Com um saldo de 121 mortos, a operação policial realizada no dia 28 de outubro nos complexos do Alemão e da Penha, zona norte do Rio de Janeiro, reacendeu o debate sobre a forma como a imprensa cobre as questões de segurança pública. Manchetes que falam em “guerra ao tráfico”, “combate ao crime” ou “megaoperação” voltaram a ocupar o noticiário. Para a pesquisadora Sylvia Moretzsohn, professora aposentada da Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista em ética e prática jornalística, a recorrência dessas abordagens revela uma aliança estrutural entre mídia e sistema penal.
“Uma explicação para o comportamento da nossa imprensa, de modo geral, quando se trata de crime e segurança pública, está na relação de solidariedade entre mídia, que atua como porta-voz da classe dominante, e o sistema penal”, afirma Sylvia em entrevista.
A pesquisadora diz que essa leitura é sustentada também pelo jurista Nilo Batista, no artigo “Mídia e sistema penal no capitalismo tardio”, publicado há mais de vinte anos. Citando o texto, Sylvia destaca que o neoliberalismo, ao gerar desemprego e marginalização, “precisa de um poder punitivo onipresente e capilarizado para o controle penal dos contingentes humanos que ele mesmo marginaliza”. Em outro trecho, também mencionado por ela, Batista observa que o compromisso da imprensa com o projeto neoliberal é o que explica a “vinculação mídia-sistema penal, incondicionalmente legitimante”.
Segundo Sylvia, a relação entre mídia e senso comum é outro ponto central para entender o problema. “O exercício do jornalismo, para ser crítico, deveria ser capaz de confrontar o senso comum, para mostrar que a realidade não é o que parece ser. A mídia institucionalizada, entretanto, tende a reproduzir o discurso de ‘lei e ordem’ e a naturalizar o crime e a figura do criminoso”, explica.
Esse processo, conforme complementa em um de seus artigos acadêmicos, favorece a reprodução de estereótipos e dificulta abordagens críticas. Ela cita o jurista italiano Luigi Ferrajoli, que define o “direito penal máximo” como uma visão de justiça voltada para a defesa dos interesses da maioria contra uma minoria “desviada”, lógica que se encaixa perfeitamente na cobertura policial brasileira.

Questionada sobre o uso de expressões como “guerra ao tráfico” e “megaoperação”, Sylvia é categórica: “A forma de nomear faz toda a diferença. Falar em ‘guerra’ já pressupõe a existência de um inimigo a combater, e a abater. Falar em ‘megaoperação’ quando o que ocorreu foi uma matança, uma chacina, é legitimar o discurso do governo.” Ela também critica o uso de termos como “narcoterroristas” e “neutralizar”, utilizados por autoridades e muitas vezes repetidos pela imprensa. “É um eufemismo para matar. Eliminar, executar, assassinar”, afirma.
Em relação ao comportamento dos repórteres, a pesquisadora descarta a ideia de que o problema seja apenas falta de preparo. “Não creio que haja medo. Há conivência e obediência às determinações das chefias. Há também uma convicção formada em favor do discurso da autoridade”, diz.
Sylvia defende que os cursos de jornalismo incluam noções de criminologia, para que os futuros profissionais possam adotar um olhar mais crítico sobre a cobertura policial. “Ofereci na UFF uma disciplina chamada Jornalismo e Criminologia. Seria um passo importante para um enfoque crítico da cobertura, mas ainda insuficiente, porque entraria em choque com a linha editorial das empresas jornalísticas”, observa.
Quando questionada sobre a metáfora que compara a posição da imprensa entre estar ao “lado do helicóptero” ou “ao lado da janela das casas atingidas”, Sylvia responde sem hesitar: “Está sempre ao lado do helicóptero”. Mas ela faz uma ressalva: “Isso não significaria necessariamente uma adesão ao discurso do helicóptero. O jornalista precisa estar desse lado por motivos práticos e objetivos: só pode entrar lá, numa situação de perigo, se estiver protegido. Mas poderia ser crítico, denunciar abusos, o que raramente ocorre”.
Sylvia recorda ainda um debate antigo sobre o uso de coletes à prova de bala pelos repórteres. “Alguns diziam que se sentiam mal com aquilo, porque o uso dos coletes os distinguia dos moradores, tão vulneráveis. Isso tinha um peso na hora de tentar uma aproximação com eles”, relembra.
Sobre o papel das redes sociais na disputa pela narrativa, Sylvia aponta que as empresas jornalísticas “lidaram muito mal com as transformações trazidas pela internet” e que a busca por reafirmar a autoridade do jornalismo tradicional resultou em contradições. Ela cita o Projeto Editorial da Folha de S.Paulo (2017), que se propunha a combater a desinformação, mas lembra que a falsidade não surgiu com a internet. “Os jornais se cansaram de publicar mentiras ou meias verdades, mas principalmente dão como verdade uma versão naturalizada dos fatos, que raramente abre espaço ao contraditório. Isso também é uma forma de desinformar”, afirma.
Em tom crítico, Sylvia recorda ainda uma peça publicitária da Folha, de 1987, intitulada “Hitler”, que terminava com a frase: “É possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade”. “Pena que o jornal não siga o próprio alerta”, diz.
A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) realizou, na última sexta-feira (7), o julgamento virtual dos embargos de declaração apresentados por Jair Bolsonaro e outros condenados do chamado “núcleo 1” da trama golpista. A sessão abriu às 11h e o sistema de votação permaneceria disponível até 23h59 de 14 de novembro. Esse tipo de recurso serve para apontar eventuais omissões ou contradições do acórdão e, em regra, não reverte o resultado do julgamento principal.
Ainda no dia 7, formou-se a unanimidade para rejeitar o recurso de Bolsonaro, com votos de Alexandre de Moraes (relator), Flávio Dino, Cristiano Zanin e Cármen Lúcia. Luiz Fux não participa desta fase, após sua migração para a Segunda Turma. O entendimento também alcançou os demais réus do grupo, como Braga Netto, Anderson Torres, Augusto Heleno, Almir Garnier, Paulo Sérgio Nogueira e Alexandre Ramagem.

O ex-presidente Jair Bolsonaro acompanha julgamento no STF. (Foto: Antonio Augusto/STF)
Na sequência da votação, o colegiado encerrou o julgamento com placar de 4 a 0 e manteve a condenação de Bolsonaro a 27 anos e 3 meses de prisão, ao rejeitar os embargos de declaração. As defesas buscavam evitar a execução das penas em regime fechado, mas a Primeira Turma considerou que os argumentos já haviam sido examinados no mérito.
A decisão não implica prisão imediata. Caberá ao relator declarar o trânsito em julgado e, então, decidir sobre a execução das penas, inclusive o local de cumprimento e eventuais pedidos da defesa. Até essa etapa, o ex-presidente segue em prisão domiciliar no âmbito de outro inquérito, e os réus ainda podem tentar medidas residuais, embora a própria Primeira Turma tenha deixado claro que não há direito automático a novo recurso ao plenário.
Entrou em discussão no Congresso Nacional, na última semana, o Projeto de Decreto Legislativo 3/2025 (PDL 3/2025), que tem como objetivo sustar a Resolução nº 258/2024 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). A resolução, editada no final de 2024, estabeleceu diretrizes para atendimento humanizado e acesso ao aborto legal para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, buscando garantir direitos já previstos em lei.
Em votação polêmica na última quarta-feira (5), a Câmara dos Deputados aprovou o PDL 3/2025, texto que agora segue para análise do Senado. O projeto é de autoria da deputada Chris Tonietto (PL-RJ), representante da ala ultraconservadora do Congresso, com coautoria de mais de 30 parlamentares, principalmente de partidos das bancadas religiosa e de direita (como PL, Republicanos, PP, MDB). Tonietto e seus apoiadores argumentam que a resolução do Conanda “extrapolou” as atribuições do conselho ao modificar procedimentos sem passar pelo Legislativo, citando, por exemplo, que a norma dispensou a apresentação de boletim de ocorrência policial para o aborto de menores que sofreram estupro.

Conforme o texto aprovado na Câmara, todas as orientações do Conanda sobre casos de estupro de vulnerável seriam canceladas. Na prática, isso altera o protocolo atualmente adotado nos hospitais e unidades de saúde: a resolução vigente do Conanda dispensa a exigência de boletim de ocorrência, de autorização judicial e até do consentimento dos responsáveis para realização de aborto legal em crianças e adolescentes, nos casos em que essas exigências representem risco ou impedimento ao procedimento ou à proteção da vítima. Também prevê que, havendo conflito entre a vontade da criança e a dos pais/responsáveis (por exemplo, se o agressor for o próprio pai ou parente), a Defensoria Pública e o Ministério Público devem ser acionados para garantir os direitos da menor. O PDL 3/2025 cancela essas diretrizes, o que na prática restabelece barreiras burocráticas: passa a exigir registro policial da ocorrência e aval do Judiciário para que meninas estupradas acessem o aborto previsto em lei, além de presumir a necessidade do consentimento dos pais ou responsáveis. Essas exigências adicionais revitimizam as meninas e atrasam o atendimento médico, muitas vezes inviabilizando a intervenção dentro do prazo adequado. Outro efeito do projeto é proibir ações informativas e preventivas: o texto impede que profissionais de saúde orientem as vítimas sobre seu direito ao aborto legal e também veda campanhas públicas de conscientização contra o casamento infantil (uniões entre adultos e menores), iniciativas que haviam sido recomendadas pelo Conanda como parte da estratégia de proteção à infância.
Os proponentes do PDL 3/2025 defendem que a medida visa proteger crianças e punir estupradores, argumentando que a resolução atual facilitaria a “impunidade” ao não exigir prontamente uma denúncia formal. Em discurso no plenário, a deputada Chris Tonietto afirmou que “a violência sexual não pode ser combatida com o aborto”, o qual ela classificou como “outra violência”, dizendo que o caminho para enfrentar o abuso de menores é o fortalecimento da segurança pública e da investigação policial, e criticou o fato de a norma do Conanda dispensar até mesmo o boletim de ocorrência do estupro. Na mesma linha, a deputada Bia Kicis (PL-DF) argumentou que não obrigar a notificação policial favoreceria os estupradores, pois muitos casos poderiam deixar de ser investigados sem o registro formal: “Quando você libera o boletim de ocorrência, você está favorecendo o estuprador. Não está defendendo as crianças”. Já o deputado Otoni de Paula (MDB-RJ) foi além e acusou a resolução de “viabilizar o aborto sem autorização dos pais, sem exame de corpo de delito, sem B.O. ou limite de tempo de gestação”, declarando que o Congresso precisava “frear a indústria do aborto, a cultura da morte” no país. Segundo esses parlamentares, a prioridade deve ser punir agressores e evitar “incentivos” ao aborto, cabendo aos pais ou responsáveis, e não ao Estado, a decisão final nos casos envolvendo meninas menores de 14 anos grávidas em decorrência de estupro.
Os autores do projeto também sustentam um argumento legalista: afirmam que a resolução do Conanda usurpou competências do Legislativo ao detalhar procedimentos que, em sua visão, extrapolam o Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O trecho da norma que retira dos pais a decisão sobre interromper a gravidez da filha (quando há suspeita de abuso intrafamiliar) foi citado como contrário ao Código Penal, já que este atribui aos representantes legais a responsabilidade por menores incapazes. Outro ponto contestado por Tonietto e aliados é que a resolução, segundo eles, não estabeleceu um limite gestacional para o aborto em vítimas mirins, o que “na prática autorizaria abortos até perto de 40 semanas” de gravidez, uma interpretação questionada pelos críticos, mas usada pelo relator Luiz Gastão (PSD-CE) para justificar a sustação da medida. “Admitir que um órgão do Executivo desconsidere por completo a viabilidade fetal e estabeleça a possibilidade de abortos em gestações avançadas […] revela-se incompatível com o Código Penal”, argumentou Gastão, citando que mesmo países onde o aborto é legal impõem prazos de corte. Em suma, na justificativa oficial do PDL 3/2025 consta a alegação de que “o aborto não constitui um direito” propriamente dito, e que a orientação do Conanda estaria flexibilizando excessivamente a prática ao dispensar requisitos formais.
A reação de diversos setores ao projeto foi imediata e contundente. Parlamentares da oposição, organizações da sociedade civil, órgãos governamentais de direitos humanos e especialistas em direito qualificam o PDL 3/2025 como um enorme retrocesso legal e humanitário, acusando-o de punir as vítimas em vez dos agressores. A Bancada do PT na Câmara votou contra a matéria e vem se pronunciando fortemente a respeito. A deputada Maria do Rosário (PT-RS), ex-ministra de Direitos Humanos, classificou o projeto como “cruel e inconstitucional”, por violar o princípio da proteção integral à criança previsto na Constituição e no ECA. “Trazer esse tema para o plenário é atrasar os procedimentos adequados diante de crianças que foram violentadas. Manter uma criança estuprada em condição de violência permanente é inaceitável”, declarou Rosário durante o debate. Érika Kokay (PT-DF) salientou que a resolução do Conanda “não cria novos direitos, apenas detalha como aplicar a lei para salvar vidas”, já que o aborto em caso de estupro já é permitido por lei há décadas, e criticou os setores conservadores que tentam obrigar meninas a levar adiante gestações resultantes de estupro. “Há quem queira forçar uma criança de 9 ou 10 anos a ser mãe, mesmo que isso lhe custe a vida. […] Quem ataca essa resolução está atacando a vida das crianças e adolescentes deste país”, protestou Kokay em plenário.
Entre os órgãos governamentais, tanto o Ministério das Mulheres quanto o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) emitiram notas oficiais condenando a aprovação do PDL. A pasta das Mulheres afirmou que “ao anular essa orientação, [o PDL] cria um vácuo que dificulta o acesso dessas vítimas ao atendimento e representa um retrocesso em sua proteção”. Já o MDHC destacou que a resolução do Conanda tinha por objetivo garantir celeridade e atendimento integrado às vítimas, conforme já previsto em leis como o ECA, a Lei da Escuta Protegida (13.431/2017) e a Lei do Minuto Seguinte (12.845/2013), todas normas que dispensam a exigência de B.O. ou autorização judicial para o aborto em caso de estupro justamente para evitar revitimização. Suspender seus efeitos constitui grave retrocesso na política de proteção à infância, cria barreiras ao acesso a direitos fundamentais e fragiliza o atendimento especializado previsto em lei, alertou a secretária nacional da criança do MDHC em nota à imprensa.
Entidades da sociedade civil e especialistas independentes endossam as críticas. Diversos movimentos de mulheres e direitos humanos apelidaram o PDL 3/2025 de “PL da Pedofilia”, numa inversão irônica, sugerindo que a proposta, em vez de combater abusadores, acabaria por “beneficiar pedófilos” ao forçar meninas violentadas a manterem gestações indesejadas. “Chamamos essa medida pelo nome que ela merece: a PL da Pedofilia. Porque quem obriga uma criança violentada a parir defende a continuidade da violência sexual infantil; quem nega o aborto legal a uma menina estuprada protege o agressor e pune a vítima”, escreveram Rafaella Florencio e Jenni Dantas, do coletivo feminista Pão e Rosas, em nota pública divulgada logo após a votação . Juristas e defensores de direitos da criança também apontam possíveis ilegalidades e conflitos constitucionais no projeto: ao negar efetividade a direitos assegurados (como o atendimento de saúde emergencial a vítimas de estupro, previsto na Lei 12.845/2013) e contrariar o princípio do melhor interesse da criança, o PDL pode ser alvo de ações judiciais. “É ferir de morte o Estatuto da Criança e do Adolescente e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário”, opinou a advogada Giovana Verdura, especializada em direitos sexuais, em entrevista ao portal Jota.info (em referência às obrigações do país de proteger crianças da tortura e tratamento degradante, categorias nas quais a gravidez forçada de meninas se enquadraria). Integrantes do Ministério Público e da Ordem dos Advogados do Brasil também discutem a possibilidade de acionar o Supremo Tribunal Federal caso a medida seja definitivamente aprovada, por afronta a cláusulas de direitos fundamentais (até o momento, entretanto, não há confirmação de ação judicial concreta).
Além do impacto direto sobre vítimas de violência sexual, analistas alertam para o uso político da pauta da “pedofilia” como pretexto para censura e ataques a direitos de expressão e informação. Organizações de direitos digitais e coletivos LGBTQIAP+ destacam que um discurso moralizante em torno do combate à pedofilia vem sendo empregado para justificar projetos de lei que cerceiam discussões sobre gênero, sexualidade e arte, sob a alegação de “proteção da infância”. Um levantamento do portal CartaCapital mostra que, de 2019 a 2024, foram apresentados mais de 100 projetos de lei nas esferas federal e estaduais mirando crianças e adolescentes LGBTQIAP+, muitos deles promovendo censura em salas de aula, proibição de materiais didáticos sobre diversidade, veto a eventos culturais e restrição de publicidade com temática LGBT para o público jovem. Esses projetos frequentemente tramitam sob títulos genéricos de proteção infantil, mas entidades como a ONG Observatória e a Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos têm denunciado que acabam por excluir e silenciar minorias, ao confundir educação sexual ou reconhecimento da diversidade com “ameaça” às crianças.
No contexto atual, novas proposições legislativas ligadas ao tema pedofilia também suscitam preocupação entre defensores da liberdade de expressão. Exemplo: o PL 2685/2025, de autoria do deputado Julio Cesar Ribeiro (Republicanos-DF), que tramita na Câmara, busca tipificar como crime a “apologia à pedofilia” por meio de conteúdo audiovisual com personagens de aparência infantil. Embora o objetivo seja coibir a divulgação de material que sexualize crianças (como animações, bonecos ou deepfakes envolvendo menores), críticos temem que conceitos vagos possam dar margem à censura de obras artísticas ou educativas legítimas. Representantes do campo cultural lembram casos em que exposições de arte, peças de teatro e até livros foram alvo de ataques sob acusação infundada de “pedofilia” ou “pornografia infantil”, em geral, motivados por grupos ultraconservadores. “Há uma paranoia sobre a pedofilia que acaba atingindo produções culturais de forma indiscriminada”, afirmou o cientista político Luis Felipe Miguel, ao analisar episódios recentes de censura moral no país. Educadores também receiam que programas de educação sexual nas escolas, essenciais para prevenir abusos, sejam prejudicados: “Chamar qualquer debate sobre corpo e sexualidade de ‘erotização precoce’ ou ‘incentivo à pedofilia’ impede que crianças aprendam a se proteger de fato”, observou uma representante da ONG Mães pela Diversidade. Em suma, os especialistas alertam que, se não houver definições precisas e salvaguardas, o “combate à pedofilia” pode virar instrumento de perseguição a conteúdos pedagógicos, comunidades LGBTQIA+ e manifestações artísticas, sob o manto de uma suposta defesa da moral e dos bons costumes.
A aprovação do PDL 3/2025 provocou forte repercussão nacional, com manifestações de repúdio em redes sociais, abaixo-assinados e pronunciamentos de figuras conhecidas. Celebridades e ativistas denunciaram o projeto, destacando o impacto sobre meninas vítimas de estupro. A cantora Anitta afirmou que o país “precisa de mais mulheres na política”, enquanto a atriz Luana Piovani chamou o texto de “PDL da pedofilia” e lembrou que “criança não é mãe, criança não é esposa”, lema que viralizou nas redes como #CriançaNãoÉMãe.

Organizações da sociedade civil também reagiram com uma petição online que reuniu milhares de assinaturas, pedindo ao Senado que rejeite o projeto. Hashtags como #PDLdaPedofilia e #CriançaNãoÉMãe dominaram as redes, impulsionadas por vídeos explicativos e manifestações de repúdio. Entidades de direitos humanos publicaram notas denunciando o retrocesso e cobrando que o texto seja arquivado.

Arte compartilhada por Manuela D’Ávila em protesto contra o PDL - Reprodução: Instagram Manuela D’Ávila
Enquanto isso, grupos conservadores e religiosos celebraram discretamente a aprovação, tratando-a como vitória “pró-vida”. Em contrapartida, especialistas em saúde e direitos da infância alertaram que obrigar meninas estupradas a manter gestações é uma forma de violência institucional, reacendendo o debate sobre o que realmente significa proteger as crianças.
Se o PDL 3/2025 for aprovado também no Senado, as diretrizes do Conanda deixarão de valer imediatamente, mudando o protocolo de atendimento a vítimas de estupro. Hospitais e profissionais de saúde passarão a exigir registro policial e autorização judicial antes de realizar o aborto, mesmo em casos de meninas de 10 a 13 anos. Isso reduzirá o acesso ao aborto legal, aumentando o número de partos infantis forçados.
Entre 2013 e 2023, o Brasil registrou mais de 232 mil nascimentos de bebês cujas mães tinham até 14 anos, a maioria decorrente de estupros. Em 2023, apenas 154 meninas conseguiram realizar o aborto legal. Sem as diretrizes do Conanda, o acesso tende a se tornar ainda mais difícil. A médica Paula Viana, da ONG Curumim, resume: “Sem essa proteção, mais meninas serão obrigadas a parir seus estupradores”.
Entende-se como casa um ambiente seguro, repleto de cuidado e carinho, onde se pode ser você mesmo. Essa é a expectativa, mas infelizmente não se traduz na realidade de jovens LGBTQIAPN+, principalmente de mulheres LBTI (lésbicas, bissexuais, travestis, transsexuais e intersexo). Registros entre 2015 e 2022, da Polícia Civil e de serviços de saúde, revelam que 49% das violências sofridas pela comunidade acontecem dentro da própria moradia.
A violência LBTIfóbica pode aparecer de diversas formas nos âmbitos: familiar: abrange a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; doméstico: espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; e social: nos espaços de convívio interpessoal sem qualquer vínculo anterior (transporte público, espaços abertos ao público, entre outros).
A violência intrafamiliar contra mulheres lésbicas e trans é um problema com características próprias devido à interseccionalidade de gênero, orientação sexual e identidade de gênero. O ambiente familiar, que em tese deveria ser um porto seguro, se torna um ambiente de intensa hostilidade e rejeição, impulsionada por preconceitos enraizados. Segundo dados do Instituto Pólis (2024), 60% das vítimas de violência LBTIfóbica são agredidas por familiares ou conhecidos.

Isso traz uma série de sequelas psicológicas para essas mulheres que buscam acolhimento e aceitação dentro da própria moradia. Segundo o psicólogo clínico especialista Carlos Eduardo Sanches (CRP:06/149006), do Centro de Educação e Psicologia Êxito, a violência psicológica familiar contra meninas lésbicas e trans é capaz de causar nas vítimas, com o decorrer do tempo, Transtorno de Estresse Pós-Traumático Complexo (TEPT-C).
Sanches apresenta como outra consequência a longo prazo, o Falso Self. O conceito parte da perspectiva Winnicottiana, em que, na ausência de um cuidado primário (nesses casos, o acolhimento no ambiente familiar), a mulher desenvolve um self (potencial inato que se tem de amadurecer) alternativo e carrega um medo profundo de se expor, pois entende que “ser quem realmente é resulta em dor e punição”.
Além disso, o cenário se torna mais alarmante quando esse quadro é somado à depressão, ansiedade, transtornos alimentares e até mesmo a baixa autoestima crônica. “A violência contra jovens lésbicas e mulheres trans muitas vezes é motivada pela manutenção da heteronormatividade e da feminilidade tradicional esperada. A família tenta "corrigir" o que considera um desvio do papel de gênero feminino ideal (a "boa moça" que se casa e tem filhos)” afirma o psicólogo.
O rompimento de laços familiares é uma das consequências que afetam essas mulheres, levando ao afastamento da família de origem e da sua própria moradia e um isolamento social. A internalização da culpa e da dor levam a altas taxas de ansiedade, depressão e autoagressão. Para isso, a existência de casas de acolhimento é essencial para mulheres bissexuais, lésbicas e transsexuais, como o programa do governo Casa da Mulher Brasileira, oferecendo serviços integrais e humanizadas para mulheres em situação de violência, e a Casa Neon Cunha, uma organização não governamental (ONG) dedicada a abrigar jovens LGBTQIAPN+ em situação de vulnerabilidade no ABC Paulista.
Editado por: Annick Borges e Chiara Abreu
Por trás das estatísticas sobre abortos clandestinos e violência obstétrica, há uma história de silenciamento. O corpo das mulheres, especialmente o das negras e periféricas, segue sob a tutela de um Estado que criminaliza a autonomia, evidenciado pelo fato de que mulheres negras têm 46% mais probabilidade de recorrer ao aborto no Brasil, e de uma sociedade que trata direitos como moralidade, o que também vemos na mortalidade materna, na qual mães negras morrem em média duas vezes mais que mães brancas.
O corpo feminino é alvo de vigilância e controle por autoridades masculinas. Na tradição cristã ocidental, o corpo feminino frequentemente é associado ao pecado e à tentação. Essa concepção legitima a vigilância e a regulação da figura feminina pela Igreja, que estabelecia e ainda impõe moralidades sobre a virgindade e a maternidade.
A partir do século XIX, a medicina consolidou discursos para patologizar o corpo e a sexualidade feminina, como a histeria, caracterizado pelo excesso de emoções e perda de controle, diagnosticada majoritariamente em mulheres. Isso indica como a ciência foi utilizada como mecanismo de manutenção para a ideia de que figuras femininas eram instáveis e necessitavam de tutela masculina. Do ponto de vista jurídico, as legislações históricas também revelam esse controle. Quando o Código Penal de 1940 definiu o aborto como crime, o fez sob o olhar de um país governado por homens e moldado por valores patriarcais. As exceções previstas, raras e sempre sob o filtro da moral masculina, tratavam a decisão sobre o corpo feminino não como um direito, mas como concessão. Essa lógica atravessava também o casamento: a mulher só podia agir sobre si com a permissão do marido, como se sua autonomia fosse um privilégio a ser concedido, não uma condição natural.
Nos Estados Unidos, durante a década de 1970, o aborto era um tópico central no movimento feminista, pois a partir dele, poderia haver a emancipação da mulher. No entanto, a comunidade afro-estadunidense se mantinha distante do movimento, já que o controle de natalidade tinha forte componente racial e legitimava interesses racistas. A partir de um estudo comparativo feito pela PubMed, estima-se que entre 1970 e 1975, cerca de 2,3 milhões de mulheres nos EUA fizeram laqueadura, em que a maioria ocorria após o parto. Mulheres não-brancas tinham taxas de esterilização aproximadamente duas vezes maiores que as mulheres brancas.

No Brasil, a esterilização em massa foi uma estratégia utilizada pelo racismo, mascarada de planejamento familiar, que consistia na esterilização massiva de mulheres negras e jovens, e na distribuição em larga escala de pílulas e dispositivos intrauterinos. Tais procedimentos médicos, não eram informados devidamente para as mulheres, assim como suas consequências. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1986 mostrou que 49,3% das mulheres que usavam métodos contraceptivos estavam esterilizadas. Além disso, o índice do procedimento contraceptivo cresceu em áreas mais pobres e era mais presente entre mulheres com menos escolaridade. Com a criação da CPI da Esterilização, em 1991, foi constatado que houve a prestação inadequada de serviços, abuso de métodos irreversíveis.
Como aponta a professora Vanessa Souza de Oliveira, do curso de jornalismo na PUC-SP e no Mackenzie, episódios de violência reprodutiva em mulheres não são uma exceção. “A gente ainda sofre essas violências de maneiras diferentes. Um exemplo na minha família: minha avó paterna teve um DIU implantado sem qualquer aviso. Ela foi à Santa Casa por causa de uma apendicite, se não me engano, e só anos depois descobriu que tinha um DIU dentro do corpo. Ninguém informou nada. E a dor era absurda: o corpo passa um, dois anos tentando expulsar aquilo até se adaptar. Só descobriu muito mais velha e, pior, já tinha ultrapassado o tempo seguro de uso daquele dispositivo.” Histórias assim são comuns em famílias negras e mestiças. São violências silenciosas, muitas vezes descobertas décadas depois. E o mais preocupante é que estamos vivendo uma onda conservadora em que práticas desse tipo voltam a ser tratadas como aceitáveis: esterilizações e intervenções feitas sem consentimento, sem explicação, sem garantir o mínimo de informação sobre o próprio corpo.”
A criminalização da prática do aborto impacta diretamente a vida reprodutiva. O racismo e as relações patriarcais se articulam construindo um contexto de desigualdades e vulnerabilidade para mulheres negras e pobres que precisam recorrer ao aborto clandestino. A criminalização do aborto não evita que esse procedimento não ocorra, ao contrário, empurra práticas para a clandestinidade e para ambientes inseguros.
No Brasil, o aborto é crime exceto em casos de risco de vida para a mulher, estupro e anencefalia fetal. A ausência de políticas públicas interseccionais que integrem recortes raciais, de gênero e socioeconômicos na saúde perpetua a exclusão. A partir de um levantamento feito pelo G1 com dados do DataSus, no primeiro semestre de 2020, o número de mulheres atendidas por abortos mal-sucedidos, tenham sido provocados ou espontâneos no Brasil pelo Sistema Único de Saúde (SUS) foi 79 vezes maior que o de interrupções de gravidez previstas pela lei. Apenas no primeiro semestre de 2020, o SUS gastou quase 30 vezes mais com procedimentos pós-abortos incompletos do que com interrupções previstas em lei, R$ 14,29 milhões em comparação com R$ 454 mil.
O enquadramento penal (artigos 124–126) transforma um problema de saúde e de direitos reprodutivos em questão forense, ampliando estigmas e dificultando o acolhimento médico adequado. A criminalização, além de não reduzir a ocorrência do aborto, sustenta a ilegalidade e a punição seletiva, como visto no sistema de justiça, que criminaliza rotas da vida reprodutiva que recai com mais força sobre mulheres pobres e racializadas, enquanto mulheres brancas com mais poder econômico permanecem intactas. Um levantamento feito pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, apontado entre 2005 à 2017, revelam que a maioria das mulheres processadas por aborto no Rio de Janeiro são negras e pobres.
A junção da interseccionalidade, sendo ela, a coexistência de desigualdades de gênero, raça e classe, revelam que as mulheres negras e em situação de pobreza são as que mais realizam o aborto em locais com pouca ou nenhuma higiene e sem supervisão médica. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA 2016–2021), mulheres negras têm 46% mais chance de realizar um aborto do que mulheres brancas, em qualquer faixa etária. Aos 40 anos, 21% das mulheres negras já teriam recorrido ao procedimento, contra 15% das brancas. Esses números refletem não apenas desigualdades raciais, mas também econômicas e territoriais, são as mulheres de menor renda, escolaridade e acesso a serviços de saúde que mais se submetem a abortos clandestinos, muitas vezes em locais sem higiene adequada e sem supervisão médica.
As estatísticas e relatos expõem um projeto histórico de controle sobre os corpos femininos, sobretudo os corpos negros e periféricos. Entre a criminalização do aborto e a esterilização forçada, persiste a mesma lógica de tutela que nega às mulheres o direito de decidir sobre si mesmas. Enquanto o debate público seguir guiado por moralistas e não por políticas de saúde baseadas em justiça e igualdade, a liberdade reprodutiva continuará sendo um privilégio de poucas.
Editado por: Carolina Zaterka



