Realizado no Parque da Juventude, o evento reuniu educadores, pesquisadores e vítimas para reivindicar o reconhecimento do massacre após 33 anos, e fortalecer ação judicial contra o Estado de São Paulo
por
Daniela Cid
Maria Clara Palmeira
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23/10/2025 - 12h

Quem caminha pela Avenida Cruzeiro do Sul e entra no atual Parque da Juventude, no bairro de Santana, em São Paulo, ao ver uma área aberta com bancos, árvores e até mesmo a estrutura de um circo, talvez não tenha consciência de que ali ocorreu um dos maiores crimes de estado da história do país. O nome “Carandiru” é conhecido nacionalmente através da indústria cinematográfica e por outras entidades que comentam sobre o famoso massacre ocorrido no dia 02 de outubro de 1992, e que hoje permeia a memória coletiva brasileira como uma lenda. 

Imagem da estrutura da antiga casa de detenção com a localização de cada pavilhão. Atualmente nesta área encontra-se o Parque da Juventude e ETEC, local onde aconteceu o evento. Foto: Daniela Cid
Imagem da estrutura da antiga casa de detenção com a localização de cada pavilhão. Atualmente nesta área encontra-se o Parque da Juventude e ETEC, local onde aconteceu o evento. Foto: Daniela Cid/AGEMT

33 anos mais tarde, no mesmo local do ocorrido, acontecia o evento Território Memória Carandiru, protagonizado por sobreviventes do massacre e familiares de vítimas. O evento teve como objetivo fortalecer o processo judicial movido pelo educador e sobrevivente do massacre Maurício Monteiro contra o Estado de São Paulo, buscando indenização e reconhecimento para sobreviventes e famílias, um pedido que já havia sido negado anteriormente por prescrição da ação. O ato também integrou a comunidade carcerária pela luta por memória e reparação: “O evento é significativo para a gente entender que essas mortes que foram provocadas pelo Estado, de pessoas que estavam sob a sua tutela, não resultaram em uma melhora, pelo contrário, tivemos uma propagação do crime, com criação de mais penitenciárias”, explica Maurício Monteiro."

O evento também contou com a presença de Camila Tourinho, Coordenadora do Núcleo Especializado da Situação Carcerária (NESC), Maíra Machado, Coordenadora do Grupo de pesquisa em Direito e Violência do Estado da FGV Direito-SP, Maria Cecília Asperti, Professora do curso de Direito da FGV e Advogada Orientadora do Centro de Assistência Jurídica Saracura (CAJU), Tâmara Nascimento, Coordenadora do centro de Referência de Promoções da Igualdade Racial (CRPIR-Carandiru), Raílda Alvez do AMPARAR e Hamilton Pereira da Silva, Assessor do Gabinete Ministerial do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. 

“Tive filho na FEBEM e no cárcere”, conta Raílda Alvez, “Essas pessoas já foram marcadas para morrer, e essas mesmas pessoas continuam morrendo dentro do sistema prisional. Quantos mais dos nossos vão morrer porque são pobres, pretos e periféricos? (...) São dadas como mortes naturais, essas pessoas são assassinadas o tempo todo nesses espaços de violência”, desabafa. Além da violência sofrida dentro do cárcere, outros temas foram discutidos, como a ineficácia da ressocialização. Edson Pereira, formado em enfermagem e egresso da Casa de Detenção, comenta sobre a dificuldade em encontrar emprego mesmo após 30 anos de cumprimento da pena: “eu sou aprovado na entrevista, mas quando pedem meu documento eles me descartam, inventam umas desculpas”, comenta Edson, “dizem que meu currículo é bom, mas pelo jeito não fala por mim, a ponto de eu conseguir provar que eu sou honesto e que eu quero trabalhar”. 

Estima-se que 3,5 mil tiros de fuzis AR-15 e submetralhadoras tenham sido disparados em apenas 20 minutos no dia 02 de outubro de 1992. A repercussão internacional da época colocou o Brasil nos holofotes e resultou em denúncias à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Até hoje, nenhuma das autoridades competentes foi punida pelo Estado. 

Fotos das 111 vítimas do Massacre do Carandiru no dia 02 de outubro de 1992, no evento de 33 anos do acontecimento. Foto: Daniela Cid
Fotos das 111 vítimas do Massacre do Carandiru no dia 02 de outubro de 1992, no evento de 33 anos do acontecimento. Foto: Daniela Cid/AGEMT

De acordo com o Centro de Assistência Jurídica Saracura da FGV (CAJU), hoje os processos de tortura contra o Estado no Brasil são imprescritíveis. O trabalho em conjunto com o Núcleo Memórias Carandiru é realizado para que o governo brasileiro reconheça o Massacre do Carandiru como uma grave violação de direitos humanos, um ato cruel de tortura. Além disso, os sobreviventes alegam que o número de 111 mortos divulgado pelo Estado não é exato, tendo muitos deles contado mais de 200 no dia seguinte ao acontecimento. 

Presente no evento, Alexandre Carvalho, formado em direito penal, professor e amigo íntimo de Maurício, relata: “O senso comum sobre o Massacre é de que ‘bandido bom é bandido morto’ e de que morreram poucos, mas o que é visto cotidianamente, de fato, é uma busca por justiça”. 

Roda de conversa entre Maurício Monteiro e representantes do CAJU (FGV) sobre imprescritibilidade de processos de tortura. Foto: Maria Mielli
Roda de conversa entre Maurício Monteiro e representantes do CAJU (FGV) sobre imprescritibilidade de processos de tortura. Foto: Maria Mielli/AGEMT

 

Memórias Carandiru: é preciso lembrar para não repetir

O Núcleo Memórias Carandiru é formado pelos educadores Maurício Monteiro, sobrevivente do Massacre no Carandiru, Helen Baum e Walter Luiz, sobreviventes do cárcere, e Nádia Lima, museóloga. O projeto realiza um roteiro quinzenal gratuito pelo Parque da Juventude, onde os educadores apresentam os locais dos pavilhões da antiga casa de detenção relatando suas experiências dentro do cárcere, enquanto os sobreviventes compartilham o que viveram no dia do massacre. Além do roteiro, este núcleo realiza pesquisas de arquivos e casos relacionados ao Massacre do Carandiru em conjunto com grupos de estudos da USP, Unifesp e FGV. O objetivo é oficializar um projeto de memória do Massacre, para que não volte a acontecer. 

Maurício Monteiro em roteiro do Memórias Carandiru, em frente ao local onde ocorreu o Massacre do Carandiru (Antigo pavilhão 9), hoje demolido. Atualmente se tornou um estacionamento de carros. Não há placas de referência histórica no local. Foto: Maria Mielli.
Maurício Monteiro em roteiro do Memórias Carandiru, em frente ao local onde ocorreu o Massacre do Carandiru (Antigo pavilhão 9), hoje demolido. Atualmente se tornou um estacionamento de carros. Não há placas de referência histórica no local. Foto: Maria Mielli/AGEMT

Reflexo da importância deste projeto de memória é o caso de Bruna Castorino Alves, filha de uma das vítimas que obteve arquivos de seu pai graças ao projeto. “Eu era uma criança quando meu pai foi assassinado em 1992. (...) Se hoje eu tenho fotos, e coisas sobre o meu pai é graças ao Maurício, que fez esse projeto maravilhoso, pois desde quando eu me conheço por gente, a única coisa que eu tinha era o atestado de óbito que diz que ele foi morto por bala na Casa de Detenção, no Massacre do Carandiru”, declara Bruna. “Eu, quando era criança, gostava de futebol, mas não entendia o porquê de eu gostar tanto, e hoje eu sei que é porque ele também gostava.” 

O roteiro é gratuito, para realizá-lo basta preencher um formulário de presença através do Instagram @memoriacarandiru para as datas disponíveis.

Confira também a videorreportagem:

 

 

Em vídeos publicados nas redes, a educadora relatou o ocorrido
por
Marcelo Barbosa Prado
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22/10/2025 - 12h

Após passar em primeiro lugar em um concurso docente para a Universidade de São Paulo (USP), a professora Érica Bispo, de 45 anos, foi surpreendida com a anulação do resultado. Aprovada para lecionar o curso “Literaturas Africanas de Língua Portuguesa”, seis concorrentes brancos alegaram favorecimento da candidata e o Conselho Universitário decidiu aceitar o pedido.

 

Antes de prestar a prova, Érica passou por uma série de problemas de saúde, o que resultou em seu afastamento da vida acadêmica. Ainda enquanto doente, a professora  viu um edital aberto na USP e decidiu que queria voltar a estudar. Foi então que ela prestou o concurso e, sem expectativas, passou no exame em primeiro lugar. “Nem consegui dormir de tanta emoção. Eu tinha sido aprovada para a maior universidade do Brasil”, disse.

Depois de um tempo sem receber notícias sobre a prova, Érica entrou em contato com o apoio acadêmico e foi orientada sobre as etapas de nomeação e posse. Ela começou a acompanhar as reuniões da Congregação da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas) pelo YouTube e, durante uma das transmissões, descobriu que havia uma contestação contra o concurso.

A FFLCH chegou a homologar o resultado, mas depois revogou o processo seletivo para a disciplina. Érica iria se mudar do Rio de Janeiro para São Paulo, com o intuito de assumir o cargo e se casar. A anulação do concurso fez com que Érica ficasse doente e com uma infecção, chegando a perder mais de cinco quilos  em um mês, segundo ela, em relato dado à AGEMT. “Nesse contexto, minha vida acadêmica se tornou um escudo e fonte de forças. Organizei dois simpósios temáticos em dois congressos diferentes, além de participar de um congresso este ano. Submeti alguns artigos a revistas acadêmicas e quero concluir mais dois antes do fim do ano”, afirmou.
 

Reprodução: CAELL-USP| Arte postada nas redes sociais pelo Centro Acadêmico de Letras da USP
Arte produzida pelo Centro Acadêmico de Letras em repúdio à anulação do concurso de Érica. Reprodução: CAELL-USP- Instagram

 

Ao todo, 15 candidatos estavam inscritos no processo e as seis pessoas que entraram com recurso alegaram que a professora tinha uma “relação de proximidade com a banca avaliadora”. A acusação referia-se a algumas fotos postadas por Érica nas redes sociais, em que ela frequentava eventos dos quais pessoas da banca também estavam. Na ocasião, Érica estava em um Congresso de literatura africana e publicou a foto com a breve legenda “Entre amigos é muito bom”. Segundo ela, a imagem não comprova amizade com nenhuma das pessoas. 

Além de entrarem  com recurso na USP, esses candidatos também recorreram à justiça. Depois de passar pelo Ministério Público, o órgão entendeu que não havia irregularidades no processo seletivo.

Mesmo após o arquivamento do caso pelo Ministério Público, a FFLCH publicou uma nota nas redes sociais confirmando a abertura de um novo concurso. Enquanto  as inscrições já foram abertas, Érica segue procurando justiça. Em uma sequência de vídeos publicados, via Instagram, na segunda semana de outubro, Érica denunciou o ocorrido e abordou o tratamento que tem recebido por parte da universidade, da imprensa e de coletivos.

Na USP, o curso de letras se pronunciou sobre o acontecimento. O Centro Acadêmico de estudos linguísticos e literários Suely Yumiko, de Letras, emitiu uma nota repudiando a falta de diversidade e divulgando um abaixo-assinado em defesa de Érica. 

A AGEMT entrou em contato com a FFLCH e, em nota, eles alegam que houve diferentes análises antes da decisão. Veja a nota na íntegra:

"
A Erica foi aprovada em primeiro lugar, e a Congregação da FFLCH homologou o resultado, aprovando o relatório da banca examinadora. O processo de contratação da Érica foi iniciado pela FFLCH. Alguns candidatos entraram com recurso, o qual foi indeferido pela Congregação da FFLCH. Os candidatos, então, fizeram recurso junto ao Conselho Universitário, órgão máximo da Universidade. Após análise, a Procuradoria Acadêmica da USP recomendou a anulação do concurso, que foi aprovada pelo Conselho Universitário, que considerou que havia indícios de relações de proximidade da candidata aprovada e indicada com pessoas integrantes da banca. Essa conclusão teve embasamento em postagens em redes sociais em que, além de fotos, havia expressões de amizade. Sendo uma decisão do Conselho Universitário, a FFLCH não tem como reverter a decisão. Informamos também que, no momento da inscrição, houve três candidaturas de pessoas autodeclaradas negras (PPI), que foram deferidas pela banca de heteroidentificação da Faculdade, mas apenas a Erica realizou as provas do concurso, sendo que os demais não compareceram."

A professora acredita que isso é um reflexo do Brasil, que não vê negros em uma posição de professor universitário. “ O país se construiu sobre uma estrutura escravocrata, que, mesmo após a abolição, continuou a definir os lugares sociais que poderiam ser ocupados como negros”.

 

Mortes causadas por policiais a pessoas já rendidas reacende questionamentos sobre a segurança estatal
por
Daniela Vicente Cid
Victoria Ignez
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11/09/2025 - 12h

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025, aponta que o país vive desde 2018 queda nas taxas de mortes violentas intencionais (MVI), reflexo de políticas públicas, prevenção à violência e mudanças no crime organizado. Contudo, 14% das MVI são de autoria policial, resultando em 60.394 vítimas entre 2014 e 2024. Em cidades como Itabaiana (SE), Santos (SP) e São Vicente (SP), a violência policial responde por mais de 60% das mortes. O perfil das vítimas segue concentrado em homens negros mortos por armas de fogo. 

O anuário alerta: “Mesmo diante de reduções gerais nas MVI, o Brasil ainda falha em garantir padrões mínimos de controle institucional da ação policial.” 

Análise produzida a partir dos microdados dos registros policiais e das Secretarias estaduais da Segurança Pública e/ou Defesa Social. Imagem/Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Análise produzida a partir dos microdados dos registros policiais e das Secretarias estaduais da Segurança Pública e/ou Defesa Social. Imagem/Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 

 

Conexões entre agentes do Estado e crime organizado 

O anuário também destaca que a “licença para matar” foi historicamente concedida a quem deveria zelar pela lei. A Operação Escudo, por exemplo, motivou ação da Defensoria Pública e criação de um relatório preliminar após 11 denúncias de violações de direitos humanos, em 2023.  

Outro caso citado pelo anuário é o de Vinicius Gritzbach, morto no aeroporto de Guarulhos por militares a mando do PCC em novembro de 2024, após colaborar com o Ministério Público em denúncias de lavagem de dinheiro e envolvimento de policiais civis em extorsões. 

Em artigo publicado no jornal da USP em 2023, o pesquisador Bruno Paes Manso lembra que episódios como o Massacre do Carandiru colaboraram para a formação do PCC, com o discurso de guerra contra o sistema. Para ele, “o crescimento da violência policial e das prisões, ao invés de fragilizar o crime, disseminou as gangues pelos presídios, que já ultrapassam os 70 grupos” – Comenta, “Longe de promover a ordem e reduzir o crime, portanto, as medidas populistas como as aplicadas no passado recente vêm promovendo o caos.” 

Saúde mental dos policiais 

O anuário também aborda a vitimização de policiais. Entre 2018 e 2024, as mortes em confronto caíram, mas os suicídios aumentaram. Hoje, esta é a principal causa de morte na categoria, seguida por confrontos durante a folga e em serviço. 

Embora a PM registre mais mortes gerais devido à natureza do trabalho, as taxas de suicídio destes são semelhantes às da Polícia Civil. O perfil dos policiais vítimas de homicídios, tanto em confronto, quanto em pausa é majoritariamente de homens negros, de 40 a 44 anos. O documento não detalha os perfis em casos de suicídio. 

Fatores apontados no último anuário e relembrados neste incluem assédio moral intenso, cobrança por metas, endividamento, insegurança jurídica e desgaste pelo contato contínuo com situações de risco. O fácil acesso a armas é um agravante. 

Na Bahia, onde os suicídios de policiais cresceram 66% no último ano, tentativas de entrevista com cadetes revelaram perda de subjetividade pelo receio em falar sobre saúde mental e outros temas como as câmeras de segurança sem autorização superior, com o seguinte argumento: “tudo o que eu tenho, agora pertence ao Estado”. A Bahia também se encontra entre os dez com maior taxa de letalidade policial. 

Proteção contra aqueles que nos protegem 

A nomenclatura de registros para ocorrências de mortes geradas em confrontos com policiais mudou de “resistência seguida de morte” para “morte decorrente de intervenção policial”, buscando mais rigor na investigação. As câmeras corporais, de acordo com o anuário, vêm auxiliando nesse processo, oferecendo dupla garantia: inibir abusos e proteger agentes de acusações infundadas. Elas têm auxiliado na visibilidade dos episódios de execução de suspeitos já rendidos.  

Apesar do incentivo federal, apenas 10 estados contavam com programas de uso de câmeras corporais em funcionamento em 2024. Em São Paulo, o governo retirou a obrigatoriedade da gravação contínua, gerando embates com famílias de vítimas, como foi o caso da Operação Escudo.  

Em maio de 2025, o STF homologou acordo para ampliar o uso das câmeras no estado, porém ainda deixa brechas. O contrato com a Motorola prevê aumento de 25% nos equipamentos, chegando a 15 mil, priorizando unidades de alta e média criticidade. O uso obrigatório vale em operações de grande porte, “comunidades vulneráveis”, ou em resposta a ataques contra policiais. A ativação pode ser feita pelo COPOM ou pelo próprio agente.  

O acordo prevê ainda o desenvolvimento de indicadores para avaliar a efetividade do programa. 

Câmera na farda da PM. Foto/Rovena Rosa/Agência Brasil
Câmera na farda da PM. Foto/Rovena Rosa/Agência Brasil

 

 

 

Tema em alta atravessa diferentes núcleos sociais como trabalho, práticas esportivas e afazeres domésticos
por
Fernando Amaral
Guilbert Inácio
João Paulo Moura
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06/10/2025 - 12h

O alvorecer do dia começa a despontar no horizonte, e milhares de meninos e meninas acordam para assumir responsabilidades que deveriam ser exclusivas do mundo adulto. Nas cidades, oferecem balas nos semáforos; no campo, ajudam na colheita; em lares da periferia, cuidam dos irmãos menores. Esse dia a dia revela mais do que trabalho precoce, é a adultização forçada. 

De acordo com relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), 138 milhões de crianças se encontravam em situação de trabalho infantil em 2024. Dentre elas, 61% dos casos estavam no setor agrícola, e 54 milhões ocupavam cargos de perigo à integridade do menor. 

No Brasil, os dados também são alarmantes. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) do IBGE, em 2023 havia 1,6 milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos nessa situação. O número, embora menor do que há vinte anos, ainda apresenta uma dura realidade: 4,2% de toda uma geração que deveria estar apenas estudando, brincando e crescendo sem pressa. Entre eles, 586 mil enfrentam tarefas que colocam sua saúde em risco. 

As desigualdades regionais dão forma ao problema. No Nordeste, 506 mil meninos e meninas ajudam a sustentar suas famílias, seja na roça, seja em atividades informais nas cidades. No Sudeste, os semáforos e camelódromos mostram outra face do mesmo drama. Já no Norte, quase 7% das crianças dessa faixa etária trabalham. A cor da pele também pesa, crianças pretas e pardas, que já são maioria entre os mais jovens, representam 65% de quem trabalha antes da hora. 

A rotina é pesada. Mais de um quinto dos que estão no trabalho infantil enfrentam 40 horas ou mais de serviço por semana, jornada igual à de um adulto. Para os de 16 e 17 anos, quase um terço já vive essa realidade. A escola é um dos pontos mais afetados, enquanto quase todas as crianças brasileiras estão matriculadas, apenas 88% das que trabalham conseguem permanecer estudando. As outras veem a sala de aula ser substituída pelo balcão, pelo campo, pela rua. 

O prejuízo não é só educacional, a infância roubada também deixa marcas emocionais. Muitos aprendem cedo a conviver com a preocupação da falta de comida, com o medo do desemprego dos pais ou com a responsabilidade de cuidar dos irmãos. A pressa em amadurecer elimina o espaço do lúdico, das brincadeiras que ensinam a sonhar. 

Mesmo com a proibição legal para menores de 16 anos, com exceção aos aprendizes a partir de 14, a regra é constantemente rompida. Nas comunidades mais pobres, a urgência da sobrevivência transforma a contribuição das crianças em algo naturalizado, quase obrigatório. Assim, ser criança acaba parecendo um privilégio distante. Cada hora de trabalho antecipado é também uma hora a menos de estudo, de descanso, de prática esportiva, de futuro. 

Responsabilidades no esporte 

Esse cenário também afeta o desempenho esportivo de jovens atletas, que precisam tomar decisões e assumir responsabilidade muito cedo, sendo, em alguns casos, os principais provedores de fonte de renda das famílias. 

A fotografia mostra o atleta Cristian, sentado em um banco de reserva, olhando fixamente em direção à câmera. A foto está em preto e branco
Atualmente, Cristian atua no Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa (COTP) / Foto: R7fotografo

Em entrevista a AGEMT, conhecemos Cristian Alves Oliveira, um dos atletas que viveu essa realidade. Hoje em São Paulo, o jovem de 18 anos é originário de Belford Roxo na Baixada Fluminense (RJ) e veio sozinho para a capital paulista por causa de uma oportunidade que surgiu no começo do ano de 2025.  

Cristian chegou a São Paulo para ser o goleiro do Real Cubatense de São Bernardo dos Campos na Taça São Paulo, campeonato amador organizado pela Federação Alternativa de Desporto.  

"Eu só ia disputar esse campeonato e voltar para o Rio, mas, ao decorrer dessa competição, outras oportunidades surgiram: morar aqui e defender o clube que estou hoje. Essa chance surgiu em um momento que eu estava pensado em parar de jogar bola. Então quando recebi essa oportunidade de poder vir para São Paulo e jogar, eu agarrei como se fosse a esperança do meu futuro." Destaca o atleta. 

Presente desde sua infância, o futebol se tornou um objetivo na vida de Cristian quando tinha 15 anos. Em 2022, ele decidiu que queria viver disso, mas não conseguia focar totalmente no esporte, pois tinha que estudar e trabalhar. O goleiro lembra que arrumou seu primeiro emprego com 14 anos, em um Sacolão, para poder ajudar sua família.

"Comecei a trabalhar cedo para poder ajudar em casa e para ter minhas coisas. Eu tinha que dividir o tempo para treinar, trabalhar e estudar. Era uma rotina muito cansativa que eu tinha no Rio e, às vezes, tinha que sacrificar alguma dessas coisas porque atrapalhava um pouco no meu rendimento esportivo, mas eu não podia deixar de trabalhar e ajudar em casa."  

Três anos depois, o atleta está se dedicando só ao futebol. Ele conta que a vida na capital paulista é muito diferente de Belford Roxo, porém ele segue atrás de seu objetivo porque a família depende dele. “É uma rotina muito cansativa, mas é a oportunidade que eu pedia a Deus e ele está me proporcionando. Cheguei em São Paulo em 4 de janeiro e vim sozinho, um grande desafio para mim. Conviver longe da família não é fácil, tem que saber lidar com as emoções, saudades etc., mas sempre tento manter contato com eles porque assim ameniza um pouco as saudades.” 

A história de Cristian mostra um cenário recorrente em nosso país, pois, embora tenhamos diretrizes que regulam a prática esportiva de crianças e jovens como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/2023), outros mecanismos sociais inviabilizam a prática esportiva plena. 

Isso leva muitos, ainda novos, a abandonarem seus sonhos. Como exemplo, uma reportagem feita pela Folha de São Paulo em 2024 analisou a trajetória dos atletas que jogaram a Copa São Paulo de Futebol Junior, a copinha, em 2010. Segundo os dados obtidos, 36,9% dos atletas desistiram de tentar a carreira no esporte. 

Esses dados em um dos campeonatos mais importantes de formação de futebolistas são preocupantes. Vale destacar que o futebol é o esporte mais popular no país, ou seja, os dados em outras modalidades, como as olímpicas, devem ser mais críticos. 

O país até tem o programa Bolsa Atleta, que entrou em vigor em 2025 com o objetivo de patrocinar individualmente atletas e para-atletas de alto rendimento em competições nacionais e internacionais de sua modalidade. Contudo a maioria dos esportivas enfrentam inúmeras barreiras socioeconômicas até conseguirem chegar de fato nessas competições de alto rendimento, em que poderão vislumbrar um futuro mais otimista. 

Trabalho doméstico 

Entre as várias faces da adultização forçada, uma das mais silenciosas é a realidade de crianças que assumem tarefas domésticas para que seus pais ou responsáveis possam trabalhar fora. Longe de ser apenas uma “ajuda”, essa dinâmica transfere a elas responsabilidades que ultrapassam os limites da infância, comprometendo seu desenvolvimento emocional, social e até escolar. 

Catia Silene, psicóloga infantil, explica que, ao assumir papéis que não condizem com sua idade, essas crianças podem carregar marcas profundas para a vida adulta. “As crianças sobrecarregadas, com muitas responsabilidades inadequadas para sua idade, podem desenvolver ansiedade, estresse e um sentimento constante de pressão”, afirma.

Segundo ela, isso ocorre porque muitas vezes o esforço não é reconhecido, o que gera “baixa autoestima e a sensação de que nunca são boas o suficiente... é uma independência colocada em um lugar que não é dela”. 

A imagem, em preto e branco, mostra uma menina de costas olhando para uma pia.
Criança realizando tarefa domésticas / Fonte: Gênero e Número 

Em 2023, segundo a PNAD, da população estimada de 38,3 milhões de crianças e adolescentes, 52,6% (cerca de 20,1 milhões) realizavam afazeres domésticos e/ou tarefas de cuidado, sendo 69% de classes baixas e 57% meninas. Em famílias numerosas ou sem condições financeiras de contratar alguém para cuidar dos mais novos, é comum que o filho ou a filha mais velha seja encarregado dessa função. 

A psicóloga alerta que esse modelo pode desorganizar a noção de autoridade dentro do lar. “Às vezes os pais dizem: ‘cuida do seu irmão porque você é mais velho’. Mas esse jovem não tem maturidade para ocupar esse lugar e acaba recorrendo a formas punitivas ou ameaçadoras. Isso confunde quem é cuidado... quando isso se perde dentro da família, a confusão se projeta para a vida em sociedade” explica. 

Esse cenário, além de prejudicar a relação entre irmãos, pode gerar dificuldades sociais futuras. Uma criança que cresce sem referências claras de autoridade tende a apresentar comportamentos desafiadores e resistência a regras, tanto na escola quanto em outros ambientes. Apesar de, em alguns casos, ‘despertar’ um senso precoce de responsabilidade, a adultização no espaço doméstico tira da criança oportunidades essenciais de brincar, conviver com os demais jovens e aprender pela sua própria experiência pessoal. 

O debate sobre adultização infantil revela que, por trás da ideia de “ajuda em casa” ou de “responsabilidade precoce”, existe uma prática que limita direitos e impõe às crianças papéis que não deveriam assumir. Longe de ser um sinal de maturidade, trata-se de um processo que compromete a infância e pode deixar marcas para a vida adulta. 

Mais do que enxergar “pequenos adultos”, é preciso compreender também que se trata de um fenômeno ocasionado por desigualdades de gênero, classe e raça, do qual sobrecarregam as crianças. Encarar essa realidade como uma violação de direitos é um passo essencial para que a infância deixe de ser vista como apenas uma passagem para a vida adulta, mas sim como uma iniciação no mundo, com práticas de aprendizado, inocência e, além de tudo, protegidas. 

Episódios contam histórias reais de jovens que morreram por tiros com armas das
por
Khauan Wood
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16/06/2025 - 12h

Idealizado, produzido, dirigido e apresentado por Khauan Wood, estudante do curso de jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o podcast tem o intuito de contar histórias reais de jovens que morreram em decorrência da violência policial do Brasil.

Dados de um relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgado em abril de 2025, mostram que a taxa de mortalidade de crianças e adolescentes pela PM cresceu 120% entre 2022 e 2024, apenas no estado de São Paulo.

Com uma imersão sonora, o áudio é pensado para ser rápido. Tudo no podcast é pensado para se assemelhar a um tiro. Além disso, conta com músicas que retratam justamente a violência policial no país.

Ficha técnica

  • Idealização, direção e apresentação: Khauan Wood

  • Duração: 5min22seg

  • Orientação: Prof.ª Dra. Anna Flavia Feldmann

 

Dom Phillips e Bruno Pereira também foram homenageados.
por
Maria Ferreira dos Santos
Camilo Mota
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23/06/2022 - 12h

Nesta terça-feira (21), aconteceu na Câmara Municipal de São Paulo a Sessão Solene em comemoração ao Dia do Jornalista e da Liberdade de Imprensa, celebrados em 07 de abril e 03 de maio, respectivamente. O evento reuniu vereadores da Comissão de Educação e Cultura do parlamento paulistano, presidida pelo vereador Eliseu Gabriel (PSB) e contou com as vinte e cinco entidades representantes dos direitos e interesses dos jornalistas no Estado. Também estavam presentes os Centros Acadêmicos Benevides Paixão (PUC-SP), Vladimir Herzog (Cásper Líbero) e Lupe Cotrim (ECA-USP), que integram o núcleo do troféu Audálio Dantas em conjunto com o Projeto Repórter do Futuro da Oboré e da Família Kunc Dantas. Os supracitados estiveram unidos na ocasião após a carta aberta feita aos professores e alunos de jornalismo, elaborada pelos componentes das organizações estudantis mencionadas.

Solenidade em comemoração ao dia do jornalista e ao dia da liberdade de imprensa contou com políticos, jornalistas, professores e estudantes de jornalismo. Foto: Maria Ferreira dos Santos.
Solenidade em comemoração ao dia do jornalista e ao dia da liberdade de imprensa contou com políticos, jornalistas, professores e estudantes de jornalismo. Foto: Maria Ferreira dos Santos.

 

A cerimônia iniciou-se às 19h com a apresentação da banda da Guarda Civil Metropolitana, nesta ocasião o medo que permeia a sociedade brasileira foi evidenciado após a execução do Hino da Proclamação da República que conclama “liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós”. “Que liberdade é essa que as pessoas têm medo de cantar?'', questionou Sérgio Gomes, jornalista, professor e um dos fundadores da Oboré. No momento de falas dos componentes da mesa da solenidade, o presidente do Centro Acadêmico Vladimir Herzog, Caio Mello, também fez alusão à canção: ”Não adianta clamar pelas asas da liberdade, sem olhar a quem todos os dias trabalha dentro e fora das instituições para cortar essas asas”.

Em consonância com a defesa da imprensa, o teólogo e escritor Leonardo Boff comentou em depoimento que os jornalistas “anunciam os fatos da realidade, especialmente aqueles que os poderosos querem esconder, e denunciam os desvios, as corrupções e as maldades que se fazem contra o povo. Isso tudo é uma ajuda para a democracia e resguarda a dignidade do nosso país. Temos que apoiar essa articulação das entidades jornalísticas”.

Da esquerda para direita: Carmen Diniz, Caio Mello, Camilo Mota, Thiago Tanji, Vanira Kunc Dantas, Eliseu Gabriel, Regina Pimenta, José Alberto Lovetro, Daniel Ferreira, Luciano Victor Barros Maluly, Rogério Sottili e Juliana Cardoso. Foto: Maria Ferreira dos Santos.
Da esquerda para direita: Carmen Diniz, Caio Mello, Camilo Mota, Thiago Tanji, Vanira Kunc Dantas, Eliseu Gabriel, Regina Pimenta, José Alberto Lovetro, Daniel Ferreira, Luciano Victor Barros Maluly, Rogério Sottili e Juliana Cardoso. Foto: Maria Ferreira dos Santos.

O episódio foi um tributo aos trezentos jornalistas que integram o Consórcio de Veículos de Imprensa, criado para divulgar os dados sobre a pandemia no país, a partir da omissão do Governo Federal. Entretanto, houve homenagens a figuras específicas, sendo elas as de Elifas Andreato, Julian Assange, Dom Phillips e Bruno Pereira. O primeiro nome foi um ilustrador que através da sua arte lutou e denunciou os crimes da Ditadura Militar. Andreato faleceu em março deste ano. “Elifas é dessas  pessoas que nunca morrem e seguirão eternamente vivas em nossas memórias, em nossos corações. Nos inspirando a atuar pela construção de um país melhor”, declarou Rogério Sottili, diretor executivo do Instituto Vladimir Herzog.

Julian Assange teve sua trajetória destacada pela representante do Comitê Internacional Paz, Justiça e Dignidade aos Povos, Carmen Diniz. A coordenadora explicou que o jornalista detido na penitenciária de Belmarsh, nos arredores de Londres, foi preso por divulgar crimes de guerra e restrição de direitos cometidos pelos Estados Unidos e países aliados em combates no Iraque e Afeganistão, e agora corre risco de morte, pois o governo britânico assinou o decreto de extradição de Assange para os Estados Unidos. Diniz ainda acrescentou que “o pouco há para se fazer” pela liberação do australiano é necessário, uma vez que "juntos somos fortes". Além de Julian Assange, os repórteres do Consórcio de Veículos de Imprensa também foram homenageados com o Troféu Audálio Dantas - Indignação, Coragem e Esperança em cerimônia realizada na Praça Memorial Vladimir Herzog no dia 9 de abril.

Carmen Diniz diante de um púlpito com um cartaz com o rosto de Julian Assange estampado, seguido dos dizeres “Liberdade para Assange!”. Foto: Maria Ferreira dos Santos
Carmen Diniz diante de um púlpito com um cartaz com o rosto de Julian Assange estampado, seguido dos dizeres “Liberdade para Assange!”. Foto: Maria Ferreira dos Santos

Por fim, a última condecoração feita foi a de Dom Phillips e Bruno Pereira, assassinados pelo crime organizado e pela conivência do governo federal, enquanto exerciam seu trabalho em defesa do acesso à informação e da Amazônia e seus povos originários. Para tal, a atriz Georgette Fadel juntamente com o coral Luther King interpretaram o texto da jornalista Eliane Brum. A leitura do relato da consagrada profissional da imprensa frente às mortes de Dom Phillips e Bruno Pereira, foi um dos momentos mais marcantes da sessão solene.

Após a apresentação, Vanira Kunc, jornalista e viúva de Audálio Dantas, propôs que Eliane Brum fosse homenageada com o Troféu Audálio Dantas, em categoria especial. A sugestão foi aprovada por unanimidade pelas entidades e pessoas presentes. Como a autora mora em Altamira (PA), a atriz Georgette recebeu em seu nome e já está providenciando a entrega.

Coral Luther King ao final de sua apresentação. Foto: Maria Ferreira dos Santos
Coral Luther King ao final de sua apresentação. Foto: Maria Ferreira dos Santos

 

Vincius Lima, jornalista e co-fundador da ONG SP Invisível, conversa com AGEMT
por
Mariana Luccisano, Marcelo Ferreira, Majoí Costa e Nicole Conchon
|
21/06/2022 - 12h

Entrevista com Vincius Lima, jornalista e co-fundador da ONG SP Invisível, sobre as pessoas em situação de rua e as ações do Estado mediante a essa situação. Assista a entrevista. Links para doação para o SP Invisível: https://linktr.ee/spinvisivel e Paróquia do Arcanjo (Padre Julio Lancellotti): https://www.oarcanjo.net/site/apoio-moradores-rua/ 

Evento contou com a participação de importantes lideranças que atuam na defesa dos direitos humanos no país
por
Danilo Zelic
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06/06/2022 - 12h

Na quinta-feira passada (02) aconteceu o Seminário “Ditadura Nunca Mais! – O Brasil e o descumprimento das condenações internacionais por Violações de Direitos Humanos”, promovido pela Faculdade de Direito e os Centros Acadêmicos Benevides Paixão e Reconvexo de jornalismo e direito, respectivamente, da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).

A primeira parte do seminário teve a participação de Amélia Teles, presa política na ditadura e membro da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, a ex-prefeita de São Paulo e Deputada Federal, Luiza Erundina (PSOL), Rosalina Santa Cruz, professora de Serviço Social da PUC-SP, presa política durante a ditadura e membro da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos e Adriano Diogo, ex-deputado estadual e Presidente da Comissão da Verdade Rubens Paiva (ALESP/SP).

Ao falar sobre os casos de tortura durante a ditadura, a Dep. Luiza Erundina disse que “a ditadura nunca acabou durante esse tempo. Do período de 21 anos da vigência da ditadura militar” e seus desdobramentos contemporâneos, Erundina lembrou do caso de Genivaldo de Jesus Santos, 38, torturado e morto por policiais rodoviários federais em viatura da corporação após sofrer golpes e pontapés dos agentes e ser colocado no porta-malas do carro impregnado com gás lacrimogênio.

“Chegamos à dois, três dias atrás, num crime horrendo, que não se imaginava que em uma civilização, em um país dito democrático, se pudesse registrar um crime tão terrível, tão brutal, tão desumano, daquele cidadão lá em Sergipe. Nos deixa todos muito mal, nos deixa de uma certa forma nos perguntando, o que deixamos de fazer ou o que fizemos de errado para que as coisas chegassem a esse ponto”, lembrou a Deputada.

Rosalina Santa Cruz, Luiza Erundina e Amélia Teles
Rosalina Santa Cruz, Luiza Erundina e Amélia Teles - Foto: Victoria Leal

Amélia Teles começou falando sobre o papel que a universidade teve como palco de resistência no regime, “espaço democrático mesmo em tempo de ditadura”, citando o episódio que ficou conhecido como a Invasão da PUC, ocorrido em 1977. Naquele ano, tropas da polícia militar invadiram a universidade, à mando do Secretário de Segurança Pública do Estado, Erasmo Dias. “Aqui o Erasmo Dias invadiu a PUC, teve estudantes queimadas, mas a luta continuou. Então isso aqui tem muita história”, recordou Teles.

Representando a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos, Teles comentou da ação promovida por Erundina à frente da Prefeitura de São Paulo, realizando a abertura das valas clandestinas do Cemitério Dom Bosco, conhecido com Cemitério de Perus, zona norte da capital.

Para ela foi fundamental a abertura da Vala, principalmente quando a Comissão, ao lado de organizações de direitos humanos, entrou com uma ação contra o Brasil, no caso conhecido como “Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil”, que diz respeito aos mortos e desaparecidos políticos na Guerrilha do Araguaia.

No ano de 1990, após a descoberta feita pelo jornalista Caco Barcellos sobre corpos de militantes políticos executados pela ditadura serem enterrados no Cemitério Dom Bosco, a então prefeita decidiu instaurar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), na Câmara Municipal de São Paulo, para investigar os crimes cometidos durante a ditadura.

“Isso impulsionou e abriu possibilidades jurídicas. Porque a Vala de Perús trouxe uma informação que a sociedade não tinha, a gente falava em desaparecido e ficava uma coisa abstrata. De repente desaparecido tinha crânio, tinha esqueleto, tinha osso. Então isso deu credibilidade e legitimidade à nossa luta, porque a opinião pública passou a acreditar naquilo que a gente falava”, lembrou Teles.

mh
Marlon Weichert, Gabriel Sampaio, Débora Duprat e Eugênia Gonzaga - Foto: Victoria Leal

Participaram da segunda mesa Débora Duprat, ex-Subprocuradora Geral da República, do Ministério Público Federal (MPF), Marlon Alberto Weichert e Eugênia Gonzaga, ambos Procuradores da República do MPF e Gabriel Sampaio, advogado e coordenador do Programa de Enfretamento à Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos. O principal tema discutido por essa mesa foi as tomadas de decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) após ações construídas pela sociedade civil contra o Estado brasileiro.

De início, Duprat levantou um ponto importante para pensar alguns casos da justiça brasileira envolvendo violações aos direitos humanos: como o judiciário brasileiro se mantêm sem nenhuma alteração desde o fim do regime militar. “Como uma Constituição, portanto, de direito interno e direito internacional, tão forte, mantêm o mesmo judiciário da época da ditadura, nenhuma singela alteração, nenhuma”, disse Duprat.

Um dos casos citados por Duprat foi o “Favela Nova Brasília”. Entre 1994 e 1995, em decorrência de ações policiais na comunidade Nova Brasília, no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, 26 pessoas morreram e três adolescentes foram vítimas de violência sexual durante o ocorrido. Mais de dez anos depois, em 2017, decisão da CIDH condenou o Estado brasileiro por violência policial nesse caso. O Estado reconheceu a condenação sofrida.

“A gente continua tendo o Jacarezinho [ação policial, conhecida como Chacina do Jacarezinho, ocorrida na Favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, que resultou na morte de 28 pessoas, incluindo um policial, em 06 de maio de 2021], 28 mortes, 24 inquéritos arquivados”, falou Duprat.

Em seguida mencionou o caso da “ADPF das Favelas”, uma “decisão banana”, segundo a subprocuradora. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, é uma petição assinada por diversas organizações da sociedade civil e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro que visa reduzir as ações executadas pela polícia da cidade nas favelas e comunidades, diminuindo a letalidade e a violência nas regiões.

“No momento em que o Supremo [Supremo Tribunal Federal] não consegue mais fazer cumprir as suas decisões. Esse caso das favelas é uma evidência, o Supremo faliu na sua capacidade de cumprir as suas decisões”, completou a subprocuradora.

Em sua participação, a Procuradora Eugênia Gonzaga falou sobre o vídeo da campanha #ReinterpretaJáSTF, organizado pelo Movimento Vozes do Silêncio e entidades de direitos humanos.  A campanha tem a participação de vítimas da ditadura, familiares de mortos e desaparecidos políticos e tem o intuito de “sensibilizar o STF”, de acordo com Gonzaga, acompanhado de um manifesto que teve cerca de 5 mil assinaturas colhidas em poucos dias do lançamento.

Documento revela aumento de casos e ampliação do escopo de atuação da Polícia Rodoviária Federal durante o atual governo
por
Artur dos Santos
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02/06/2022 - 12h

A Comissão Dom Paulo Evaristo Arns realizou, na manhã desta quarta (1/06), uma reunião com o representante do Alto Comissariado da ONU na América do Sul com o fim de entregar um relatório oficial de crítica à crescente violência policial no Brasil.

 

Convocada pela mesma comissão, uma semana após o Tribunal Permanente dos Povos , a reunião teve um caráter urgente e contou com a presença de Jan Jarab, representando o Alto Comissariado da ONU, que estava de passagem pelo Brasil. Jarab já desempenhou diferentes funções na comunidade internacional de direitos humanos como no Escritório de Direitos Humanos da República Tcheca, além de ter atuado como Comissário do Governo para Direitos Humanos.

Com a entrega do relatório às mãos do representante, e com a saída deste, a reunião foi aberta à presença virtual de veículos de imprensa, junto dos quais se encontrava a Agemt. 

Laura Greenhalgh, uma das componentes da Comissão Arns presentes na reunião, abriu a comitiva de imprensa afirmando que a reunião ocorreu para demonstrar à comunidade internacional “providências que a [Comissão] Anrs tomou contra a chacina na Vila Cruzeiro a à tortura e morte de Genivaldo, em Sergipe”.

Jarab foi recebido com os relatos da violência policial crescente no Brasil e, além de ouví-los, compartilhou parte de sua experiência de passagem no país nos últimos dias e relatou sua visita a comunidades indígenas no norte, região também afetada pelo aumento da violência. Segundo a Comissão, as denúncias foram muito bem recebidas e continuarão sendo feitas.

Paulo Sérgio Pinheiro afirma que seria útil que o Alto Comissariado lembrasse o Brasil de suas obrigações e que “é evidente para nós e ele [Jan Jarab] que a violência é pré-existente, mas tende a se agravar pelas homenagens feitas pelo presidente aos agressores”.

José Vicente, membro fundador da Comissão Arns e reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, completa a fala de Pinheiro ao relembrar que, no caso de Genivaldo, a comunidade brasileira estava diante de um flagrante de homicídio e relaciona a crescente atuação da Polícia Rodoviária Federal em diferentes operações à autorização de Sérgio Moro sobre as operações conjuntas.

Quanto a possíveis ações da ONU, Greenhalgh diz ser evidente que a Comissão não pode reivindicar ações, mas acionar diferentes canais que possam, por sua vez, intervir, além de dizer que o Alto Comissariado se encontra em sintonia com a Arns em relação à atual situação do Brasil.

Sobre a PRF, foram feitas considerações acerca da retirada da formação de Direitos Humanos do currículo e o como esta acarreta em táticas cada vez mais violentas e em situações tais como a operação na Vila Cruzeiro e a tortura e morte de Genivaldo. Victória Benevides (Comissão Arns) afirma ser um retrocesso a retirada da formação em direitos humanos do currículo de qualquer instituição, ainda mais de uma que lida com conflitos. Paulo Sérgio Pinheiro acrescenta: “é uma situação deprimente; a PRF era aliada nas lutas de repressão ao tráfico de mulheres e meninas pelo país. É trágico”.

Em resposta à Agemt, a Comissão afirma que existem razões para esperar um futuro melhor e que tornou-se evidente, após o Tribunal Permanente dos Povos, que a consciência brasileira sobre a história atual do país está melhorando. Entretanto, afirma que, aos olhos de instituições internacionais de respeito, o Brasil se tornou um anti exemplo, uma “grande vergonha”.

Sobre o Relatório redigido pela Comissão Arns:

O documento enviado ao Alto Comissariado da ONU foi recebido na íntegra pela Agemt e trata dos crescentes casos de violência policial durante o período de Jair Bolsonaro à frente da presidência. Confirma que, entre 2019 e 2021, 18 mil e 919 pessoas foram mortas pela polícia no país (das quais cerca de 80%, em 2020, eram negras).  Traz também condutas de apoio de Bolsonaro às operações policiais como as de Vila Cruzeiro, sobre a qual parabenizou policiais por terem neutralizado pelo menos 20 marginais ligados ao narcotráfico, ou como a operação em Jacarezinho, que deixou 28 mortos (também parabenizada pelo presidente).

Quanto à ampliação indevida do escopo das operações da Polícia Rodoviária Federal, retrata que as atribuições originárias limitadas ao patrulhamento das rodovias foram “indevidamente ampliadas pelo Ministério da Justiça” durante o atual governo.

Seus requerimentos ao Alto Comissariado são: instar as autoridades do Estado Brasileiro para cumprir os compromissos que prometeu obedecer; reforçar a necessidade de incrementação de um controle externo das atividades policiais; condenar a ampliação do escopo de atuação da PRF; e atentar a atos para-institucionais que incitem a violência e atuação ilegal por parte das polícias.

 

Em decorrência de uma sociedade em retrocesso, menos de 4% dos municípios no país realizam o procedimento de forma legal
por
Laura Paro
Marina Jonas
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02/06/2022 - 12h
Em entrevista, a médica Helena Paro conta que o aborto legal no Brasil é de difícil acesso.  (Imagem: arquivo pessoal)
Em entrevista, a médica Helena Paro conta que o aborto legal no Brasil é de difícil acesso. 
(Imagem: arquivo pessoal)

“O que vemos é que pouquíssimos hospitais (menos de 60 em todo o país, provavelmente) oferecem o aborto legal para os casos de estupro”, afirma a ginecologista e obstetra Helena Paro. No entanto, em 2013, foi promulgada a “lei do minuto seguinte”, que obriga todos os hospitais do SUS a prestarem atendimento integral, multiprofissional e emergencial a vítimas de violência sexual no Brasil (Lei 12.845/2013). Dessa forma, o aborto – que é legalizado em casos de estupro, riscos de morte à mulher e anencefacilia fetal – continua sendo de difícil acesso no país. Os dados comprovam esta dificuldade: segundo pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), menos de 4% dos municípios brasileiros realizam o procedimento, resultando na sua falta de seu acesso por quase 60% das mulheres do país.

De acordo com Helena, outra razão pela qual não se tem oferta ao aborto legal é o fato de "não conseguirmos mudar a realidade complexa da violência baseada em gênero apenas com leis”. Na verdade, a raiz desse problema está na existência de uma sociedade misógina e patriarcal, em que é recorrente a banalização da violência sofrida pela mulher e a culpabilização da vítima pelo o que viveu. “Muitas mulheres não denunciam as agressões sofridas porque sabem que diversas vezes serão novamente vítimas de uma violência institucional nesses espaços que deveriam ser de acolhimento (serviços de saúde, de segurança pública e de justiça)”, afirma a médica.

Ligado a isso, a obstetra conta que o direito da mulher à interrupção de sua gravidez é muitas vezes negligenciado pelos próprios médicos, e que isso a motivou a fazer parte do atendimento à vítimas de violência sexual: “ficou claro para mim que, diante da escassez criminosa (justificada por ‘objeção de consciência’) de médicos que assistem mulheres em situação de aborto por gravidez decorrente de estupro, eu tinha o dever de lutar pela melhoria da qualidade do cuidado dirigido a essas meninas e mulheres.” Esta negligência na área médica está diretamente ligada ao sexismo e o patriarcalismo enraizados e institucionalizados na sociedade.

É nesse sentido que traços culturais muito enraizados, como a objetificação, hipersexualização e assédios verbais e físicos sofridos desde a infância pelas mulheres trazem a ideia machista de que todos, menos a própria mulher, têm propriedade sobre o corpo dela. Dessa forma, desencadeando a opinião comum de que abortar seria um absurdo, pensamento vindo muitas vezes de pessoas que nunca passaram por uma situação em que sentiram a necessidade de abortar. 

Além disso, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 73 milhões de abortos são realizados no mundo todo ano, sendo estimado que 1 milhão destes são no Brasil – menos de 2000 dentro de condições legais. O resultado: a cada dois dias, calcula-se a morte de uma mulher em função de um procedimento mal feito. Esses dados colocam em evidência o impacto negativo da criminalização da prática sobre a saúde das mulheres e a importância de sua descriminalização. 

Com estas estatísticas em vista, é fato que criminalizar o aborto não reduz em hipótese alguma suas taxas, mas empurra as mulheres às clínicas clandestinas, colocando mais vidas em risco. Afinal, como explica o ginecologista Jefferson Ferreira em entrevista para o jornal Brasil de Fato: “o que faz a mulher buscar não é se a lei permite ou proíbe; o processo para evitar uma gravidez indesejada vai muito além da lei. Ele passa pelo planejamento reprodutivo de alta qualidade, pela redução da violência de gênero, uma educação sexista… Enfim, passa por um monte de coisas que não necessariamente têm a ver com a proibição.”