A Salon Line, marca de enorme presença no setor de cosméticos capilares e preferida das consumidoras de cabelo cacheado e crespo, se viu no centro de uma polêmica que escancarou a distância entre o discurso e a prática. A protagonista da história é Maju Santos, influenciadora de 19 anos que cria conteúdo sobre cuidados com cabelo natural — de forma independente, sem apoio ou patrocínio da marca.
Maju publicou um vídeo em seu perfil mostrando um penteado feito com dois produtos da Salon Line. A surpresa veio depois: em mensagem privada, a marca respondeu com um comentário no mínimo duvidoso: “Amiga, você tá igual cachorro na frente da padaria olhando o frango girar e só sentindo o cheiro.”
O print foi parar no TikTok da criadora, que desabafou: “Tentei rir na hora e respondi brincando, mas depois parei pra pensar: a gente se esforça, cria conteúdo de graça, usa os produtos, e ainda tem que lidar com esse tipo de comentário?”. A fala fazia referência à famosa “caixinha” de produtos - conhecida como Migs - que a Salon Line envia para influenciadores parceiros. Maju já havia sido aceita no projeto, mas nunca recebeu nada porque seu perfil não é monetizado:
“Eu sou consumidora. Compro os produtos. Crio conteúdo porque gosto. A marca não paga, não patrocina, não envia nada. E ainda assim me tratam assim?”, completou.
Com a repercussão negativa, a Salon Line publicou um vídeo pedindo desculpas. “Erramos. Desculpa, Maju”, disse uma representante da marca, alegando que a equipe costuma responder mensagens com atenção, mas falhou nesse caso. A retratação não impediu que muita gente questionasse como uma marca que se baseia desde seu lançamento em diversidade e representatividade ainda comete esse tipo de deslize
O caso chamou a atenção não só pela fala infeliz, mas pelo retrato que pinta do mercado de influência: muitos criadores, especialmente mulheres negras de periferia, sustentam a relevância de marcas como a Salon Line nas redes — sem nenhum retorno financeiro. Essa prática, que ficou conhecida como “mimos” ou “recebidos”, é um dos modelos de marketing mais populares do mercado atual de beleza. A estratégia consiste em usar a plataforma do influencer como catálogo para a marca, considerando os produtos como forma de pagamento pela divulgação.
O problema é que essa posição não é benéfica para criadores pequenos, pois exige um período longo de exposição para gerar lucro. O mercado de marketing de influência se beneficia nesse acordo, usando da mão de obra e criatividade de outras pessoas a “preço de banana”. Vale lembrar: a Salon Line cresceu muito nos últimos anos. É líder em pós-xampu em perfumarias e terceira maior em supermercados, segundo a Nielsen. Seu portfólio tem mais de 400 produtos — entre eles, a famosa linha #todecacho.
Em 2022, somava 2,6 milhões de seguidores no TikTok e mais de 500 mil inscritos no YouTube. Tudo isso graças, em parte, a estratégias digitais que deram voz e visibilidade, justamente, para quem, agora, está cobrando respeito.
A situação escancarou o abismo que ainda existe entre o marketing de empatia e a prática real das marcas. Uma cobrança legítima por coerência, reconhecimento e respeito a quem sempre esteve na linha de frente.
Esse não foi o primeiro exemplo de má conduta entre marca e cliente, ano passado, 2024, a marca Mascavo, propriedade da também influenciadora Mari Saad, tomou a frente das notícias. A marca em questão, criou toda uma narrativa de inclusividade e aceitação pré-lançamento para depois ter em sua cartela apenas três opções de tons para peles negras e retintas.
Esse ano, a influenciadora Gabi Oliveira, conhecida como Gabi de Pretas, relatou a conduta desigual da Mascavo. Na nova onda de lançamentos da marca, de Pretas recebeu um conjunto de PR com apenas dois itens da coleção, descredibilizando sua posição de respeito nas redes e seu papel como influenciadora.
é cada coisa que parece até piada... pic.twitter.com/jbWUWokUyG
— Gabi Oliveira (@depretas) April 16, 2025
Após dois meses desde a proibição do uso de celulares nas escolas do país, alunos, professores e especialistas têm relatado as mudanças observadas com a medida. Aprovado pelo Congresso Nacional em dezembro do ano passado e sancionado pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) em janeiro deste ano, o PL 4.932/2024 dispõe sobre a restrição dos aparelhos nas escolas públicas e privadas. No entanto, para atividades pedagógicas que exigem o uso do dispositivo, os alunos são permitidos a usá-lo sob orientação dos professores.
Com o uso dos dispositivos proibido inclusive nos intervalos, o objetivo da lei é proteger a saúde mental, física e psíquica das crianças e adolescentes, além de mitigar os impactos do uso excessivo do celular. Apesar de aprovada recentemente no território nacional, a medida já vigora em outros países. Desde 2018, a França, por exemplo, restringe o uso de smartphones nas escolas. Outras nações como Espanha, Holanda, Dinamarca e Finlândia, também possuem alguma restrição quanto ao uso do aparelho no ambiente escolar.
Segundo o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), de 2023, existe uma relação negativa entre o uso excessivo das tecnologias digitais e o desempenho acadêmico. O documento, coordenado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e aplicado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) no Brasil, é inclusive citado no Relatório Global de Monitoramento da Educação da Unesco. Esse último estudo, do mesmo ano, afirma que “os aspectos negativos e prejudiciais do uso da tecnologia digital na educação e na sociedade incluem o risco de distração e a falta de interação humana”.
De maneira não surpreendente, tanto estudantes quanto quem trabalha na educação admite que o uso excessivo do celular atrapalhava o foco durante as aulas e às vezes até a interação entre os colegas. Barbara Adam, aluna do 3º ano do Ensino Médio no Colégio Rainha da Paz, localizado no bairro do Alto de Pinheiros, em São Paulo, comenta, em entrevista à AGEMT, que o telefone gerava distrações de maneira geral entre os colegas, já que “qualquer notificação que chegasse eles olhavam para ver o que era”. Mesmo fora do ambiente escolar, não é novidade que o hábito de olhar o dispositivo assim que recebe uma mensagem é sintomático socialmente.
Kauê Pereira, assistente pedagógico no Ensino Médio do colégio, complementa que o uso do aparelho em sala estava realmente descontrolado. “Era possível perceber o vício dos alunos no dispositivo, e as interações entre eles se resumiam a assistir conteúdos ou jogar no celular”. Djeferson Sousa, professor assistente na Escola Móbile, em Moema, também diz que entre as trocas de aula e intervalo “era a coisa mais comum ver a maioria no celular”.
A psicóloga clínica, mestra em educação e assessora pedagógica da Rede Metodista, em São Paulo, Vanessa Fantozzi, tampouco teve percepções diferentes. Por mais que não houvesse nenhuma proibição explícita, a orientação nas escolas do país sempre foi de não mexer no celular durante as aulas – mesmo assim, era comum ver estudantes usando o dispositivo durante as explicações. “A metodologia de ensino tinha que ser muito envolvente para o aluno realmente prestar atenção. Muitas vezes eu presenciei cenas do professor falando muito bem, passando a matéria de uma maneira bem didática, bacana, e o aluno atrás, na cara dura, mexendo no celular”. No dia a dia, Vanessa convive com alunos desde a Educação Infantil, até o Ensino Médio.
Embora passado um tempo desde a proibição, o Conselho Nacional de Educação (CNE) publicou recentemente uma resolução que orienta o uso dos dispositivos digitais nos espaços escolares. De acordo com o documento, cada instituição de ensino decide a maneira como os celulares serão guardados durante o dia letivo. O texto também informa que as punições para quem desrespeitar a norma devem ser implementadas de maneira democrática e considerando os direitos humanos.
Mesmo antes da lei federal, algumas escolas do país já haviam introduzido a restrição do uso de celulares no ambiente. É o caso do colégio de Barbara, que explica que antes da norma, no último trimestre do ano passado, a instituição deixava caixas de madeira dentro das salas para cada aluno deixar o aparelho assim que chegasse no local. “Mas muitas pessoas não respeitavam a regra, já que era pouco fiscalizado”, esclarece a aluna. Depois da regulamentação, no entanto, a orientação mudou para que cada estudante guardasse o telefone dentro da própria mochila.

Atualmente, as escolas onde estudam Matheus Amorim e Beatriz Ferreira, no Colégio Santa Lúcia Filippini e Colégio Arbos, respectivamente, seguem a mesma estratégia. A não ser que seja sob orientação do professor, o celular não deve ser tirado da mala em nenhum momento. Já na Escola Móbile, Djeferson explica que o dispositivo deve ser mantido necessariamente nos armários dos estudantes, disponibilizados para todos. Caso seja visto portando o dispositivo em sala, deve se retirar do ambiente. “Em uma ocasião, um aluno deixou o celular cair do bolso na sala de aula e teve que ser excluído da classe; ele não voltou até o término da aula”, cita o auxiliar. Nesse tipo de situação no colégio, o discente é orientado a ficar na coordenação até o fim da disciplina.
Segundo depoimentos dos estudantes e assistentes, no começo foi difícil a adaptação ao novo contexto, e mesmo dois meses após a restrição, não é raro ver alunos que tentam usar o dispositivo escondido. Já nos outros colégios nesses casos, se visto, o objeto é deixado na coordenação pedagógica pelos professores ou inspetores. Beatriz, que está no 3º ano do Médio e estuda em São Caetano do Sul, complementa que os jovens só podem pegar o dispositivo ao fim do dia e acompanhados dos pais.
“Todos os dias flagramos alunos indo ao banheiro para usar o celular ou tentando utilizá-lo escondido em sala. No entanto, em todos os casos, há uma intervenção. Isso apenas evidencia o quão viciante o uso do celular era para alguns estudantes”, diz Kauê. O assistente também cita que nem na cantina da escola os discentes podem usar o aparelho para pagar com Pix, ou cartão digital. “Eles precisam adicionar créditos no aplicativo da cantina para conseguir consumir, ou levar o próprio cartão físico.”
Até entre alguns professores o uso do dispositivo diminuiu, a fim de não influenciar os discentes a usarem, como no Colégio Rainha da Paz. O auxiliar pedagógico explica que formalmente, não existe nenhuma restrição, mas que os docentes foram aconselhados em reunião a ‘servir de exemplo’ para os jovens. Apesar do uso entre os educadores também ter diminuído, a orientação é bem mais flexível do que para os alunos.
Algumas instituições até disponibilizaram espaços para um “celulódromo”: local onde é permitido o uso do celular exclusivamente para fazer ligações e falar com os pais, antes e depois das aulas, se necessário. É o caso da Rede Metodista, que Vanessa acompanha, e da Escola Móbile. Diante da nova lei imposta, ao longo do tempo os alunos tiveram que se adaptar gradualmente e passaram a usar e buscar alternativas de entretenimento na escola, sobretudo nos intervalos. Além disso, as próprias instituições são orientadas pelo MEC para que ofereçam lazeres aos discentes.
Por todo o território nacional, existem relatos de diversas atividades para entreter os jovens: ping pong, pebolim, vôlei, basquete, futebol, queimada. “Uno”, truco, pular corda, leituras e até forró. Frequentemente, os alunos são consultados pela comunidade escolar para sugerir alternativas que lhe interessem. Apesar das dificuldades iniciais, alguns jovens avaliam que, de fato, se sentem mais concentrados sem a presença do dispositivo durante as aulas. Beatriz admite que a adaptação no começo foi complicada, já que quando precisava falar com alguém, era só pegar o celular naquele momento. “Com o passar dos meses eu fui me adaptando bem à nova lei e entendendo que o celular realmente afeta nossa concentração e aprendizado durante as aulas.” Para Barbara, o celular não fez falta e até achou boa a restrição por se sentir mais focada nas disciplinas.
Curiosamente, com a socialização pelo celular interrompida, alguns hábitos e transgressões que já não se viam constantemente em determinados anos, retornaram. “Bolinhas de papel voltaram a voar pela sala, colas estão sendo passadas por meio de papéis e borrachas, e piadinhas e rabiscos nas mesas tornaram-se mais frequentes”, menciona Kauê. Outra febre comum nos últimos tempos entre adolescentes, é o uso das câmeras digitais na sala de aula, sobretudo as tipo cybershot, máquinas compactas que tiveram seu auge nos anos 2000. Os dispositivos têm sido usados não só para registro entre os alunos, mas até para tirar foto da lousa – o que antes era feito com o celular.

Quanto ao uso dentro de casa desde a medida, os estudantes se dividem para dizer se passaram a usar menos o celular, ou não. Barbara acha que seu uso fora da escola não aumentou nem diminuiu; para Matheus, a mesma coisa. Beatriz confessa que seu tempo de uso do dispositivo aumentou em casa, principalmente quando passa o dia inteiro no colégio. Vanessa concorda que acha muito difícil que os alunos tenham diminuído o uso do telefone em casa, e sugere que os pais talvez devessem conversar com os filhos sobre o tempo excessivo de tela.
“Infelizmente, eu gostaria de falar que não, mas eu acho que eles continuam usando, sim, dentro de casa. Acho que os pais também querem tentar controlar isso, mas os filhos ficam muito tempo sem, aí eles [pais] acham que podem ficar mais tempo dentro de casa. Então também é uma restrição que os pais precisam colocar; talvez tempo de tela, porque isso não mudou dentro de casa, eles continuam usando. Requer os familiares a essa conversa".
Ainda nos últimos meses de 2024, uma trend tomou conta das redes sociais como o TikTok e o Instagram. As tradwifes (abreviação que vem do termo em inglês Traditional Wifes, ou esposas tradicionais, no português) ganhou espaço entre as recomendações de algoritmos ressaltando o estilo de vida conservador exibido por essas influenciadoras. Até hoje hashtags e vídeos têm milhares de curtidas: suas rotinas romantizadas preparando a comida e cuidando dos filhos, claro, que com as roupas e maquiagem sempre intactas geram numerosos comentários de mulheres desabafando como essa seria a vida dos sonhos. O que vem preocupando estudiosos da sociedade é a permanência insistente desse movimento como objeto de desejo e a relação que ele estabelece o como momento político vivido. O que significa tantas mulheres querendo abdicar de suas vidas profissionais e externas ao lar?
Primeiramente, é necessário entender que o papel da mulher e as relações de gênero sempre foram uma questão para todas as sociedades. Durante a história, principalmente ocidental e em países colonizados, as mulheres se viram na posição de adaptar-se e lutar por espaços, mas os processos históricos não são lineares, e não esbanjam progresso durante o percurso. Em entrevista à AGEMT, Maria Eduarda Araújo Guimarães, doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), conta sobre os passos analisados na percepção social do feminino.
"Essa argumentação da naturalização do papel de gênero é muito fortalecida. Essa ideia de que o papel da mulher é estar ao lado do homem contribuindo, mesmo que não seja por vias econômicas e políticas, sempre esteve presente na luta das mulheres, nunca foram superadas”, afirma Maria Eduarda.

Muitas das mulheres que desejam esse estilo de vida carregam um cansaço, mesmo que inconsciente. Ainda hoje, a maioria das figuras femininas ainda estão responsabilizadas pela dupla jornada: o trabalho externo, que requer o deslocamento, e os trabalhos domésticos. São muitas horas e preocupações a mais do que boa parte dos homens. Maria Eduarda comenta sobre essa relação: “Você pode até ter uma relação equalitária entre um homem e uma mulher, os dois chegam do trabalho e nenhum vai lavar a louça, mas a mulher vai ficar com peso na consciência... no fundinho de seu ser vai ter um fundo de culpa”.
A entrevistada aponta, especialmente para o cenário brasileiro, o fator do desprezo do trabalho manual, devido as raízes coloniais: “o fato de que nós fomos o país que mais teve escravizados e que mais demorou para libertá-los, traz uma visão muito negativa para o trabalho doméstico. O Brasil não se fundou numa ética do trabalho. A gente desvaloriza o trabalho manual, a pessoa que o faz é desqualificada, mesmo que seja para nós”, ressalta.
Da inferiorização, involuntária e imperceptível, nasce essa angústia, esse fardo. E então, uma boia furada no meio do oceano parece ser uma solução. É necessário compreender que, quando falamos de configurações tradicionais de família, há uma hierarquia que não envolve somente as pessoas que a compõem. Boa parte das influenciadoras que postam esse tipo de conteúdo ficam apenas com o papel de supervisora: ela cuidará dos filhos enquanto uma outra mulher (paga pelo homem provedor financeiro) que fará o trabalho pesado. Em solo brasileiro, questão fica ainda mais profunda: a quantidade de homens que ganhem o suficiente para prover uma família nesses parâmetros é ainda mais difícil. "É um fenômeno branco, pelo menos no Brasil”, diz a entrevistada.
É quase inevitável não relacionar a “volta” triunfal dos moldes tradicionais de família com as ondas conservadoras e de extrema direita que vemos acompanhando. Apesar dos progressos coletados desde as revoluções culturais dos anos 1960 não foram absolutas. Uma possível atribuição para o sucesso das tradwifes é a necessidade de encaixar-se num nicho, num estilo de vida, demanda gerada pela sociedade extremamente on-line. Num mundo onde se pode ser tantas coisas, surge a insegurança na autonomia, muitas vezes calcada nas realidades femininas no mercado de trabalho: “Toda essa dificuldade que as mulheres enfrentam, fazer uma faculdade, mestrado, doutorado e mesmo assim isso não vai significar uma autonomia financeira. É um caminho mais fácil, ilusório, de as mulheres se sentirem protegidas, amparadas... essa ilusão, ao olhar para os EUA, programas de televisão, acabam gerando uma tentativa de mimetização sem levar em conta as com as diferenças das matrizes culturais”, analisa Maria Eduarda.
É curioso analisar como as ondas conservadoras se apropriam das redes sociais com tanta eficácia. Uma onda de mulheres votadas a abdicar de suas vidas profissionais e políticas é minimamente vantajoso aos que vem pregando esse movimento, há muito tempo, antes do TikTok. “sempre vai existir esse jogo de questionar o papel da mulher na sociedade... o que muda é a nomenclatura, é uma repaginação das redes sociais... O que elas trazem nesse discurso de diferente é que elas não estão ali por falta de escolha... e aí a questão de submissão é parcialmente maquiada”, explica Maria Eduarda. “Isso é um discurso para as redes sociais, nenhuma dessas mulheres vai mostrar que apanhou do marido porque ela não fez o que era esperado dela, ela vai expor o que é positivo dessa questão”.
É a figura do homem que está no controle da vida de todos, a mulher somente terá essa vida provida enquanto ele permitir. É ele quem terá maior poder para violentá-la psicologicamente, fisicamente e patrimonialmente. “Quem tem o poder econômico sempre tem o poder... é muito interessante essa volta conservadora, essa ideia de que a mulher é inimiga: nunca criticando a abolição do divórcio, que é criticada na bíblia, e a volta do adultério com crime... é questionável o ‘cara’ conservador que anda com a bíblia debaixo do braço, mas já está na quarta esposa”.
Não sou um robô, uma etapa de checagem comum ao navegar na internet e uma sentença obviamente verdadeira, ou talvez não. O curta-metragem de co-produção holandesa e belga de mesmo nome, problematiza o chamado teste Captcha, quando a protagonista Lara (Ellen Parren, produtora musical, entra em uma crise existencial ao não conseguir provar sua humanidade.
Logo de cara o enredo de Victoria Warmerdam, também diretora da obra, pode parecer apenas cômico, e a interpretação de Parren colabora para essa atmosfera. Os diálogos curtos e a indignação diante de uma suposta certeza de Lara prendem a atenção do telespectador ao fazer com que haja identificação com a situação. Provavelmente todos nós já erramos um destes testes simples em algum momento.
A história com pouco mais de 20 minutos continua com a indicação que a personagem tem a chance de ser 87% um robô, segundo um quiz online, e a essência incômoda da ficção científica começa a reluzir. Conversas entre humano e máquina existem há cerca de 60 anos, com a criação do chatbot Eliza, e com o avançar dos anos é cada vez mais comum, de fato.
Seja aquele número para marcar consultas ou o serviço de atendimento ao cliente das operadoras, a Inteligência Artificial rodeia as esferas da vida cotidiana e vem evoluindo rapidamente. Tome como exemplo o robô humanoide que já foi capa de revista e é considerada cidadã saudita, Sophia, da Hanson Robotics desenvolvido em 2015. Ou ainda os influencers virtuais com milhões de seguidores do Instagram hoje como a carismática Lu da empresa de varejo brasileira, Magazine Luiza.

Parece que a barreira entre o físico e digital, natural e artificial vem sendo quebrada, como aborda a obra de Margareth Boarini, “Dos humanos aos humanos digitais e os não humanos”, lançada em julho do ano passado pela editora Estação das Letras e Cores. O primeiro livro da doutora em tecnologias da inteligência e mestre em comunicação se aprofunda nesses casos de coexistência entre robôs e pessoas, porém, até onde se sabe as diferenças entre máquinas e humanos são perceptíveis, ainda.
Mas como uma boa teoria de ficção científica, o documentário explora justamente um possível futuro da humanidade, em que máquinas e humanos serão indistinguíveis, A saga de Lara por respostas acaba com a revelação de que Daniël (Henry van Loon), marido da personagem, a encomendou sob medida há alguns anos, como se faz com uma roupa hoje.
Suas memórias, sentimentos e até mesmo relações com outras pessoas, ou robôs, são todas fabricadas, como uma versão muito mais avançada do robô Sophia. A comédia permeia a narrativa um tanto quanto impensável aos olhos de hoje, mas curiosa. A seriedade da executiva da empresa que fabricou Lara, Pam (Thekla Reuten) cria uma atmosfera cômica ao assunto, completada pela tranquilidade que Daniël fala sobre sua “aquisição”.
Parren entrega uma atuação que transborda indignação, e o trabalho cinematográfico é inteligente, com cortes que acompanham a visão de Lara. Sobre o ambiente que o filme se passa, todas as gravações foram no CBR Building em Bruxelas, e a ambientação feita com cores vibrantes e apenas carros de época no estacionamento propõe um contraste entre antigo e moderno, frio e robótico, quente e humano.
O desfecho se dá com o desejo da protagonista de ser dona do próprio destino, relegando o fato de não poder morrer antes de seu “dono”. Isso pode ser visto talvez como uma negação em aceitar a única coisa que a diferencia de um humano, ou como uma mensagem da autora da obra sobre uma rebelião das máquinas.
Fato é que Lara se joga do topo do prédio, em um take muito inteligente por parte da direção ao filmar de cima, e que apesar de pesado e grotesco consegue ser engraçado e não desagradável aos olhos. Tal qual uma morte comum, há muito sangue saindo do corpo, as necessidades fisiológicas também são como de humanos, mas após alguns instantes a robô volta à vida.

Incômodo e perspicaz são boas palavras para definir a quinta produção de Warmerdam, que a fez faturar uma série de prêmios internacionais incluindo o Oscar de Melhor Curta-metragem deste ano. Sua produção também se destaca por ser carbono neutro, com o plantio de uma agrofloresta na Holanda para compensar as emissões de gás carbônico (CO2) da obra.
I’m Not a Robot está disponível de forma gratuita no YouTube desde o dia 15 de novembro de 2025 no canal The New Yorker, com legendas apenas em inglês ou holandês. Mesmo com essa barreira linguística, o choque final é inevitável, e a reflexão provavelmente também, se o seu cérebro não estiver se perguntando se você pode ser também um robô.
Publicado em 1991, “O Mito da Beleza”, da escritora estadunidense Naomi Wolf, permanece como uma das análises mais pertinentes sobre padrões de beleza impostos às mulheres e seus impactos sociais e políticos. Apesar de ter sido escrito há mais de três décadas, o livro ainda tem muita relevância, já que a pressão estética não apenas persiste em nosso corpo social, mas se intensificou com o maior uso das redes sociais.
Wolf argumenta que as exigências externas de magreza e padronização de traços físicos não são apenas um reflexo da busca incessante de uma perfeição estética, mas um instrumento de dominação. A insatisfação constante com a própria aparência atua como um “sedativo político”, minando a autoconfiança das mulheres e desviando sua atenção de questões estruturais, como direitos reprodutivos e participação política.
Essa lógica se manifesta na normalização de transtornos alimentares e na disseminação de padrões irreais, que reforçam um ciclo de opressão. No entanto, o culto à aparência não é um fenômeno isolado, visto que ele se conecta com um projeto político mais amplo que, tradicionalmente, tem sido associado a regimes autoritários. Desde os governos fascistas do século XX até movimentos conservadores contemporâneos, a idealização da mulher bela, dócil e submissa faz parte de uma estrutura de controle social que tem como objetivo restringir sua autonomia e mantê-las longe de instâncias de poder. Segundo Táki Cordás, coordenador do programa de transtornos alimentares do Hospital da Universidade de São Paulo, é estimado que cerca de 15 milhões de brasileiros tenham transtornos alimentares.
A psicóloga Daniela Negreli, pós-graduada em terapia de aceitação e compromisso, ressalta essa relação ao afirmar: “A disciplina e a obediência sempre foram cobradas das mulheres, tanto nas relações familiares quanto nas normas culturais. Enquanto o homem que rompe padrões é visto como inovador, a mulher transgressora é tratada como rebelde e indesejada. A magreza, como padrão social, reforça isso: corpos fora desse ideal ainda são vistos como uma afronta."
Nos regimes autoritários, o controle sobre os corpos femininos vai além da estética. Políticas reprodutivas restritivas, a desvalorização de pautas feministas e a imposição de padrões rígidos de comportamento reforçam uma estrutura que limita a autonomia das mulheres. Especialistas apontam que a associação da feminilidade à fragilidade e à passividade não é um acaso, mas uma estratégia histórica para mantê-las dentro de um papel tradicional e submisso.
Negreli observa que a cultura contemporânea é ardilosa ao desviar o olhar das mulheres dos verdadeiros fatores que as oprimem, ao direcioná-lo para supostos defeitos em seus corpos. Ela argumenta que esse bombardeio constante leva muitas mulheres a viverem tentando consertar imperfeições, quando, na verdade, o problema é social. Por isso, a pressão estética funciona como uma lupa sobre o corpo feminino, distraindo com detalhes insignificantes e ocultando a dimensão estrutural da opressão. Ela considera o cenário como desesperador e aponta como a magreza representa o autocontrole, funcionando como um sinal silencioso de submissão ao controle social.
Portanto, a questão estética não pode ser compreendida como um fator individual, mas como parte de um mecanismo de dominação que desmobiliza as mulheres e reforça a sua passividade dentro da estrutura social. O combate à imposição de padrões de beleza inalcançáveis é uma luta que vai além da auto aceitação, mas uma resistência política contra um sistema que usa a insatisfação como ferramenta de violência. Nesse sentido, a autora Naomi Wolf pontua que, "a obsessão com a beleza física é o último e mais perigoso meio de opressão invisível às mulheres", destacando como essas formas de opressão podem ser sutis em dominar.