MT (MAURÍCIO TRAGTENBERG)

MT (MAURÍCIO TRAGTENBERG)

“Ante os fatos, nem rir nem chorar, mas compreender”.

MAURÍCIO TRAGTENBERG (4/11/29 — 17/11/98)

 

Segue abaixo o trecho autobiográfico do “Memorial” do Prof. Maurício Tragtenberg, apresentado à Faculdade de Educação da Unicamp em 1990 como parte do concurso para professor titular na disciplina Teoria das Organizações. Publicado inicialmente na Revista Pró-Posições, nº 4, março de 1991, Campinas-SP, pp. 79-87 (FE/Unicamp) e como homenagem póstuma na Revista Educação & Sociedade, 65, dezembro de 1998, Campinas-SP, p.7-20; e na Revista Espaço Acadêmico, nº 30, novembro de 2003.

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Tragtenberg durante palestra na “Semana de Educação” nos anos 70.

Memorial

Maurício Tragtenberg

O que eu sou é o que me faz viver

Skakespeare, Henrique VIII

O fato de estar, no presente momento, prestando concurso para professor-titular da Faculdade de Educação da Unicamp, ante uma banca examinadora composta por professores-titulares e titulados, é um desafio. Na medida em que o candidato a professor-titular não teve uma formação escolar “convencional”, concluiu seus estudos em nível de 1º grau no terceiro ano primário, retomou os estudos escolares através do ingresso na FFCHL da USP mediante apresentação de uma monografia à congregação da mesma.

Apesar de uma “formação” não-convencional e de uma trajetória pós-graduada não-convencional, também acredita o candidato ter conseguido acumular um mínimo de “capital cultural” para lidar com o ensino e pesquisa acadêmicos e manter uma atividade extra-acadêmica dirigida aos trabalhadores através de uma coluna sindical na imprensa diária paulista.

Minha biografia começa no interior do Estado do Rio Grande do Sul, onde meus avós aportaram na qualidade de camponeses pequenos proprietários, fugindo dosprogroms, cultivando como unidade familiar uma agricultura de subsistência onde o excedente era vendido no mercado, em Erebango, que depois tornou-se Erexim e, finalmente, Getúlio Vargas.

A emigração de meus avós ao Brasil se deu através de um projeto de colonização judaica no Rio Grande do Sul, que tinha o financiamento da Cia. Judaica de Colonização, fundada pelo barão Hirsch, no início do século.

A colonização judaica no Rio Grande do Sul partia de Erebango, espraiara-se para Philipson e Quatro Irmão, regiões localizadas no Alto Uruguai, próximos a Marcelino Ramos, cidade fronteiriça com o Estado de Santa Catarina.

Lembro-me do quadro rural de Erebango, onde meus avós assentaram nos campos, cobertos de neve durante o inverno, do cultivo da terra e da extração da madeira, de sol a sol. Pela manhã era acordado pelo meu avô, com a pergunta: o Messias já chegou?

Ele era um camponês profundamente religioso, tolstoiano, que esperava diariamente a chegada do Messias, como é comum em camponeses, pequenos proprietários em processo de proletarização. Essas camadas adotam o quilialismo utópico, como demonstrava Weber nos seus estudos sobre a religiosidade camponesa.

O meio rural de Erebango não estava afastado das grandes idéias e movimentos sociais que abalaram o mundo no início do século, culminando com a Revolução Russa.

Já em 1908, centena de camponeses russos vindos da Ucrânia desembarcaram no Paraná. Vinte famílias de camponeses venderam o que tinham na Rússia, embarcando, com escala em Londres, para Santos, São Paulo, daí num cargueiro dirigiram-se para Porto Alegre, levados à Erexim, hoje Getúlio Vargas, onde tomaram conta de dois lotes de terras de 25 hectares. Chegaram transportados em caminhões do exército e despejados nas matas de Erebango, Erexim (Getúlio Vargas).

Encontraram bosques cortados por alguns rios e planícies sem vegetação. Com a gleba, cada família recebeu 500 mil réis em vales, foices, enxada e mais um machado e serra para cada duas famílias. Começara uma experiência fundada no apoio mútuo e na solidariedade, fundados na experiência da revolução maknovista na Ucrânia, destruída pelo bolchevismo, em 1918.

O mais hábeis cumpriam inúmeros papéis, na agricultura, no ensino, na assistência aos doentes e no sepultamento dos mortos. Cultivava-se a terra, plantava-se e colhia-se distribuindo a cada família os gêneros, conforme o seu tamanho, se maior ou menor. As famílias cooperavam nos trabalhos de desmatamento, construção de barracões, abertura de valos e caminhos.

Os anos transcorridos entre 1913 e 1914 foram de muita fome e alguns se lembravam com saudades da Ucrânia. Após a deposição do czar, os bolcheviques tomaram o poder e exterminaram com as colônias anarquistas, em 1920. Muitos deles fugiram para a Argentina e enviavam a Erebango exemplares do jornal libertário Golos Truda, editado pela Federação de Trabalhadores Russos, com sede em Buenos Aires.

Os camponeses de Erebando, ajudados pela imprensa libertária, aprimoraram o senso coletivo de vida e trabalho aprendendo uns com os outros. Todos eram alunos e professores, e aprendiam ao mesmo tempo os segredos do cultivo da terra. À luz de vela, à noite, aprendiam e ensinavam português, espanhol, russo e esperanto, lia-se em Erebango muitos autores anarquistas russos, como Kropotkine, Bakunin, especialmente Tolstói, com seu anarquismo religioso anticlerical, que era o autor preferido.

Já em 1918, apareceu a União dos Trabalhadores Russos do Brasil sediada em Erexim, integrada por 40 camponeses e militantes, onde aparecia com destaque o camponês Serguei Ilitchenco; surge a União dos Trabalhadores Russos, com sede em Porto Alegre, presidida por Nikita Jacobchenco; a União dos Trabalhadores Russos de Guarani, Campinas, Santo Angêlo, dirigida por João e Gregório Taratchenco, e a União dos Trabalhadores Rurais de Porto Lucen, dirigida por Demétrio Cirotenco. Este último, durante mais de vinte anos, serviu de pólo de ligação entre os trabalhadores rurais de Erexim e Erebango, através da União dos Trabalhadores. Havia também o ucraniano Ossef Stefanovich, com uma barba à Kropotkine, que atuava como conferencista, professor, teatrólogo, jornalista e escritor.

Lia-se os clássicos da literatura russa, como Tolstói, Pushkin e Tchekov. Paralelamente, as colônias conseguiram a auto-suficiência em alimentos, elevaram o aprimoramento educacional e auto-aplicação dos princípios anarquistas no quotidiano de suas vidas.

Foi nessa época em Erebango, depois Erexim, que os camponeses jovens pensaram em criar a Juventude dos Trabalhadores Rurais Libertários, ao mesmo tempo em que recebiam dos emigrados russos dos EUA o diário Americankie Izvestia e a revista Volna. Em 1925, recebiam em Paris a revista Dielo Trouda, que após 1930, seria impressa em Chicago. De Detroit vinha a partir de 1927, a revista Probuzhdenie, que em 1940 se associaria à Dielo Trouda, formando uma só revista sob o título Dielo-Trouda-Probuzhdenie, em circulação até 1963. Recebiam de São Paulo os jornais A Plebe, A Voz do Trabalhador, Ação Direta, O Libertário, a que se juntaram periódicos em castelhano como Voluntad, Tierra y Libertad e La Protesta.*

Compunham a biblioteca dos colonos obras de Bakunin, Kropotkine, Malatesta, historiadores do anarquismo como James Guillaume, Rudolf Rocker, além de obras de Emma Goldman, Nestor Makno, recebidos do Canadá e Argentina. Segundo meus pais, toda essa problemática era discutida pelos meus avós, com a audiência respeitosa destes.

Porém, voltando à minha trajetória pessoal, conheci as primeiras letras em Erebango, depois Erexim, numa escola pública que funcionava num galpão. Entre arreios, cheiro de alfafa e um quadro negro, tive meu primeiro contato com o ler; escrever e contar.

A região havia sido assolada pela Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, as tropas de chimangos e maragatos, indistintamente, destruíam plantações, matavam a criação e expropriavam os camponeses, reduzindo as comunidades camponesas a zero, no sentido econômico. No plano cultural, nem falar, o cinema havia chegado através do dono do único hotel da colônia, assistido por uma platéia embasbacada, que nada entendia do enredo dos filmes. Minha avó, que havia ido ao “cinema”, perguntava para o meu avô o que havia visto através da “máquina”; respondia: “Vi diabos, diabos, diabos…”

Começava a desintegração da família como unidade produtiva. Uma tia minha dirigiu-se a Porto Alegre, a “grande capital”, e lá se casara com um serralheiro judeu, oriundo da Letônia. Logo depois, meu tio e minha mãe rumavam na mesma direção, instalando-se no Bonfim, o “gueto” judeu em Porto Alegre, tão bem retratado nas obras do escritor Moacyr Scliar.

Lá, freqüentara o Grupo Escolar Luciana de Abreu, ainda hoje no bairro Azenha. Estávamos em pleno Estado Novo, com fotos de Getúlio em todos os bares da cidade, com símbolo presidencial e cara de menino de primeira comunhão.

Lembro-me que houve um dia “sem aulas”. Isso se deveu à visita que Plínio Salgado fez a Porto Alegre. Na frente do grupo escolar havia um posto de distribuição de publicações de Plínio Salgado e sobre o integralismo. A condição de “judeu”, numa sociedade nacional mais ampla, leva você a uma “politização precoce”.

Isso porque a visita de Plínio Salgado era sentida no bairro judeu como a visita de um anti-semita que preparara futuros progroms, iguais aos vividos na Rússia, daí o temor e os comentários terem-se espalhados pelo bairro.

Assisti na avenida Oswaldo Aranha, a principal da cidade, ao desfile dos integralistas, uniformizados com camisa verde e ostentando um porte marcial. É o período em que o integralismo apoiara o Estado Novo, pensando receber em troca um ministério para Plínio Salgado. Isso não se deu e Getúlio, dias depois, colocaria a Ação Integralista na ilegalidade.

Logo depois, a família mudava para São Paulo, num vagão de segunda classe da então Viação Férrea do Rio Grande do Sul, após duas noites e três dias de viagem, aportávamos na Estação Sorocabana de São Paulo.

Fomos habitar à rua Tocantins, no bairro do Bom Retiro. Eu freqüentava o “Thalmud Torá”, uma escola judaica ortodoxa. De manhã estudava as matérias comuns do ciclo primário e à tarde o índice hebraico e comentários do Velho Testamento.

Tínhamos como vizinhos uma família judia de origem húngara, que se tornara nossa amiga. Ela sobrealugava um quarto a um cidadão que vivia de pijama e fumava cigarros Fulgor. Novamente o clima autoritário do Estado Novo fazia-se presente: o cidadão desaparecera, corria o boato que era “comunista”, delito gravíssimo sob o Estado Novo.

Comecei a trabalhar muito cedo para ajudar um fraco orçamento doméstico, meu pai falecera e minha mãe costurava. Iniciei minhas “universidades”, freqüentando um bar na rua Ribeiro de Lima, que tinha duas características: comida barata e mesa sem toalhas. Lá acorriam trabalhadores de origem letã, lituana, russa, polonesa, muitos haviam, inclusive participado da Revolução Russa, haviam topado pessoalmente com Lênin, Trotsky, Zinoviev ou Bukharin. Não eram “temas” de academia e sim expressões de relações sociais e políticas vividas.

Logo depois eu mudara para o bairro do Brás. Morei na rua Santa Clara, rua Cachoeira e rua Catumbi, no Belenzinho. Nessa época, caíra a ditadura de Vargas, e eu tinha como vizinho uma sede do Partido de Representação Popular. Apesar de ter origem judaica e imagem de “esquerdista”, os integralistas me tratavam com respeito, pois eu já lera, na época, toda a obra política de Plínio Salgado, Gustavo Barros e Miguel Reale e, de lambugem, nazistas nacionais como A. Tenório de Albuquerque e Tasso da Silveira.

Era um período de grande efervescência política: falava-se de Constituinte, isso em 1945, redemocratização e transição, muito parecido com o que se fala ainda hoje.

Perto de minha casa, na rua Belém, o PCB alugara um quarteirão onde se instalara a sede de seu comitê estadual. Vendia-se, lá, livros, símbolos do PCB como distintivos, emblemas, bandeiras, vendia-se bônus para a campanha da imprensa do PCB, muitos operários ostentavam símbolos orgulhosamente na lapela.

Foi lá que, na venda da esquina da rua Catumbi com a Ivinhema, encontrei um operário espanhol com o inevitável bigode, que, olhando minha aparência mirrada – na época o meu apelido social era Gândhi, tal a magreza – “Oh! Rapaz, queres ficar forte? Entre para o PCB”.

Contribuía para a mesma tendência um sapateiro espanhol, meu vizinho, que entre um prego e outro na sola do sapato discorria sobre reforma agrária, o que fora a guerra civil espanhola e a importância do PCB.

Não tive dúvidas, ingressei na “base”, uma célula de bairro que funcionava no bairro do Belém, inicialmente pequena, composta de um pedreiro, um operário têxtil e uma dona-de-casa.

Quais eram as tarefas da “base”? Pichar muros, colocar cartazes do partido, participar na organização de comícios políticos, leitura obrigatória dos jornais do partido. Nas reuniões, o secretário político trazia um resumo do jornal O Estado de S.Paulo e, assim, considerava cumprida a missão de informar em nível nacional e internacional o seu grupo.

Na época, trabalhando como office-boy de um laboratório farmacêutico existente na rua Catumbi, conheci um motorneiro que fazia a linha Belém-Praça da Sé, num bonde “cara-dura”, assim chamado porque trazia um cartaz “Bonde para Operários”, cuja passagem custava dez centavos, quando o bonde comum custava o dobro.

Entre uma viagem e outra, eu colocava o caixote de medicamentos junto à direção do bonde, sentava e ouvia ele discorrer sobre o projeto socialista, a exuberância do potencial da URSS e o “grande Stálin” condutor dos povos.

Porém, havia outros focos de difusão cultural popular. Houve a fundação do Partido Socialista, em cuja sede central, no edifício Sta. Helena, na Pça. da Sé, conheci Antonio Cândido, ministrando um curso sobre a História do Brasil, Azis Simão falando sobre o sindicalismo e a burocracia, e comecei a ler, além de Stálin, os clássicos do marxismo, o próprio, Lênin e Trotsky.

Participei do IV Congresso do PCB, onde Prestes justificara o caráter “progressista” da burguesia industrial que o partido deveria apoiar para “acabar com o latifúndio e os restos do feudalismo” em 1945.

Falava-se com sagrado temor que o Brasil estava num processo de “revolução democrático-burquesa”, e que a tarefa do partido, além de lutar por uma Constituinte com Getúlio, era apoiar Adhemar de Barros ao governo do Estado. Era a época do Tratado de Yalta, onde os EUA deixaram Stálin avançar sobre o Leste e os PCs ocidentais, por sua vez, “compunham” com os partidos burgueses, como De Gaulle na França, com De Gasperi na Itália, com Getúlio no Brasil, combatendo as greves e pregando a “união nacional”.

Porém, freqüentava eu a Galeria Prestes Maia, onde reuniam-se trabalhadores, de tendências anarquistas, trotskystas e socialistas, além de comunistas e também integralistas, estabelecendo profícuo debate. Foi aí que eu soube pela primeira vez, através do vidreiro Domingos Taveira, militante sindical, o que fora a Revolução Russa, como fora esmagada a oposição Operária, fundada por Kollontai, pelo governo Lênin-Trotsky.

Através dos socialistas, eu tomara conhecimento da crítica de Rosa Luxemburgo aos “descaminhos do bolchevismo” e, através de um senhor português que trabalhava como lixeiro na limpeza pública, eu soubera como Makno e seus componentes foram esmagados por Lênin e da rebelião dos marinheiros de Cronstad contra a “comissariocracia” instituída pelos bolcheviques. Na minha ingenuidade, levei tais “dúvidas” ao IV Congresso do PCB: a reação unânime fora: “São conversinhas da Pça. do Patriarca”. Fui chamado à ordem pela “direção” e impedido de ler Marx ou Lênin; literalmente fora obrigado a limitar-me à leitura do jornal Hoje e Imprensa Popular para ficar a par do noticiário nacional e internacional, segundo a voz dos “dirigentes”.

Persistindo nas minhas “dúvidas”, fui solenemente expulso do PCB, nos termos do artigo 13 do Estatuto do Partido de 1945: “É proibido ao militante do Partido qualquer contato direto ou indireto com trotskystas ou outros inimigos da classe operária”.

Perdia eu o partido, ao mesmo tempo em que perdia uma namoradinha minha que insistia nas leituras de São Cipriano, querendo converter-me à sua Igreja.

Passei a freqüentar cursos de fim de semana do PSB e ganhei de Aziz Simão o primeiro livro de nível universitário, a História Econômica e Social da Idade Média, de Henri Pirenne. Eu freqüentava à noite, aos sábados, as conferências do Centro de Cultura Social onde Edgard Leuenroth, Pedro Catallo, a feminista Anita Carrijo, o escritor Mário Ferreira dos Santos, pontificavam.

Após minha expulsão do PCB, não só iniciara a leitura dos clássicos marxistas, como da obra do “herético” Trotsky e o tema da burocracia me fascinou.

A minha preocupação com a burocracia como poder data daí, além de uma vivência concreta: eu prestara concurso para o cargo de escriturário do Departamento de Águas e Energia Elétrica e lá travara contato com a burocracia do quotidiano no ritualismo existente na interação burocrática, na apatia do burocrata ante o trabalho e como no interior da burocracia pública havia diferenças de status, mantidas através dos diplomas acreditativos das escolas, como definia Weber.

Assim, na década de 50, muito antes de aparecer Bourdieu como celebridade, percebia eu no Departamento de Águas que o estamento dos engenheiros só atendia alguém se esse alguém usasse o tratamento de “Doutor” dirigindo-se a ele. Caso contrário, não havia interação. Percebi como, na burocracia pública, funcionava o sistema feudal do “patrocínio”, seu status dependia de a quem você estivesse “ligado” na burocracia. Você trabalhava ou ficava na ociosidade, dependendo do prestígio do seu “padrinho”.

O horário de trabalho era do meio-dia às dezoito horas, de segunda a sexta-feira. Isso possibilitava-me pela manhã e à noite freqüentar a Biblioteca Municipal Mário de Andrade e lá ler o que me interessava, discutindo com outros autodidatas, nas saídas ao “cafezinho”, sobre as leituras que fazia.

O chamado “grupo da Biblioteca” era composto na época por Silvia Leser, Bento Prado Jr., Aracy Martins Rodrigues, Carlos Henrique Escobar, Flávio Rangel, Antunes Filho, Maria Lúcia Montes, Leôncio Martins Rodrigues, Cláudia Lemos. Lia-se de tudo, de Aristóteles a Sprengler, passando por Fernando Pessoa, Sá-Carneiro e José Régio.

A média de leitura era de seis a oito horas por dia, não havia telefonema de jornais pedindo matéria, reuniões de departamento, de conselhos inter ou extradepartamento em suma, você utilizava o tempo produtivamente.

Surgira um semanário, Orientação Socialista, onde passei a colaborar, além de colaborar na Folha Socialista mantida pelo PSB. Assistia a algumas assembléias sindicais, no Sindicato dos Metalúrgicos, no fim da ditadura Vargas, levado por um velho militante sindical que instruíra-me sobre o “ambiente sindical”, ou melhor, sobre o getulismo sem Getúlio. Entrava-se na sede do sindicato na rua do Carmo, e um burocrata da Delegacia Regional do Trabalho recebia-nos com o gesto de sentar e calar a boca durante a assembléia, dizendo: “- Fique quieto, só ouça”. Era assim que o sindicalismo de Estado criava a “nova” consciência operária.

Nessa época, já Remo Forli fora eleito presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e conheci o Paul Singer que trabalhava como eletricista nos Elevadores Atlas e militava no PSB.

Porém, não posso deixar de incluir nas minhas universidades a família Abramo. Na época, Dna. Yole, mãe dos Abramo, Lélia, Beatriz, Athos, Perseu, moravam na rua do Hipódromo, 425. Ali entrei em contato com a cultura italiana e com a visão crítica do bolchevismo, através de Athos, Fúlvio e Lélia Abramo. Eu freqüentava a casa deles aos domingos.

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Foto: Lélia Abramo (Arquivo Fundação Perseu Abramo)

Com essas universidades, fui pouco a pouco tendo uma visão crítica da burocracia no movimento operário e, através do trabalho no Departamento das Águas, uma interna da burocracia como estrutura.

Eu já aumentara um pouco de peso e deixara de ser o “Gândhi”. Foi quando Antonio Candido, no saguão da Biblioteca Municipal, mencionara uma lei federal que permitiria eu apresentar uma monografia à FFCHL da USP, para prestar vestibular e cursar a universidade.

Em 150 dias de trabalho, estruturei a monografia Planificação…, que, mediante parecer do Prof. João da Cruz Costa, permitiu-me prestar vestibular e cursar a universidade.

Porém, tive algumas dificuldades em adaptar-me à rotina escolar, ao sistema de provas, exames e trabalhos. Assim, inicialmente prestara vestibular para Ciências Sociais, porém não me dera bem com os professores que lecionavam no 1º ano matérias como Geografia, Filosofia Geral, Psicologia Social. A disciplina Geografia era lecionada pelo prof. Ary França, Filosofia Geral pelo prof. Cunha Andrade e Psicologia Social pela profª Anita Cabral.

Desisti daquele curso e prestei novo vestibular, ingressando no curso de História da Civilização. Pensava eu estar mais condizente com os princípios do materialismo histórico ter uma boa formação em História. Concluí esse curso e prestei concurso de ingresso ao magistério oficial do Estado. Aprovado, escolhi a cidade de Iguape para início da carreira.

Iguape, na década de 60, era o “Nordeste” do Estado de São Paulo. Achar um sanduíche quente na cidade era uma aventura. O hotel fechava às 22 horas impreterivelmente. Era de dois andares, no superior residiam as professores, no térreo os professores. Se elas lavassem o andar superior, a água cairia sobre os professores do térreo; resultado: só se passava o pano de chão – imagine a higiene que havia!

Permaneci ali um ano. Por eu ser ateu, houve um conflito com pároco católico local, apoiado pelo diretor do colégio, que era um maçom e por um aluno do curso noturno, que era protestante e, por sinal, chamava-se Calvino.

O conflito eclodia aos domingos, pela manhã, onde, tomando pinga com o diretor e Calvino no bar diante da igreja, ouvíamos o pároco deblaterar: “Quem é maçom não pode ser criston!” – isso com forte sotaque germânico.

No ano seguinte, removi minha cadeira para Taubaté, para o I.E. Monteiro Lobato. Morava em pensão no centro da cidade. Abriu vaga em Mogi das Cruzes dois anos depois, e para lá fui, fixando residência em São Paulo.

Lecionava no Instituto de Educação, das 19h30 às 22h30, utilizando diariamente o trem de subúrbio da Central do Brasil. Voltava diariamente do colégio em São Paulo à 1 hora da manhã na Estação Roosevelt, no Brás. De lá, tomava o ônibus Ferreira, que me deixava no Alto da Previdência, onde eu morava numa casa adquirida através do Ipesp.

Logo depois, removi minha cadeira para o Ginásio Estadual Cândido de Sousa, no bairro do Sumaré, em São Paulo, lecionando à tarde e à noite. Consegui o “milagre” de alunos do ciclo ginasial lerem Anísio Teixeira, para discutirem problemas pedagógicos com seus professores. Nessa época tive como aluna a atual colega, professora de História e Filosofia da Educação, a Profª Ediógenes de Aragão”.

A convite do Prof. Wilson Cantoni, fui contratado como docente na Faculdade de Filosofia de São José do Rio Preto, atual campus da Unesp. Ministrava aulas de Cultura Brasileira para os alunos do curso de Letras e Pedagogia. Praticávamos uma espécie de autogestão pedagógica. Tínhamos como colega Michael Löwy, que fez carreira universitária na França, Norman Potter, que lecionara em Heidelberg, após 64.

Porém, veio 64, fomos demitidos sumariamente e passamos a ministrar curso de “extensão universitária” na Delegacia de Polícia local. Prestávamos declarações a respeito dos cursos que ministrávamos. Comecei meu depoimento com o início do processo de secularização da cultura ocidental a partir do século XII. Lembro-me da Profª Zélia Ramozi, psicóloga, discorrer sobre a filosofia de Kant e sobre a epistemologia genética de Piaget.

A Faculdade de Filosofia de S.J. do Rio Preto teve os seus cargos docentes lotados entre os vereadores da Câmara Municipal local, pertencentes ao PSP: eis que Adhemar de Barros era o governador em 1964. Por isso, em meu círculo, o ano de 1964 não existiu enquanto produção intelectual. Foi a época em que tive um esgotamento nervoso e fiquei internado no Instituto Aché durante 90 dias. Porém, isso me fora útil, pois, se eu fora demitido dos cargos docentes, através do AI de 1964, a 09.10.64, pude observar e analisar o poder médico num hospital psiquiátrico tradicional e a burocratização da prática médica. Isso ampliou minha visão de poder e burocracia nas instituições, que se iniciara quando escriturário no Departamento das Águas.

Mais do que isso, solicitei livros à minha mulher, pude lê-los com aquiescência médica e durante esses 90 dias estruturei as linhas gerais da minha tese de doutorado, que defenderia na área de Política da USP, Burocracia e Ideologia.

1964 fora realmente o pior ano de minha vida. Saí do hospital, sem cargo, sem trabalho e com dívidas a pagar, por aí a gente vê como um currículo não pode ser somente “edificante” e vitorioso: é também composto de indecisões, incertezas e derrotas.

Porém, no hospital, havia solidariedade entre internados, especialmente os que lá estavam devido ao golpe de 64, havia muitos ex-militares, ex-funcionários do Banco do Brasil que eram ativistas sindicais, em suma, também pessoas comuns, que sofreram os efeitos do golpe, embora não tivessem participação sindical ou política direta.

Foi aí que Cláudio Abramo consegue que eu vá dirigir na Folha de S.Paulo o noticiário internacional. Lá fiquei três anos, trabalhando das 2h da tarde às 2h da madrugada. Lá conheci Emir Nogueira, professor também, que muito fizera para que eu fosse trabalhar nesse diário. Encontrei lá o jornalista Aristides Lobo, fundador do PSB, que logo depois morreria. Porém deixara um filho à altura de sua prática política. Enquanto vivo, ele foi o diretor do filme Cabra Marcado Para Morrer.

É quando a Fundação Getúlio Vargas (FGV) resolve me contratar para lecionar no departamento de Ciências Sociais, onde iria ministrar cursos sobre Sociologia da Burocracia, aproveitando minha vivência junto à burocracia pública do Departamento das Águas, a burocracia hospitalar, a temática da burocracia como poder político que recolhi no contato com o Prof. Aziz Simão. Ia com freqüência aos cursos do PSB e do Centro da Cultura Social de São Paulo.

Meu interesse pelo estudo da burocracia e do poder levou-me na década de 60 à leitura da obra de Weber, especialmente Economia e Sociedade, porém, procurando reconstruir as condições da sua produção. Assim, interessei-me pela Sociologia do Direito em Weber e reconstruí as leituras que fundamentaram o capítulo através do estudo da história do direito grego, romano, islâmico, judaico e da common-law, por exemplo.

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Resenha do livro “Planificação: Desafio do Séc.XX” publicada no jornal Folha de S.Paulo em 1968

Já possuía a essa altura uma espécie de “capital lingüístico” que dava para o gasto; do conhecimento da língua iídiche por via familiar cheguei ao alemão e às traduções de textos de Weber (vide vol. Weber, Col. Pensadores, Ed. Abril). Conheci o italiano através do convívio com a família Abramo, o francês aprendi com minha companheira, que fora professora de francês no 2º grau. A língua inglesa, através da consulta direta ao dicionário na formação de um vocabulário inglês especializado na área de ciências sociais.

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A ênfase no item “conferências” do currículo se dá pelo fato do esmagador número de conferências ter ocorrido no período do “fechamento” político da “abertura”.
Foi nesse período que o movimento estudantil estava extraordinariamente ativo e promovia conferências de professores que tivessem uma atividade ante o cenário universitário e o cenário político.

Nos artigos publicados na grande imprensa, cabe destacar aqueles inseridos no jornal Notícias Populares, onde durante 7 anos mantive uma coluna sindical denominada “No Batente”. Essa coluna traduzia, duas vezes por semana, o que ocorria no interior das empresas, na política sindical e na política no geral. Por interferência de grupos de pressão empresariais e políticos, ela deixou de ser publicada há pouco tempo.

Minha colaboração na seção “Tendências e Debates” na Folha de S. Paulo acompanhou o fim do regime militar e o início da “abertura” política.

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Uma das colunas de M.Tragtenberg na página 3 da Folha de S.Paulo, em 8/11/1979

Hoje ela está mais destacada, por ter optado pela produção de livros paradidáticos, conforme os que estão em anexo: Reflexões Sobre o Socialismo, Ed. Moderna e A Revolução Russa, Ed. Atual. Também estruturei a Coleção “Pensamento e Ação” junto à Ed. Cortez, com cinco clássicos da política já editados. Além da participação em um sem-número de bancas examinadoras de Qualificação, Mestrado, Doutorado, Livre-Docência, Adjunto e Titular, de candidatos por esse Brasil afora.

Estou agora trabalhando com maquiavelistas chineses e hindus, com Han Fei-Tsu e Kautylia, preparando uma edição crítica de suas obras.

Afora as inúmeras teses orientadas, muitas das quais editadas em livros, parece-me importante salientar uma influência que tive a respeito da mudança de paradigmasno ensino de administração na FGV e na FE da Unicamp. Segundo meu ex- aluno Valdomiro Pecht, atual professor da FGV, em sua tese de mestrado acentua, a diferença do enfoque da teoria administrativa na FEA da USP e da FGV devia-se à influência exercida pelo meu artigo “A Teoria da Administração é Uma Ideologia?”. Aí, a burocracia é vista como uma estrutura perpassada por relações internas de status, na relação de poder, enquanto na FEA da USP burocracia era estudada como estrutura funcional que se amplia com a ampliação da organização.

No caso da FE da Unicamp, os depoimentos informais de colegas meus que ministram cursos na graduação, foram meus orientandos em teses de mestrado e atualmente oriento-os em nível de doutorado, me deram ciência de que, com a introdução de autores como Michel Foucault, Trotsky, V. Thompson, James Burham, Lapassade, a teoria da administração escolar passou a ser vista nos cursos de graduação como um discurso do poder que exprime relações de força nas organizações.

Infelizmente, por carência de tempo, não me foi possível consultar a tese de Pecht, ou levar a termo afirmações informais de colegas meus da Unicamp, que ministram cursos na graduação de Administração Escolar, para provar documentalmente o que aí escrevo. Porém, a tese de Pecht está na ECA da Usp e os meus colegas de área estão presentes na Faculdade, possíveis interlocutores no assunto em pauta.

Concluindo, penso que um professor que consegue a mudança de paradigmas numa área e fecundar uma obra como a de Fernando Prestes Motta, José Henrique Faria, na teoria administrativa, Fernando Coutinho Garcia, da UFMG, conseguiu seu objetivo. Isso porque, segundo os clássicos chineses, influenciar é ter poder.
Em suma, os lados positivos dessa trajetória só foram possíveis de aparecer graças ao apoio imenso da minha companheira, Beatriz.

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*Vide PRADO, Antônio Arnoni (org.). Libertários no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986.

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Outras informacões sobre Maurício Tragtenberg:

Maurício Tragtenberg Educador Libertário:

http://mauricio-tragtenberg.blogspot.com/

Maurício Tragtenberg na Wikipedia:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Maur%C3%ADcio_Tragtenberg

“A Inteligência do Orientador”, texto do Prof. Antonio Valverde (Filosofia, PUCSP):

http://agemt.org/?p=527&preview=true