Em 2023, nenhuma outra violência contra a mulher cresceu como a psicológica. Entre as atitudes que enfraquecem a saúde mental feminina está o stalking, comportamento abusivo 34,5% mais incidente no último ano
por
Bianca Abreu
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12/11/2024 - 12h

Por Bianca Abreu

 

Reta final do segundo semestre de 2024, sexta-feira, nove e meia da noite. Data e horário propícios para os estudantes de Jornalismo se encontrarem para curtir o final de mais uma semana rumo às férias. Após sair da aula na unidade Monte Alegre da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, um grupo desce as escadas da saída da universidade que desemboca na rua Ministro Godói. Ali se concentram os bares onde os Puquianos costumam confraternizar - e foi na frente de um deles em que esses universitários pararam e se reuniram.

Alguns bebem, outros comem e todos conversam. Trabalhos finais, estágio (a rotina ou a falta dele), futebol e família são alguns dos assuntos. Conversa vai, conversa vem, em dado momento, entre esse grupo majoritariamente feminino, o papo afunilou em torno da perseguição masculina. Em todas as histórias naquela noite, os algozes eram estudantes do sexo masculino - em alguns momentos, reincidentes, com mais de um relato que os envolvia. O assunto surgiu porque um deles passou próximo delas fazendo menção de se aproximar, fato que as deixaram apreensivas. Elas desviaram seus olhares e viraram o corpo, como que criando um escudo contra a aproximação que foi parcialmente repelida, visto que se aproximaram por instantes mas acabaram se afastando em seguida, indo ao encontro de outras colegas que estavam por ali.

Quando um dos algozes se afastou, Marcela, a primeira estudante a compartilhar a situação que ocorreu consigo, contou que chegou a receber chamadas de vídeo durante a madrugada, via WhatsApp, em que dois estudantes insistiam em falar com ela. Foram recusados e, em dado momento, cessaram as tentativas. Na relação entre ela e a dupla que estava do outro lado da linha nunca houve afinidade, sua intenção era apenas nutrir uma boa convivência. O que, para a estudante, não justificava receber uma ligação deles altas horas da madrugada. Ainda mais por considerar que, provavelmente, eles estariam alcoolizados naquele momento, já que se tratava de um final de semana. Outro fator que a fez, de primeira, desconsiderar atender a ligação foi o fato de que o comportamento de ambos, nos momentos de interação ainda no ambiente acadêmico, a deixava desconfortável - são intrusivos e se aproximam corporalmente de maneira exagerada, sem respeitar seu espaço pessoal e tampouco o afastamento que ela própria provoca em resposta a essas atitudes.

Mas as investidas não pararam nas ligações. Marcela evita ocupar o mesmo espaço que qualquer um dos dois estudantes e, por isso, quando coincide de sair da universidade no mesmo horário que eles, ela retarda sua chegada ao ponto de ônibus para que haja tempo hábil deles terem ido embora. Assim não precisa se preocupar em passar por situações desconfortáveis mais uma vez, principalmente se estiver sozinha. Só que agora, em vez do celular, o caminho para casa se tornou o ambiente em que ela seria novamente abordada. Um dos indivíduos da dupla passou a esperar por ela no ponto de ônibus à noite. Esse comportamento foi percebido pelo fato de que ele a viu saindo ao mesmo tempo que ele, vários coletivos subiram a Rua Cardoso de Almeida e, quando ela chegou para aguardar o transporte, ele ainda estava lá, e fez questão de se juntar a ela durante o caminho, mesmo que Marcela tenha demonstrado desinteresse pela sua companhia. Na estação de Metrô, parada em comum, ela se despediu e desviou seu caminho, a fim de aguardar que ele entrasse na próxima locomotiva para, em seguida, ir sozinha na seguinte, evitando a situação indesejada. Para sua surpresa, quando olhou para a plataforma antes de descer as escadas, ele continuava lá. Outros vagões passaram por aqueles trilhos e ele lá permanecia - aliás, permaneciam, pois Marcela também não se moveu. Após longos minutos naquela situação, ele finalmente embarcou e ela pôde, já tarde da noite, enfim seguir o caminho para casa. Enquanto ela contava o que aconteceu, sua amiga Fernanda confirmava tudo, acenando com a cabeça. Elas estavam juntas quando, uma vez mais, isso aconteceu. Exatamente nos mesmos moldes, com a única diferença de que, desta vez, elas estavam juntas. Fernanda também foi contatada pela amiga quando as ligações na madrugada aconteceram. Com os acontecimentos, a presença de qualquer um dos dois indivíduos causa mal-estar emocional a Marcela.

A perseguição pessoal e virtualmente vivida pela estudante é tipificada pelo Código Penal (CP) brasileiro como stalking. O artigo 147-A explica que essa é a atitude de “Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade” - foram 77.083 casos apontados em 2023, representando um crescimento de 34,5% em relação ao ano anterior, de acordo com dados do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. O documento também expôs que o Brasil registrou aumento de todas as modalidades de violência contra mulheres no ano passado. Mas a que mais cresceu foi a psicológica - onde enquadra-se o stalking. Foram 38.507 registros, 33,8% a mais que em 2022. Por meio do artigo 147-B, o CP define a violência psicológica contra a mulher a atitude de “Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação”. E não é só Marcela, entre o grupo ali reunido, quem está passando pelo desconforto de ser pressionada a tolerar uma presença masculina indesejada. Assim que ela terminou de contar sua história, outra de suas colegas compartilhou que também não vinha se agradando da insistência por atenção que um desses mesmos estudantes cobrava por parte dela.

Com frequência, os mesmos grupos de universitários se reúnem em frente à PUC-SP e curtem a sexta-feira à noite. Todas as vezes que Joana está lá com seus amigos, com quem tem real afinidade, um dos estudantes presente no relato de Marcela se achega junto ao grupo e busca forçar sua inclusão - principalmente, junto à Joana. Ela, assim como a colega, convive com o outro estudante, mas não alimenta nenhuma relação afetuosa que justifique a busca pela proximidade em momentos de descontração fora do ambiente acadêmico. Quando eles se movem e trocam de lugar, ele os segue. Mesmo quando se despedem, ele novamente se aproxima. Certa vez, quando ela estava entrando em um carro por aplicativo para ir para outro lugar com outro grupo de amigos, ele insistiu por longos minutos para ir junto, mesmo não tendo sido convidado - pelo contrário, Joana falou para ele, com todas as letras, que nem ela, nem o restante do grupo, levariam ele junto pois sua presença, por unanimidade, não era desejada junto aquelas pessoas. Ela entrou no carro, fechou a porta e foi embora, deixando-o falando sozinho, pois ele ainda insistia. Quando é confrontado por seu comportamento, ele coloca no álcool a culpa por suas atitudes, mas seu comportamento intrusivo também se manifesta em dias e ambientes onde ninguém está bebendo - como foi com Marcela. E assim como ela, a preocupação e o desconforto se tornaram sentimentos constantes, mesmo em momentos em que o relaxamento deveria ser a lei.

Colocar a culpa de comportamentos abusivos em fatores externos, como a ingestão do álcool, em algum acontecimento pontual ou questionar a reação da vítima ao ser importunada são atitudes comuns entre os homens que praticam essas ações. Sem autocrítica, eles perpetuam a reprodução de comportamentos nocivos que respingam em todo o cotidiano da mulher afetada, pois introduz a aflição, a ansiedade, a angústia, a insegurança e os demais sentimentos de preocupação que possam vir nesse combo. Não sendo respeitada, a mulher se vê na posição de tentar evitar, a todo custo, passar por situações onde seu espaço pessoal seja invadido, seu corpo seja tocado ou sua mente, perturbada. E isso acarreta mudanças no trajeto, no comportamento, nas companhias e em todos os demais detalhes que dizem respeito às suas escolhas individuais - ou seja, opta por tolher sua própria liberdade em nome de resguardar sua integridade física e mental. 

A inquietação diante do desrespeito é um sentimento coletivo entre as mulheres no Brasil. Uma pesquisa nacional realizada em 2023 pelo instituto DataSenado, em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência (OMV), mostra que 46% das brasileiras acreditam que as mulheres não são respeitadas no Brasil. Em São Paulo, 48% das cidadãs paulistas consideram que as mulheres não são tratadas com respeito no país e 59% delas reforçam que a formação social brasileira é muito machista.

Em uma de suas aulas na universidade, Fabio Fernandes destacou a seus alunos do sexo masculino a importância de que eles, enquanto homens, façam uma leitura séria e comprometida de suas atitudes. Pois a masculinidade é formada a partir de elementos que estão intrínseco ao cotidiano masculino, o que lapida e direciona muitas de suas ações, pensamentos e atitudes. Sem isso, eles estão fadados a reproduzir comportamentos abusivos e nocivos contra as mulheres que encontram no caminho. As histórias contadas por Marcela, Joana e Fernanda reforçam que, enquanto as bases do patriarcado não são atacadas, o gênero masculino encontra caminhos abertos para, despretensiosamente, importunar, assediar, incomodar e atrapalhar o cotidiano das pessoas do sexo feminino em nome das suas vontades - como historicamente sempre fizeram.
 

Secretário de Estado americano, Antony Blinken, está em Tel Aviv para pressionar andamento de negociações de trégua
por
Pietra Nelli Nóbrega Monteagudo Laravia
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20/08/2024 - 12h

Desde o início do conflito na Faixa de Gaza, diversas tentativas de cessar-fogo foram realizadas, refletindo a complexidade das negociações e a persistência das partes envolvidas. Anteriormente, os esforços para interromper as hostilidades foram marcados por intensos diálogos entre os mediadores e um contínuo desgaste das condições em campo. No entanto, essas tentativas ainda não conseguiram estabelecer uma trégua duradoura.

Na última segunda-feira (19), o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, anunciou um novo desenvolvimento significativo: o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, aceitou uma proposta de cessar-fogo formulada pelos mediadores dos EUA, Catar e Egito. Esta proposta foi apresentada durante a rodada mais recente de negociações realizada em Doha, no Catar.

Blinken, que está em Tel Aviv desde domingo (18), informou que se reuniu com Netanyahu para discutir o novo plano. De acordo com a declaração de Blinken, a proposta dos EUA visa "resolver as lacunas restantes" nas negociações e permitir uma "rápida implementação" se for aceita por todas as partes envolvidas. Embora os detalhes da proposta ainda não tenham sido divulgados, o clima entre os negociadores é de otimismo após as conversas da semana passada.

Até o momento, o Hamas ainda não se pronunciou oficialmente sobre a nova proposta. As negociações deverão continuar ao longo desta semana, e Blinken expressou a expectativa de que o Hamas se comprometa com a proposta para avançar nas discussões. O secretário de estado dos EUA também alertou que esta pode ser uma oportunidade crucial para a devolução dos reféns mantidos pelo Hamas e para alcançar um desfecho mais amplo do conflito.

 O governo israelense informou que o Hamas ainda detém 111 pessoas sequestradas desde o ataque de 7 de outubro de 2023, que iniciou a guerra na Faixa de Gaza. A proposta de cessar-fogo enfrenta desafios significativos, incluindo a exigência de Israel pela destruição total do Hamas e a demanda do grupo terrorista por um cessar-fogo permanente, em vez de uma trégua temporária. Divergências também permanecem em relação à presença militar de Israel em Gaza, à movimentação dos palestinos e à identidade e quantidade de prisioneiros a serem libertados em uma possível troca.

 Em resposta a essas complexas questões, Netanyahu afirmou que busca a libertação do "máximo de reféns vivos" durante a primeira fase do novo plano de três etapas proposto pelos EUA. Após sua reunião com Netanyahu, Blinken confirmou que o primeiro-ministro se comprometeu a enviar uma delegação para as novas negociações, previstas para esta semana em Doha ou no Egito. Blinken também estará presente nas discussões. Paralelamente, os confrontos continuam em Gaza, com uma nova operação israelense em Khan Yunes e um atentado reivindicado pelo Hamas em Tel Aviv no domingo, evidenciando a fragilidade e a intensidade do conflito em curso.

 

Manifestantes e familiares de mortos por violência de Estado fizeram atos simbólicos em São Paulo no aniversário de 60 anos do golpe militar no Brasil
por
Sophia Linares
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28/05/2024 - 12h

A força de segurança brasileira passa ser formada em 1827 com a chegada de Dom João VI, para equivaler a Guarda Real de Polícia de Lisboa no Rio de Janeiro. Ao longo do tempo se estabeleceram no resto do país. Nos seus mais de 190 anos, foi “organizada e reinventada diversas vezes” como diz a linha do tempo disponibilizada no site da Polícia Militar, com a criação de ramificações que compuseram e compõe a estrutura da instituição como o Corpo Policial Permanente, o Corpo de Bombeiros, a Radiopatrulha Aérea, Guarda Civil, Força Expedicionária Brasileira, entre outros.

Quando houve a queda do sistema escravista em 1888, no mesmo ano, é criado o 1º Batalhão de Polícia de Choque. “Abolição da escravidão. A partir de agora o Brasil tem um só povo em plena igualdade de direitos. O efetivo da Polícia Militar é triplicado nesse ano, chegando a 1480 homens.” 

Em 1906, o governo do Estado de São Paulo convida militares franceses para modernizar as práticas “aliando a estética militar ao serviço de policiamento ostensivo voltado para as necessidades comunitárias” e diz que o conjunto de ideais estabelecidos “liberdade, igualdade e fraternidade que se traduzem no respeito à dignidade da pessoa humana e na defesa intransigente dos direitos humanos, persiste nos dias atuais, mantendo na Polícia Militar uma visão humanista, voltada para a formação moral e patriótica do policial militar, com dedicação incansável à instrução, para bem servir à comunidade paulista e brasileira.” 

No ano de 1932 civis armados lutaram "ao lado das tropas regulares do Exército e da milícia paulista” contra o governo de Getúlio Vargas. 

A polícia ainda nomeada Força Pública em 1964, há 60 anos tinha o dever “garantir a ordem pública e a estabilidade da nação” sob o comando do eleito governador de São Paulo Adhemar de Barros, deposto dois anos depois pelo governo militar por desejar o fim do período de ausência democrática. A partir do AI-5 em 1968 “coube à Força Pública garantir a paz social e proteger a sociedade paulista”. 1969: é construído o edifício que sediou o departamento de repressão vinculado ao governo militar, DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna), para perseguir integrantes de guerrilhas armadas, pessoas que poderiam ter pouca ou muita vinculação a movimentos comunistas e aqueles que se opunham ao regime.

Em 1970, a Polícia Militar é formalizada a partir da união da Guarda Civil e Força Pública. 

Instaurada em 2012, a Comissão da Verdade instituída em países que passaram por supressão de direitos individuais democráticos, investigou crimes cometidos pelo Estado brasileiro durante o período militar e identificou mais de 8 mil indígenas mortos e pelo menos 434 mortos e desaparecidos políticos. Um estudo de 2019 da Human Rights Watch calculou 20.000 pessoas torturadas. E a pesquisa publicada neste ano de Gilney Viana, pesquisador colaborador da UnB desvelou mais de 1.600 camponeses mortos e desaparecidos nos 21 anos que perdurou a ditadura civil-militar.

O tempo que militares estavam no poder, acabou em 1985. A instituição permanece realizando a fiscalização de uma ordem na sociedade, e de lá acumulou histórico de ocasiões que marcaram o país, relembre algumas delas: 

SP 1992, Massacre do Carandirú

111 detentos mortos

RJ 1993, Chacina da Candelária

8 crianças e adolescentes mortos

Um mês depois, o caso de assassinato de 4 policiais na Praça Catolé do Rocha, resultou na morte de 21 civis inocentes.

RJ 1998, Duque de Caxias

24 mortos

RJ 2005, Chacina da Baixada

Depois depois da troca de comandante do batalhão, policiais saíram em direção ao município de Queimados, atiraram indiscriminadamente o que resultou na morte de 29 civis. 11 policiais foram denunciados, 5 deles liberados.

SP 2006, Crimes de Maio

505 pessoas mortas pela polícia depois que o Primeiro Comando da Capital (PCC) chacinou 59 pessoas.

RJ 2007, Complexo do Alemão

24 civis mortos

RJ 2021, Chacina do Jacarezinho

Após 1 policial ser morto,

28 civis foram mortos.

SP 2023-2024, Operação Verão

56 civis mortos. Entre pessoas do crime organizado e aquelas que segundo relatórios da PM teriam entrado em confronto com os agentes, estão: uma cabeleireira, mãe de seis crianças; dois vizinhos que conversavam na rua, um deles de muleta; dois jovens no interior de uma casa onde familiares tomavam café na sala, um deles era deficiente visual e possuía um dos olhos com 20% da visão e o outro cego.

Outros eventos ocasionaram mortes decorrentes de confrontos com a força pública de segurança, que resultaram cicatrizes em muitas famílias. Em comparação com 2022, os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostraram que em 2023 a letalidade policial cresceu 18% no estado de São Paulo e chegou a 313 civis mortos, também cresceu em 63% a taxa de policiais militares que tiraram a própria vida, foram 31 suicídios de agentes enquanto 16 morreram em confronto, segundo dados obtidos através da LAI (Lei de Acesso à Informação) pela Ponte.

A virada de março para abril deste ano, marcou 60 anos do dia que os cidadãos brasileiros perderam durante 21 anos seus direitos democráticos. Grupos da sociedade fizeram atos em São Paulo, pela memória das pessoas mortas e desaparecidas por ação de forças do Estado brasileiro durante a ditadura até os dias atuais. Familiares e amigos seguraram os corpos em forma de cartazes e caminharam pelas ruas da cidade. 

 

Escada interna de onde funcionou o aparelho de repressão militar DOI-Codi (1970-1976) em São Paulo.
Escada interna da construção onde funcionou o aparelho de repressão militar DOI-Codi (1970-1976) em São Paulo, aos fundos do 36° Distrito Policial na Vila Mariana que na porta, manifestantes da 4ª Caminhada do Silêncio se concentraram para ir em direção ao Monumento aos Mortos e Desaparecidos Políticos - Foto: Sophia Linares

 

Portas: à esquerda entrada para uma das salas de tortura e à direita uma das celas.
DOI-Codi: à esquerda entrada para uma das salas de tortura e à direita uma das celas - Foto: Sophia Linares

 

DOI-Codi: sala de tortura localizada no segundo andar
DOI-Codi: sala de tortura localizada no segundo andar, a menor onde não há porta, é o local que o hoje jornalista e escritor Ivan Seixas, preso quando tinha 16 anos, após ter sido tirado do pau-de-arara pode ter visto seu pai na cadeira do dragão — poltrona com condução elétrica para choque em todo o corpo — e que foi morto durante uma das sessões de tortura. Os gritos podiam ser ouvidos dia e noite em todas as celas, assim como na vizinhança - Foto: Sophia Linares

 

Emilio Ivo Ulrich, ex-preso político no DOI-Codi e autor do livro “Tortura não tem fim”
Emilio Ivo Ulrich, ex-preso político no DOI-Codi e autor do livro “Tortura não tem fim” - Foto: Sophia Linares

 

Familiares seguram cartazes de parentes na 4a Caminhada do Silêncio
Familiares seguram cartazes de parentes na 4ª Caminhada do Silêncio - Foto: Sophia Linares

 

Mulher caminha em direção ao Monumento aos Mortos e Desaparecidos Políticos
Foto: Sophia Linares

 

Na Avenida Brasil, manifestante mostra cartazes para carros parados no semáforo próximo ao Monumento aos Mortos e Desaparecidos
Na Avenida Brasil, manifestante mostra cartazes para carros parados em semáforo próximo ao Monumento aos Mortos e Desaparecidos - Foto: Sophia Linares

 

Mães e familiares de pessoas mortas durante os Crimes de Maio em caminhada do Cordão da Mentira
Mães e familiares de pessoas mortas durante os Crimes de Maio no Cordão da Mentira, passeata que saiu do Centro Maria Antonia, na Consolação, e seguiu para o antigo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) que hoje abriga o Memorial da Resistência - Foto: Sophia Linares

 

Participante vestida de morte salta caçambas com entulho em ato Cordão da Mentira.
Pessoa vestida de morte acompanhou policiais que realizaram a fiscalização da passeata Cordão da Mentira - Fotos: Sophia Linares

 

Performance artística no Cordão da Mentira
Performance artística no Cordão da Mentira - Foto: Sophia Linares

 

Participantes de ato pela memória dos mortos e desparecidos da ditadura civil-militar que ocorria à frente, na entrada da Universidade de Direito da USP no Largo São Francisco
Participantes de ato pela "defesa da democracia e por aqueles que lutaram contra a ditadura militar no Brasil" que ocorria em frente, na entrada da Faculdade de Direito da USP no Largo São Francisco - Foto: Sophia Linares

 

Sancionada em 2006, o dispositivo é responsável por proteger vítimas da violência doméstica e acrescentou medidas nos últimos anos
por
Amanda Furniel
Giuliana Zanin
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20/03/2024 - 12h

A Lei Maria da Penha, uma medida de prevenção e punição em caso de violência doméstica, foi sancionada em 7 de agosto de 2006. Dezessete anos depois, em 2023, o Brasil ainda é o quinto país com mais casos de violência contra mulher, com 3.181 denúncias contra parceiros e parentes. 

A Lei determina que todo caso de violência dentro de casa e por familiares é crime, sendo julgados nos Juizados Especializados de Violência Doméstica Contra a Mulher. Nos últimos cinco anos, houve pelo menos oito coberturas incluídas no projeto, dentre elas, o afastamento imediato da vítima do ambiente de violência sem a prescrição doboletim de ocorrência (B.O.) e a proteção de mulheres transgêneras.

 

Mas, afinal, quem é Maria da Penha?

Maria da Penha Maia Fernandes foi vítima de duas tentativas de feminicídio em 1983. Na primeira, enquanto dormia, seu então marido atirou contra a suas costas, o que a deixou paraplégica. Quatro meses após uma recuperação intensiva da tragédia intencionada que quase tirou a sua vida, o ex-parceiro tentou eletrocutá-la durante o banho, enquanto a mantinha em cárcere privado. Depois de muita luta, a família e os amigos de Maria conseguiram tirá-la de casa e das mãos do agressor.  

 

O caso de Maria da Penha levou ao todo 19 anos e seis meses de disputas judiciais. O agressor chegou a ser sentenciado à prisão duas vezes, com penas de 10 e 15 anos, mas nenhuma das sentenças foi cumprida por falhas na justiça. Na primeira, em 1991, os advogados do réu anularam o julgamento e, na segunda, em 1996, o réu foi condenado a dez anos e seis meses, mas recorreu e acabou passando apenas cerca de dois anos preso. 

 

Origem da Lei 

Após um ultimato da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA), em 1998, o Estado Brasileiro foi denunciado e responsabilizado por “negligência, omissão e tolerância” em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras. 

O caso de Maria de Penha passou a ser tratado como uma violência contra a mulher por razão de gênero, mas, em 2002, foi formado um Consórcio de ONGs Feministas para reivindicar a elaboração de uma lei especializada no combate à violência doméstica e familiar contra as mulheres. Depois de debates e reivindicações dentro dos tribunais, o Projeto de Lei n. 4.559/2004, da Câmara dos Deputados, chegou ao Senado Federal (Projeto de Lei de Câmara n. 37/2006) e foi aprovado por unanimidade em ambas as Casas. A Lei Maria da Penha (Lei N. 11.340) foi sancionada no dia 7 de agosto de 2006 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva.  

Como uma das recomendações do CIDH foi uma reparação simbólica e material à Maria da Penha, o Estado do Ceará pagou uma indenização a ela e o Governo Federal nomeou a lei em reconhecimento e homenagem à sua luta contra a violação dos direitos humanos das mulheres.  

Em 2015, um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontou que a Lei Maria da Penha diminuiu em 10% a taxa de feminicídio cometidos pelos agressores dentro da residência das vítimas. 

A legislação trouxe avanços e amparos para as mulheres brasileiras. Além de tipificar a violência doméstica, ela oferece medida protetiva com o afastamento do agressor da vítima e seus familiares, proíbe aplicação de penas pecuniárias, (ou seja, não pode ser paga por multas ou doações de cestas básicas), oferece auxílio para a mulher caso ela seja financeiramente dependente do agressor e amplia a pena do agressor de um a três anos de cadeia caso a mulher vítima seja deficiente.  

 

Mudanças e inclusões 

Desde 2019, outras medidas foram acrescentadas à Lei Maria da Penha, entre elas:  

  • Lei nº 13.827/19, que permitiu a adoção de medidas protetivas de urgência e o afastamento do agressor do lar pelo delegado;   

  • Lei nº 13.836/19, tornando obrigatório informar quando a mulher vítima de agressão doméstica ou familiar é pessoa com deficiência;  

  • Lei nº 13.871/19 determina como responsabilidade do agressor o ressarcimento dos serviços prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) no atendimento às vítimas de violência doméstica e familiar e aos dispositivos de segurança por elas utilizados; 

  • Lei nº 13.894/19, que atribuiu ao Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher a ação de divórcio, separação, anulação de casamento ou dissolução de união estável. A norma também estabeleceu a prioridade de tramitação dos procedimentos judiciais em que figure como parte vítima de violência doméstica e familiar;

  • Lei nº 13.984/20, estabelecendo obrigatoriedade referente ao agressor, que deve frequentar centros de educação e reabilitação e fazer acompanhamento psicossocial;

  • Lei nº 14.132/21 inclui um artigo no Código Penal (CP) para tipificar os crimes de perseguição (stalking);

  • Lei n° 14.164/21, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional para incluir conteúdo sobre a prevenção à violência contra a mulher nos currículos da educação básica, além de instituir a Semana Escolar de Combate à Violência Contra a Mulher, a ser celebrada todos os anos no mês de março;

  • No primeiro semestre de 2022, a Sexta Turma do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que a Lei Maria da Penha seria aplicada também em casos de violência doméstica ou familiar contra mulheres transgêneras. 

 

Os números não param de crescer

Em 2023, o Brasil registrou 1.463 casos de feminicídio, crime em que o assassinato de uma mulher ocorre pelo simples fato de ser mulher, ou seja, uma mulher a cada seis horas era assassinada. No mesmo ano, a cada 24 horas, oito mulheres foram vítimas de violência doméstica, segundo o boletim "Elas Vivem: Liberdade de Ser e Viver".

​De acordo com a ONU, sete a cada 10 mulheres no mundo já foram ou serão vítimas de violência de gênero em algum momento da vida. No mundo, de acordo com a OMS e a Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, a estimativa é de que 35% dos feminicídios são cometidos por seus parceiros, ao passo que 5% dos homicídios de homens são praticados por suas parceiras.

 

Com três mesas de conversa, o veículo independente de jornalismo investigativo debate sobre o papel do setor na democracia
por
Artur Maciel
Carol Rouchou
Geovana Bosak
Leticia Falaschi
Marina Jonas
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19/03/2024 - 12h

Na última quarta-feira, 13, a Agência Pública, em parceria com o curso de Jornalismo e a Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP (FAFICLA), realizou o evento “Pública 13 anos: O jornalismo na linha de frente da democracia” para celebrar seus 13 anos de jornalismo investigativo. Com três mesas redondas, o evento foi sediado no Tucarena, auditório do Teatro da Universidade Católica de São Paulo (TUCA), e reuniu expoentes do jornalismo, da antropologia e da ciência do clima para discutir temas como desinformação, populismo digital, polarização dentro e fora das redes, inteligência artificial, crise climática e, por fim, a defesa da democracia. 

Fundada em 2011 por repórteres mulheres, a Agência Pública é a primeira agência de notícias sem fins lucrativos do Brasil. Seu compromisso é com o jornalismo independente de qualidade e com a promoção da defesa dos direitos humanos, do discurso democrático e do direito à informação. Em comunhão com os valores da PUC-SP, que foi e ainda é palco de luta e resistência pelo Estado Democrático de Direito, a Pública escolheu o auditório próximo à instituição para celebrar o aniversário de treze anos de trabalho.

 

Mesa 1: “Desinformação e Populismo Digital” 

Em ano de eleições - tanto municipais no Brasil, quanto presidenciais ao redor do mundo - é de extrema importância avaliar os impactos e os riscos do desenvolvimento da tecnologia no processo eleitoral, desde as campanhas políticas até às urnas. Diante disso, a primeira mesa “Desinformação e Populismo Digital" tratou sobre a dimensão da tecnologia no presente cenário político e social. 


Neste primeiro momento do evento, os principais tópicos abordados foram a onda de desinformação online, gerada principalmente por grupos de extrema direita - como é o caso dos grupos de Whatsapp e Telegram do bolsonarismo. Além disso, a mesa abordou a regulamentação do uso da inteligência artificial (IA), e o poder das “big techs” e de sua arquitetura algorítmica dentro do sistema comunicacional.

 

Ecologia de mídia e desinformação

Natalia Viana, co-fundadora e diretora-executiva da Agência Pública, foi a mediadora da mesa “Desinformação e o Populismo Digital” e iniciou o debate relacionando a manifestação convocada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, no dia 25 de fevereiro deste ano, com a ecologia de mídia, um conceito que descreve como a tecnologia afeta diversos aspectos da sociedade - campos político, social, cultural ou demográfico.


Viana argumenta que o ato bolsonarista, realizado no início do ano, é um exemplo de como a desinformação online migra para a vida offline em velocidades e escalas inimagináveis. Ela explica que tanto conteúdos mais elaborados, como deep fakes, quanto aqueles mais simples, como fake news, complementam-se e participam da ecologia de mídia, que retroalimenta a desinformação. No dia 25 de fevereiro, o protesto, que aconteceu na Avenida Paulista, contou com um público que varia de 185 mil pessoas, segundo divulgado em pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), até 600 mil, de acordo com estimativas da Secretaria de Segurança Pública (SSP). Segundo a mediadora da mesa, os participantes tendem a basear suas decisões em fake news recebidas através de canais diretos de mensagem. Viana ainda completa dizendo que, uma vez questionados, os manifestantes pareciam não compreender exatamente o motivo de estarem presentes.

 

IA e as eleições 

Nina Santos, pesquisadora na área de comunicação e informação, explica que o uso da inteligência artificial (IA) em período de eleições ainda é recente, mas representa um aspecto tecnológico promissor. No entanto, a ferramenta também carrega um potencial significativo de danos, a depender da forma como for usada, principalmente para produzir e disseminar fake news

Para Santos, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) desempenha um papel crucial na mitigação dos riscos que surgem com a utilização da IA em momentos decisivos da esfera política. O órgão é responsável por instituir a regulamentação adequada do recurso tecnológico em questão frente às possíveis influências distorcivas que ele pode trazer, mas isso pode não ser suficiente. Em entrevista à AGEMT, a pesquisadora reforça a necessidade de “um processo legislativo na Câmara, no Senado, em que os deputados e as deputadas mobilizem as suas bases, façam discussões amplas e construam a política para lidar com a inteligência artificial em todos os momentos da nossa vida, e não só das eleições”.

No encerramento da mesa, Natalia Viana levanta uma questão fundamental: “em um ambiente em que todo mundo participa ativamente da construção do debate público, qual é o papel do cidadão?” 

Leticia Cesarino, antropóloga e assessora especial de Educação e Cultura em Direitos Humanos do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, responde à questão enfatizando que, embora não exista um caminho único de atuar no mundo, o importante é que todos estejam comprometidos com os princípios democráticos.  

“É fundamental pensar em soluções que unam ações individuais e coletivas, construindo fontes de informações confiáveis e acompanhando coletivamente discussões em diversos ambientes sociais, seja no trabalho, na escola ou no seu próprio bairro”, completa a pesquisadora Nina Santos.

 

Mesa 2: “Como cobrir o governo de maneira equilibrada”

A segunda mesa do evento trouxe atenção à cobertura política dos governos e discutiu maneiras de fazê-la de forma equilibrada e justa. As convidadas foram as repórteres Juliana Dal Piva e Fabiana Moraes, que também atua como pesquisadora, enquanto a mediação foi realizada por Rubens Valente, repórter, colunista e também autor da Agência Pública. 

Confira, a seguir, a transmissão na íntegra. 

 

Mesa 3: “Colapso Climático e o Antropoceno”

A terceira e última mesa do evento, apresentada à noite, teve como recorte temático o "Colapso Climático e o Antropoceno", com participações do ambientalista e filósofo Ailton Krenak, do climatologista Carlos Nobre, da jornalista Daniela Chiaretti, e a mediadora Giovana Girardi, chefe da cobertura socioambiental da Agência Pública. Os convidados discutiram as problemáticas e também as soluções que permeiam o novo cenário ambiental. 

 

A Emergência Global 

"As mudanças climáticas não afetam a democracia, a democracia que afeta as mudanças climáticas”. Essa foi a sentença que o climatologista Carlos Nobre usou para introduzir a conversa. A reflexão esbarrou nas questões sistemáticas que levam ao esgotamento do planeta, já que o modo de vida e os sistemas de produção não são os únicos componentes alteráveis na remediação dos efeitos climáticos. As estruturas políticas e sociais são a base desse problema, segundo relembra o escritor, filósofo e futuro imortal da Academia Brasileira de Letras, Ailton Krenak. As democracias populistas foram colocadas como um agravante quando se trata de emissões de GEEs (gases do efeito estufa). A China, atualmente, é a maior emissora, seguida dos Estados Unidos, da Índia e da Rússia. Apesar de tanto barulho, os convidados reiteram que as causas climáticas não são pautas que elegem ou sequer movimentam escolhas políticas, em qualquer esfera, o tanto que deveriam.  

Foi discutido, também, como a onda de ascensão da extrema direita afeta a luta pela causa. É um enorme desafio combater as manobras do extremismo e do negacionismo, ainda mais quando atacam um tópico de vulnerabilidade em questão de apoio efetivo da população.  

Ailton destacou algumas posições contraditórias de órgãos públicos mundiais em relação à proteção do meio-ambiente. “Enquanto selecionam novas reservas de biosfera em uma semana, na outra, a UNESCO patrocinou uma reunião em Paris para discutir formas de mineração em outras reservas”. 

A jornalista Daniela Chiaretti, referência em coberturas e reportagens sobre o tema, aponta que “o capitalismo tenta se colocar como bússola para um problema que ele mesmo causou”.  A jornalista também alertou para o fenômeno que já é uma realidade e aquece discussões entre os profissionais de saúde mental. Segundo ela, as consequências dessa “falsa busca” têm causado à população, principalmente aos jovens, uma angústia diferente das outras, e em massa: a “ansiedade climática”.  

Os convidados enfatizaram, constantemente, que as consequências da intensificação do aquecimento global não impactam igualmente a população. O racismo ambiental foi um fator importante da mesa. Pessoas em situações de marginalização social e econômica são afetadas de um modo muito pior, estando submetidas à falta de recursos para lidar com eventos que podem chegar aos casos extremos. Os refugiados climáticos também foram um ponto importante. O termo é designado para um grupo de indivíduos que é obrigado a abandonar seu local de habitação devido a irregularidades radicais que impedem sua permanência - irregularidades essas causadas pelos efeitos do aquecimento global. 

Durante o pouco tempo de abertura para perguntas, a AGEMT perguntou à mesa, dado a celebração dos 13 anos do órgão comunicativo, como o jornalismo poderia ser um meio efetivo na luta. Os convidados responderam que a insistência em inserir os temas em tudo, e saber infiltrar a informação nos núcleos conservadores, que insistem na manipulação e no negacionismo, é uma das formas. 

 

O Antropoceno 

Não se pode separar este componente do anterior. O Antropoceno é uma proposta de marcação de uma nova era geológica (delimitação de tempo que se divide com base em como o planeta e os seres vivos reagem a determinada configuração geofísica e ambiental). Essa proposta foi feita por um grupo amplo de cientistas, geólogos e especialistas em mudanças climáticas, que defendem que a presença do ser humano e seu modo de produção já alteraram as estruturas do planeta em um período curto (comparando-se a outras eras geológicas). O embate na comunidade científica se encontra na dificuldade de enquadrar a ação humana como potencializadora das mudanças, ou como causa. “Não é a geologia que provoca o antropoceno, é o sapiens”, demarca Ailton Krenak. 

A terceira mesa encerrou o evento com o lembrete de que as mudanças climáticas são uma realidade irreversível. Cabe à humanidade liderar as mudanças nos sistemas, estruturas e no modo de sobrevivência da população. 

Mesmo em menor número, elas são as que mais sofrem estando desabrigadas pelas ruas em São Paulo.
por
Antônio Valle
Luísa Ayres
Manuela Dias
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30/03/2023 - 12h

Na maior capital da América Latina, uma das 20 cidades mais ricas do mundo, cerca de 48.261 pessoas se encontram em situação de rua. Para piorar, quase 30% dessas pessoas permanecem marginalizadas há mais de dois anos e cerca de 26% já não sabem o que é ter um teto há um período de mais de meia década.  

Desse total de quase 50 mil pessoas em completa vulnerabilidade social, 17,2% são mulheres. De acordo com o último Censo de 2021 sobre a população em situação de rua, as 3 regiões mais ocupadas por elas em São Paulo são a Sé (5,9%), a Vila Mariana (0,7%) e Santo Amaro (0,6%). 

 

Menor número, maiores vítimas 

Considerando a rua como um cenário predominantemente masculino, as violências, estupros e comportamentos característicos de opressão contra as mulheres, se reproduzem de forma ainda mais acentuada e naturalizada. Portanto, o fato de as mulheres serem o menor número percentual não necessariamente pode ser analisado como um dado positivo, já que a predominância de homens, como em qualquer outro lugar, evidencia os desafios ligados ao machismo e à estrutura patriarcal da sociedade como um todo.       

Para se protegerem, muitas procuram viver em grupos com outras mulheres ou estar com companheiros que possam lhes passar uma maior segurança perante os demais homens por perto. Esse cotidiano se assemelha muito a um dos principais motivos que levam muitas mulheres a viver longe de suas casas: os conflitos familiares (incluindo a violências doméstica e os abusos sexuais).  

“Aqui, uma mulher ajuda a outra”, confirma Samira*, de 20 anos. Há três meses em situação de rua, dorme atualmente na Praça da Sé. Para ela, estar com seu companheiro e pai de suas duas filhas, é um alívio. “Por eu viver na rua, eu já vi muitos casos (de violência). Eu, no meu caso, tenho meu esposo, que me ajuda, me protege. Mas tem muito homem violento né, tipo homem bêbado. Tem muita mulher sozinha que sofre bastante”, explica.  

O segundo maior motivo para o desabrigo de mulheres costuma ser o desemprego, que relacionado, muitas vezes, à dependência econômica que algumas delas possam ter em relação a companheiros abusivos, não lhes permite a fuga para algum outro lar mais seguro. Sem opção, o fim acaba sendo a sobrevivência nas ruas, longe do antigo abusador e perto de novos.  

Fugir: para onde? 

As consequências desse novo cotidiano, marcado ainda pela fome, frio e falta de assistência e acompanhamento médico podem ser diversas, levando ao desenvolvimento de transtornos psicológicos, doenças não tratadas ou identificadas, infecções íntimas, gestações indesejadas e até mesmo ao uso de drogas, sobretudo como alívio do sofrimento e fuga dessa dura realidade.  

Sobre o acesso ao atendimento médico e ao acompanhamento da saúde da mulher, a jovem diz ser uma situação muito difícil, sobretudo por causa da discriminação: “A gente mora na rua aí acha que a gente tem doença”. 

Segundo estudo realizado pela pesquisadora Patrícia Reis Carvalho com cerca de 40 mulheres em situação de rua em Belém, 42% das entrevistadas dizem ter feito uso de drogas durante o período de vivência nas ruas – não necessariamente tendo o uso de substâncias ilícitas como motivo principal para a saída de seus lares.  Esses dados ajudam a descontruir a imagem pejorativa ainda muito presente no imaginário popular de que pessoas que vivem nessas condições - ou melhor, que convivem com a falta delas – sejam todas viciadas, e que estão na rua apenas com o intuito de poder usar drogas.   

Samira*, por exemplo, conta que está na rua pois perdeu seu barraco de madeira durante uma enchente. “Levou tudo que a gente tinha... só deu tempo de a gente pegar as crianças, os documentos e sair, sabe?”. Hoje, vive a difícil realidade de estar desabrigada com uma bebê de 1 ano e outra recém-nascida, internada na UTI da Santa Casa, que após nascer na rua, contraiu sérias infecções.  

Pobreza menstrual 

Outra dificuldade enfrentada por elas, é a pobreza menstrual, um problema que assola cerca de 4 milhões de mulheres que menstruam pelo mundo, conforme aponta a Unicef. No Brasil, um levantamento feito pelo Instituto de Pesquisa Locomotiva, em conjunto com a marca de absorvente Always, mostra que 52% das pessoas que possuem ciclo menstrual, já tiveram que lidar alguma vez na vida com a falta de absorventes, itens de higiene, água tratada para limpeza pessoal ou acesso à banheiros, fatores que caracterizam a condição da pobreza menstrual.   

“Antigamente, vinha bastante doação de absorvente, escova de dente, coisas de higiene... só que agora tá em falta”, conta Samira*, pedindo ajuda. Ela também relata não saber de lugares que distribuam os absorventes de forma gratuita, e que se existem, não são divulgados para as mulheres na mesma situação que a dela.  

Alguns por muitas 

Apesar de não serem a maioria sobrevivendo pelas ruas, as mulheres são as menos acolhidas e ajudadas: enquanto a taxa de acolhimento dos homens chega a 83,2%, a assistência fornecida ao gênero feminino não chega a 17% do total de desabrigadas, também segundo dados do censo de 2021. 

Apesar dessa problemática, muitas organizações, governamentais ou não, desenvolvem projetos de ajuda e acolhimento direcionados à essas mulheres. Uma delas, é a Casa Maria Maria, uma Casa de Apoio e Centro de Acolhida (CAE) localizada na região do Canindé, na zona norte da capital paulista.  

Segundo a Prefeitura de São Paulo, “essa modalidade destina-se a priorizar públicos específicos que requerem atendimento diferenciado, respeitando o gênero. Neste tipo de serviço, as mulheres podem estar acompanhadas ou não de seus filhos”. 

Juliana Ferreira, assistente técnica do Maria Maria, conta que as mulheres abrigadas na casa têm contato com parentes e amigos, saem todos os dias, trabalham, estudam e retornam para o Centro, onde ficam à disposição telefones e wi-fi gratuito. “Elas têm toda autonomia da vida delas. Elas só estão aqui em acolhimento”, garante. 

No entanto, algumas regras precisam ser seguidas: há horário limite para entrada na casa, lista de presença e, caso sejam constatados 4 dias de falta seguidos, as mulheres sofrem desligamento, perdendo sua vaga no abrigo.  

O espaço em si conta com quartos compartilhados para até 20 pessoas, em leitos baixos e altos - e também berços, sala de TV, quintal, lavanderia, espaço com brinquedos para os filhos das moradoras, refeitório que serve até 5 refeições por dia e serviços médicos e sociais quando necessário.  

“Elas que limpam os quartos e banheiros que usam, fazem escala”, explica Juliana, que também garante a permanência dessas mulheres na casa por quanto tempo precisarem e quiserem. Ainda assim, um teto para dormir não resolve todos os problemas que essas mulheres enfrentam no dia a dia. Segundo relatos, havia uma moradora que apesar do abrigo e da alimentação, ainda assim precisava sair de noite, chegando depois do horário, por conta da vida na prostituição.  

Por se tratar de um lar para mulheres e crianças de até 17 anos, homens ou não, todo cuidado é tomado, desde a segurança dessas mulheres em convivência com os meninos quanto com a higiene, por exemplo, para que bactérias da rua não prejudiquem a saúde interna das moradoras e seus filhos. “Essa parte da higiene é imprescindível”, pontua Juliana.  

Quando recebidas pela primeira vez, após o encaminhamento do Centro de Estudo e Serviço Social (CEAS), e também através do SP 156, portal de acolhimento da Prefeitura, essas mulheres são locadas para os abrigos e centros que dispuserem de vagas. Chegando lá, são acolhidas com kit de cama novo e itens de higiene e direcionadas para seus quartos, tendo direito a um armário por pessoa, onde podem guardar seus pertences. No entanto, nem sempre essa é a realidade. 

“Muitas chegam aqui sem nada... Não tem roupa, não tem calçado, não tem nada. Nem documento”, relata a assistente técnica.  

Com cerca de 100 pessoas atendidas todos os dias por mais de 40 funcionários, os desafios internos também são grandes. Apesar da verba destinada pelo próprio governo, Nadia Nicacio, conta que sem as doações, a Casa Maria Maria não conseguiria sobreviver.  

Assim como Samira e as mulheres atendidas na casa administrada por Nádia e Juliana, outras milhares continuam em situação de rua e vulnerabilidade social e seguem dependendo de doações e de centros de acolhimento como este para sobreviver. Para ajudar no acolhimento delas, ligue para o 156 ou contribua com doações para a Casa Maria Maria e demais centros e ONGS que fazem a diferença. 

Infográfico com os dados a cerca das mulheres em situação de rua com base no Censo de 2021 - Reprodução própria

 

O relato de um ex-detento e o que ele espera para o futuro
por
Marcelo Ferreira Victorio
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28/11/2022 - 12h
Parentes de presos aguardam notícias em frente a Cadeia Pú… | Flickr
Foto: Marcelo Camargo/ABr

 

Por Marcelo Ferreira Victorio

“Eu gostava de estudar História, Geografia e jogar bola na escola. Estudei até o 1° ano do ensino médio e depois disso fiz supletivo, não aguentava mais ir todo dia. Na época eu morava com minha mãe, minha avó e minha irmã. Elas não sabiam de muita coisa que eu fazia, só souberam quando fui preso”, conta João (nome fictício), sobre como era sua vida antes de ser preso.

O curto relato é de João, pai de 2 filhos, filho e irmão que preferiu se identificar sem seu nome real por, em suas palavras, “ter medo de não conseguir um emprego fichado e vergonha de saberem o que fez”. “Não desejo nem para o meu pior inimigo o que eu passei na cadeia. É desumano, sabe? Não tinha lugar nem para eu fazer minhas necessidades básicas. A comida era azeda, eu que sempre fui acostumado a comer comida de vó, comida caseira, sei do que eu estou falando”, conta João rindo da situação. “Foram os piores dias da minha vida, não quero passar por isso de novo nunca mais!”, completa.

Com quase 1 milhão de presos, o Brasil ocupa a terceira posição no ranking de mais presidiários no mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos e China, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Para cada 10 juízes no país, 8 são brancos; enquanto para a população carcerária, para cada 3 detentos, 2 são pretos e/ou pardos.

“Eu fui preso por roubo. Roubei dois ou três mil reais de uma pessoa e eu usava o dinheiro para ir em bailes, comprar roupas, tênis e outras coisas que eu não lembro agora. Eu paguei três mil reais por alguns anos na cadeia. Sei que atrasar o lado dos outros é errado, mas passar o que eu passei preso não acho justo, comida zoada e de vez em quando vinha uma maçã”, relata o entrevistado.

A maior parte dos presos hoje faz parte do grupo dos crimes contra o patrimônio, com mais de 300 mil pessoas, o segundo maior grupo é o relacionado às drogas, com pouco mais de 200 mil. A pandemia e o desemprego foram fatores cruciais para o elevado número de presos neste ano vigente.

A família de João foi muito presente enquanto esteve preso, principalmente sua mãe Rosana (nome fictício) “Eu ajudava como podia né? Visitava sempre que podia, levava comida e ia matar a saudade do meu filho. A maioria dos amigos dele não quiseram nem saber de visitá-lo, só um ou outro. Mas mãe é mãe, né? A irmã dele visitava ele em alguns dias também. São nesses momentos que a gente percebe quem está com você e quem não está”.

A vida pós-cárcere não é fácil em nenhuma perspectiva. “Não consigo arrumar um emprego fichado. A empresa vê que eu saí há pouco tempo da cadeia e não me dá oportunidades, eu fiz curso e sei fazer muitas coisas. Eu não entendo esse negócio de ressocialização que eles tanto falam. Eu sei que eu errei, mas já cumpri o que eu tinha que cumprir. Hoje eu trabalho mais com bico né? Entrego panfleto, sou puxador de algumas lojas e às vezes trabalho entregando comida, só que agora eu parei porque estou sem bicicleta”, conta João. “Nem namorada eu consigo, acredita? Uma vez eu mandei meu número para a moça e ela viu todos meus dados no Google e o que eu tinha feito. Na hora eu ri pra caramba com a situação. Imagina, já pensou se eu perdi o amor da minha vida?” completa dando risada da situação vivida.

Há uma falácia entre aqueles que nunca foram até um presídio de que as coisas ocorrem de forma violenta, sem organização. Pela ótica de João, não é assim que as coisas acontecem: “Acho que é normal. Lá tem suas regras, igual aqui fora. Sei que tem gente que fez coisas indefensáveis lá dentro, mas são poucos. Eu procurava ficar mais na minha lá, mas dos que eu tive contato, a maioria estava lá por ter roubado ou traficado. Alguns até diziam que eram inocentes e eu vou te confessar que eu acredito nessas pessoas, sabia? A justiça é injusta algumas vezes”.

Hoje, João quer transformar a vivência que teve em música, busca inspiração em muitos artistas brasileiros no Rap e funk, como: Sabotage, Dexter, Poze do Rodo, MC Kevin e Mano Brown. “Até meus 14 anos meu maior sonho era ser jogador de futebol, jogo bem até hoje, já joguei várias competições de várzea. Hoje meu maior sonho é estourar como músico. Tenho algumas coisas escritas, uma hora se Deus quiser sai uma música. Me inspiro muito nos funkeiros e nos rappers que a gente tem hoje, mas sou meio tímido. Ano que eu estouro, esquece!”, disse João.

O relato é parecido com a realidade de muitas outras pessoas pelo Brasil, num País que deixa de investir em educação e marginaliza cada vez mais uma parcela da população para que se tornem indivíduos violentos. O relato hoje foi de João, mas amanhã pode ser do José, Antônio, Carlos ou Paulo, basta que o Estado te veja como um inimigo.

A insegurança alimentar no Brasil ultrapassou quatro vezes a média global em 2021, fazendo com que cerca de 15,4 milhões de brasileiros estivessem dentro das estatísticas de vulnerabilidade
por
Victoria Leal
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19/11/2022 - 12h

De acordo com um relatório das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) publicado em julho deste ano, o número de brasileiros que passaram a integrar o cenário da insegurança alimentar passou de 60 milhões, dos quais cerca de 15,4 milhões se enquadram na classificação grave.

Uma pesquisa global realizada pela empresa de pesquisa de opinião dos Estados Unidos, Gallup, mostrou que, dentre 120 países (desenvolvidos e em desenvolvimento) a crise de gestão alimentícia do Brasil passou quatro vezes a média global do ano de 2021.

O que é “Insegurança Alimentar”?

Além da fome, pobreza ou da desnutrição, a insegurança alimentar é a condição do indivíduo que não tem acesso regular e consistente a alimentos que satisfaçam suas necessidades, seja dentro da esfera física, social ou econômica. Essa condição diminui a variedade nutricional das refeições e interrompe o padrão tradicional da alimentação.

Esse cenário pode ser categorizado em três níveis:

  • Insegurança Alimentar Leve: quando se tem acesso aos alimentos, mas com a incerteza de sua constância;
  • Insegurança Alimentar Moderada: quando a variedade e qualidade dos alimentos que antes eram consumidos é comprometida, de forma que se tenha uma redução ou corte de refeições;
  • Insegurança Alimentar Grave: quando o indivíduo chega ao estágio de passar fome, não há condições para uma alimentação minimamente nutritiva e há o intervalo de mais de um dia entre as refeições.

Essa circunstância se dá pelo agravamento das condições socioeconômicas causadas pela pandemia, de maneira adicional aos problemas que já eram estruturalmente nocivos para a sociedade, como a fome, a desnutrição, a pobreza e uma série de fatores que ainda hoje impedem a parcela mais vulnerável da sociedade de firmar estabilidade.

Em entrevista, o estudante Pedro Henrique, de 19 anos, afirma que após o início da pandemia, quando a inflação começou a subir mais rápido que o reajuste salarial e a mãe ficou desempregada, um salário-mínimo já havia deixado de ser suficiente: “conforme a nossa renda foi diminuindo, nós fomos deixando de consumir a maior parte dos alimentos que consumíamos antes, a variedade foi de um prato minimamente balanceado para outro que se resumia a arroz com ovo”.

Pedro ainda reforça que os efeitos causados pela insegurança alimentar são muitos e vão desde um sentimento de injustiça até uma apatia com a vida. Vale ressaltar que as pessoas nessas condições convivem com tamanho desamparo ao ponto de distribuírem sua pouca renda em despesas urgentes e que nem sempre conseguem se equipar de insumos básicos para a vida cotidiana, como produtos de limpeza, higiene, roupas e alimentos: “Era extremamente difícil ir dormir, às vezes, com fome, sabendo que o dia seguinte seria igual e que os meus amigos estavam em uma situação melhor que a minha [...] A falta dos produtos de higiene e a falta de comida me davam o sentimento de humilhação”.

Brasil, um copo meio cheio ou vazio?

Por se tratar de um país com condições continentais, o Brasil possui um sistema de “Estoques Reguladores”, que funcionam como reserva de emergência em casos de altas demandas sazonais para que o mercado possa minimizar os efeitos da inflação e incertezas socioeconômicas. Disponível no site da Companhia nacional de abastecimento (CONAB), é possível acessar o portal de transparência da Gestão dos Estoques Públicos e através disso ver a posição, venda, doação, aquisição e remoção das reservas, como também monitorar perdas e armazenamento.

Durante sua atividade política, o ex-presidente Michel Temer propôs acabar com os estoques reguladores e deixar o mercado se autorregular, o que proporcionaria danos irreversíveis aos brasileiros economicamente desamparados, tendo em vista os reflexos da inflação. Entretanto, mesmo com o não cumprimento da proposta, o Brasil se encontrou em uma situação extremamente sensível com o início da pandemia, na qual o número de pessoas em situação de rua aumentou exponencialmente, junto a questões sociais de desamparo populacional.

A voluntária Jô Mainardi, formada em relações públicas, junto a dezenas de outras pessoas, deu sequência a um projeto de iniciativa privada, anterior à pandemia, para ajudar pessoas em situação de rua, entretanto com a COVID-19, Jô e outros colaboradores notaram o aumento do número de pessoas que precisavam de auxílio socioeconômico, então reformularam o projeto de maneira que cada um deles passasse a produzir marmitas em sua própria residência, de acordo com o volume e as condições que pudesse.

“Quando trabalhamos juntos antes da Pandemia, nós nos juntávamos uma vez por semana para cozinhar, isso rendia algo em torno de 150 marmitas. Com o isolamento e cada um cozinhando na sua casa, nós conseguimos juntar ainda mais colaboradores! Conseguimos chegar a uma produção de 4 mil marmitas semanais nesse esquema. Um trabalho de formiguinha, mas que no final ajuda muita gente!”, explica ela, posteriormente a iniciativa se transformou na ONG “O Amor Agradece”, responsável pela distribuição de alimentos, roupas, produtos de higiene e calçados, além de fornecer apoio para famílias carentes que passam pela insegurança alimentar em São Paulo.

Como a sociologia e a psicologia podem explicar o desprezo pela a população em situação de rua
por
Christian Pereira Policeno
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18/11/2022 - 12h

Não é novidade que a sociedade de modo geral, principalmente a brasileira, vive um momento extremamente difícil. Seja por conta do alto índice de desemprego, a alta inflação dos produtos mais básicos no mercado, a violência cada vez mais presente no dia a dia e muitos outros problemas que as pessoas vivem diariamente. Porém, toda vez que estas dificuldades são trazidas à tona, principalmente no período que houve no país recentemente (as eleições), existe um “grupo” de pessoas que sofre ainda mais que a população de modo geral, porém é esquecido historicamente, tanto pelo estado, quanto pela própria sociedade: a população em situação de rua.

Segundo o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, (plataforma do Programa Transdisciplinar Polos de Cidadania da Universidade Federal de Minas Gerais), em maio de 2022, 184.638 pessoas viviam em situação de rua no Brasil, este número torna-se ainda mais problemático visto que em dezembro de 2021, o número de pessoas nesta condição era de 158.191 pessoas, ou seja, só neste pequeno espaço de tempo, a quantidade de indivíduos nesta condição aumentou em 26.447 pessoas. A capital paulista lidera este ranking de maneira isolada, possuindo ao todo 42.240 pessoas em situação de rua, um número quase quatro vezes maior que a cidade do Rio de Janeiro, que ocupa a segunda colocação, com 10.624 pessoas.

Todavia, apesar dos dados comprovarem que esta dura realidade é muito presente no país, e tem se tornado cada vez maior, a população de modo geral se acostumou com isto, tratando esta situação de uma maneira extremamente comum, fazendo com que as pessoas em situação de rua tornem-se invisíveis perante a sociedade. O pós-doutor em sociologia pela UNICAMP, Michel Netto, trouxe alguns pontos sobre o assunto:

“Sobre a questão do estado, não se pode trazer como apenas uma questão homogênea, ou seja, os diferentes governos que passaram pelo país nos últimos anos, tiveram diferentes formas de lidar com este problema, uns lidando de uma maneira mais correta, outros realizando ações completamente diferentes, tratando a população de rua de maneira completamente incisiva e violenta [...] Além disto, não se pode dizer que a relação da população e do estado é uma questão de causa e efeito, mas sim, existe uma influência por parte do estado nesta situação, além de outras questões”

Michel Nicolau Netto - Foto: ReserchGate
               Michel Nicolau Netto - Foto: ReserchGate

Outrossim, Michel trouxe a visão do Neoliberalismo sobre o assunto, que ajuda a entender a situação:

“A ótica do neoliberalismo, muito citada e estudada por Michel Foucault traz um aspecto muito subjetivo do ser humano, onde o indivíduo é o único responsável por efetuar suas próprias ações, seja no campo econômico, ou em todas as outras maneiras de enxergar o mundo. Isto também reflete em um certo egoísmo do ser humano, que acredita que só as pessoas que estão passando pela situação devem tomar as ações para resolver estes problemas, e é claro, acarreta em um pensamento parecido sobre a população de rua, visto que observando principalmente por um olhar meritocrático, as pessoas podem acreditar que apenas o próprio mérito deve ser o fator de transformação positiva para este grupo”.

Observando o assunto por outra ótica, é possível observar através de dados negativos, como a psicologia pode auxiliar a população a enxergar este assunto de outra maneira. Segundo dados da Fiocruz, e de outras seis universidades, sentimentos frequentes de tristeza e depressão afetavam 40% da população adulta brasileira, e sensação frequente de ansiedade e nervosismo foi relatada por mais de 50% destas pessoas no ano de 2021, estes problemas psicológicos que em suma maioria não são tratados no país, influenciam o pensamento e as atitudes da população com relação as pessoas em situação de rua, conforme explica o estudante de psicologia da PUC-SP, Davi Ruiz:

“Uma sociedade doente mentalmente que não busca olhar pra suas próprias questões mal resolvidas, dificilmente será capaz de olhar para a dor do outro, já que a nossa sociedade contemporânea puxa o indivíduo para olhar apenas para si mesmo”

Davi Ruiz - Foto: Instagram
                       Davi Ruiz - Foto: LinkedIn

Davi também trouxe a questão do neoliberalismo para o assunto:

“O sistema neoliberal capitalista contribui pra um esgotamento mental e para esse egoísmo no qual vivemos atualmente. Neste sistema, que acarreta em uma série de transtornos mentais, tornam o indivíduo voltado apenas para si próprio, tanto por trazer uma grande realização pessoal ao atingir os seus objetivos, como por uma grande frustração por não atingir este mesmo êxito. E a terapia/psicologia podem ser um refúgio extremamente positivo para que o indivíduo possa externalizar estas angústias, tendo um olhar menos egocêntrico sobre a sociedade, e as pessoas em situação de rua, e mais coletivo”.

Desta forma, observando por estes dois aspectos, é possível ao menos ter a ciência de que existem explicações sobre o por que a sociedade lida com esta circunstância de maneira tão egoísta, trazendo a responsabilidade do auxílio as pessoas em situação de rua apenas para ONGS, instituições religiosas, e para o governo. Porém, isto não isenta a população de se omitir tanto em meio a este assunto, visto que mesmo em meio a todas estas condições que colaboram para que as pessoas venham a ser cada vez mais individualistas, ainda é deplorável que a sociedade venha se isentar tanto dessa responsabilidade, e mais do que isso, venha aceitar que a população de rua se mantenha vivendo em situações completamente desumanas.

No dia 2 de outubro de 1992, uma rebelião entre os presos culminou na intervenção policial mais sangrenta que o sistema carcerário no Brasil já assistiu.
por
Laura Celis Brandão
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01/10/2022 - 12h

A Casa de Detenção de São Paulo, conhecida popularmente como Carandiru – por estar localizada nesse bairro da Zona Norte de SP – foi fundada na década de 1920, e por aproximadamente duas décadas foi considerada um sistema prisional modelo, por atender de forma correta as exigências do estado e do sistema carcerário brasileiro. 

A partir de 1940 esse posto foi retirado, marcado principalmente pela superlotação que se instalou no presídio, causando problemas comportamentais nos presos e de segurança no local. A superlotação do presídio foi uma consequência do novo artigo que foi criado para o combate às drogas através da Lei nº 2.848/1940, artigo 281. Através desta lei, foi iniciado um combate ostensivo ao tráfico de entorpecentes, levando a prisão de muitas pessoas de uma vez só. 

O excesso de pessoas na penitenciária fez com que os direitos humanos fossem corrompidos em diversos aspectos, celas abarrotadas de gente, disseminação de doenças (como a AIDS, a tuberculose, leptospirose), e das questões higiênicas no geral. 

“O sistema era caótico, insalubre, tinham muitos ratos que transmitiam leptospirose às pessoas, muita gente com tuberculose, a higiene era precária, os próprios presos que limpavam o presídio, interferiam em conflitos, distribuíam alimentação, e no final, o presídio estava mais na mão dos detentos do que da própria gestão”, disse Sidney Sales, um ex detento que sobreviveu ao massacre. E acrescentou: “tinham celas com 25, 30 pessoas que viviam tumultuadas, uma em cima da outra, mas os detentos tentavam fazer daquele ambiente o melhor possível para se viver, apesar de toda a precariedade instalada”. 

O MASSACRE

Dia 2 de outubro de 1992 foi marcado pelo maior assassinato já existente no sistema carcerário brasileiro. O pavilhão 9 da penitenciária foi invadido por 341 policiais da Tropa de Choque de São Paulo, culminando na morte de 111 pessoas, apesar dos próprios detentos dizerem que foram mais de 250. A invasão da polícia, primeiramente, era para acalmar uma rebelião que havia se instalado após um jogo de futebol que havia acontecido naquele dia, porém, os policiais agiram com violência extrema, ignorando a possibilidade de negociação, e sabendo que os presos estavam desarmados. 

“Eles podiam ter cortado a energia, a alimentação, e podiam ter nos vencido pelo cansaço, mas não, aquilo foi uma carnificina. Eu só tinha visto esse tipo de coisa em filme, no Camboja, no filme de Auschwitz. Nós éramos presos do estado, e pela própria incompetência dele, entraram lá e assassinaram aquelas pessoas.” pontuou Sidney, e acrescentou, “naquele momento, quando eu estava no quinto andar, um rapaz disse: “ó, o pelotão de choque tá invadindo, os caras estão matando”, e eu respondi para ele que não, deviam estar dando tiro de borracha. Quando fui à janela e olhei para baixo, vi eles assassinando mesmo as pessoas”. 

Após os momentos iniciais de terror, os detentos foram obrigados a descer até o pátio da penitenciária e ficarem todos nus, sentados no chão de cabeça baixa. Dizem que alguns detentos foram assassinados nesse momento. “Os policiais mandaram a gente descer e ficar no pátio, e após umas duas horas, ordenaram que ajudassem a carregar os corpos, de dois em dois, nisso, começaram a chegar as ambulâncias, viaturas e carros do IML, para levar aquelas pessoas embora.” afirmou Sidney, e ainda conta: “quando subi ao quinto andar, vi dois policiais que já apontavam uma arma para mim, eu inventei uma história dizendo que pediram para me trancar de volta na cela. Nisso, um dos policiais virou para mim e disse: “vai acontecer um milagre na sua vida. Tá vendo esse molho de chaves? Vou escolher uma e bater no cadeado. Se abrir, você entra, caso contrário nós vamos te executar agora.” Nesse momento eu só ouvi um “clec”, naquele dia eu tive certeza de que não seria assassinado.”

Corredor submerso de sangue após o massacre, na penitenciária do Carandiru. Fonte: Niels Andreas.

Osvaldo Negrini – o perito que investigou o acontecido – pontuou que não houve confronto entre os presos e os policiais, principalmente pela localização dos tiros nos corpos dos detentos, e pelas perfurações de bala que existiam nas paredes das celas. “O próprio Osvaldo Negrini disse que houve uma carnificina, um assassinato e uma crueldade enorme com aquelas pessoas. Ele percebeu que os policiais tinham atirado de fora da cela para dentro, pois tinham perfurações nas paredes”, acrescenta Sidney. 

JULGAMENTO 

Em 8 de março de 1993, 120 policiais foram acusados pelo assassinato de – oficialmente – 111 pessoas. Em 1998, 85 policiais tornaram-se réus, e em 2013, 23 foram condenados a 156 anos de prisão. Porém, em 2016, essas condenações foram anuladas, alegando “impossibilidade de individualizar a conduta dos PMs”. 

Apesar dessas condenações, e da certeza de que o acontecimento foi uma chacina, em agosto desse ano foi aprovado o projeto de lei 2821/21, concedendo anistia aos policiais anteriormente processados.

CONSEQUÊNCIAS 

Como consequências principais do massacre, pode-se listar o sequestro da filha de José Ismael Pedrosa – ex diretor da penitenciária do Carandiru – que aconteceu em abril de 2001, e a fundação do Primeiro Comando da Capital (PCC) em 1993, criado inicialmente para “combater a opressão no sistema carcerário e vingar a morte dos 111 detentos, que acontecera um ano antes”.