A ideia da criação do World Indigenous Games (WIN), ou Jogos Mundiais dos Povos Indígenas (JMI), em português, surgiu primeiramente em 1977, pelo Willie Littlechild, um respeitado advogado canadense e líder da tribo indígena Cree. Littlechild pregava que jogos indígenas seriam benéficos para as tribos de todo o mundo, promovendo assim a integração entre os povos através dos esportes, mesmos princípios observados nas Olimpíadas. O fotógrafo e professor Lamarr Oksasikewiyin, indígena originário de Sweetgrass First Nation, reserva no Canadá, divide o mesmo pensamento que Littlechild: “esses jogos mostram para os colonizadores que nós ainda estamos aqui, mostram a cultura que eles estavam tentando se livrar, a nossa cultura”.
Os povos indígenas frequentemente sofrem repressão pela sociedade, não apenas nos dias de hoje, mas desde os primórdios do contato entre os europeus ocidentais com as outras civilizações. Suas culturas nunca foram respeitadas em todos os parâmetros, inclusive os esportivos. Buscando o devido reconhecimento, os povos indígenas reuniram-se em prol da criação dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, o qual teve sua existência em 2015, com a primeira edição ocorrendo em solo nacional, na cidade de Palmas, capital de Tocantins.
O fotógrafo contou que, por sorte, conseguiu uma vaga para participar de última hora: “de um modo foi um sonho que se tornou realidade, e quando isso aconteceu foi irreal”. Porém, não deixou de criticar a organização da 2ª edição do evento, “vários países não conseguiram ir por ser longe de tudo”. Já sobre o ocorrido no Brasil, Lamarr elogiou as cerimônias de encerramento: “eles ficaram mostrando os jogos de diferentes tribos para todos, e isso foi emocionante e incrível”, além de ressaltar as interações entre as tribos.
O canadense realçou a importância de mostrar as peculiaridades de cada tribo e de seus jogos: “se eu pudesse dar uma sugestão, seria dar mais oportunidades para todos se concentrarem em compartilhar seus próprios jogos”. Lamarr contou então, sobre a experiência que teve assistindo um jogo chamado “Fireball”, onde os jogadores usam suas próprias mãos para passar uma bola de fogo: “é um jogo de cura, quando jogam eles convidam pessoas que eles sabem que estão com problemas para elas pensarem em tudo de mal e passarem para a bola durante o jogo”.
Um dos pontos altos do evento, segundo Oksasikewiyin, foram os jogos de futebol das tribos indígenas. Em uma dessas partidas (Tocantins vs Canadá) ele teve a oportunidade de jogar lado a lado com o ex-jogador Cafu, um dos melhores laterais direitos da história do futebol: “eu também tive a oportunidade de jogar com o Cafu, e nós tivemos que driblar a bola com ele”.
“Os colonizadores não gostam de ser incomodados” diz Lamarr sobre os protestos indígenas de 2015 contra projeto que alterava a demarcação de terras, além de pedir o impeachment da ex-presidente. O fotógrafo diz que: “se realmente tivesse uma maior mídia sobre os jogos, eu deixaria eles falarem e protestarem, mas não por muito tempo. Exatamente para não tirar o principal foco dos jogos, que é mostrar para o mundo a nossa cultura”.
“Eu não sei como o mundo nos vê, mas o Canadá é na verdade um país muito racista com os povos indígenas, o Brasil e os Estados Unidos também” adiciona Oksasikewiyin. Além de terem sido massacrados, escravizados e exterminados, os mesmos não recebem quase nenhuma visibilidade, principalmente nos Jogos Mundiais, cujo principal objetivo é dar esperança de um futuro melhor.
A lei 11.645 promulgada em 2008 exige que a cultura e história indígena sejam ensinadas nas escolas. Apesar de tal legislação, os ensinamentos são passados por visões mais eurocêntricas. É o que afirma o professor da UFRR, Devair Fiorotti em entrevista ao blog Escrevendo o futuro. “Para trabalhar com literatura indígena na escola é preciso reconhecer a diferença: entender que se trata de uma outra cultura e não tentar enquadrá-la nos nossos conceitos”.
Um dos tópicos enquadrados na cultura indígena é sua literatura, que engloba cantos, poemas, versos e preces. A professora da PUC-PR e doutorada Janice Thiél explica para o portal “Escrevendo o futuro” que: “literatura é muito associada à palavra escrita, mas desde Homero há uma presença da oralidade nos textos. Nas culturas indígenas também: desde sempre elas produzem artes verbais, literatura oral.”
Como Thíel declara, Homero, escritor de a Ilíada e a Odisseia, narra a história em que os personagens são heróis gregos que participaram da Guerra de Tróia. Na primeira fase do Romantismo Brasileiro, José de Alencar trazia na literatura a figura indígena como o herói nacional, assim representados pelos personagens Peri, Iracema e Ubirajara nas obras O Guarani, Iracema e Ubirajara respectivamente.
Tradicionalmente, a figura do indígena sempre teve sua história narrada por terceiros, como no romantismo e no folclore. Um grande exemplo é o seriado da Netflix “Cidade Invisível'' (2021), a trama é baseada nas histórias folclóricas do Saci, Cuca, Curupira, Boto-Cor-de-rosa etc. A série causou controvérsias pois o folclore é indígena e o elenco em sua maioria era composto por personagens brancos e com pouca representatividade.
Apesar das críticas, o seriado é significativo quanto à representatividade a nível mundial que a plataforma de streaming elevou. A própria Janice ressalta a importância da ligação dos mitos com os ancestrais e com o sagrado para os indígenas, muito diferente da forma como lemos os mitos gregos hoje, por exemplo.
É importante que a sociedade possa refletir sobre esse significado: “para o indígena, essas histórias são verdadeiras, não são simplesmente ficção. Trata-se de um gênero diferenciado de literatura, que pode fazer parte de rituais, inclusive, mas também é colocado nos livros para nós conhecermos.”
Segundo previsão do Itaú Cultural, organização voltada para pesquisa e produção de conteúdo, há cerca de 40 autores autodenominados indígenas que produzem material literário frequente. Thíel explica, em entrevista ao site MultiRio, que a produção de textos por indígenas é algo recente, pois floresceu na década de 1990 e entrou neste século como movimento literário reconhecido. "A produção textual indígena ajuda a recontar a história do Brasil a partir de uma perspectiva diferente da narrativa oficial."
Shirlei Arara, de 33 anos, é uma de muitas mulheres indígenas da aldeia Karo-Arara. Ativista, estudante e foragida pelos que perseguem os protetores da floresta, ela faz parte da coordenadoria da associação AGIR (Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia), uma associação das mulheres que representam o estado de Rondônia. E desde que a aldeia existe, há um histórico de luta muito presente. Em entrevista concedida via Google Meet, Shirlei fala: “Nós já nascemos lutando”. De acordo com ela, o meio ambiente e os povos indígenas são como um só. “A mãe que cuida, a mãe que gera. Nós, povos indígenas, temos a floresta como nossa mãe protetora.”
Os índios Arara se localizam no estado de Rondônia, região norte do Brasil, e também são conhecidos como Arara Tupi ou simplesmente Karo. A aldeia possui vários projetos e Shirlei é responsável por coordená-los: “Tudo relacionado a projetos, eu coordeno e escrevo”.
Com um histórico de lutas muito grande, as mulheres da tribo estavam sempre na linha de frente. Além de serem artesãs, vigilantes de seus territórios, cozinheiras, curandeiras e parteiras, elas também são as primeiras a irem atrás de políticas públicas, de garantir seus direitos e de proteger a floresta. “Chamo as mulheres indígenas de mulheres maravilha, nós vamos para o mato, vigiar, fiscalizar, denunciar, plantar, colher, olhar, ouvir e ler a natureza”. Shirlei termina a frase com um quê de ternura: “Eu amo ser mulher indígena”.
A ativista também revela que há sim um machismo dentro da comunidade, mas que as próprias mulheres de lá vem lutando para ganharem sua voz. “O fato de nós mulheres termos essa autonomia e voz ativa é uma conquista”. Ela reforça também a criação da associação das mulheres da aldeia, que foi uma conquista para a aldeia por terem políticas públicas feitas por elas mesmas.
Ao longo de nossa conversa, a indígena conta que seu povo sofre sim de ameaças constantes, principalmente com questões envolvendo a retirada ilegal de madeira, grileiros e garimpo. Por isso, Shirlei diz: “Nossos filhos são crianças que já lutam”.
Também conversamos sobre a dinâmica de gestação, e Shirlei nos conta que os cuidados com a mulher são quase os mesmos que os cuidados com o pai da futura criança, pois os dois estão ligados, "A mulher gestante é servida pelas outras mulheres da sua comunidade, e o marido também”. Quando um casal está esperando um bebê, o homem não caça pois, de acordo com ela, outros seres-vivos podem estar passando pelo mesmo estado de gestação e cuidado com seus parceiros e parceiras. “Ferindo um animal, fere também o corpo da sua mulher, e de seu bebê, porque ninguém sabe se o animal que ele mata é pai ou mãe, e pode estar na mesma situação que ele ou sua mulher.” Essa informação apenas ressalta a questão humana com a natureza feminina, uma relação tão presente e viva na cultura e também na ética dos povos indígenas.
Apesar de enaltecer as mulheres, Arara também reconhece o quão importante os homens são para a aldeia: “Os homens são fundamentais. Nós mulheres temos nossa voz, buscamos nossa autonomia, mas temos muito respeito por eles, pela proteção do nosso território, pelo sangue que deram por isso.”
Vanuza Kaimbé, filha das terras do sertão baiano é uma das milhares de indígenas espalhadas por Pindorama, é guiada por forças ancestrais que lhe concedem coragem para curar a Terra e reflorestar mentes. Atravessou o sertão até a capital de São Paulo para estudar enfermagem e também graduar-se em Serviço Social. Liderança indígena que auxiliou na criação da aldeia Filhos Dessa Terra, participou das duas marchas das mulheres indígenas em Brasília e ganhou destaque na mídia por ser a primeira mulher indígena a tomar a vacina da Covid-19 no Brasil. Enfrenta discriminação, resiste ao descaso do sistema e luta por seu povo e por um mundo igualitário.

É uma das milhares de mulheres originarias que germinam na Amazônia, Caatinga, Cerrado, Pantanal, Mata Atlântica, Pampa, atravessam matas, rios e estradas para retomar tudo aquilo que lhe foi roubado, invadido. Mulheres originárias que não se contentam com a marginalização causada por um sistema capitalista. Guardiãs das florestas e dos rios, são elas, mulheres sementes que doam suas vidas para curar e regenerar a Terra para que ela possa continuar florescendo a vida.
“Reflorestando mentes para a cura da terra” é o lema da mobilização das mulheres originarias do Brasil, que traz como símbolo uma mulher indígena gestante, que também pode ser lida como uma árvore, cheia de raízes e folhas. A luta pela demarcação das terras indígenas vai muito além da delimitação de um território, é sobre preservar a ancestralidade, a identidade e a biodiversidade. “Nós (povos indígenas) não cuidamos só das terras cuidamos da vida de todo o planeta porque não há vida sem floresta, não há vida sem água, os rios estão poluídos, estão secando. nós somos os guardiões da vida.” Salienta Vanuza Kaimbé.
A ativista nos convida a sermos todos guardiões e guardiãs das florestas, das poucas árvores que sobreviveram nas cidades, dos animais; sermos defensores da diversidade de existências e a sabermos escutar e a sentir Abya Yala (Terra Fértil), pois todos temos esse potencial.
O Caminho do Reflorestar:
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A indígena Txai Suruí foi a única brasileira a discursar na COP-26. Em sua fala, no dia 1 de novembro, ela expõe que “os indígenas estão atuando na linha de frente da emergência climática” e denuncia que um colega seu foi assassinado enquanto reivindicava seu direito de posse por uma terra. Discursos de povos originários em organizações internacionais são cada vez mais comuns, visto que o governo brasileiro, principalmente a partir da atual gestão, pouco oferece políticas públicas que auxiliem os direitos territoriais dos povos indígenas, sendo assim, a visibilidade que conferências como essa trazem, são uma forma de denúncia no âmbito internacional.
Em agosto deste ano, um grupo de manifestantes indígenas ocuparam a Esplanada dos Ministérios protestando contra medidas que dificultam a demarcação de terras e beneficiam garimpeiros, o chamado “marco temporal”. Os líderes do movimento comentaram que a mobilização é “pela garantia dos direitos dos povos originários" e também denunciam “o agravamento da violência contra os indígenas, dentro e fora dos territórios tradicionais”. Anilton Braz da Silva Kokama, liderança da aldeia Porto Praia, em entrevista para o UOL, comentou durante o ato: “que o Supremo Tribunal Federal possa olhar para a causa indígena com humildade. A gente acredita que a nossa situação será resolvida, a situação dos ribeirinhos e daquelas pessoas que vivem e lutam no dia-a-dia para sobreviver. Nós somos contra o ‘marco temporal’ e o PL 490, que tira os nossos direitos. Mas iremos conseguir e vamos até o final”.