Mesmo após avanços na ciência, a saúde feminina continua sub-representada em pesquisas e consultas. O corpo das mulheres segue sendo tratado como exceção.
por
Helena Costa Haddad
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27/10/2025 - 12h

Por Helena Haddad

 

Apesar de representarem metade da população mundial, as mulheres continuam sub-representadas nas pesquisas médicas. A lacuna nos ensaios clínicos compromete a eficácia, a segurança e a equidade dos tratamentos disponíveis hoje. Segundo levantamento publicado na Nature Medicine (2024), menos de 35% dos estudos clínicos globais incluem dados diferenciados por sexo, e apenas 20% consideram como os medicamentos afetam homens e mulheres de forma distinta. Até 1993, o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH) proibia a participação de mulheres em idade fértil em ensaios clínicos, sob o argumento de proteger possíveis gestações. O resultado foi uma medicina construída sobre o corpo masculino como padrão universal: dosagens, efeitos colaterais e até sintomas de doenças graves, como o infarto, foram definidos a partir de corpos de homens jovens e brancos.

Durante décadas, o corpo feminino foi visto como instável, hormonal e difícil de estudar — uma percepção que moldou uma ciência que não representa as mulheres. Até hoje, muitos sintomas femininos são subestimados ou confundidos com causas psicológicas, explica a psiquiatra Maria Franco.

Casos recentes reforçam a urgência dessa discussão. Um exemplo é o medicamento Zolpidem, usado para insônia. Estudos mostraram que as mulheres metabolizam a substância mais lentamente, o que faz com que acordem ainda sob efeito sedativo — aumentando o risco de acidentes. A FDA já havia reduzido pela metade a dose recomendada para mulheres em 2013, e, em 2024, a Anvisa atualizou as bulas no Brasil após relatos de efeitos adversos graves, como sonambulismo e confusão mental.

Um estudo publicado na Biology of Sex Differences em 2024, analisou 86 medicamentos aprovados pela FDA: em 76 deles, as mulheres apresentaram maior concentração da substância no sangue, e em 96% dos casos isso estava associado a maior incidência de reações adversas — como náusea, tontura e arritmia. Em resumo, a maioria dos remédios vendidos hoje ainda é testada e dosada para corpos masculinos.

O corpo feminino possui diferenças de massa magra, gordura e metabolismo hepático. Essas variáveis interferem diretamente na absorção e eliminação de medicamentos, explica a psiquiatra.

A desigualdade de gênero também aparece no atendimento médico. Em 2024, um levantamento do Instituto Patrícia Galvão apontou que 61% das mulheres brasileiras afirmam não se sentirem ouvidas por profissionais de saúde. As queixas vão de dores crônicas desconsideradas a diagnósticos errados de doenças cardíacas, endometriose e lúpus. Casos como o de Lidiane Vieira Frazão, que morreu 22 dias após o parto durante a pandemia de Covid-19, sem atendimento adequado, ilustram o impacto disso. A família denunciou o hospital por violência obstétrica e negligência médica. 

O viés masculino na medicina é tão antigo quanto a própria ciência. A partir do século XIX, o corpo feminino passou a ser tratado como “anômalo” — sujeito a histerias, desequilíbrios hormonais e instabilidade emocional. Essa visão ainda ecoa em práticas clínicas e diagnósticos enviesados. A Organização Mundial da Saúde reconhece que o viés de gênero é uma das principais causas de erro de diagnóstico no mundo. Não basta incluir mais mulheres nos testes. É preciso mudar o olhar, considerar o ciclo hormonal, a gravidez e a menopausa, conclui a Dra. Franco.

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Apesar da eficácia na prevenção do HIV, mulheres têm acesso limitado à medicação
por
Maria Dantas Macedo
Pedro da Silva Menezes
Yan Gutterres Ricardi
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24/09/2025 - 12h

Desde 2017, o Brasil oferece gratuitamente a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), método de prevenção eficaz contra o vírus HIV, disponível no Sistema Único de Saúde para qualquer pessoa sexualmente ativa, maior de 15 anos de idade. Na prática, o remédio é amplamente divulgado entre homens, especialmente da comunidade LGBTQIA+, enquanto as mulheres ficam excluídas dessa prevenção. 

Segundo dados do Ministério da Saúde publicados no Boletim Epidemiológico sobre HIV em 2023, 35% dos brasileiros que continham o vírus do HIV eram mulheres, representando cerca de um terço dos novos casos no Brasil todos os anos. Além disso, 80% dos casos de infecção por HIV entre mulheres se deu em relações heterossexuais, evidenciando uma vulnerabilidade específica. 

A PrEP é uma ferramenta promissora para elas, que podem usar o remédio para prevenir a infecção pelo HIV. Tanto as solteiras quanto as que estão em um relacionamento mas não sabem do histórico de testagem para infecções sexualmente transmissíveis do parceiro ou parceira correm o risco de infecção quando fazem sexo sem camisinha. 

Porém, neste ano, somente 8,8% dos usuários de PrEP foram mulheres cisgênero e 3,2% mulheres trans. A infectologista Camila Bicalho explica: “As mulheres não têm informação ou conhecimento sobre a prevenção, que pode ser utilizada por elas”. 

“Por muito tempo, a utilização do preservativo como único método de evitar casos de HIV era a única saída. Hoje, a prevenção passa por várias medidas, uma delas é a PrEP. Se utilizada corretamente reduz o risco de contrair o HIV por meio de relação sexual em até 90%, e por meio de compartilhamento de drogas injetáveis em até 70%.Quando pensamos em saúde pública, o impacto da PrEP é a diminuição de novos casos de HIV”, segundo doutora Camila. 

O QUE É PrEP? 

A Profilaxia Pré-Exposição prevê o uso de um comprimido usado antes da relação sexual que impede que o HIV se multiplique no organismo. O comprimido combina dois medicamentos (tenofovir e entricitabina) que bloqueiam alguns “caminhos” que o vírus usa para infectar o organismo. Assim, mesmo que a pessoa entre em contato, a infecção não se instala. A utilização pode ser diária ou sob demanda (somente quando a pessoa tiver uma possível exposição de risco ao vírus). 

É recomendado o uso da prevenção para pessoas que estão em um relacionamento sexual com um parceiro ou parceira que vive com HIV, não use preservativos regularmente, tem um ou mais parceiros sexuais com status de HIV desconhecido, estão envolvidos em um trabalho sexual comercial, teve uma doença sexualmente transmissível bacteriana recente ou usou drogas injetáveis ​​nos últimos seis meses. 

Mulheres cisgênero, pessoas trans ou não binárias designadas como sexo feminino ao nascer,  e qualquer pessoa em uso de hormônio a base de estradiol, que queiram fazer o uso de PrEP oral diária, devem tomar o medicamento por pelo menos 7 (sete) dias para atingir níveis de proteção ideais. 

A PrEP sob demanda deve ser utilizada com a tomada de 2 comprimidos de 2 a 24 horas antes da relação sexual,  +1 comprimido 24 horas após a dose inicial de dois comprimidos +1 comprimido 24 horas após a segunda dose. 

É possível pegar o medicamento em serviços de saúde do SUS, como UBSs, bem como em farmácias da rede privada com receita médica. Em São Paulo, pode usar o aplicativo e-saúdeSP para encontrar a PrEP ou pegar em máquinas de distribuição nas estações de metrô. 

O ESTIGMA 

Apesar da relevância preventiva, muitas mulheres não aderem ao medicamento ou nem sabem o que é. A doutora Camila explica que, até a revisão de 2022, a PrEP foi direcionada sobretudo a “populações vulneráveis”, o que na prática priorizou homens que fazem sexo com homens e travestis/trans. “As mulheres, até 2022, não eram consideradas como população vulnerável para uso de PrEP”, diz a médica.

Ainda assim, segundo a doutora, a histórica sub-representação das mulheres em pesquisas sobre a PrEP pode ter sido um dos fatores que contribuíram para a baixa adesão: “Algumas hipóteses foram levantadas, como, por exemplo, o fato de as mulheres cisgênero não terem sido incluídas nos primeiros estudos de avaliação da PrEP, inclusive com retratação de alguns laboratórios que se comprometeram a incluir mulheres cisgênero nas próximas avaliações.”

Ensaios clínicos como o VOICE e o Fem-PrEP mostraram resultados positivos pouco expressivos em mulheres. Isso ocorreu principalmente pelo uso inconsistente da medicação e a falta de campanhas voltadas ao público feminino. Mais do que limitar conclusões científicas, essa realidade contribuiu para alimentar a ideia equivocada de que a PrEP “não era para mulheres”, quando o que faltava era suporte à adesão e estratégias de comunicação adequadas. 

Mas, ainda segundo a infectologista Camila, ainda há muitas outras possibilidades para a baixa adesão das mulheres “como o fato delas se sentirem seguras em uma relação heterossexual e abandonarem a utilização do preservativo, sem buscar outra forma de prevenir as infecções pelo HIV”. “Além disso, os serviços ginecológicos, onde as mulheres frequentam anualmente para fazer o papanicolau e também a mamografia, não discutem com essas mulheres a possibilidade da PrEP.”, acrescenta ela. Os profissionais de saúde, quando não são devidamente treinados, deixam de mencionar a opção ou o fazem de forma estigmatizante, afastando as pacientes.

Para Myrt Cruz, professora e doutora em Ciências Sociais da PUC SP, essa falta de conhecimento sobre a prevenção tem a ver com uma barreira social: “Não é uma decisão deliberada de uma mulher não acessar a sua própria saúde, aos recursos disponíveis para a sua própria saúde; mas há um julgamento moral, há um machismo estrutural que impede e dificulta que ela acesse esses recursos.”

A professora explica que “o machismo estrutural faz com que essa mulher, muitas vezes, confie cegamente nesse parceiro com quem se relaciona, sem ter uma visão crítica de que esse parceiro pode estar tendo relacionamentos sexuais com outras pessoas. Essa é uma ideia muito estigmatizada e complicada, que foi, durante décadas, dissuadida pela mídia. Então, há um desconhecimento, uma ignorância em torno do que se trata e a necessidade de desconstruir esse estigma”.

Em contextos de violência de gênero, dependência econômica ou restrição de autonomia, a capacidade de negociar o uso do preservativo é limitada, e o acesso a alternativas como a PrEP fica ainda mais comprometido. Desigualdades de renda, baixa educação em saúde sexual e reprodutiva também influenciam negativamente a busca e a permanência no uso da medicação.

Assim, barreiras sociais e culturais limitam o acesso das mulheres ao diagnóstico e tratamento precoce do HIV. A ausência de campanhas voltadas ao público feminino reforça a falta de informação, enquanto o estigma em torno do uso, frequentemente associado à promiscuidade ou a práticas sexuais consideradas de risco, acaba gerando receio e vergonha.

“Há necessidade de que as universidades, centros de pesquisa, centros comunitários se apropriem desse discurso, do conhecimento e trabalhem de um jeito que chegue até essa mulher, de forma clara, objetiva, que atinja elas”, declara Myrt. 

A PrEP é uma ferramenta poderosa, mas que só cumprirá seu papel se estiver acessível a todas as pessoas que dela necessitam, especialmente aquelas que historicamente foram invisibilizadas. Incluir as mulheres é uma questão de justiça social e de saúde pública. O combate ao HIV precisa ser coletivo e livre de preconceitos. E isso começa com o reconhecimento de que a prevenção também é e deve ser para elas. 

 

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Tema em alta atravessa diferentes núcleos sociais como trabalho, práticas esportivas e afazeres domésticos
por
Fernando Amaral
Guilbert Inácio
João Paulo Moura
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06/10/2025 - 12h

O alvorecer do dia começa a despontar no horizonte, e milhares de meninos e meninas acordam para assumir responsabilidades que deveriam ser exclusivas do mundo adulto. Nas cidades, oferecem balas nos semáforos; no campo, ajudam na colheita; em lares da periferia, cuidam dos irmãos menores. Esse dia a dia revela mais do que trabalho precoce, é a adultização forçada. 

De acordo com relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), 138 milhões de crianças se encontravam em situação de trabalho infantil em 2024. Dentre elas, 61% dos casos estavam no setor agrícola, e 54 milhões ocupavam cargos de perigo à integridade do menor. 

No Brasil, os dados também são alarmantes. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) do IBGE, em 2023 havia 1,6 milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos nessa situação. O número, embora menor do que há vinte anos, ainda apresenta uma dura realidade: 4,2% de toda uma geração que deveria estar apenas estudando, brincando e crescendo sem pressa. Entre eles, 586 mil enfrentam tarefas que colocam sua saúde em risco. 

As desigualdades regionais dão forma ao problema. No Nordeste, 506 mil meninos e meninas ajudam a sustentar suas famílias, seja na roça, seja em atividades informais nas cidades. No Sudeste, os semáforos e camelódromos mostram outra face do mesmo drama. Já no Norte, quase 7% das crianças dessa faixa etária trabalham. A cor da pele também pesa, crianças pretas e pardas, que já são maioria entre os mais jovens, representam 65% de quem trabalha antes da hora. 

A rotina é pesada. Mais de um quinto dos que estão no trabalho infantil enfrentam 40 horas ou mais de serviço por semana, jornada igual à de um adulto. Para os de 16 e 17 anos, quase um terço já vive essa realidade. A escola é um dos pontos mais afetados, enquanto quase todas as crianças brasileiras estão matriculadas, apenas 88% das que trabalham conseguem permanecer estudando. As outras veem a sala de aula ser substituída pelo balcão, pelo campo, pela rua. 

O prejuízo não é só educacional, a infância roubada também deixa marcas emocionais. Muitos aprendem cedo a conviver com a preocupação da falta de comida, com o medo do desemprego dos pais ou com a responsabilidade de cuidar dos irmãos. A pressa em amadurecer elimina o espaço do lúdico, das brincadeiras que ensinam a sonhar. 

Mesmo com a proibição legal para menores de 16 anos, com exceção aos aprendizes a partir de 14, a regra é constantemente rompida. Nas comunidades mais pobres, a urgência da sobrevivência transforma a contribuição das crianças em algo naturalizado, quase obrigatório. Assim, ser criança acaba parecendo um privilégio distante. Cada hora de trabalho antecipado é também uma hora a menos de estudo, de descanso, de prática esportiva, de futuro. 

Responsabilidades no esporte 

Esse cenário também afeta o desempenho esportivo de jovens atletas, que precisam tomar decisões e assumir responsabilidade muito cedo, sendo, em alguns casos, os principais provedores de fonte de renda das famílias. 

A fotografia mostra o atleta Cristian, sentado em um banco de reserva, olhando fixamente em direção à câmera. A foto está em preto e branco
Atualmente, Cristian atua no Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa (COTP) / Foto: R7fotografo

Em entrevista a AGEMT, conhecemos Cristian Alves Oliveira, um dos atletas que viveu essa realidade. Hoje em São Paulo, o jovem de 18 anos é originário de Belford Roxo na Baixada Fluminense (RJ) e veio sozinho para a capital paulista por causa de uma oportunidade que surgiu no começo do ano de 2025.  

Cristian chegou a São Paulo para ser o goleiro do Real Cubatense de São Bernardo dos Campos na Taça São Paulo, campeonato amador organizado pela Federação Alternativa de Desporto.  

"Eu só ia disputar esse campeonato e voltar para o Rio, mas, ao decorrer dessa competição, outras oportunidades surgiram: morar aqui e defender o clube que estou hoje. Essa chance surgiu em um momento que eu estava pensado em parar de jogar bola. Então quando recebi essa oportunidade de poder vir para São Paulo e jogar, eu agarrei como se fosse a esperança do meu futuro." Destaca o atleta. 

Presente desde sua infância, o futebol se tornou um objetivo na vida de Cristian quando tinha 15 anos. Em 2022, ele decidiu que queria viver disso, mas não conseguia focar totalmente no esporte, pois tinha que estudar e trabalhar. O goleiro lembra que arrumou seu primeiro emprego com 14 anos, em um Sacolão, para poder ajudar sua família.

"Comecei a trabalhar cedo para poder ajudar em casa e para ter minhas coisas. Eu tinha que dividir o tempo para treinar, trabalhar e estudar. Era uma rotina muito cansativa que eu tinha no Rio e, às vezes, tinha que sacrificar alguma dessas coisas porque atrapalhava um pouco no meu rendimento esportivo, mas eu não podia deixar de trabalhar e ajudar em casa."  

Três anos depois, o atleta está se dedicando só ao futebol. Ele conta que a vida na capital paulista é muito diferente de Belford Roxo, porém ele segue atrás de seu objetivo porque a família depende dele. “É uma rotina muito cansativa, mas é a oportunidade que eu pedia a Deus e ele está me proporcionando. Cheguei em São Paulo em 4 de janeiro e vim sozinho, um grande desafio para mim. Conviver longe da família não é fácil, tem que saber lidar com as emoções, saudades etc., mas sempre tento manter contato com eles porque assim ameniza um pouco as saudades.” 

A história de Cristian mostra um cenário recorrente em nosso país, pois, embora tenhamos diretrizes que regulam a prática esportiva de crianças e jovens como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/2023), outros mecanismos sociais inviabilizam a prática esportiva plena. 

Isso leva muitos, ainda novos, a abandonarem seus sonhos. Como exemplo, uma reportagem feita pela Folha de São Paulo em 2024 analisou a trajetória dos atletas que jogaram a Copa São Paulo de Futebol Junior, a copinha, em 2010. Segundo os dados obtidos, 36,9% dos atletas desistiram de tentar a carreira no esporte. 

Esses dados em um dos campeonatos mais importantes de formação de futebolistas são preocupantes. Vale destacar que o futebol é o esporte mais popular no país, ou seja, os dados em outras modalidades, como as olímpicas, devem ser mais críticos. 

O país até tem o programa Bolsa Atleta, que entrou em vigor em 2025 com o objetivo de patrocinar individualmente atletas e para-atletas de alto rendimento em competições nacionais e internacionais de sua modalidade. Contudo a maioria dos esportivas enfrentam inúmeras barreiras socioeconômicas até conseguirem chegar de fato nessas competições de alto rendimento, em que poderão vislumbrar um futuro mais otimista. 

Trabalho doméstico 

Entre as várias faces da adultização forçada, uma das mais silenciosas é a realidade de crianças que assumem tarefas domésticas para que seus pais ou responsáveis possam trabalhar fora. Longe de ser apenas uma “ajuda”, essa dinâmica transfere a elas responsabilidades que ultrapassam os limites da infância, comprometendo seu desenvolvimento emocional, social e até escolar. 

Catia Silene, psicóloga infantil, explica que, ao assumir papéis que não condizem com sua idade, essas crianças podem carregar marcas profundas para a vida adulta. “As crianças sobrecarregadas, com muitas responsabilidades inadequadas para sua idade, podem desenvolver ansiedade, estresse e um sentimento constante de pressão”, afirma.

Segundo ela, isso ocorre porque muitas vezes o esforço não é reconhecido, o que gera “baixa autoestima e a sensação de que nunca são boas o suficiente... é uma independência colocada em um lugar que não é dela”. 

A imagem, em preto e branco, mostra uma menina de costas olhando para uma pia.
Criança realizando tarefa domésticas / Fonte: Gênero e Número 

Em 2023, segundo a PNAD, da população estimada de 38,3 milhões de crianças e adolescentes, 52,6% (cerca de 20,1 milhões) realizavam afazeres domésticos e/ou tarefas de cuidado, sendo 69% de classes baixas e 57% meninas. Em famílias numerosas ou sem condições financeiras de contratar alguém para cuidar dos mais novos, é comum que o filho ou a filha mais velha seja encarregado dessa função. 

A psicóloga alerta que esse modelo pode desorganizar a noção de autoridade dentro do lar. “Às vezes os pais dizem: ‘cuida do seu irmão porque você é mais velho’. Mas esse jovem não tem maturidade para ocupar esse lugar e acaba recorrendo a formas punitivas ou ameaçadoras. Isso confunde quem é cuidado... quando isso se perde dentro da família, a confusão se projeta para a vida em sociedade” explica. 

Esse cenário, além de prejudicar a relação entre irmãos, pode gerar dificuldades sociais futuras. Uma criança que cresce sem referências claras de autoridade tende a apresentar comportamentos desafiadores e resistência a regras, tanto na escola quanto em outros ambientes. Apesar de, em alguns casos, ‘despertar’ um senso precoce de responsabilidade, a adultização no espaço doméstico tira da criança oportunidades essenciais de brincar, conviver com os demais jovens e aprender pela sua própria experiência pessoal. 

O debate sobre adultização infantil revela que, por trás da ideia de “ajuda em casa” ou de “responsabilidade precoce”, existe uma prática que limita direitos e impõe às crianças papéis que não deveriam assumir. Longe de ser um sinal de maturidade, trata-se de um processo que compromete a infância e pode deixar marcas para a vida adulta. 

Mais do que enxergar “pequenos adultos”, é preciso compreender também que se trata de um fenômeno ocasionado por desigualdades de gênero, classe e raça, do qual sobrecarregam as crianças. Encarar essa realidade como uma violação de direitos é um passo essencial para que a infância deixe de ser vista como apenas uma passagem para a vida adulta, mas sim como uma iniciação no mundo, com práticas de aprendizado, inocência e, além de tudo, protegidas. 

Associação Paulista de Apoio ao Transplante (APAT) alia acolhimento e ajuda financeira para pacientes na fila de espera
por
Khadijah Calil
Lais Romagnoli
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04/09/2025 - 12h

Diagnosticada inicialmente com fibrose hepática, que evoluiu para uma cirrose sem causa definida, Andréa Teixeira Soares aguardou oito anos por um transplante de fígado. Nesse período, perdeu três gestações e viu a incerteza se tornar rotina. Hoje, ela é coordenadora da Associação Paulista de Apoio ao Transplante (APAT) e ajuda outros que passam pela mesma experiência da espera por um órgão.


O Brasil é referência mundial em transplantes públicos: mais de 30 mil procedimentos foram realizados em 2024, segundo dados do Ministério da Saúde. Porém, no mesmo ano,  78 mil pessoas ainda permaneciam na fila de espera sem tempo estimado, com a procura maior por rins, córneas e fígado.


A situação de Andréa, que hoje atua na tesouraria da APAT, faz parte dessa estatística que aponta que a espera por um órgão compatível e a falta de acolhimento nesse período geram um novo obstáculo para quem precisa da cirurgia.

Andréa Teixeira Soares, coordenadora da APAT.
Andréa hoje atua na tesouraria da APAT. Foto: Khadijah Calil


Após passar pela operação e por um processo delicado de recuperação, Andréa foi convidada para atuar como voluntária na APAT, na casa que hoje é localizada no Cambuci, em São Paulo. “Eu sabia o que significava estar naquela fila e eu queria ajudar. A vida é uma troca, ninguém vive sozinho”, diz a coordenadora, à AGEMT.

Criada há 20 anos por médicos clínicos e cirurgiões da clínica Hepato, a APAT atende pacientes de outros estados que não conseguem permanecer em São Paulo durante o tratamento pré e pós-transplante e auxilia financeiramente e socialmente na permanência na capital durante esse período. Todo o trabalho realizado pela associação é mantido através de doadores, voluntários, ex-pacientes, médicos e entidades sociais.

Desde sua fundação em 2004, a instituição já realizou mais de 10,5 mil atendimentos e mantém uma casa de apoio que oferece estadia, alimentação, orientação psicológica, nutricional e acompanhamento médico para pacientes e acompanhantes vindos de diversos lugares do País.

Os pacientes chegam encaminhados por equipes médicas de diferentes estados quando estão próximos de receber um órgão e chegam junto a um acompanhante, para a internação, administração de medicamentos e cuidados individuais. Sem comprometer a autonomia dos transplantados, a associação enfatiza que o processo não termina na cirurgia e que cada órgão exige um protocolo de recuperação individual.

 Todo o trabalho realizado pela associação é mantido através de doadores, voluntários, ex-pacientes, médicos e entidades sociais.
Além do acolhimento social, a APAT atua no campo científico. Foto: Lais Romagnoli

Entre os que encontraram acolhimento na instituição está André, transplantado há 19 anos e diabético. Ele perdeu a visão, mas afirma ter ganhado uma nova percepção sobre a vida ao morar temporariamente no lar de apoio: “Eu agradeço pela oportunidade de poder viver bem, de ter esse suporte. Hoje eu não enxergo mais, mas posso ver além do que meus olhos me mostram. Sinto o carinho e esforço de todos aqui.”

Casos como o dele, que passou por um transplante duplo (rim e fígado), não são incomuns, mas aumentam o tempo de espera, já que o órgão precisa vir de um “doador falecido” – que tenha morrido de AVC, morte encefálica ou com morte causada por parada cardiorrespiratória, também de acordo com o Ministério da Saúde.

Além do acolhimento social, a APAT atua no campo científico. Médicos da clínica Hepato participam de pesquisas nacionais e internacionais, estágios no exterior e projetos de formação de equipes transplantadoras. A instituição também lidera o “Transplantes sem Fronteiras”, que apoia a criação de novos centros e casas de apoio inspirados nesse modelo.

“Nosso objetivo é impedir que pacientes abandonem o tratamento por falta de recursos. Muitas vezes, o transplante é a única chance de um recomeço”, afirma Andréa.

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Psiquiatras estão preocupados com jovens que fazem uso excessivo de vídeos curtos.
por
Martim Tarifa
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20/05/2025 - 12h

Segundo a psiquiatra Luciana Bagatella, estímulos gerados pelos vídeos liberam uma carga esgotadora de dopamina no cérebro. Uma carga tão grande acaba causando colapso nesse sistema, que agora exigirá estímulos mais intensos para alcançar o bem-estar, que antes era alcançado com estímulos muitos menores. “Assim, tarefas como trabalhar, estudar e praticar atividades físicas, ficam mais difíceis de serem desempenhadas”, afirmou Luciana.  

A Dra. alerta que os jovens podem ser os principais afetados, pois seu cérebro ainda está em desenvolvimento e eles são os principais usuários de redes sociais. Segundo ela, os vídeos têm impacto direto na saúde mental desses jovens: “Podem desenvolver transtornos psiquiátricos, tais como transtornos ansiosos, transtornos de humor, dependências, dentre outros.”  

Jovens entretidas por seus smartphones. Foto: Reprodução
Jovens entretidas por seus smartphones. Foto: Reprodução

O jovem de 17 anos Téo Lima desinstalou as redes sociais por conta dos vídeos curtos. Ele se deu conta que estava viciado e que o tempo que passava vendo vídeos curtos poderia ser mais aproveitado fazendo atividades mais úteis na opinião dele. Apesar de não se sentir afetado mentalmente, ele ouviu profissionais falando disso e desinstalou para se prevenir, porque não achava que aquele conteúdo contribuía em algo para sua vida. “Eu não queria ser afetado por esses vídeos, então desinstalei de forma preventiva”, disse ele.  

Sem mais vídeos curtos, Téo percebe que sente mais vontade de realizar outras atividades e aproveita mais seu dia. “Comecei a ler jornais, assistir programas de TV e ler mais livros do que eu lia antes.” No caso desse jovem, a informação foi fundamental para que ele percebesse como sua saúde mental estava vulnerável e decidisse parar de consumir esse tipo de conteúdo. 

Mas infelizmente, Téo é um caso raro, já que 41% dos usuários do TikTok no Brasil têm entre 16 e 24 anos.  Segundo o DataReportal o Brasil tem mais de 98 milhões de usuários ativos no TikTok, o que significaria mais de 40 milhões de jovens ativos no aplicativo.  

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Diego Prado e Sarah Santos
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07/11/2019 - 12h
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Girassol: um dos símbolos do setembro amarelo

Setembro é considerado o mês da prevenção ao suicídio. A campanha brasileira iniciada em 2015 é uma ação do Centro de Valorização da Vida (CVV), do Conselho Federal de Medicina (CFM) e da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Uma pesquisa da UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo) informa que a taxa entre os adolescentes que vivem nas grandes capitais aumentou quase 25% entre 2006 e 2015 e, ainda, o estudo comprova que os jovens do sexo masculino cometem o suicídio até três vezes mais. 

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Logo campanha “falar é a melhor solução” - foto: divulgação

O dia 10/09 é considerado, desde 2003, o Dia Mundial da Prevenção do Suicídio. Os especialistas acreditam que a precaução é a melhor forma de ajudar. Por isso, no mês nove são organizados eventos com debates sobre o suicídio, alertando a população sobre a conscientização. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) a medida preventiva auxilia 90% dos casos. 

O psicólogo e professor da PUC-SP Marcelo Borelli explica “com certeza boa parte das tentativas de suicídio ou mesmo o suicídio poderiam ser evitados se de fato houvesse um acompanhamento mais próximo dessa pessoa, se ela tivesse seu espaço para poder falar o que está sentindo, se ela puder pensar sobre questão da vida dela”. Borelli ainda conta que é muito importante chamar atenção para a questão do suicídio e da saúde mental no mês de setembro, mas, que esse assunto precisa ser discutido, inclusive com campanhas, ao longo do ano. 

Considerado um problema de saúde pública com 32 mortes diárias, o estado do Rio Grande do Sul registra a maior taxa, 10,2 suicídios por 10 mil habitantes, dados do Ministério da Saúde de 2010.  A campanha “falar é a melhor solução” busca maior visibilidade à causa e, para isso, ilumina e pinta lugares ou pontos estratégicos para chamar atenção da população. 

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            Congresso Nacional em campanha pelo Setembro Amarelo - foto: divulgação

 

Lucas Ganemian, jornalista, foi diagnosticado com depressão há menos de dois meses e falou como o apoio da família foi primordial “acredito que ao falar com meus pais, apesar da preocupação que eles tiveram, consegui procurar ajuda rapidamente. Eles, com meu irmão e meu cunhado me deram total apoio”. 

O diálogo constante é importante principalmente devido a alguns mitos que as pessoas, sem informação, falam como por exemplo “quem ameaça se matar, está querendo chamar atenção”. O especialista explicou “isso (esses mitos) é muito triste. Na verdade, a pessoa que tem depressão está sofrendo muito, um sofrimento que ela não tem controle, ela não tem vontade de fazer as coisas mais simples”. Ele ainda esclareceu que apenas a comunicação consegue mudar essas  narrativas. 

“Minha família nunca foi uma opção de conversa, porque eles são muito fechados, eu sinto que eles não entendem, eles acham que é uma besteira, que é só pensar positivo que vai passar” relatou uma estudante que prefere não ser identificada e sofre de depressão há 11 anos, ao menos quatro vezes tentou se matar. Ela ainda nos contou como seu ex namorado tratava a depressão dela “ele não entendia nem um pouco o que eu sentia, o que eu tinha. Ele não deixava eu chorar, porque, segundo ele, chorar é um sinal de fraqueza”.

Mayllon Soares, professor de educação física, namorou por dois anos uma mulher que tem depressão. Ele acredita que ela desenvolveu no relacionamento anterior que aparentava ser abusivo. Ele ainda comenta “tomei alguns cuidados depois que fiquei sabendo da depressão. Um deles, foi marcar uma sessão com a psicóloga dela para entender melhor como eu poderia ajuda-la superar a depressão de maneira mais rápida”.

O desemprego também tem sido um fator de risco das tentativas de suicídio.  Borelli concorda com isso quando afirma “acho que parte disso tem a ver com o modo que a nossa sociedade está estruturada. As pessoas mais velhas, além de se sentirem mais sozinhas, não tem lugar no mundo. Os jovens por outro lado, vão sentindo cada vez mais uma pressão sobre o seu futuro, então, muitas vezes a vida pode ficar mais rasa, mais superficial. Aí a gente pode pensar que essas duas populações estão mais vulneráveis”.

“Meu primeiro gatilho foi o bullying e também a falta de atenção dos meus pais. O segundo, foi recentemente, faz um ano, meu ex-namorado era muito abusivo, ele me maltratava muito, meio que me abusava sexual e psicológicamente. Com isso, eu piorei e tenho recaídas até hoje, mas eu estou melhorando, sendo acompanhada, tendo bom amparo” contou a estuante.

Quem pensa que só pessoas do anonimato sofrem com depressão, estão enganadas. Diversos casos já foram relatados por celebridades, como a atriz internacional Catherine Zeta-Jones, o ator Jim Carrey a cantora Adele, o ator brasileiro Selton Mello e a atriz Adriana Esteves. Alguns casos são mais graves, Sophie Turner, famosa pelo seu papel de Sansa Stark em Game of Thrones, disse que pensou várias vezes em suicídio. Ela ainda disse que acredita que sofreu muito pela profissão que escolheu, diferente dos seus amigos de escola. Outros famosos que já assumiram que sofrem depressão e que também pensaram em cometer suicídio foram a cantora Demi Lovato e Paula Fernandes.

  A OMS estabeleceu a meta de reduzir em 10% os casos de mortes por suicídio até 2020. 

 No mês de setembro algumas ações no Brasil foram realizadas:

  • Vozes do silêncio: música de Carlinhos Brown em parceria com a CVV para a campanha #falarpodemudartudo. 
  • Sessão de terapia: série do GloboPlay está aberta a todos durante o mês de Setembro, sendo um convite à cuidar da saúde mental. 
  • Grande labirinto de girassóis (15/09): mais de dois mil girassóis foram espalhados no Largo da Batata em São Paulo, com o desejo de acabar com o preconceito e o silêncio sobre a depressão. 
  • Corinthians espalha girassóis pela arena (21/09): antes do jogo contra o Bahia, uma campanha alerta sobre depressão e suicídio, com o lema: “Na direção da vida - Depressão sem Tabu”, 70 crianças acompanharam os jogadores segurando girassóis.
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Crianças segurando girassóis antes de entrar com os jogadores do Corinthians no campo - foto: divulgação

 

  • 4ª Caminhada pela Vida – Encerramento do Setembro Amarelo:

Data: 29/09 | a partir das 9h30

Local de saída: Av. Paulista, 37 – em frente à Casa das Rosas

Organização: CVV

Apoio: Uninove | Coren | Ecofit | Rede Social do Centro

Participação: Gratuita

Informações: cvvsp@cvv.org.br

  A ONG mais antiga do país ajuda no apoio emocional e prevenção ao suicídio, a “CVV: Como vai você?” está disponível 24h pelo telefone 188 gratuitamente, chats no site https://www.cvv.org.br/ e pessoalmente.  

A cor amarela:

Por detrás da cor, de acordo com a Associação Catarinense de Psiquiatria, há uma história: Em 1994, um americano de 17 anos, chamado Mike Emme, tirou a vida dirigindo seu carro amarelo. Seus amigos e familiares distribuíram no funeral cartões com fitas amarelas e mensagens de apoio para pessoas que estivessem enfrentando o mesmo desespero de Mike, e a mensagem foi se espalhando mundo afora.

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