"Adolescência" mostra como o uso desenfreado das redes sociais pode impactar a identidade e a saúde mental dos jovens
por
Ana Julia Mira
Victória Miranda
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29/04/2025 - 12h

A minissérie "Adolescência", produzida pela Netflix (2025), retrata de maneira impactante o quão prejudiciais as redes sociais podem ser para os jovens e adolescentes e a importância do acompanhamento parental. Com mais de 114 milhões de espectadores no mundo todo, a série levantou o debate acerca dos impactos do mundo digital na formação da identidade e na saúde mental da geração que nasceu envolta nesse cenário. 

foto psicologa
Psicóloga clínica: Elis Calado. Foto: arquivo pessoal.

Para a psicóloga clínica Elis Calado, em entrevista à AGEMT, "o uso excessivo de telas pode aumentar sintomas de ansiedade, depressão e baixa autoestima, especialmente pelas comparações nas redes sociais". Além disso, a profissional cita como a superexposição às telas podem afetar a saúde física e social das crianças - que passam a ter problemas com insônia e isolamento social.

Um dos aspectos destacados pela série é a crescente imersão dos jovens no universo digital, sendo expostos diariamente ao cyberbullying, padrões irreais e discursos de ódio. As redes são marcadas pelo surgimento de novos termos e gírias que, muitas vezes, soam como um idioma próprio para quem está fora desse contexto. Expressões como "incel", "redpill" e "blackpill" exemplificam essa nova linguagem. Esses termos ilustram não apenas uma mudança de vocabulário, mas também a formação de novas culturas dentro do ambiente virtual. Essas terminologias revelam ideologias que podem moldar negativamente a visão de mundo dos adolescentes.

Infelizmente, o que se vê na série não se limita à ficção. No dia 1° de abril deste ano, em Caxias do Sul (RS), três alunos esfaquearam uma professora após receberem advertências disciplinares no dia anterior. A saúde emocional prejudicada dos adolescentes, faz com que eles ajam sem pensar nas consequências ou não se importando com elas. São moldados a um cenário em que tudo o que desejam está à disposição. 

Comparado às gerações anteriores, hoje os mais novos vivem uma realidade muito distinta. No passado, as interações eram limitadas a encontros presenciais, telefonemas e bilhetes. Atualmente, com um smartphone em mãos, a geração alpha — nascidos de 2010 em diante — tem acesso irrestrito a conteúdos de todo o mundo, a qualquer hora. Segundo Elis: “na internet os jovens “perdem a noção do tempo”, experimentam “liberdade total” e se transportam para esse “mundo virtual”, que é muito importante para eles, porque funciona como uma fuga para suas angústias existenciais e promete sentido e pertencimento”.

O problema é a dificuldade de desassociar esses “dois mundos” quando vivem o dia a dia. O que acontece nas redes sociais transpassa esse ambiente e toma forma na vida material. Como o protagonista, Jamie (Owen Cooper), que assassina sua colega de turma em razão de comentários na internet, muitos adolescentes têm sido levados a tomar atitudes terríveis por serem frágeis emocionalmente e muito afetados por outros.

Por outro lado, muitas vezes o mundo virtual é como uma terra sem lei, onde todos dizem o que querem e como querem. A liberdade dada para todos por meio das redes sociais trouxe muitos benefícios ao longo dos anos, mas, cada vez mais, vemos as ações prejudiciais desses meios nas relações e na mente humana. Se antes o que era dito passava por certo filtro nas conversas cara a cara e na lentidão das cartas, hoje o distanciamento que as redes geram e a rapidez com que pode-se fazer um comentário, torna esse filtro praticamente inexistente.

Em um mundo onde os jovens estão cada vez mais conectados, é fundamental estar atento aos efeitos dessas redes sociais. Como retratado na série "Adolescência", muitas das situações que os personagens enfrentam são desafios reais da juventude moderna. As redes sociais podem ser uma ferramenta poderosa, mas também podem se tornar um terreno fértil para inseguranças e problemas emocionais, se não forem usadas com cautela.

A psicóloga ressaltou a importância do acompanhamento familiar: “O mundo moderno é muito acelerado e exigente, mas precisam desacelerar e estabelecer prioridade claras olhando com mais atenção para a relação com os filhos e entre a família, devem buscar fortalecer os laços afetivos com mais convivência e mais diálogo”. 

Ouça a reportagem pelo link

 

“Você tá igual cachorro na frente da padaria”: marca responde com descaso a publicação de influenciadora
por
Isabelle Rodrigues
Natália Matvyenko
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24/04/2025 - 12h

A Salon Line, marca de enorme presença no setor de cosméticos capilares e preferida das consumidoras de cabelo cacheado e crespo, se viu no centro de uma polêmica que escancarou a distância entre o discurso e a prática. A protagonista da história é Maju Santos, influenciadora de 19 anos que cria conteúdo sobre cuidados com cabelo natural — de forma independente, sem apoio ou patrocínio da marca.

Maju publicou um vídeo em seu perfil mostrando um penteado feito com dois produtos da Salon Line. A surpresa veio depois: em mensagem privada, a marca respondeu com um comentário no mínimo duvidoso: “Amiga, você tá igual cachorro na frente da padaria olhando o frango girar e só sentindo o cheiro.”

O print foi parar no TikTok da criadora, que desabafou: “Tentei rir na hora e respondi brincando, mas depois parei pra pensar: a gente se esforça, cria conteúdo de graça, usa os produtos, e ainda tem que lidar com esse tipo de comentário?”. A fala fazia referência à famosa “caixinha” de produtos - conhecida como Migs - que a Salon Line envia para influenciadores parceiros. Maju já havia sido aceita no projeto, mas nunca recebeu nada porque seu perfil não é monetizado: 

“Eu sou consumidora. Compro os produtos. Crio conteúdo porque gosto. A marca não paga, não patrocina, não envia nada. E ainda assim me tratam assim?”, completou.

Com a repercussão negativa, a Salon Line publicou um vídeo pedindo desculpas. “Erramos. Desculpa, Maju”, disse uma representante da marca, alegando que a equipe costuma responder mensagens com atenção, mas falhou nesse caso. A retratação não impediu que muita gente questionasse como uma marca que se baseia desde seu lançamento em diversidade e representatividade ainda comete esse tipo de deslize

O caso chamou a atenção não só pela fala infeliz, mas pelo retrato que pinta do mercado de influência: muitos criadores, especialmente mulheres negras de periferia, sustentam a relevância de marcas como a Salon Line nas redes — sem nenhum retorno financeiro. Essa prática, que ficou conhecida como “mimos” ou “recebidos”, é um dos modelos de marketing mais populares do mercado atual de beleza. A estratégia consiste em usar a plataforma do influencer como catálogo para a marca, considerando os produtos como forma de pagamento pela divulgação. 

O problema é que essa posição não é benéfica para criadores pequenos, pois exige um período longo de exposição para gerar lucro. O mercado de marketing de influência se beneficia nesse acordo, usando da mão de obra e criatividade de outras pessoas a “preço de banana”. Vale lembrar: a Salon Line cresceu muito nos últimos anos. É líder em pós-xampu em perfumarias e terceira maior em supermercados, segundo a Nielsen. Seu portfólio tem mais de 400 produtos — entre eles, a famosa linha #todecacho. 

Em 2022, somava 2,6 milhões de seguidores no TikTok e mais de 500 mil inscritos no YouTube. Tudo isso graças, em parte, a estratégias digitais que deram voz e visibilidade, justamente, para quem, agora, está cobrando respeito.

A situação escancarou o abismo que ainda existe entre o marketing de empatia e a prática real das marcas. Uma cobrança legítima por coerência, reconhecimento e respeito a quem sempre esteve na linha de frente. 

Esse não foi o primeiro exemplo de má conduta entre marca e cliente, ano passado, 2024, a marca Mascavo, propriedade da também influenciadora Mari Saad, tomou a frente das notícias. A marca em questão, criou toda uma narrativa de inclusividade e aceitação pré-lançamento  para depois ter em sua cartela apenas três opções de tons para peles negras e retintas. 

Esse ano, a influenciadora Gabi Oliveira, conhecida como Gabi de Pretas, relatou a conduta desigual da Mascavo. Na nova onda de lançamentos da marca, de Pretas recebeu um conjunto de PR com apenas dois itens da coleção, descredibilizando sua posição de respeito nas redes e seu papel como influenciadora.

 

 

Mesmo com dificuldades em deixar o dispositivo, jovens reconhecem importância da Lei
por
Thaís de Matos
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31/03/2025 - 12h

Após dois meses desde a proibição do uso de celulares nas escolas do país, alunos, professores e especialistas têm relatado as mudanças observadas com a medida. Aprovado pelo Congresso Nacional em dezembro do ano passado e sancionado pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) em janeiro deste ano, o PL 4.932/2024 dispõe sobre a restrição dos aparelhos nas escolas públicas e privadas. No entanto, para atividades pedagógicas que exigem o uso do dispositivo, os alunos são permitidos a usá-lo sob orientação dos professores. 

Com o uso dos dispositivos proibido inclusive nos intervalos, o objetivo da lei é proteger a saúde mental, física e psíquica das crianças e adolescentes, além de mitigar os impactos do uso excessivo do celular. Apesar de aprovada recentemente no território nacional, a medida já vigora em outros países. Desde 2018, a França, por exemplo, restringe o uso de smartphones nas escolas. Outras nações como Espanha, Holanda, Dinamarca e Finlândia, também possuem alguma restrição quanto ao uso do aparelho no ambiente escolar. 

Segundo o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), de 2023, existe uma relação negativa entre o uso excessivo das tecnologias digitais e o desempenho acadêmico. O documento, coordenado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e aplicado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) no Brasil, é inclusive citado no Relatório Global de Monitoramento da Educação da Unesco. Esse último estudo, do mesmo ano, afirma que “os aspectos negativos e prejudiciais do uso da tecnologia digital na educação e na sociedade incluem o risco de distração e a falta de interação humana”. 

De maneira não surpreendente, tanto estudantes quanto quem trabalha na educação admite que o uso excessivo do celular atrapalhava o foco durante as aulas e às vezes até a interação entre os colegas. Barbara Adam, aluna do 3º ano do Ensino Médio no Colégio Rainha da Paz, localizado no bairro do Alto de Pinheiros, em São Paulo, comenta, em entrevista à AGEMT, que o telefone gerava distrações de maneira geral entre os colegas, já que “qualquer notificação que chegasse eles olhavam para ver o que era”. Mesmo fora do ambiente escolar, não é novidade que o hábito de olhar o dispositivo assim que recebe uma mensagem é sintomático socialmente. 

Kauê Pereira, assistente pedagógico no Ensino Médio do colégio, complementa que o uso do aparelho em sala estava realmente descontrolado. “Era possível perceber o vício dos alunos no dispositivo, e as interações entre eles se resumiam a assistir conteúdos ou jogar no celular”. Djeferson Sousa, professor assistente na Escola Móbile, em Moema, também diz que entre as trocas de aula e intervalo “era a coisa mais comum ver a maioria no celular”. 

A psicóloga clínica, mestra em educação e assessora pedagógica da Rede Metodista, em São Paulo, Vanessa Fantozzi, tampouco teve percepções diferentes. Por mais que não houvesse nenhuma proibição explícita, a orientação nas escolas do país sempre foi de não mexer no celular durante as aulas – mesmo assim, era comum ver estudantes usando o dispositivo durante as explicações. “A metodologia de ensino tinha que ser muito envolvente para o aluno realmente prestar atenção. Muitas vezes eu presenciei cenas do professor falando muito bem, passando a matéria de uma maneira bem didática, bacana, e o aluno atrás, na cara dura, mexendo no celular”. No dia a dia, Vanessa convive com alunos desde a Educação Infantil, até o Ensino Médio. 

Embora passado um tempo desde a proibição, o Conselho Nacional de Educação (CNE) publicou recentemente uma resolução que orienta o uso dos dispositivos digitais nos espaços escolares. De acordo com o documento, cada instituição de ensino decide a maneira como os celulares serão guardados durante o dia letivo. O texto também informa que as punições para quem desrespeitar a norma devem ser implementadas de maneira democrática e considerando os direitos humanos. 

Mesmo antes da lei federal, algumas escolas do país já haviam introduzido a restrição do uso de celulares no ambiente. É o caso do colégio de Barbara, que explica que antes da norma, no último trimestre do ano passado, a instituição deixava caixas de madeira dentro das salas para cada aluno deixar o aparelho assim que chegasse no local. “Mas muitas pessoas não respeitavam a regra, já que era pouco fiscalizado”, esclarece a aluna. Depois da regulamentação, no entanto, a orientação mudou para que cada estudante guardasse o telefone dentro da própria mochila.

Sarau realizado entre professores e alunos do Colégio São Domingos, localizado em Perdizes, em setembro de 2024.
Sarau realizado entre professores e alunos do Colégio São Domingos, localizado em Perdizes, em setembro de 2024. Na época, a instituição já experimentava o desuso do celular. \ Reprodução/Instagram @colegio_sao_domingos 

Atualmente, as escolas onde estudam Matheus Amorim e Beatriz Ferreira, no Colégio Santa Lúcia Filippini e Colégio Arbos, respectivamente, seguem a mesma estratégia. A não ser que seja sob orientação do professor, o celular não deve ser tirado da mala em nenhum momento. Já na Escola Móbile, Djeferson explica que o dispositivo deve ser mantido necessariamente nos armários dos estudantes, disponibilizados para todos. Caso seja visto portando o dispositivo em sala, deve se retirar do ambiente. “Em uma ocasião, um aluno deixou o celular cair do bolso na sala de aula e teve que ser excluído da classe; ele não voltou até o término da aula”, cita o auxiliar. Nesse tipo de situação no colégio, o discente é orientado a ficar na coordenação até o fim da disciplina. 

Segundo depoimentos dos estudantes e assistentes, no começo foi difícil a adaptação ao novo contexto, e mesmo dois meses após a restrição, não é raro ver alunos que tentam usar o dispositivo escondido. Já nos outros colégios nesses casos, se visto, o objeto é deixado na coordenação pedagógica pelos professores ou inspetores. Beatriz, que está no 3º ano do Médio e estuda em São Caetano do Sul, complementa que os jovens só podem pegar o dispositivo ao fim do dia e acompanhados dos pais. 

“Todos os dias flagramos alunos indo ao banheiro para usar o celular ou tentando utilizá-lo escondido em sala. No entanto, em todos os casos, há uma intervenção. Isso apenas evidencia o quão viciante o uso do celular era para alguns estudantes”, diz Kauê. O assistente também cita que nem na cantina da escola os discentes podem usar o aparelho para pagar com Pix, ou cartão digital. “Eles precisam adicionar créditos no aplicativo da cantina para conseguir consumir, ou levar o próprio cartão físico.” 

Até entre alguns professores o uso do dispositivo diminuiu, a fim de não influenciar os discentes a usarem, como no Colégio Rainha da Paz. O auxiliar pedagógico explica que formalmente, não existe nenhuma restrição, mas que os docentes foram aconselhados em reunião a ‘servir de exemplo’ para os jovens. Apesar do uso entre os educadores também ter diminuído, a orientação é bem mais flexível do que para os alunos. 

Algumas instituições até disponibilizaram espaços para um “celulódromo”: local onde é permitido o uso do celular exclusivamente para fazer ligações e falar com os pais, antes e depois das aulas, se necessário. É o caso da Rede Metodista, que Vanessa acompanha, e da Escola Móbile. Diante da nova lei imposta, ao longo do tempo os alunos tiveram que se adaptar gradualmente e passaram a usar e buscar alternativas de entretenimento na escola, sobretudo nos intervalos. Além disso, as próprias instituições são orientadas pelo MEC para que ofereçam lazeres aos discentes. 

Por todo o território nacional, existem relatos de diversas atividades para entreter os jovens: ping pong, pebolim, vôlei, basquete, futebol, queimada. “Uno”, truco, pular corda, leituras e até forró. Frequentemente, os alunos são consultados pela comunidade escolar para sugerir alternativas que lhe interessem. Apesar das dificuldades iniciais, alguns jovens avaliam que, de fato, se sentem mais concentrados sem a presença do dispositivo durante as aulas. Beatriz admite que a adaptação no começo foi complicada, já que quando precisava falar com alguém, era só pegar o celular naquele momento. “Com o passar dos meses eu fui me adaptando bem à nova lei e entendendo que o celular realmente afeta nossa concentração e aprendizado durante as aulas.” Para Barbara, o celular não fez falta e até achou boa a restrição por se sentir mais focada nas disciplinas. 

Curiosamente, com a socialização pelo celular interrompida, alguns hábitos e transgressões que já não se viam constantemente em determinados anos, retornaram. “Bolinhas de papel voltaram a voar pela sala, colas estão sendo passadas por meio de papéis e borrachas, e piadinhas e rabiscos nas mesas tornaram-se mais frequentes”, menciona Kauê. Outra febre comum nos últimos tempos entre adolescentes, é o uso das câmeras digitais na sala de aula, sobretudo as tipo cybershot, máquinas compactas que tiveram seu auge nos anos 2000. Os dispositivos têm sido usados não só para registro entre os alunos, mas até para tirar foto da lousa – o que antes era feito com o celular. 

Alunas do Colégio Rainha da Paz registram trote com cybershot.
Alunas do Colégio Rainha da Paz registram trote com cybershot. \ Reprodução/Instagram @bah.tche_ 

Quanto ao uso dentro de casa desde a medida, os estudantes se dividem para dizer se passaram a usar menos o celular, ou não. Barbara acha que seu uso fora da escola não aumentou nem diminuiu; para Matheus, a mesma coisa. Beatriz confessa que seu tempo de uso do dispositivo aumentou em casa, principalmente quando passa o dia inteiro no colégio. Vanessa concorda que acha muito difícil que os alunos tenham diminuído o uso do telefone em casa, e sugere que os pais talvez devessem conversar com os filhos sobre o tempo excessivo de tela. 

“Infelizmente, eu gostaria de falar que não, mas eu acho que eles continuam usando, sim, dentro de casa. Acho que os pais também querem tentar controlar isso, mas os filhos ficam muito tempo sem, aí eles [pais] acham que podem ficar mais tempo dentro de casa. Então também é uma restrição que os pais precisam colocar; talvez tempo de tela, porque isso não mudou dentro de casa, eles continuam usando. Requer os familiares a essa conversa". 

Como as bets têm roubado dos pobres para dar aos ricos
por
Leonardo Gomes
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16/04/2025 - 12h

Imagine passar um longo tempo trabalhando longe e, ao retornar, encontrar sua comunidade (neste caso, feudo) devastada por leis abusivas e pela proibição de meios de subsistência. Insurgir-se é preciso! No entanto, você é declarado "fora da lei". Contudo, não baixa a cabeça e, valendo-se de seus amplos conhecimentos técnicos, assim como de seu capital social, nos termos de Pierre Bourdieu, reúne um grupo de "perseguidos pelo sistema" e dá início a um combate contra a tirania da nobreza, passando a roubá-la para distribuir aos pobres. Essa é a história de Robin Hood. Agora, imagine seu exato oposto: um sistema que, em vez de tirar dos ricos, subtrai o pouco dos mais necessitados. Esse mecanismo existe, é a "bet" ou casa de apostas.

O termo "bet" vem do Inglês "bette", que significa aposta. Esse tipo de jogo é realizado exclusivamente on-line, havendo inúmeros sites que oferecem esse tipo de serviço. Para apostar, o usuário deve realizar o cadastro em algum desses sites, fazer um depósito e selecionar, entre diversas competições esportivas, pelo menos uma partida, cujo resultado é transmitido em tempo real. Como forma de estimular a aposta em um determinado evento, são exibidas suas "odds". O termo "odd" nesse caso significa "probabilidade", e refere-se à chance de um resultado acontecer.

A razão entre a chance de determinado resultado ocorrer é inversamente proporcional ao valor pago pela casa de apostas. Por exemplo, digamos que o Palmeiras joga em casa contra o Sport. As "odds" antes e no início do jogo serão maiores — pagará um múltiplo maior da quantia apostada em caso de vitória do time visitante. Todavia as "odds" são dinâmicas, ou seja, mudam de acordo com o resultado e com a proximidade do término da partida. Neste mesmo exemplo, se o placar estiver Palmeiras 0 x 5 Sport e faltando 10 minutos para o fim do jogo, a casa de apostas oferecerá um retorno altíssimo para quem apostar na virada do mandante, devido à baixíssima probabilidade de esse resultado ocorrer.

O problema desse tipo de aposta é que ela transmite uma falsa sensação de lucro fácil e controle da situação. Entretanto, pode levar os apostadores a prejuízos financeiros e ao vício. As empresas desse setor investem muito dinheiro na divulgação de seus serviços, contratando celebridades e influenciadores digitais, que vendem a narrativa do lucro fácil e rápido. Em um país com imensas desigualdades como o Brasil, esse tipo de jogo prospera explorando as fragilidades culturais, sociais e econômicas da população. No YouTube, por exemplo, há inúmeros relatos de pessoas que perderam grandes quantias nesse tipo de aposta. Em um desses vídeos, o youtuber Anselmo Bulgarelli relata ter perdido mais de meio milhão de reais nesses sites de apostas.

Segundo a psicóloga e Doutora em Psicologia Ivelise Fortim "as 'bets' operam por meio da ativação de sistemas de recompensa cerebral, explorando os mecanismos de reforço intermitente variável. Esse é um tipo de condicionamento em que a recompensa (dinheiro, vitória) acontece de forma imprevisível. As interfaces são desenhadas com padrões manipulativos, que exploram esses mecanismos, fazendo o jogador acreditar que tem controle sobre a situação (o que não é verdade, pois muitos jogos, além de aleatórios, são manipulados), incentivando a continuidade do jogo. Também existe o fato de que esses reforços são muito rápidos (a pessoa já sabe se ganhou ou perdeu rapidamente), fazendo com que o ciclo do jogo se mantenha.  Essas plataformas utilizam estratégias de gamificação — como bônus por fidelidade, recompensas visuais, notificações e rankings para tornar a atividade mais divertida".

Fortim reforça ainda que "pessoas em situação de vulnerabilidade muitas vezes veem nas apostas uma possibilidade de mudança rápida de vida. Também existe a ilusão de que a saída da pobreza será fácil, rápida e sem esforço. Isso é alimentado pelo discurso de influencers que falsamente prometem ganhos extraordinários. Essa também é uma população que tem menor educação financeira e menor literacia digital, ou seja, podem ser menos críticos a propaganda enganosa e mecanismos de manipulação. Mas a pobreza não é a única variável para a dependência de apostas, dado que este é um problema que também afeta classes sociais mais altas".

Embora complexas, há formas de mitigar os efeitos das "bets" sobre o comportamento dos usuários. Para Ivelise, "as estratégias de prevenção devem ser em diversos níveis. A educação midiática, a educação financeira, o pensamento crítico em relação à publicidade e ao funcionamento das apostas, são estratégias importantes. As apostas, embora pareçam escolha individual, são influenciadas também por estruturas sociais e problemas sociais como  a precarização do trabalho e a ausência de políticas públicas para essas populações. Outros aspectos a serem considerados são a regulação da publicidade e a regulação do funcionamento das 'bets', especialmente voltada para crianças e jovens em situação de vulnerabilidade. A responsabilização das empresas que operam plataformas de apostas também deve ser considerada, pois as empresas deveriam adotar práticas éticas e de não manipulação".

Enquanto as apostas forem vendidas como esperança, restará à sociedade a missão de lembrar que o verdadeiro jogo — o que realmente importa — acontece em outro campo: o da justiça social.

A individualização política das mulheres e a realidade feminina no Brasil
por
Leticia Falaschi
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14/04/2025 - 12h

Ainda nos últimos meses de 2024, uma trend tomou conta das redes sociais como o TikTok e o Instagram. As tradwifes (abreviação que vem do termo em inglês Traditional Wifes, ou esposas tradicionais, no português) ganhou espaço entre as recomendações de algoritmos ressaltando o estilo de vida conservador exibido por essas influenciadoras. Até hoje hashtags e vídeos têm milhares de curtidas: suas rotinas romantizadas preparando a comida e cuidando dos filhos, claro, que com as roupas e maquiagem sempre intactas geram numerosos comentários de mulheres desabafando como essa seria a vida dos sonhos. O que vem preocupando estudiosos da sociedade é a permanência insistente desse movimento como objeto de desejo e a relação que ele estabelece o como momento político vivido. O que significa tantas mulheres querendo abdicar de suas vidas profissionais e externas ao lar?

Primeiramente, é necessário entender que o papel da mulher e as relações de gênero sempre foram uma questão para todas as sociedades. Durante a história, principalmente ocidental e em países colonizados, as mulheres se viram na posição de adaptar-se e lutar por espaços, mas os processos históricos não são lineares, e não esbanjam progresso durante o percurso. Em entrevista à AGEMT, Maria Eduarda Araújo Guimarães, doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), conta sobre os passos analisados na percepção social do feminino.

"Essa argumentação da naturalização do papel de gênero é muito fortalecida. Essa ideia de que o papel da mulher é estar ao lado do homem contribuindo, mesmo que não seja por vias econômicas e políticas, sempre esteve presente na luta das mulheres, nunca foram superadas”, afirma Maria Eduarda. 

Ilustração mulher "tradwife"
 foto divulgação: flickr/SportSuburban

Muitas das mulheres que desejam esse estilo de vida carregam um cansaço, mesmo que inconsciente. Ainda hoje, a maioria das figuras femininas ainda estão responsabilizadas pela dupla jornada: o trabalho externo, que requer o deslocamento, e os trabalhos domésticos. São muitas horas e preocupações a mais do que boa parte dos homens. Maria Eduarda comenta sobre essa relação: “Você pode até ter uma relação equalitária entre um homem e uma mulher, os dois chegam do trabalho e nenhum vai lavar a louça, mas a mulher vai ficar com peso na consciência... no fundinho de seu ser vai ter um fundo de culpa”.

A entrevistada aponta, especialmente para o cenário brasileiro, o fator do desprezo do trabalho manual, devido as raízes coloniais: “o fato de que nós fomos o país que mais teve escravizados e que mais demorou para libertá-los, traz uma visão muito negativa para o trabalho doméstico. O Brasil não se fundou numa ética do trabalho. A gente desvaloriza o trabalho manual, a pessoa que o faz é desqualificada, mesmo que seja para nós”, ressalta.

Da inferiorização, involuntária e imperceptível, nasce essa angústia, esse fardo. E então, uma boia furada no meio do oceano parece ser uma solução. É necessário compreender que, quando falamos de configurações tradicionais de família, há uma hierarquia que não envolve somente as pessoas que a compõem. Boa parte das influenciadoras que postam esse tipo de conteúdo ficam apenas com o papel de supervisora: ela cuidará dos filhos enquanto uma outra mulher (paga pelo homem provedor financeiro) que fará o trabalho pesado. Em solo brasileiro, questão fica ainda mais profunda: a quantidade de homens que ganhem o suficiente para prover uma família nesses parâmetros é ainda mais difícil. "É um fenômeno branco, pelo menos no Brasil”, diz a entrevistada.

É quase inevitável não relacionar a “volta” triunfal dos moldes tradicionais de família com as ondas conservadoras e de extrema direita que vemos acompanhando. Apesar dos progressos coletados desde as revoluções culturais dos anos 1960 não foram absolutas. Uma possível atribuição para o sucesso das tradwifes é a necessidade de encaixar-se num nicho, num estilo de vida, demanda gerada pela sociedade extremamente on-line. Num mundo onde se pode ser tantas coisas, surge a insegurança na autonomia, muitas vezes calcada nas realidades femininas no mercado de trabalho: “Toda essa dificuldade que as mulheres enfrentam, fazer uma faculdade, mestrado, doutorado e mesmo assim isso não vai significar uma autonomia financeira. É um caminho mais fácil, ilusório, de as mulheres se sentirem protegidas, amparadas... essa ilusão, ao olhar para os EUA, programas de televisão, acabam gerando uma tentativa de mimetização sem levar em conta as com as diferenças das matrizes culturais”, analisa Maria Eduarda.

É curioso analisar como as ondas conservadoras se apropriam das redes sociais com tanta eficácia. Uma onda de mulheres votadas a abdicar de suas vidas profissionais e políticas é minimamente vantajoso aos que vem pregando esse movimento, há muito tempo, antes do TikTok. “sempre vai existir esse jogo de questionar o papel da mulher na sociedade... o que muda é a nomenclatura, é uma repaginação das redes sociais... O que elas trazem nesse discurso de diferente é que elas não estão ali por falta de escolha... e aí a questão de submissão é parcialmente maquiada”, explica Maria Eduarda. “Isso é um discurso para as redes sociais, nenhuma dessas mulheres vai mostrar que apanhou do marido porque ela não fez o que era esperado dela, ela vai expor o que é positivo dessa questão”.

É a figura do homem que está no controle da vida de todos, a mulher somente terá essa vida provida enquanto ele permitir. É ele quem terá maior poder para violentá-la psicologicamente, fisicamente e patrimonialmente. “Quem tem o poder econômico sempre tem o poder... é muito interessante essa volta conservadora, essa ideia de que a mulher é inimiga: nunca criticando a abolição do divórcio, que é criticada na bíblia, e a volta do adultério com crime... é questionável o ‘cara’ conservador que anda com a bíblia debaixo do braço, mas já está na quarta esposa”.

Documentário I’m Not a Robot instiga o telespectador a refletir sobre a evolução das máquinas
por
Vítor Nhoatto
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08/04/2025 - 12h

Não sou um robô, uma etapa de checagem comum ao navegar na internet e uma sentença obviamente verdadeira, ou talvez não. O curta-metragem de co-produção holandesa e belga de mesmo nome, problematiza o chamado teste Captcha, quando a protagonista Lara (Ellen Parren, produtora musical, entra em uma crise existencial ao não conseguir provar sua humanidade.

Logo de cara o enredo de Victoria Warmerdam, também diretora da obra,  pode parecer apenas cômico, e a interpretação de Parren colabora para essa atmosfera. Os diálogos curtos e a indignação diante de uma suposta certeza de Lara prendem a atenção do telespectador ao fazer com que haja identificação com a situação. Provavelmente todos nós já erramos um destes testes simples em algum momento.

A história com pouco mais de 20 minutos continua com a indicação que a personagem tem a chance de ser 87% um robô, segundo um quiz online, e a essência incômoda da ficção científica começa a reluzir. Conversas entre humano e máquina existem há cerca de 60 anos, com a criação do chatbot Eliza, e com o avançar dos anos é cada vez mais comum, de fato.

Seja aquele número para marcar consultas ou o serviço de atendimento ao cliente das operadoras, a Inteligência Artificial rodeia as esferas da vida cotidiana e vem evoluindo rapidamente. Tome como exemplo o robô humanoide que já foi capa de revista e é considerada cidadã saudita, Sophia, da Hanson Robotics desenvolvido em 2015. Ou ainda os influencers virtuais com milhões de seguidores do Instagram hoje como a carismática Lu da empresa de varejo brasileira, Magazine Luiza.

Robô Sophia
Sophia foi inclusive ao Talk Show do apresentador norte-americano Jimmy Fallon - Foto: Hanson Robotics / Divulgação

Parece que a barreira entre o físico e digital, natural e artificial vem sendo quebrada, como aborda a obra de Margareth Boarini, “Dos humanos aos humanos digitais e os não humanos”, lançada em julho do ano passado pela editora Estação das Letras e Cores. O primeiro livro da doutora em tecnologias da inteligência e mestre em comunicação se aprofunda nesses casos de coexistência entre robôs e pessoas, porém, até onde se sabe as diferenças entre máquinas e humanos são perceptíveis, ainda. 

Mas como uma boa teoria de ficção científica, o documentário explora justamente um possível futuro da humanidade, em que máquinas e humanos serão indistinguíveis, A saga de Lara por respostas acaba com a revelação de que Daniël (Henry van Loon), marido da personagem, a encomendou sob medida há alguns anos, como se faz com uma roupa hoje.

Suas memórias, sentimentos e até mesmo relações com outras pessoas, ou robôs, são todas fabricadas, como uma versão muito mais avançada do robô Sophia. A comédia permeia a narrativa um tanto quanto impensável aos olhos de hoje, mas curiosa. A seriedade da executiva da empresa que fabricou Lara, Pam (Thekla Reuten) cria uma atmosfera cômica ao assunto, completada pela tranquilidade que Daniël fala sobre sua “aquisição”.

Parren entrega uma atuação que transborda indignação, e o trabalho cinematográfico é inteligente, com cortes que acompanham a visão de Lara. Sobre o ambiente que o filme se passa, todas as gravações foram no CBR Building em Bruxelas, e a ambientação feita com cores vibrantes e apenas carros de época no estacionamento propõe um contraste entre antigo e moderno, frio e robótico, quente e humano. 

O desfecho se dá com o desejo da protagonista de ser dona do próprio destino, relegando o fato de não poder morrer antes de seu “dono”. Isso pode ser visto talvez como uma negação em aceitar a única coisa que a diferencia de um humano, ou como uma mensagem da autora da obra sobre uma rebelião das máquinas.

Fato é que Lara se joga do topo do prédio, em um take muito inteligente por parte da direção ao filmar de cima, e que apesar de pesado e grotesco consegue ser engraçado e não desagradável aos olhos. Tal qual uma morte comum, há muito sangue saindo do corpo, as necessidades fisiológicas também são como de humanos, mas após alguns instantes a robô volta à vida.

Lara e Daniel em um Volkswagen Fusca azul
Com cinematografia cativante e enredo inesperado, é um Sci-Fi cômico e dramático - Foto: Indie Shorts Mag / Reprodução

Incômodo e perspicaz são boas palavras para definir a quinta produção de Warmerdam, que a fez faturar uma série de prêmios internacionais incluindo o Oscar de Melhor Curta-metragem deste ano. Sua produção também se destaca por ser carbono neutro, com o plantio de uma agrofloresta na Holanda para compensar as emissões de gás carbônico (CO2) da obra.

I’m Not a Robot está disponível de forma gratuita no YouTube desde o dia 15 de novembro de 2025 no canal The New Yorker, com legendas apenas em inglês ou holandês. Mesmo com essa barreira linguística, o choque final é inevitável, e a reflexão provavelmente também, se o seu cérebro não estiver se perguntando se você pode ser também um robô.

A volta da magreza como tendência e sua ligação com a ascensão da extrema direita
por
Luiza Zaccano
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07/04/2025 - 12h

Publicado em 1991, “O Mito da Beleza”, da escritora estadunidense Naomi Wolf, permanece como uma das análises mais pertinentes sobre padrões de beleza impostos às mulheres e seus impactos sociais e políticos. Apesar de ter sido escrito há mais de três décadas, o livro ainda tem muita relevância, já que a pressão estética não apenas persiste em nosso corpo social, mas se intensificou com o maior uso das redes sociais.

Wolf argumenta que as exigências externas de magreza e padronização de traços físicos não são  apenas um reflexo da busca incessante de uma perfeição estética, mas um instrumento de dominação. A insatisfação constante com a própria aparência atua como um “sedativo político”, minando a autoconfiança das mulheres e desviando sua atenção de questões estruturais, como direitos reprodutivos e  participação política. 

Essa lógica se manifesta na normalização de transtornos alimentares e na disseminação de padrões irreais, que reforçam um ciclo de opressão. No entanto, o culto à aparência não é um fenômeno isolado, visto que ele se conecta com um projeto político mais amplo que, tradicionalmente, tem sido associado a regimes autoritários. Desde os governos fascistas do século XX até movimentos conservadores contemporâneos, a idealização da mulher bela, dócil e submissa faz parte de uma estrutura de controle social que tem como objetivo restringir sua autonomia e mantê-las longe de instâncias de poder. Segundo Táki Cordás, coordenador do programa de transtornos alimentares do Hospital da Universidade de São Paulo,  é estimado que cerca de 15 milhões de brasileiros tenham transtornos alimentares. 

A psicóloga Daniela Negreli, pós-graduada em terapia de aceitação e compromisso, ressalta essa relação ao afirmar: “A disciplina e a obediência sempre foram cobradas das mulheres, tanto nas relações familiares quanto nas normas culturais. Enquanto o homem que rompe padrões é visto como inovador, a mulher transgressora é tratada como rebelde e indesejada. A magreza, como padrão social, reforça isso: corpos fora desse ideal ainda são vistos como uma afronta."

Nos regimes autoritários, o controle sobre os corpos femininos vai além da estética. Políticas reprodutivas restritivas, a desvalorização de pautas feministas e a imposição de padrões rígidos de comportamento reforçam uma estrutura que limita a autonomia das mulheres. Especialistas apontam que a associação da feminilidade à fragilidade e à passividade não é um acaso, mas uma estratégia histórica para mantê-las dentro de um papel tradicional e submisso. 

Negreli observa que a cultura contemporânea é ardilosa ao desviar o olhar das mulheres dos verdadeiros fatores que as oprimem, ao direcioná-lo para supostos defeitos em seus corpos. Ela argumenta que esse bombardeio constante leva muitas mulheres a viverem tentando consertar imperfeições, quando, na verdade, o problema é social. Por isso, a pressão estética funciona como uma lupa sobre o corpo feminino, distraindo com detalhes insignificantes e ocultando a dimensão estrutural da opressão. Ela considera o cenário como desesperador e aponta como a magreza representa o autocontrole, funcionando como um sinal silencioso de submissão ao controle social.

Portanto, a questão estética não pode ser compreendida como um fator individual, mas como parte de um mecanismo de dominação que desmobiliza as mulheres e reforça a sua passividade dentro da estrutura social. O combate à imposição de padrões de beleza inalcançáveis é uma luta que vai além da auto aceitação, mas uma resistência política contra um sistema que usa a insatisfação como ferramenta de violência. Nesse sentido, a autora Naomi Wolf pontua que, "a obsessão com a beleza física é o último e mais perigoso meio de opressão invisível às mulheres", destacando como essas formas de opressão podem ser sutis em dominar.

Como o consumo consciente cresceu e se popularizou na sociedade atual
por
Vítor Nhoatto
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27/03/2025 - 12h

Sejam em grandes franquias ou em uma pequena porta em um bairro residencial, os brechós ganham cada vez mais consumidores. As principais razões para isso, preços baixos, maior variedade de peças e personalidade. Mas o efeito ambiental das roupas de segunda mão também é um diferencial e necessidade em tempos de mudanças climáticas, além do seu impacto social.

Ao contrário do que pode parecer pela ascensão recente da atividade, a venda de roupas e artigos usados remete ao século XIX na Europa, onde as chamadas ‘Second Hand Stores’, produtos em geral, e ‘Vintage Clothes Stores', especializadas em peças de época eram comuns. As roupas novas eram feitas a mão, resultando em preços altos e limitando o consumo recorrente as classes mais altas. Diante disso, uma saída eram as peças usadas, com preços menores mas de alta qualidade.

No Brasil, o primeiro do ramo documentado data do mesmo período no Rio de Janeiro, chamado de Casa de Belchior. A loja do viajante francês vendia uma série de itens usados e deu origem ao termo ‘brechó’ inclusive. A contração das palavras ao longo dos anos para facilitar o entendimento e a popularização do local originou o termo brasileiro. 

Ao decorrer dos anos, a atividade cresceu e passou a abarcar outros grupos sociais também, destacando as histórias e individualidade das roupas de segunda mão. Em entrevista à AGEMT, Camila Guerreiro, dona há três anos do brechó Dona Clô, destaca os principais motivos apontados por seus clientes: “As pessoas buscam peças diferenciadas, de boas marcas e por um preço bom”.  

Foi justamente nos últimos anos que o ramo realmente atingiu destaque no país. Segundo relatório de 2021 do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), entre 2010 e 2015 o número de brechós cresceu 210% no Brasil. Além disso, durante a pandemia de COVID-19, de 2020 para 2021, o crescimento foi de 50%. Hoje, o país conta com aproximadamente 118.778 brechós ativos, ainda de acordo com o Sebrae, e as expectativas são de mais crescimento.

Segundo a empresa britânica de consultoria, Global Data, o ramo irá ultrapassar, em 2029, em valor o fast fashion, a indústria da moda tradicional baseada em coleções e produção em massa. Foi a partir dos anos 1970 que a busca por produzir roupas em grande quantidade por um baixo custo tomou forma nos EUA, e hoje marcas como Shein, ZARA e C&A dominam o setor da moda. 

Apesar da popularização do setor, um cenário de consumismo e poluição ambiental massiva se configurou. O setor têxtil fica atrás apenas da indústria petrolífera no quesito poluição ambiental segundo dados do relatório de 2022 da Global Fashion Agenda, destacando a importância de repensar a forma como se consome roupa. 

“Isso deve motivar as pessoas a procurar um brechó, não só pelo preço e por ser uma peça exclusiva, mas por essa sustentabilidade. Não se deveria pensar primeiro em comprar em uma loja tradicional uma peça que todos terão igual e que em meses você não usará mais", afirma Camila.

O comportamento volátil da ‘moda rápida' resulta em um desperdício cada vez maior de recursos naturais, e a consequente poluição pela produção desenfreada e descarte prematuro das peças. A Ellen MacArthur Foundation, criada em 2010 para acelerar a adoção de uma economia circular, estima que 60% das peças sejam descartadas ainda no primeiro ano de uso, e que 85% delas nem sejam recicladas.

Ivone Aparecida, dona do brechó ‘O Legado da Vó’, especializado em roupas de época há 20 anos, destaca a lógica instaurada pela indústria hoje. “Tecidos que antigamente levavam três ou quatro meses para serem lançados, hoje em poucos dias chegam às lojas, e são quase descartáveis, não são pensados para serem lavados e durar”.

Nesse sentido, os brechós são uma alternativa sustentável, uma vez que peças que seriam descartadas ainda em condições de uso, ganham nova vida, um incentivo para a mudança de pensamento em relação ao vestuário. Esse prolongamento da vida útil das peças resulta na diminuição da degradação ambiental, ocasionando para o armário de um consumidor de brechó uma pegada de carbono mais baixa.

Além disso, um dinheiro que seria gasto com essas grandes multinacionais poluentes passa a circular nos bairros, impulsionando a economia de base. Segundo o Sebrae, 78% dos negócios do ramo são MEI (Microempreendedor Individual), e 21% micro ou pequenas empresas, culminando no impacto econômico da atividade para o comércio local. Há geração de empregos, desenvolvimento econômico das regiões da cidade e diminuição da necessidade de deslocamento da população para áreas centrais.

Toda a sociedade sente o impacto da atividade, que carrega em si a proposta de uma outra relação com as roupas que se usa. “O brechó é moda sustentável, você ressignifica as peças e pode usar até passar de geração para geração, uma roupa que tem história por trás ”, finaliza Ivone.

Brechó O Legado da Vó
Cada vez mais brechós tomam conta das cidades, e praticamente tudo pode ser encontrado - Foto: Vítor Nhoatto

 

O prazer efêmero da compra logo dá lugar a um vazio crescente
por
Giovanna Montanhan
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12/11/2024 - 12h

Por Giovanna Montanhan

 

Abrir o TikTok é como piscar e ver o mundo mudar em uma fração de segundos. Em uma rolagem veloz, surgem truques para uma maquiagem glow, táticas para uma “pele de porcelana”, segredos para esconder as olheiras com batom vermelho e até dicas para um contorno "ideal" feito com utensílios de cozinha. Uma técnica “nunca antes vista” de delineado usando apenas um grampo de cabelo, uma máscara capilar líquida que permanece nos fios por míseros segundos e que “repara até a alma” — tudo parece essencial, urgente. De um lado, surge uma técnica viral que promete lábios mais volumosos usando apenas corretivo e gloss, aplicados estrategicamente para criar a ilusão de lábios carnudos e esculpidos; do outro, alguém massageia o rosto com um Gua Sha, uma técnica tradicional de origem chinesa que utiliza uma pedra para esculpir a face, de quartzo rosa recém-adquirida, prometendo desinchar o rosto em poucos minutos. A tela se enche de novas promessas a cada hora em que o aplicativo é aberto, como o colágeno em pó que, misturado na água, garante uma dose de juventude pelas próximas décadas, ou a aplicação de blush no nariz para dar aquela falsa sensação de que se esteve na praia e se queimado, e até mesmo o sérum coreano feito de mucina de caracol para uma pele supostamente mais firme e hidratada. Cada dica desponta como um raio no feed, iluminando tudo ao seu redor por um instante, apenas para ser engolida pela próxima febre que chega avassaladora, tornando a moda anterior esquecida antes mesmo de ser assimilada.

No território implacável das redes sociais, onde promessas de uma pele impecável e uma beleza reluzente se espalham como um feitiço, mulheres de todas as idades deslizam os dedos na tela em busca de um brilho que pareça emanar de dentro para fora. Cada toque, cada deslizar, aproxima as compradoras de um ideal escorregadio, um reflexo de perfeição, sintetizado na imagem da pele viçosa perfeita — tão brilhante e lisa quanto um donut vitrificado, idealizada pela marca Rhode, da modelo Hailey Bieber.

Mas essa busca pela beleza aparentemente simples não é tão doce como parece. As consumidoras, atraídas pelos vídeos de influenciadoras, são envolvidas por um mercado que promove o “Glazing Milk” e os “Peptides Lip Tints” como a chave para a pele e os lábios dos sonhos. Não se trata apenas de hidratar, de cuidar ou de valorizar o que já existe, mas de transformar, de reconstruir, de alcançar um brilho irreal que reflete expectativas impossíveis. Para muitas, o desejo por essa pele vitrificada é como um chamado, uma chance de fazer parte de um ideal estético que atravessa culturas, idades e contextos, porém inacessível para a maioria.

No Brasil esse sonho assume ares de luxo proibido. Sem distribuição oficial, os produtos da Rhode se transformam em verdadeiros tesouros a serem caçados em mercados paralelos, frequentemente repletos de riscos. Para experimentá-los, os brasileiros precisam superar o desafio da importação, enfrentando preços inflacionados e longas esperas. Quanto mais distante o sonho, mais intensamente ele é desejado. Em um contexto onde a estética perfeita é exaltada acima de tudo, esses itens de design minimalista tornam-se uma espécie de Santo Graal — símbolos de um ideal que poucos conseguem vivenciar diretamente, mas que muitos cobiçam com olhares ávidos.

Não são apenas os hidratantes e lip tints da Rhode que repousam nesse altar de desejo inatingível. O Lip Glow Oil da Dior, envolto em promessas de lábios irresistíveis, reflete um brilho de glamour que atiça os corações, enquanto a Rare Beauty de Selena Gomez, com seus blushes e iluminadores, embriaga o imaginário dos mais jovens. Há algo mágico, quase sedutor, nesses frascos delicados, como se cada camada de produto pudesse transformar a pele em uma tela de sonhos, oferecendo uma beleza que parece brotar sem esforço algum. Cada uma dessas embalagens repousa no nécessaire com uma falsa simplicidade, promovido com tamanha precisão que passa a impressão de que esses pequenos luxos são mais que desejos — são quase como amuletos, indispensáveis no ritual silencioso de buscar, no reflexo, um toque de perfeição que talvez nunca se alcance.

A obsessão pelo "glazed look" transcende o próprio produto. Não se trata de um efeito milagroso na pele ou da suavidade nos lábios; é uma busca por alinhamento com um ideal, uma concepção vendida como pura, mas que, na verdade, carrega o peso do consumo incessante. Influenciadores, com seus vídeos cuidadosamente editados, se tornam os arautos dessa estética quase mítica, revelando apenas fragmentos do que os produtos prometem, sem expor o verdadeiro custo envolvido. Enquanto isso, do outro lado da tela, um exército de seguidores desliza, em busca do próximo vídeo, da nova promessa — na esperança de transformar um sonho distante em uma realidade tangível, ainda que efêmera.

O TikTok, com seu algoritmo hipnotizante, tornou-se uma vitrine onde milhares de consumidoras mergulham em tutoriais e resenhas, investindo tempo e dinheiro na promessa de uma pele reluzente. Entre elas, há quem se pergunte até que ponto esse ritual em frente ao espelho reflete uma busca legítima pela autoestima ou se é apenas mais uma ferramenta do capitalismo que usa o desejo por aceitação e inclusão para alimentar o consumo excessivo.

É como uma trilha de pequenas confissões, uma corrente de desejos transformados em mercadoria. Em cada vídeo, em cada review impulsionado por essas marcas silenciosas, há mulheres que, ao deslizar a tela e ceder ao apelo das tendências, começam a ver suas rotinas, seus sonhos e até seu próprio reflexo se curvarem a um padrão escorregadio e volátil.

Júlia, Helena e Rayssa são alguns exemplos de meninas que compram de acordo com a tendência do momento no TikTok. Cada uma mora em um estado diferente, mas, enquanto falavam, era como se compartilhassem uma mesma inquietação, algo que transcende a distância e parece habitar um espaço comum entre elas. Com apenas 13 anos, Júlia, mais tímida, confessou que, para ela, comprar os produtos da moda trazia uma sensação de pertencimento que era difícil de encontrar em outros lugares. Ao adquirir aquele item desejado, sentia-se mais próxima das meninas que possuíam o mesmo, como se o produto fosse um passaporte invisível para um mundo onde todas compartilham os mesmos desejos e sonhos de consumo. Com um brilho tímido no olhar, contou sobre seu exemplo mais recente: um kit de pinceis da marca Real Techniques — algo que, segundo ela, todas no TikTok pareciam ter e que, de alguma forma, a fazia sentir-se parte de algo maior.

Com 15 anos, Helena, um pouco mais falante, descreveu a experiência de outra forma, embora a sensação de efemeridade fosse a mesma. Para ela, o ato de consumir a aproximava de suas amigas e da comunidade online, mas logo após a compra surgia um vazio incômodo, como se a satisfação fosse rapidamente substituída por uma nova tendência, já à espreita. "É um ciclo sem fim," disse ela, quase resignada, enquanto mencionava sua última aquisição: o pó facial rosa da influenciadora Karen Bachini, um item que ela não parava de ver nos vídeos e que parecia indispensável — até o próximo lançamento roubar a cena.

Com 17 anos, Rayssa, em silêncio até então, finalmente desabafou. Revelou que, todas as vezes que se olhava no espelho, sentia-se como se tentasse capturar o brilho das influenciadoras do TikTok. Mesmo quando conseguia comprar o que tanto desejava, o resultado nunca parecia corresponder ao ideal que via na tela. Em momentos assim, questionava-se se a falha estava nela — como se algo em sua pele, no olhar, ou até em sua própria essência não fosse suficiente para refletir a promessa vendida pelos produtos. Esse sentimento de cobrança, explicou, era quase constante, uma frustração que a fazia sentir-se cada vez mais distante de um ideal inatingível. Sua última compra foi o sérum bronzeador da marca Drunk Elephant, o D-Bronzi Anti-Pollution Sunshine Drops, um item que, como tantos outros, prometia uma transformação que parecia sempre escapar ao seu alcance.

Para elas, o ato de comprar não é apenas um impulso passageiro; traz um alívio momentâneo em uma busca que nunca se completa. Mas logo vem o vazio, uma percepção incômoda de que estão presas a um ritual estranho, onde o consumo é apenas uma dança repetitiva, uma tentativa de tocar algo que escapa. Muitas se encontram no eco numa pergunta inevitável sobre o motivo de não conseguir o mesmo resultado. Como se o erro fosse delas, como se algo na pele, no olhar, ou na própria essência falhasse em alcançar o brilho prometido — um ideal cuidadosamente desenhado para permanecer fora de alcance.

É nesse cenário tentador que se ergue o submundo da Internet, uma espécie de mercado paralelo onde a pressa e o desejo encontram uma nova morada. Para aqueles que não podem ou não querem esperar, marketplaces como a Shopee e a Shein surgem como atalhos — labirintos digitais onde os produtos cobiçados aparecem como ofertas tentadoras, à mercê de vendedores anônimos que se escondem atrás de telas e avatares. Ali, a ansiedade dos consumidores é alimentada com preços reduzidos, porém envoltos em uma névoa de incerteza se o brilho do produto é real, ou apenas uma sombra de autenticidade. Entre o clique e a compra, uma escolha silenciosa é feita — e talvez, para muitos, a necessidade de pertencer ao momento sobrepuje o valor da própria verdade.

Capitalismo

Em uma conversa descontraída o colunista do site Steal the Look, Fábio Monnerat, falou sobre o frenesi que envolve a busca pela beleza idealizada, uma obsessão que, segundo ele, vai além do simples desejo por bons produtos. Ele acha que há uma necessidade de pertencimento, um desejo de aceitação que se esconde por trás de cada nova compra, como se cada aquisição trouxesse consigo um pouco mais de identidade, um passo a mais em direção a um grupo invisível e desejado. Fábio disse enxergar essa ilusão de exclusividade como uma corrente invisível, prendendo o público em um ciclo sem fim, onde o limite entre querer e precisar se desfaz. Nas redes sociais, o ideal de beleza está sempre ali, próximo e sedutor, mas estranhamente fora de alcance, criando um desejo que se mantém sempre vivo. E vai além.

Ele aponta que conter essa maré de consumo desenfreado soa quase como um desafio impossível. A falta de consciência coletiva torna difícil que as pessoas reflitam sobre o impacto de cada compra. Assim, o consumo se transforma em um reflexo do próprio desejo não resolvido, uma repetição constante que nunca traz a satisfação esperada. Para ele, cada nova compra parece inofensiva, mas se transforma em uma onda crescente, que passa despercebida e segue reverberando.

No coração do capitalismo contemporâneo, o TikTok se agiganta, não mais como uma simples distração, mas como um palco onde o desejo se torna espetáculo e o consumo, um ato quase hipnótico. Em cada deslizar de dedo, as consumidoras são lançadas em um torvelinho de tendências, onde as promessas de beleza cintilam como fogos de artifício — intensas, passageiras, inescapáveis. A cada nova febre, o rosto de uma influenciadora parece sussurrar segredos que as espectadoras querem acreditar: uma pele mais luminosa, lábios mais aveludados, o toque de algo quase mágico. Mas é tudo tão fugaz. Produtos que ontem eram o desejo do momento, hoje já perderam o brilho, substituídos por algo "ainda mais revolucionário".

Para essas mulheres, não há descanso. A lógica do hiperconsumo, essa engrenagem que o filósofo Gilles Lipovetsky descreveu, as engole em um ciclo em que o desejo pesa mais que a necessidade, onde o impulso de possuir é atiçado mais pelo medo de perder a novidade do que por uma vontade verdadeira. A cada nova compra, um ritual se repete — uma sensação de satisfação que evapora rápido, cedendo espaço à expectativa do próximo lançamento. E enquanto os frascos se acumulam, um vazio começa a se insinuar, como se, no fundo, soubessem que a próxima tendência também virá, seduzindo-as mais uma vez.

No universo hiperacelerado do TikTok, onde as tendências surgem e desaparecem como reflexos fugidios, as consumidoras são arrastadas para um ciclo quase frenético. Cada novo "must-have" carrega uma data de validade invisível, um convite ao consumo antes que o encanto se esgote. No olho desse furacão está o Carmed, um bálsamo labial produzido pela farmacêutica Cimed, que, embora conhecido por sua hidratação modesta, encanta com suas edições limitadas e colaborações astutas, como a recente parceria com a marca de doces Fini. Versões do bálsamo com sabores de balas de gelatina — banana, dentadura, "Beijos" — evaporaram das prateleiras antes mesmo de alcançarem todas as farmácias, deixando na esteira um rastro de desejo insatisfeito.

Para Helena, que também é uma consumidora voraz de Carmed, a eficácia do produto é apenas um detalhe insignificante. O que realmente importa para Júlia e para quem o consome, é o prazer de possuir um fragmento de algo efêmero, um pedaço da tendência que logo será substituída por outra. Cada lançamento deste produto traz consigo uma promessa de exclusividade, uma sensação de escassez calculada que intensifica o impulso de compra. Nesse jogo de aparências, o Carmed não é apenas um bálsamo; é um lembrete de que, no turbilhão da moda passageira, às vezes o que vale é a experiência fugaz de ser parte de algo que logo deixará de existir.

No emaranhado dos desejos modernos, o consumo de beleza se torna um ritual de encantamento, uma busca ansiosa que reflete mais do que o desejo de uma pele perfeita ou de lábios macios. Fábio Monnerat vê esse cenário com inquietação, especialmente quando o alvo do consumo se desloca para o público infantil. Ele observa, com ceticismo, como produtos de beleza direcionados a crianças e adolescentes, como é o caso do fenômeno do Carmed, onde eles são estrategicamente moldados para enraizar o consumo desde cedo. Com sabores açucarados e colaborações com personagens conhecidos, o Carmed, em suas múltiplas versões, deixa de ser apenas um hidratante labial; ele se torna um emblema de um consumo precoce, uma porta de entrada para um ciclo interminável de desejos e substituições.

Fábio acredita que essa introdução ao consumo desenfreado desde a infância reflete um problema profundo. A indústria da beleza, segundo ele, soube capturar o conceito de autocuidado e transformá-lo em uma sequência constante de compras — não mais um momento pessoal, mas uma dança coreografada pelo mercado. O Carmed e outros produtos semelhantes simbolizam uma sociedade onde o consumo é enaltecido como valor intrínseco, e cada nova edição limitada, cada parceria com um ícone infantil, se torna um capítulo dessa fábula consumista. A ilusão de exclusividade atiça o desejo, e o autocuidado se converte em um ato repetitivo, sem substância.

Enquanto isso, o TikTok acelera essa espiral. Para Júlia, Helena e Rayssa, a plataforma de vídeos é uma vitrine que converte produtos de beleza em pequenos troféus de pertença, um portal onde cada novo sérum, cada nova máscara promete um vislumbre de perfeição. Como no filme  A Substância (2024), onde Elizabeth Sparkle, interpretada por Demi Moore, injeta um líquido espesso e denso na pele na esperança de capturar a juventude que lhe escapa, os jovens de hoje se entregam a promessas tão tentadoras quanto fugazes. A cada nova fórmula, a cada sérum, máscara ou creme milagroso, há uma promessa de transformação que parece deslizar entre os dedos. Eles se lançam nessas poções modernas, cada frasco prometendo que, desta vez, o reflexo no espelho será o que sempre desejaram.

Mas, assim como Elizabeth, que corre atrás de uma ilusão que nunca a satisfaz, esses jovens podem estar caminhando para um abismo de expectativas vazias. A cada compra, um breve relâmpago de satisfação — um brilho que logo se desfaz, um encanto que desaparece com a mesma rapidez com que veio. E então, a necessidade renasce, mais urgente, mais insistente. Em um ciclo que se auto alimenta, o ideal de beleza se mantém distante, quase ao alcance das mãos, mas sempre escorregadio. E nessa busca, a frustração não desaparece; apenas se recalca, pronta para surgir com força renovada a cada nova promessa que o mercado lança na tela.

Fábio acredita veementemente que o verdadeiro papel do TikTok não é conectar, mas vender — impulsionando um consumo desenfreado que atinge até os mais jovens, seduzidos pela promessa de uma juventude prolongada e de uma beleza idealizada.

No fim, a trilha do consumo se revela como uma corrida sem destino, onde o autocuidado se dissolve em promessas e expectativas. Para Fábio, a verdadeira prática de bem-estar foi sequestrada pela lógica de mercado, que transforma cada novo produto em mais um ponto de partida, mais um item na lista de desejos insaciáveis. O autocuidado, nesse cenário, se torna uma pista de corrida onde o consumidor, sempre em busca da última novidade, esquece de parar, de respirar e de redescobrir o que realmente importa. Talvez, sugere ele, o verdadeiro bem-estar exija uma saída dessa trajetória imposta, uma pausa para recobrar o equilíbrio, para lembrar que cuidar de si não precisa ser uma sequência de compras, mas uma escolha pessoal, guiada por um ritmo próprio, alheio às urgências e apelos do mercado. Afinal, os verdadeiros delírios de consumo da Geração Z não estão em cada frasco ou nova tendência, mas na ilusão de que a satisfação virá com o próximo produto.

 

As conexões digitais facilitaram a vida de muitos, mas também abriram brechas inesperadas.
por |
25/09/2024 - 12h

Por Carolina Rouchou

 

O dia era domingo, o mês era Novembro e o ano, 2022. Em um apartamento antigo no Itaim Bibi, agulhas de tricô descansavam sobre uma cadeira de balanço e o cheiro doce de bolinhos de chuva recém feitos preenchiam o ambiente decorado com toalhinhas de crochê e uma raquete de tênis. Na TV, futebol. No sofá, dona Sylvia. O jogo estava próximo de terminar e, para a alegria da telespectadora, o São Paulo já havia feito três gols contra o Goiás. Aos 45 do segundo tempo, o jogador Juan tomou posse da bola na grande área e se preparava para dar o chute final da partida. O telefone toca. Sylvia o desliga imediatamente, nada poderia distraí-la de um possível quarto gol de seu time. Dito e feito, a bola bate na rede e a torcedora comemora.

O telefone toca mais uma vez. Qualquer pessoa que conheça dona Sylvia sabe que a hora do futebol é sagrada, duas ligações seguidas nesse momento era, portanto, um sinal de emergência. Ela atendeu. Tratava-se de uma ligação de seu banco. Poucos dias antes, sua agência havia sido fechada sem muitas explicações e a conta de Sylvia seria transferida para outra unidade. A atendente informou isso por telefone, mas antes de terminar a ligação deu mais uma informação: o gerente da conta de dona Sylvia estava sendo investigado por lavagem de dinheiro e, por isso, a agência teria sido encerrada.

Pouco tempo depois o telefone volta a tocar, mas dessa vez quem estava do outro lado era a Receita Federal em busca de informações sobre o tal gerente. Pediram algumas informações da senhora de 86 anos: com qual frequência ia ao banco, como era sua relação com o gerente, quanto dinheiro ela tinha na conta, se já havia visto algum movimento suspeito na agência etc. Como cidadã exemplar, Sylvia não poupou detalhes, afinal lugar de bandido é na cadeia. Cooperou com as autoridades como pôde e, mesmo assim, pediu desculpas por não saber de muita coisa.

A ligação terminou com uma ordem: Sylvia deveria transferir parte de seu dinheiro para que a Receita pudesse analisar a origem da quantia. Explicaram que seu gerente usava as contas dos clientes para esconder dinheiro sujo e, por isso, precisavam investigar suas economias. A operação que estavam fazendo era secreta e ainda estava em andamento, portanto ninguém, nem mesmo sua família, poderia saber sobre o ocorrido. Com as autoridades ainda no telefone, Sylvia prontamente fez a transferência e agradeceu.

Segunda-feira quem ligou para a residência são-paulina foi a própria Polícia Federal. Ao atender, Sylvia foi avisada que o dinheiro analisado possuía origem ilegal e, enquanto sua inocência não fosse comprovada, ela corria perigo. O policial pediu o WhatsApp dela para facilitar a comunicação. Não era obrigada a informar seu número pessoal, mas a autoridade avisara-lhe que recusar-se a passar tal informação levantaria suspeita e que “ficaria ruim para o seu lado”.

Os dias passavam e Sylvia mantinha contato com a PF por mensagens de texto. Faziam a ela muitas perguntas, passavam atualizações sobre a investigação e pediam que ela fizesse mais transferências. A octagenária fez tudo para provar sua inocência e ajudar a justiça. O policial quis saber se havia jóias. Dona Sylvia era de uma família tradicional paulistana e se orgulhava das peças que herdara de seus avós. Imediatamente, respondeu que sim. O policial pediu fotos e perguntou se ela tinha nota fiscal dos itens. Com peças que antecediam a mudança do século passado, Sylvia informou que não retinha os comprovantes fiscais (afinal estes sequer existiam na época que as joias foram confeccionadas), mas enviou fotos de todas preciosidades que guardava em seu cofre. A conversa terminou com uma mensagem do policial: “Teremos que ir até sua casa para fiscalizar a legalidade destas peças, por favor me envie seu endereço”.

Entre novembro e dezembro Sylvia transferiu mais de vinte mil reais e recebeu as autoridades em sua residência mais de 5 vezes. Nestas visitas a Receita ou Polícia Federal ia para recolher as jóias e outros itens de valor, tudo para provar a inocência da senhora no mirabolante caso do gerente que lavava dinheiro. A operação se encerrou poucos dias antes do natal, quando Sylvia finalmente ligou para seu filho Rodolpho pedindo ajuda, pois não tinha comida em sua casa e estava sem um tostão no bolso.

A realidade é que nunca houve operação alguma. Quem esteve em contato com dona Sylvia nos últimos dias era uma quadrilha criminosa, especializada em golpes via telefone e internet. A agência da vítima fora de fato fechada, mas por questões internas do banco. O tal gerente era inocente e nunca havia sido investigado pela polícia, foi tudo inventado. As verdadeiras autoridades foram imediatamente acionadas, mas não havia muito que pudessem fazer. A família de Sylvia tomou para si a responsabilidade de auxiliar a matriarca. Sua filha Renata entrou em contato com o banco para pedir o dinheiro de volta, mas não obteve sucesso: como as transferências haviam sido feitas pela dona da conta, o dinheiro só poderia ser devolvido se comprovassem a falcatrua.

Graças a um conhecido que trabalhava no banco, o dinheiro foi recuperado quase seis meses depois, mas o dano já havia sido feito. Desde que sofreu o golpe, dona Sylvia entrou em um estado depressivo e abandonou o estilo de vida ativo que vivia. A vítima conta que se culpa por tudo e que passou a se enxergar como uma idosa incapaz. Seu corpo acompanhou sua mente: de quadras de tênis e academias para visitas constantes a hospitais e uma equipe de cuidadores. A família também atribui a drástica mudança de saúde ao golpe que a mãe e avó sofreu. Até hoje o caso segue sem solução. Não se sabe sequer como os estelionatários conseguiram os dados dela ou do gerente do banco. A única prova do ocorrido são as conversas por WhatsApp, em que o grupo utilizava uma foto do logotipo do banco Bradesco. O número utilizado para se comunicar com a senhora foi denunciado e a família tentou entrar em contato com o WhatsApp, mas a empresa nunca respondeu.

A falta de regulamentação no mundo digital abre espaço para que dados pessoais sejam vendidos e compartilhados entre grupos mal-intencionados. Sem se responsabilizar de maneira alguma, as plataformas on-line aceleraram o crime e não aparentam estar dispostas a lutar contra isso. Mesmo quando notificadas pelas autoridades, as redes sociais se recusam a cumprir com a legislação brasileira. Se dona Sylvia e sua família quiserem descobrir quem estava por trás do golpe, talvez devam esperar até que um deles concorra à Prefeitura paulistana.