cesáreas também têm riscos. A recomendação do órgão é que não excedam 15% do total de partos, de modo a reduzir os índices de mortalidade da mãe e do bebê. No setor privado, a proporção de cesáreas chega a 88% dos nascimentos; no público, a 46%.

O parto é um processo natural. Porém, ainda não deixa de ser complexo. Em casos de complicações e riscos, as intervenções médicas são necessárias, como a cesárea. Contudo, nos últimos anos, as taxas de intervenção aumentaram de forma significativa, transformando a exceção em regra. Quando realizada sem necessidade, a cesárea pode ser considerada uma forma de violência obstétrica. Mas ela não vem sozinha: a cirurgia é absorvida no meio de turbilhões de outras violências- nem sempre tão invasivas - mas ainda muito traumáticas.

Uma comprovação fatal da falta de informação a respeito do parto é a própria posição em que este é normalmente recordado - a parturiente com as pernas abertas e deitada de barriga para cima. Essa posição, no entanto, foi uma ordem do rei Luís XIV para sua esposa - porque desta forma ele poderia ver o nascimento de forma mais “clara”. Ainda que essa seja a forma mais dolorosa de parir, permanece sendo a mais utilizada em partos não-humanizados. 

Segundo a Recien - Revista Científica de Enfermagem - “A violência obstétrica é  frequente no Brasil, sendo praticada por médicos e profissionais da enfermagem, em especial, na forma de negligência, violência verbal e/ou física”. Ela nasce de uma sociedade patriarcal - que enxerga mulheres como números dentro de um sistema. Uma sociedade em que, no minuto em que o feto é descoberto no ventre, deleta a humanidade, a feminilidade e a individualidade da mãe.

Entrevistamos Larissa Leal Gonçales, profissional doula há mais de 14 anos. Ela conta que “o parto é um processo fisiológico. É algo que o corpo faz. E saber como o parto funciona é essencial para a tranquilidade do processo. A mulher normalmente chega refém - mas quando se entende o parto como um processo íntimo, fisiológico, sexual e familiar da vida da parturiente - o protagonismo da mulher é o que faz diferença no desfecho”. Por isso a informação é a base para um parto humanizado e consciente. 

A profissional ainda explica que o parto humanizado se baseia em 3 premissas: protagonismo da mulher, bases em evidências científicas e uma equipe profissional diversificada para melhor assistência do parto. Esse tipo de assistência tem como objetivo garantir que o bebê nasça sem intervenções desnecessárias - evitando traumas tanto para a mãe quanto para o bebê.

O problema da violência obstétrica é que ela não é um fenômeno isolado e sim produto de um sistema de médicos incapazes de sentir qualquer coisa que não seja o som do dinheiro caindo no bolso. Além disso, práticas violentas ainda são lecionadas e incentivadas em faculdades de medicina e a falta de informação faz com que esses procedimentos não sejam questionados, ainda que aplicados desnecessariamente.

 A violência obstétrica é física, psicológica e também sistêmica - porque é o sistema atual que contribui para que essa violência seja invisibilizada e tratada como rotina dentro da vida das parturientes. 

Essas situações vivenciadas por futuras mães prestes a dar a luz - e que as fazem vítimas dos mais variados tipos de violências - justamente por estarem indefesas e reféns desse sistema as tornam presas fáceis para seus algozes.

 

O dia 7 de setembro está no calendário do povo, mas longe de sua realidade.
por
Luísa Ayres Dias de Oliveira
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07/09/2022 - 12h

200 anos de uma suposta independência se passaram. Isso porque esse momento histórico, muitas vezes visto como símbolo de mudança, autonomia e liberdade, não mudou os trajetos de um país onde ainda reina o preconceito, o feminicídio, a opressão de povos nativos, leis patriarcais, a fome e a dependência externa - o que soa o mais irônico possível.

O dia que marcou a independência do país fez nascer um Brasil que dependia da escravidão para manter-se economicamente. E mantêm, até hoje, pretos e pretas dependentes de reparações históricas irreparáveis. Há mais tempo de escravidão na história do Brasil do que de Independência proclamada. E isso diz muito.

Aliás, se a anunciação de D. Pedro foi dada às margens do Rio Ipiranga, ela ainda não desembocou nos rios amazônicos, nos ouvidos de tantos povos indígenas.

Enquanto isso, mais uma vez, militares e milícias celebram o que parece ser um dia imaginário, gritando que nossa bandeira nunca será vermelha, enquanto tingem ruas e comunidades do vermelho mais gritante. De um sangue tão vermelho e antigo como tintura de Pau-brasil. Um vermelhão gritante de dor, preconceito e injustiça, que ecoa das gargantas de mães, pais e amigos, mas não alto o suficiente para o mundo ouvir.

Às margens dos direitos

No evento “Bicentenário da Independência do Brasil: Soberania, Democracia e Decolonialidade”, realizado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, o professor e historiador Alberto Luiz Scheneider explica que a vinda da Família real portuguesa provoca a abertura dos portos, um primeiro passo do processo de independência. No entanto, com o desenvolvimento do comércio agora em maior demanda, mais mão de obra foi necessária. Ou seja, mais africanos foram escravizados.

Até na arte é explícito aqueles que ficaram às margens - e não só do Rio Ipiranga. O povo preto não poderia fazer parte desse momento de independência para além de seus serviços forçados. Não havia independência para a pele preta, nem na arte nem na vida real.

E isso alcança também os povos indígenas: “O silêncio continua nas escolas, nas universidades, nas ruas, nas pesquisas. Muitos deles diziam que não há espaço para os indígenas nessa sociedade, que não são brasileiros nem cidadãos e que nunca serão”, como denuncia Edson Kayapó, doutor em Educação Histórica, Política e Sociedade.

Mesmo assim, ainda que ditos como “’povos que seriam extintos pela força de sua incapacidade física, biológica e cultural de acompanhar o progresso nacional’, tantos povos resistem e continuarão resistindo”, garante Kayapó.

Outro grupo por debaixo dos panos – e planos – da independência são as mulheres. Afinal, que independência é essa em que somos livres para trabalhar ganhando menos, apanhando em casa e com medo do estupro?  

Ruth Manus, escritora e advogada, atenta também para como a exploração feminina repassada a mulheres mais vulneráveis ainda é um equívoco de independência feminina: “Não adianta falar que a mulher privilegiada não tem dupla jornada se tem outra mulher no teu lugar trabalhando em casa, mal paga, sem registro. Isso não é emancipação feminina, é simplesmente exploração de uma mulher menos privilegiada no seu lugar”.

 

"Ou ficar a pátria livre ou morrer pelo Brasil"

O hino da independência é quem nos diz. No entanto, não se morre pelo Brasil. Se morre por causa do Brasil, suas instituições assassinas e sua elite opressora.

“Vossos peitos, vossos braços, são muralhas do Brasil”. Essas muralhas brasileiras que o hino vos fala estão mais para alvos. Estes nossos peitos são muralhas derrubadas com balas perdidas – ou muito bem achadas. As muralhas que caem, fortalecem as da desigualdade, que resistem e se edificam.

Se “Zombou deles, o Brasil”, zombaram dos brasileiros quando decidiriam que 7 de setembro é sinônimo de liberdade.

E se, com tudo isso, ainda cantam o hino da independência, cantam para abafar os gritos e choros que tocam ao fundo, ao ritmo das metralhadoras que disparam e sob o comando da orquestra policial da morte. Se for branco, homem e cis, você está no camarote. Se for mulher, preto ou indígena, você tem lugar reservado. E assim, Dom Pedro mal imaginava que havia dado início a um novo show de horrores - nem tão novo assim.

E como todo brasileiro canta, “o show tem que continuar”. Mas dessa vez, gostaríamos que fechassem as cortinas, punissem os diretores e atores principais e acendessem as luzes do iluminismo democrático mais uma vez.

Legenda: Policiais hasteiam bandeira do Brasil e do estado do RJ após invasão ao Complexo do Alemão. Reprodução: Bruno Gonzalez
Legenda: Policiais hasteiam bandeira do Brasil e do estado do RJ após invasão ao Complexo do Alemão. Reprodução: Bruno Gonzalez

 

Tribunal Permanente dos Povos não o condena por genocídio. mas recomendará o caso ao Tribunal de Haia
por
Artur dos Santos
Guilia Aguillera
Laura Brandão
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01/09/2022 - 12h

O Presidente da República foi condenado pelo Tribunal Permanente dos Povos (TPP) nesta quinta-feira (1/09) pelo júri internacional de defensores dos Direitos Humanos. Em sessão de leitura da sentença realizada no Salão dos Estudantes no Largo São Francisco, setores da sociedade civil presenciaram a primeira condenação contra Bolsonaro no âmbito dos Direitos Humanos.

Sob a cautela justificada a modo de “não banalizar o conceito de Genocídio”, o Tribunal não se comprometeu em condenar o atual Presidente por esse crime e adicionou que a deliberação e decisão deveriam ser feitas no Tribunal Penal Internacional de Haia.  A decisão foi fortemente rejeitada por Sônia Guajajara, representante dos povos indígenas, uma das últimas a discursar: “O que mais precisa acontecer para que esse governo seja considerado Genocida? O TPP nega a condenação. Não posso sair daqui feliz com essa sentença parcial”, afirma a candidata a Deputada Federal pelo PSOL.

O evento contou com a presença de personalidades como o Ex-Secretário de Direitos Humanos Paulo Sérgio Pinheiro, a Ex-Procuradora-geral da República Raquel Dodge, o Senador Humberto Costa (PT) e o Ex-Secretário de Justiça do Governo de São Paulo Hédio Silva - figuras de especialidades distintas, mas defensoras do Estado Democrático de Direito. 

 

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Celso Campilongo, José Carlos Dias, Paulo Sérgio Pinheiro e Raquel Dodge (da esquerda para a direita)
Foto: Giulia Aguillera

 

A sentença lida pelo Júri internacional revelou que “o cerne da acusação é o abuso dos poderes feito pelo governo de Bolsonaro que transformou a pandemia em uma ocasião para atacar populações tidas como descartáveis dificultando o acesso dessas aos Direitos Humanos e à dignidade”. 

É entendida também a intenção de responsabilização pessoal de crimes contra a humanidade durante a gestão da pandemia que saiam da culpabilização do governo e seja atribuída a pessoas específicas, como é o caso de Bolsonaro, que neste Tribunal ocupou, pela primeira vez, a cadeira do réu. Como consta na Sentença oficial recebida na íntegra pela Agemt: 

“Ao contrário da maioria das sentenças do nosso Tribunal Permanente dos Povos, esta sentença refere-se à responsabilidade pessoal, ou seja, à responsabilidade penal de uma única pessoa: à culpa do presidente brasileiro Jair Messias Bolsonaro por crimes contra a humanidade.”

Até o momento, as sentenças feitas pelo TPP dedicaram-se a fenômenos criminosos não atribuíveis a pessoas em específico, classificados como “crimes de Sistema”, coisa que mudou com a decisão lida hoje. Para o Tribunal, essa implica em uma “resposta pessoal de crime contra a humanidade”, além de  que “não se trata de responsabilidade política, mas responsabilidade penal”.

Sobre o evento, Celso Campilongo, diretor da Universidade de Direito da USP, afirmou que é um “orgulho para a faculdade receber esse evento e essa sentença tão importante”. Campilongo mencionou que esta ocasião foi o “último pedido do Professor Dalmo Dallari”, professor emérito da USP falecido em 8 de abril deste ano, e que a diversidade do público ali presente ganha magnitude devido à atual conjuntura do país.

Raquel Dodge, Ex-Procuradora-geral da República, afirma em discurso que “todos os Seres Humanos são portadores da mesma dignidade e direitos inalienáveis". Diz também que a Constituição veio para interromper o passado de diferentes regimes ditatoriais que “usavam da força para impedir os direitos e a liberdade”, estimulando que os governos subsequentes utilizem da razão para governar e construindo uma “memória coletiva para lembrar do que não podemos mais tolerar”.

Para o Tribunal, os crimes de Bolsonaro contra a humanidade foram dolosos: “o ato [de negligenciar a gestão da pandemia] não pode ser atribuído ao descuido, foi claramente doloso”, mas, o que fez não foi caracterizado por Genocídio. “O Tribunal considera que seria apropriado levar o caso ao Tribunal Internacional para que decida se é Genocídio”, afirma a leitura da sentença.

 

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Esta foi a primeira ocasião na qual o atual Presidente da República foi condenado e ocupou a cadeira de réu. Para a organização, há um sentimento de esperança que considera que esta condenação será a “primeira, não a única”, já que o caso foi levado ao Tribunal Penal Internacional de Haia para ser avaliado e possivelmente julgado. “Políticas homicidas são crimes, devemos dar a elas os nomes que têm, ou seja, crimes de violação dos Direitos Humanos”, afirma o leitor da Sentença.

Entretanto, a não condenação de Bolsonaro em nenhuma outra instância até o momento, para a Comissão Dom Paulo Evaristo Arns, revela a incapacidade da justiça brasileira de fazer frente às ações criminosas do atual presidente, assim como o posicionamento omisso da Procuradoria geral da República (PGR) e dos presidentes da Câmara revelam um apoio a esses crimes. 

Maurício Terena, representante do povo Terena (presente no MS, MT e em SP) que depôs contra Bolsonaro nas sessões realizadas em Maio deste ano, celebrou o fato de que a uma semana da independência do Brasil, o TPP trouxe a primeira condenação do presidente. Afirmou também que a política de saúde durante a pandemia foi utilizada para causar a morte - como na ocasião na qual a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) proibiu a entrada de Médicos Sem Fronteiras em tribos indígenas. “Os nossos corpos são feitos para a morte com ou sem pandemia. A lógica do Brasil é essa: nos matar. O presidente deve pagar por isso”.

 

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"Parente, faz soar seu Maracá", pede Maurício a ouvinte
Foto: Giulia Aguillera
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Maurício Terena (ao fundo) durante seu discurso
Foto: Giulia Aguillera

 

Terena questiona: “quando alguém vai ser condenado por genocídio? Eu tenho esse compromisso de fazer essa pergunta”, completa.

Shirlei Marshal, que também depôs contra o Presidente nas primeiras sessões do Tribunal, retorna ao pleito representando os profissionais de saúde que estiveram presentes na luta contra a pandemia de Covid-19, diz que “hoje nós demos o primeiro passo” e que sua classe de trabalho optou por “defender a vida enquanto o governo optava por defender a morte”.

 

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Shirley Marshal (de jaleco) representando a comunidade de proifissionais da saúde
Foto: Giulia Aguillera
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Daniela Mercury também esteve presente na ocasião e foi entrevistada pela Agemt. A cantora esteve trabalhando há alguns anos como ativista social além de estar junto ao Observatório de Direitos Humanos junto com a Comissão Arns. “Nós nos mobilizamos durante a pandemia. Fizemos cartas para todos os órgãos governamentais pontuando nossas preocupações em relação ao atraso da compra das vacinas, aos atos antidemocráticos , ao negacionismo… questões tratadas no TPP”, afirma à agência.

Uma revisão da lei é necessária 10 anos após sanção. Veja a opinião do candidato para o tema
por
Gabriella Maya
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23/08/2022 - 12h

A atual política de cotas garante metade das vagas a alunos da rede pública para pretos, pardos, indígenas, pessoas com deficiência e população de baixa renda. Pela legislação, o processo de revisão deve ser feito 10 anos após a sanção, que ocorreu em agosto de 2012.

Saiba como o candidato à presidência Ciro Gomes, se posiciona sobre a questão:

No dia 19 de junho, Ciro postou em uma rede social, que o Partido Democrático Trabalhista (PDT) havia entrado com uma ação no STF para "proteger a tão importante política de cotas para o acesso às universidades brasileiras".

Em seu programa de governo, um trecho relacionado à população negra diz que "a ação mais urgente é o acesso as universidades públicas e as vagas nos concursos públicos, mais especificamente ao sistema de cotas".

"Pedimos ao STF que qualquer revisão seja para melhoria do programa e que não se permitam retrocessos. Todos temos de ficar atentos e vigilantes!", escreveu o candidato.

À Globo, o candidato afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que a Lei "foi muito bem-sucedida e deve prosseguir com as mesmas características" em seu governo.

A Sessão Solene na Câmara Municipal foi marcada pela defesa da liberdade de imprensa e pela tímida presença de estudantes e jornalistas do Consórcio.
por
Artur dos Santos
Victoria Leal
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28/06/2022 - 12h

A sessão foi mobilizada pelo vereador Eliseu Gabriel em defesa do jornalismo profissional, da liberdade de imprensa e da democracia, e foi sediada na Câmara Municipal na terça-feira (23). Contou com a homenagem a jornalistas defensores da liberdade de imprensa, dentre os quais estava Dom Philips, assassinado na última semana na Amazônia. 

Discursos emotivos relembraram a vida de Audálio Dantas (jornalista brasileiro premiado na ONU pela defesa dos direitos humanos) e de Elifas Andreato enquanto marcavam o momento pelo qual a classe dos jornalistas passa atualmente no país. Perseguição, dignidade para exercer a profissão, liberdade de imprensa e a importância dessa profissão para a manutenção da democracia foram alguns dos temas tratados nos discursos.

Também foi mencionado o caso da extradição de Julian Assange (jornalista criador do Wikileaks hoje preso no Reino Unido por exercer sua profissão) e o como o trabalho realizado por ele foi importante para informar a população sobre o que acontece em regiões como Guantánamo e Afeganistão - crimes de guerra relatados pelo site Wikileaks e que têm como infrator o Estado dos Estados Unidos. Ainda sobre Assange, foi dito que a perseguição implacável que é feita contra ele não  se limita apenas a ele, mas uma ameaça a toda a classe de jornalistas.

Thiago Tanji, presidente do Sindicato dos Jornalistas, também discursou. Abriu sua fala enfatizando que não há muitos motivos para comemorar, quando o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips foram mortos por exercerem suas profissões e seus ofícios. Diz que os jornalistas merecem dignidade e respeito ao exercer a profissão e que “devemos lutar contra a opressão do passado e contra a opressão do presente”.

Por mais que o assassinato de Bruno Pereira e Dom Philips tenham tido destaque nos discursos da sessão, não foram as únicas reivindicações presentes. Discursos evidenciaram as dificuldades que a região amazônica passa e que mortes de Defensores da Floresta são recorrentes, que “temporadas de caça” contra esses defensores ocorrem todos os anos e que, por não serem brancos e não terem “passaporte inglês”, não ganham o destaque que merecem e precisam.

Daniel Pereira, representando os Repórteres sem fronteiras, enfatiza que o Brasil é o segundo país no continente americano que mais mata jornalistas, além de insultos e estigmatização contra essa classe serem marcas registradas do governo atual. Daniel segue seu discurso dizendo que a defesa e a segurança do jornalista não dependem apenas da pessoa que exerce a profissão, mas também de instituições, pois “é um compromisso político constitucional”.

A Sessão Solene também foi marcada por presenças ilustres do jornalismo brasileiro nas pessoas de Sérgio Gomes e José Alberto Lovetro (Jal). Ambos emocionados, relembraram a vida de seus mentores e amigos e a morte de jornalistas pelas mãos de “covardes atrás de armas que matam heróis que não se escondem atrás delas”, como disse Jal em seu discurso. 

Após a fala dos representantes e membros dos sindicatos, houve um momento de homenagem ao indigenista Bruno Pereira e ao jornalista Dom Phillips, assassinados no começo do mês de junho na região do Vale do Javari.

Por meio da leitura do texto "Com a tragédia de Dom Phillips e Bruno Pereira, um limite foi ultrapassado na Amazônia — a nós, que estamos vivos, só cabe a luta” de Eliane Brum, publicado em 17 de junho, a atriz Georgette Fadel deu voz aos sentimentos da jornalista, verbalizados com auxílio do coro Luther King. O coro prestou homenagem a dupla e a diversos outros nomes do jornalismo, através de trechos cantados e as mãos pintadas de tinta vermelha, simbolizando a violência sofrida pela categoria. 

 

Sessão solene
Homenagem do coro Luther King na Sessão Solene na Câmara Municipal de São Paulo (Foto: Victoria Leal

 

Sérgio Gomes cobra a presença de jornalistas do Consórcio, ausentes na sessão, e questiona a timidez com a qual foi recebido o hino da Proclamação da República: Estão com medo de quê? De gritar Liberdade, Liberdade, Liberdade? Termina seu discurso enunciando Ernest Hemingway dizendo que “coragem é a dignidade sob pressão; o resto é covardia”.

Com a presença tímida de estudantes e a ausência  de jornalistas do consórcio o evento se encerra em tom emotivo; vidas de amigos e colegas da classe de trabalho foram homenageadas e relembradas nos discursos, parte da memória e do futuro da profissão foram ali passados aos ouvintes.