Por Helena Barra
A mobilidade elétrica já faz parte do cotidiano de milhões de pessoas na América Latina — e, embora os investimentos públicos impulsionem grandes frotas de ônibus elétricos, é nas ruas que essa transformação se revela de forma mais íntima. É no trajeto da faculdade, na volta de uma festa, na pressa para chegar ao trabalho ou na tentativa de driblar o trânsito impossível. Para o estudante de jornalismo da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), Davi de Almeida, os patinetes e as bicicletas elétricas representam justamente essa mistura de liberdade, improviso e modernização da cidade. Ele começou a usar patinetes elétricos no início de 2024, quando percebeu que eles estavam cada vez mais presentes no caminho entre sua casa e a universidade. O que chamou sua atenção foi a praticidade. É possível encontrar esses transportes em praticamente qualquer lugar. Eles ocupam a cidade de um jeito muito prático. Para ele, o transporte elétrico virou uma espécie de atalho emocional e físico — uma forma de escapar tanto do trânsito quanto da rotina pesada de São Paulo.
Além da sensação de liberdade Davi reconhece a importância ambiental. Diz que é uma forma de evitar os transportes a combustão ajudando o meio ambiente usando patinete, bicicleta, essas opções elétricas. Essa motivação ecológica tem guiado não apenas jovens como ele, mas também governos que buscam reduzir emissões de carbono e melhorar a qualidade do ar. Em várias cidades latino-americanas, ônibus elétricos substituem gradualmente veículos antigos movidos a diesel, e bancos públicos, como o BNDES, financiam a modernização das frotas.
Desde 2017, a América Latina já investiu mais de R$ 23 bilhões em transporte público elétrico, com destaque para Santiago, Bogotá e São Paulo. Os grandes números mostram a direção de um futuro mais limpo. Mas, nas calçadas e ciclovias, o impacto aparece de forma muito mais pessoal — e às vezes contraditória.
Mas, se a mobilidade elétrica já representa um avanço coletivo, ela também apresenta obstáculos muito concretos no dia a dia. A primeira barreira é o preço. Embora os patinetes e bikes elétricas sejam acessíveis para trajetos ocasionais, tornar esse uso cotidiano ainda é impossível para grande parte da população. Usar entre um passeio ou outro é viável, mas colocar isso na rotina é irreal. Não combina com a realidade das pessoas. O custo por minuto e as tarifas por desbloqueio transformam o transporte elétrico individual em um meio prático, mas caro.
A segunda barreira é a dependência total dos aplicativos das operadoras privadas. É frustrante apostar em um meio de transporte que, como ele diz, pode simplesmente parar de funcionar sem aviso. Foi o que aconteceu numa noite voltando de uma festa na Vila Madalena. Ele desbloqueou o patinete, seguiu viagem pela Avenida Sumaré e, de repente, o veículo travou. O aplicativo alegava falta de saldo, embora ele tivesse acabado de recarregar. Teve que abandonar o patinete e seguir metade do caminho a pé. No meio da madrugada. Diz ter sido uma experiência frustrante. Apesar das falhas, ele também relembra de trajetos em que tudo funcionou perfeitamente. Conta que chegou a ir do Itaim até Perdizes rapidinho. Quando o serviço funciona bem, parece que a cidade se abre. A presença constante desses veículos nos bairros, a facilidade para encontrá-los e a possibilidade de escapar do trânsito tornam a experiência sedutora, especialmente para quem vive numa metrópole em que carro, ônibus e metrô nem sempre dão conta.
Essas experiências individuais se conectam a uma discussão maior sobre como financiar e democratizar a mobilidade elétrica. No transporte público, o avanço ocorre graças a grandes financiamentos e políticas específicas. Mas, no transporte individual — patinetes e bikes de aluguel —, o usuário ainda arca com quase todo o custo. Especialistas afirmam que, se esses modais fossem integrados ao sistema público, subsidiados ou regulados como parte essencial da mobilidade urbana, poderiam se tornar mais acessíveis e confiáveis.
No final, a trajetória de Davi mostra exatamente onde estamos na transição energética urbana: em um momento intermediário, em que a tecnologia já está nas ruas, mas a acessibilidade e a confiabilidade ainda não acompanharam o avanço. Davi segue usando os patinetes elétricos porque, apesar de tudo, eles oferecem algo que nenhum outro transporte oferece: movimento livre numa cidade que parece sempre travada e segue achando que é uma forma de acessar frestas da cidade que nenhum outro transporte consegue.
Por Laila Santos
O professor José Willams, hoje na casa dos 40 anos, lembra com nitidez de sua adolescência no início dos anos 2000. Um sofá gasto, um filme da Sessão da Tarde, um pacote de biscoitos e a tranquilidade de simplesmente terminar o filme. Sem culpa. Sem produtividade embutida. Sem a sensação de estar devendo algo ao mundo. Naquele período, ele experimentava um tipo de ócio que considerava fértil. Enquanto a televisão rodava, criava desenhos, letras e formas, treinando sem perceber habilidades que carregaria para a vida adulta. Era um descanso que não precisava se justificar.
O mundo, porém, não oferecia a mesma liberdade para todos. Para famílias periféricas, pressionadas por jornadas longas e responsabilidades que extrapolavam a adolescência, parar era associado à preguiça. O tempo livre era visto como privilégio, não como direito. Ainda assim, para quem conseguia algum espaço, o ócio tinha outro significado. A rua organizava o dia: conversas na calçada, observação do movimento, brincadeiras improvisadas, pequenas descobertas. O silêncio não era incômodo, era espaço de criação.
Com o ingresso no mundo do trabalho, Willams percebeu como a sociedade moldava a ideia de descanso. O avanço tecnológico, a aceleração dos processos e a cultura da produtividade reforçaram a noção de que parar é falha. Ele lembra que, historicamente, esse pensamento ganhou força desde a Revolução Industrial, quando o trabalho passou a ser entendido como sinal de valor moral.
Ao longo dos anos, os empregos deixaram de representar apenas uma função e passaram a definir identidades. O que a pessoa faz se tornou quem ela é. Nesse cenário, qualquer pausa parecia perda. O descanso deixou de ser parte da vida e virou obstáculo. Para o professor, isso ajuda a explicar a culpa que tantos jovens sentem ao tentar descansar. Eles cresceram em uma lógica em que desempenho e reconhecimento se confundem, e onde a produtividade é usada como régua para medir caráter.
Entre adolescentes e jovens adultos, o descanso quase nunca é completo. O tempo livre é consumido por telas que oferecem estímulos contínuos. O cérebro segue trabalhando enquanto o corpo tenta relaxar, criando o que especialistas chamam de descanso ativo: uma falsa pausa, que não restaura e não organiza o pensamento. Os números ajudam a dimensionar essa sobrecarga. Estima-se que bilhões de e-mails circulem diariamente no mundo, enquanto cada pessoa lida com centenas de mensagens por aplicativos e redes sociais. É informação demais para um ritmo humano de processamento. A sensação de estar atrasado, ultrapassado ou improdutivo se intensifica, e descansar passa a ser visto quase como risco, como se a vida, lá fora, estivesse sempre acontecendo em maior velocidade.
A geração atual cresceu inserida em uma cultura que valoriza performance acima de tudo. A comparação constante, os conteúdos virais, as promessas de sucesso rápido e a exigência por atualização permanente criam um ambiente onde a pausa parece proibida. Willams observa que, enquanto os jovens tentam acompanhar esse ritmo, as máquinas são programadas para se aproximar cada vez mais da eficiência humana. A fronteira entre corpo e tecnologia se embaralha, e a sensação de insuficiência cresce. Nesse fluxo acelerado, o descanso ganha um novo significado: vira forma de resistência. Resistir ao cansaço imposto, às cobranças invisíveis, à ideia de que parar equivale a fracassar.
Para o professor, descansar deveria ser um direito básico. Mas, na prática, se tornou um privilégio, principalmente entre jovens periféricos, que lidam com jornadas múltiplas, falta de oportunidades e um tempo sempre escasso. A sociedade transformou a pausa em recompensa, não em necessidade. Quando isso acontece, o descanso deixa de organizar a vida e passa a parecer algo que precisa ser merecido. E ninguém deveria precisar merecer o próprio fôlego.
Willams defende que o ócio precisa voltar a ocupar o lugar que perdeu: o de tempo de existir, e não o de justificativa para existência. Para ele, quem consegue parar para respirar está, de fato, presente. Entre jovens, recuperar esse espaço pode significar desligar o celular sem culpa, aceitar o tédio como parte da vida e se permitir viver momentos que não geram conteúdo. Entender que descansar não é ausência de ação, mas presença de si. No fim, para o professor, sucesso não é alcançar o topo ou chegar primeiro. É conseguir seguir inteiro, mesmo com cicatrizes. E talvez essa seja a resposta mais urgente para a geração que vive exausta: antes de produzir, é preciso existir.
Por Julia Sena
No Brasil, onde a desigualdade atravessa desde as calçadas até o acesso digital mais básico, a tecnologia tem se mostrado uma aliada fundamental para pessoas com deficiências físicas. Por trás dos dispositivos e softwares, porém, existem histórias humanas que dão luz à urgência e à profundidade do tema. Entre as vozes mais importantes nessa discussão estão Cid Torquato, referência nacional em acessibilidade, e Lucas Moreira, representante do Instituto Dorina Nowill, organização que há décadas promove autonomia para pessoas com deficiência visual.
Cid Torquato desempenha um papel fundamental na promoção da acessibilidade por meio da tecnologia, enquanto secretário municipal da Pessoa com Deficiência em São Paulo em 2017, ele liderou a criação de um grupo de trabalho na ABNT que resultou na norma NBR 17060, que define requisitos de acessibilidade para sites e aplicativos. Ele também coordenou a tradução das Diretrizes de Acessibilidade para Conteúdo Web para o português, garantindo que as melhores práticas internacionais de usabilidade digital sejam mais acessíveis no Brasil. Além disso, é CEO do ICOM, plataforma de atendimento por videochamada em Libras, que promove a inclusão digital das pessoas surdas. Em 2025, ele participou do lançamento da ABNT NBR 17.225, norma que reforça ainda mais a regulação da acessibilidade digital em sites, e contribuiu para a criação do Núcleo de Inovação em Acessibilidade na InovaUSP. Por fim, ele coordena o “Guia Prático de Acessibilidade e Inclusão Digital”, destinado a orientar práticas de desenvolvimento digital mais inclusivas.
Cid costuma afirmar que acessibilidade não deve ser tratada como concessão e sim como fundamento, sua trajetória pessoal sustenta essa visão. Paraplégico após um acidente, ele vivencia diariamente o impacto das barreiras arquitetônicas, digitais e comportamentais que ainda restringem milhões de brasileiros. Ao longo da carreira pública, seja como secretário municipal ou estadual da Pessoa com Deficiência, ajudou a construir políticas estruturais que buscavam tornar São Paulo uma cidade mais inclusiva, com transporte mais acessível, serviços digitais utilizáveis por todos e espaços públicos que dialogassem com a diversidade dos corpos. Em suas reflexões, ele retorna sempre ao ponto de que tecnologia é cidadania. Quando um site não funciona em leitores de tela, alguém perde acesso a um direito. Quando um aplicativo não permite navegação por teclado, alguém é excluído de uma experiência coletiva. Para ele, acessibilidade digital deve ser encarada com a mesma seriedade que outros serviços essenciais, porque sem ela não existe participação plena nas esferas pública e privada.
Enquanto Cid atua na linha das políticas públicas, Lucas Moreira e a Fundação Dorina Nowill trabalham na base concreta da inclusão. A instituição, criada há mais de 70 anos, tornou-se referência ao unir Educação, Tecnologia e Autonomia para pessoas cegas e com baixa visão. É na gráfica de braille da Dorina que os livros escolares ganham relevo e passam a garantir que crianças e jovens estudem com igualdade de condições. É também lá que materiais diversos são convertidos para formatos acessíveis, como braille, áudio e fonte ampliada, ampliando o alcance da informação de maneira estruturada e contínua.
Lucas destaca que a missão da Fundação nunca foi apenas entregar ferramentas, mas criar condições reais de independência. Um livro em braille não é apenas um suporte de leitura, mas uma porta aberta para que um aluno participe da aula, interaja com colegas, faça provas e projete um caminho profissional. A tecnologia assistiva, nesse sentido, não é acessório, mas um dispositivo de autonomia. Ele ressalta também a importância das formações que a Dorina oferece para empresas e educadores, pois a inclusão não se sustenta apenas do lado de quem precisa dela, mas também do lado das instituições que devem garanti-la. Os projetos da Dorina mostram como inovação e sensibilidade podem caminhar juntas. Entre eles estão a produção de audiolivros acessíveis, cursos de alfabetização com LEGO Braille Bricks e consultorias que orientam organizações a revisarem conteúdos e plataformas digitais com foco na experiência de pessoas com deficiência visual. Esse trabalho parte de um princípio fundamental, a inclusão exige técnica, continuidade e responsabilidade.
A relação entre o trabalho de Cid e o da Dorina evidencia que acessibilidade é um conceito vivo e multifacetado. Envolve políticas públicas, cultura digital, tecnologia assistiva e transformação social. Apesar dos avanços, o cenário ainda apresenta desafios significativos. Muitas soluções tecnológicas seguem inacessíveis devido ao custo ou à falta de difusão. A capacitação de profissionais também é urgente. Não basta que um site declare ser acessível. É preciso que designers, desenvolvedores e lideranças sejam formados para construí-lo com acessibilidade desde a primeira linha de código.
Além das barreiras técnicas, existem aquelas que não se enxergam, preconceitos, desinformação e resistência cultural. A tecnologia pode abrir portas, mas é a sociedade que precisa permitir que elas permaneçam abertas. Narrativas como a de Cid e práticas como as do Instituto Dorina ajudam a provocar essa mudança ao mostrar que inclusão é feita de pessoas, de trajetórias e de escolhas políticas e coletivas. O futuro da acessibilidade passa por inovações que já estão em desenvolvimento, como inteligência artificial capaz de descrever ambientes, dispositivos de mobilidade inteligentes e interfaces que independem de visão ou tato para uso completo. Mas como lembram os entrevistados, nenhuma inovação faz sentido se não estiver ancorada em dignidade humana.
Acessibilidade, no fim, é sobre autonomia e pertencimento. É sobre garantir que toda pessoa, com ou sem deficiência, encontre na cidade, na escola, no trabalho e na internet um espaço que reconheça sua existência sem pedir adaptação forçada. O trabalho de Cid Torquato e Lucas Moreira demonstra que a tecnologia tem papel essencial nessa construção. Mas o que sustenta essa transformação continua sendo profundamente humano.
Por Carolina Hernandez
No quarto de muitos adolescentes brasileiros, o brilho da tela é a última coisa que se apaga à noite e a primeira que se acende pela manhã. As notificações estalam como pequenas centelhas de urgência, ocupando cada minuto livre com vídeos, mensagens, memes, jogos, conteúdos infinitos rolando para baixo. O gesto repetido do polegar virou quase um ritmo natural de uma geração que cresceu com o mundo dentro de um aparelho.
Os números ajudam a desenhar essa paisagem: segundo o IBGE, sete em cada dez adolescentes entre 13 e 18 anos passam mais de cinco horas por dia conectados, além das atividades escolares. A pesquisa TIC Kids Online 2024 revela ainda que 23% dos jovens brasileiros entraram na internet antes de completar seis anos. Uma infância já moldada pela tela, antes mesmo de entender o que havia por trás dela.
E não se trata de um fenômeno isolado. É global. A Organização Mundial da Saúde aponta que adolescentes no mundo inteiro passam de seis a nove horas por dia diante de dispositivos digitais, em média. O excesso não é neutro: problemas de sono, redução de atividades físicas, dificuldade de concentração e maior risco de transtornos emocionais compõem o cenário.
Nas entrelinhas dessa nova rotina, a psicóloga Juliana Hernandez observa o que não cabe nos gráficos. Para ela, o cérebro adolescente, ainda em formação, responde de maneira intensa a esses estímulos digitais que nunca cessam. O excesso, acredita, altera circuitos ligados à atenção, à regulação das emoções e ao sono, abrindo espaço para ansiedade, depressão e queda no rendimento escolar. Ela destaca que, em muitos casos, as redes sociais funcionam como um espelho distorcido, capaz de agravar quadros como TDAH, transtornos alimentares ou ansiedade ao exibir vidas filtradas e inalcançáveis.
O sono é um dos primeiros a ceder. A luz azul que emana das telas antes de dormir atrasa a produção de melatonina, o hormônio que organiza o relógio biológico. Estudos indicam que esse hábito aumenta em quase 60% o risco de insônia e reduz em média 24 minutos de descanso por noite. Juliana aponta que muitos adolescentes chegam exaustos às aulas, incapazes de fixar atenção, com falhas na memória e dificuldade de aprendizagem efeitos silenciosos, mas persistentes.
Para entender essas consequências no cotidiano, basta olhar para a rotina de Olívia Abitante, 16 anos. Ela lembra que passava horas a fio em redes sociais, até perceber que sua capacidade de se concentrar nas aulas se dissolvia entre vídeos curtos e notificações incessantes. Após uma avaliação médica, recebeu o diagnóstico de TDAH, potencialmente agravado pelo tempo excessivo de tela. A adolescente conta que também enfrentou noites mal dormidas, queda no rendimento escolar e um isolamento gradual, trocando encontros com amigos por interações digitais mais fáceis, porém mais vazias.
A virada veio quando decidiu reduzir o tempo de tela e iniciar acompanhamento psicológico. Com o tempo, o sono estabilizou, as notas melhoraram e as relações presenciais voltaram a fazer sentido. Um retorno lento, mas possível, que mostra como pequenos ajustes podem transformar a dinâmica emocional de um jovem.
Fora do mundo real, as telas também moldam imaginários. Na série Adolescência, da Netflix, Jamie, um garoto de 13 anos acusado de um crime brutal, tem sua trajetória atravessada pelo peso devastador das redes sociais. A produção explora como ambientes digitais podem radicalizar comportamentos, espalhar discursos de ódio e amplificar ansiedade e solidão em jovens vulneráveis, um retrato ficcional que dialoga com problemas reais enfrentados nas famílias e escolas.
Mas, como ressaltam especialistas, o vilão não é a tecnologia. O problema está no uso sem limites, sem orientação, sem freios. Juliana defende estratégias simples: horários específicos para redes sociais, estímulo a atividades offline, rotinas de sono regulares e espaços de escuta para que adolescentes entendam seus próprios limites. Ela acredita que pais e educadores devem orientar sem demonizar. A tecnologia, afinal, pode ser aliada quando usada com consciência.
Os efeitos positivos aparecem onde há ação coletiva. Em escolas que adotaram programas de conscientização digital, observou-se diminuição de conflitos e aumento da participação em atividades presenciais. Pausas digitais, implementadas em horários de estudo, mostraram melhorias na atenção e na memorização, como se o cérebro agradecesse por alguns minutos de silêncio.
O desafio é, ao mesmo tempo, individual e social. Faz parte do mundo contemporâneo estar conectado, mas aprender a se desconectar é uma competência urgente. A tecnologia não precisa ser abandonada, e sim compreendida. Não como ameaça, mas como ferramenta que exige cuidado, responsabilidade e equilíbrio.
Juliana, ao refletir sobre a educação digital, costuma dizer que aprender a usar a tecnologia de forma consciente deve ganhar o mesmo espaço que disciplinas tradicionais. Essa habilidade, acredita, precisa ser ensinada desde cedo, envolvendo famílias, escolas e os próprios adolescentes.
No fim, a mensagem é simples: a conexão é inevitável; o equilíbrio, indispensável. Entre telas que piscam, noites encurtadas e vínculos que se perdem no fluxo de notificações, cabe aos adultos ajudar os jovens a reaprender a viver no próprio tempo, dentro e fora das telas.
Por Lorena Basilia
A luz azul do celular ilumina o rosto de Hugo no fim da noite. O quarto está em silêncio, mas o som das notificações preenche o espaço. Ele rola a tela por instinto, sem pensar. Vídeos curtos, comentários, mensagens, publicidades . Quando o relógio marca quase meia-noite, ele percebe que não leu nenhuma página do livro que está na sua cabeceira e se sente muito cansado, mesmo que esteja deitado há horas. Na prateleira, seus outros livros empoeirados o observam de volta. Na infância dele, ler era um prazer, não uma obrigação. Hugo costumava deitar na cama e abrir o livro sem pressa. Lia sobre mundos distantes e personagens que pareciam vivos. Naquele tempo, a imaginação era o seu refúgio mais seguro, mas aos 20 anos, a rotina é outra. Trabalha em uma loja de eletrônicos em Curitiba, passa o dia cercado por telas e clientes apressados e em casa busca alívio nas redes sociais. O tempo passa rápido e a concentração se dissolve, ele lembra dos livros com saudade, mas diz que perdeu o ritmo. A leitura parece exigir um tipo de tempo que já não existe.
Segundo o Instituto Pró-Livro, o número de leitores no Brasil caiu de 104 milhões em 2015 para 89 milhões em 2023. São 15 milhões de pessoas a menos que declaram ler por prazer. A maior queda está entre os jovens, que passam mais de sete horas diárias diante de telas, de acordo com a pesquisa TIC Domicílios. Para o professor e escritor Norival Leme Júnior, mestre em Filosofia e docente de literatura e produção textual, o problema é antigo e vai além do desinteresse. Ele afirma que o Brasil nunca foi um País de leitores porque nunca resolveu suas bases educacionais. Norival recorda que o analfabetismo funcional ainda afeta a maioria da população adulta, mesmo entre os alfabetizados, muitos não conseguem compreender textos longos ou complexos. Ele lembra que, em meados de 2015, cerca de 75% dos brasileiros estavam em algum nível de analfabetismo funcional, isso significa que liam, mas não entendiam.
Em sua análise, o déficit histórico da leitura impede o desenvolvimento de um pensamento crítico consistente. Pare ele o ser humano é do tamanho da própria linguagem, quando o vocabulário se empobrece e o contato com a linguagem se torna superficial, o pensamento se estreita junto - pensar exige palavras, e palavras nascem da leitura. Norival vê a crise presente como consequência de um longo processo, em que o país nunca tratou a alfabetização e o acesso ao livro como prioridade nacional. Desde o rádio, televisão e a última revolução da Internet, a história do Brasil é marcada pela substituição da leitura por meios mais imediatos de comunicação. Em muitas regiões, o rádio ainda é a principal fonte de informação, com a chegada do celular, o livro se tornou quase um luxo.
Hugo sente vontade de voltar a ler, mas não encontra tempo nem disposição. O trabalho o consome, o transporte é desgastante e, ao fim do dia, sobra apenas o cansaço. Abre o celular porque é o que exige menos esforço, rola vídeos curtos, lê manchetes rápidas e, quando percebe, já é hora de dormir. A rotina dele se repete em milhões de pessoas. Norival acredita que o problema não é apenas a correria, mas o modo como o tempo livre foi tomado pela lógica da produtividade. Ele explica que a sociedade atual valoriza a pressa, o resultado imediato e o conteúdo rápido. A leitura, que exige pausa e reflexão, acaba parecendo uma perda de tempo. Esse padrão afeta não só o prazer de ler, mas também a capacidade de pensar. Para o professor, o excesso de estímulos visuais e de informações fragmentadas cria uma geração que se comunica muito, mas reflete pouco. O celular não é o inimigo, mas um sintoma de uma era em que a profundidade se tornou rara.
A crise da leitura não se explica apenas pela tecnologia, é também fruto da desigualdade social, entende o professor. Lembra que há cidades inteiras sem livrarias e escolas públicas com bibliotecas fechadas. Em algumas regiões não existe sequer um espaço de leitura em um raio de centenas de quilômetros. Ele afirma que o problema é político, sem políticas públicas de incentivo à leitura, o acesso ao livro continua restrito. Nos últimos anos, a falta de investimento em cultura e educação reduziu ainda mais as possibilidades de formação de leitores. O professor defende que a leitura deve ser tratada como questão de Estado. O mercado editorial não tem força para resolver o problema sozinho. Também critica a falta de interesse político em promover o pensamento crítico. Em sua avaliação, parte das lideranças brasileiras vê a leitura como uma ameaça, porque ler desperta consciência. Também acredita que a ausência de incentivo à leitura é, em parte, uma forma de manter o controle sobre uma população que pensa e questiona pouco.
Os dados do mercado editorial confirmam a visão do professor. Entre os livros mais vendidos do país estão títulos de autoajuda, religiosos e obras ligadas a influenciadores digitais. Livros clássicos e literatura contemporânea aparecem em posições muito inferiores, a leitura virou consumo, não reflexão. Norival observa que as pessoas leem buscando resultados imediatos. Querem enriquecer, melhorar a produtividade, encontrar soluções rápidas. A leitura literária, que estimula o pensamento e a imaginação, perde espaço para textos utilitários. Essa tendência, segundo ele, é reflexo direto de um modelo social que transforma até o conhecimento em produto.
Hugo e Norival se movem pela mesma convicção: a de que o contato com as palavras ainda é essencial para manter viva a capacidade de pensar. A leitura exige tempo, silêncio e disposição, três coisas cada vez mais escassas. No entanto, é ela que amplia a linguagem e, com ela, o entendimento da realidade. Sem leitura, o pensamento se reduz e a imaginação se apaga. Enquanto Hugo enfrenta o cansaço diário e tenta resgatar o prazer de ler, Norival continua insistindo em sala de aula, convencido de que ensinar literatura é desafiar o esquecimento. Entre o brilho das telas e o silêncio das páginas, os dois representam o retrato de um Brasil que lê cada vez menos e, por isso mesmo, se compreende cada vez menos.


