O Software da Poda quer monitorar as condições das árvores pelos bairros de São Paulo
por
Julia Sena
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03/11/2025 - 12h

Por Julia Sena

 

No bairro da Vila dos Remédios, na zona oeste de São Paulo, seu Francisco, de 68 anos, já se acostumou com o barulho de galhos batendo contra os fios de energia nos dias de vento forte. Diz que na rua, quando chove, já sabe que vai faltar luz. Ele já fez inúmeros pedidos de poda à prefeitura, mas as respostas, quando vêm, demoram meses. A cena se repete em muitos bairros da cidade, árvores plantadas há décadas, sem planejamento e monitoramento. Além de crescidas demais, raízes que invadem calçadas, rompem fios e danificam tubulações. A falta de gestão eficiente da arborização urbana torna-se ao mesmo tempo um problema de segurança e um desafio ambiental. Foi diante desse cenário que um grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo desenvolveu o projeto Poda, uma iniciativa que usa inteligência artificial e softwares de modelagem ecológica para apoiar o poder público na tomada de decisões sobre o manejo de árvores nas cidades.

A iniciativa nasceu dentro do Instituto de Biociências da USP, sob coordenação do professor Marcos Buckeridge, especialista em fisiologia vegetal e diretor do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (INCT Bioetanol). A ideia surgiu de uma pergunta simples sobre se seria possível usar dados científicos para prever quais árvores precisam de poda antes que se tornem um risco. Para ele, o manejo das árvores urbanas ainda é muito reativo, a poda acontece depois que o problema aparece. O que se pretende é criar um sistema preventivo, capaz de indicar quando e onde agir, usando informações sobre o crescimento das espécies, o clima e as condições do solo.

O sistema desenvolvido pela equipe combina imagens de satélite, modelos de crescimento vegetal e dados climáticos locais. A partir disso, os pesquisadores conseguem estimar o ritmo de desenvolvimento das árvores e identificar áreas de risco, como regiões onde há alta densidade de copas próximas à rede elétrica.

Um dos diferenciais do projeto é a criação de modelos preditivos que consideram o impacto das mudanças climáticas no comportamento das árvores. Com o aumento das temperaturas e das chuvas intensas, algumas espécies têm crescido mais rápido e de forma desordenada, o que aumenta a chance de quedas e rompimentos. O software já permite prever o comportamento das árvores ao longo do tempo. Isso ajuda o poder público a planejar melhor as podas e reduzir custos com emergências.

A proposta da Poda é tornar a arborização urbana mais sustentável e integrada à rotina das prefeituras. O sistema já foi testado em áreas piloto de São Paulo e pode, futuramente, ser adaptado a outras cidades brasileiras. E o objetivo não é apenas tecnológico, mas também social,. pois o que está em jogo quando se pensa em árvores é preciso considerar sombras, em conforto térmico, em qualidade do ar. Mas se não houver manejo, esses benefícios se perdem.

De volta à Vila dos Remédios, seu Francisco ouve falar do projeto com esperança. Ele considera que se tiver um jeito de a Prefeitura saber antes que a árvore vai cair, já ajuda muito, porque esperar cair em cima do carro ninguém quer.

A equipe da USP também trabalha em uma interface pública, que permitirá aos cidadãos acompanhar o mapeamento das árvores de suas regiões e reportar problemas diretamente pelo sistema. Assim, o ciclo se completa: da denúncia à prevenção, com base em dados e participação popular. “Cuidar das árvores é cuidar das pessoas”, resume Buckeridge. E agora, com a ajuda da ciência é possível fazer isso de maneira mais inteligente.



 

Invenção desenvolvida por cientistas da Universidade Estadual da Paraíba identifica, em segundos, a presença da substância tóxica usada em bebidas adulteradas
por
Inaiá Fernandes Misnerovicz
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27/10/2025 - 12h

Por Inaiá Misnerovicz

 

Pesquisadores da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) desenvolveram um canudo descartável que muda de cor ao detectar metanol em bebidas. O dispositivo  biodegradável é capaz de identificar, em poucos segundos, a presença do álcool tóxico responsável por graves casos de intoxicação no País. A proposta é permitir que qualquer pessoa reconheça o risco antes de consumir uma bebida adulterada, sem precisar de equipamentos ou conhecimentos técnicos.

O projeto é coordenado por David Douglas, professor e pesquisador do Departamento de Química da UEPB. A ideia surgiu a partir da preocupação com o aumento dos casos de envenenamento por bebidas falsificadas, muitas vezes vendidas em festas, bares e eventos. O grupo buscava uma solução acessível, de baixo custo e uso imediato. Assim nasceu o canudo que muda de cor ao entrar em contato com o metanol.

O metanol é um tipo de produto que oferece um risco silencioso. À primeira vista, parece inofensivo: é incolor, tem cheiro fraco e se mistura facilmente ao etanol, o álcool comum das bebidas. Mas é altamente tóxico. Mesmo em pequenas quantidades, pode causar cegueira, coma e morte. Usado na indústria como solvente e combustível, o metanol jamais deveria estar presente em bebidas alcoólicas. Quando ingerido, o corpo o transforma em substâncias que atacam o sistema nervoso e os olhos, provocando danos irreversíveis.

Douglas explica que o canudo foi projetado para ser usado de maneira simples e intuitiva. . Em seu interior, há uma fita com reagentes químicos sensíveis ao metanol que, ao entrar em contato com a bebida, provoca uma reação capaz de alterar a cor do canudo, geralmente do amarelo para o vermelho. O processo é rápido, dura apenas alguns segundos e dispensa o uso de qualquer aparelho complementar. A ideia central é permitir que qualquer pessoa possa testar a bebida antes de consumi-la, sem precisar ter conhecimento técnico.

Segundo o pesquisador, o objetivo principal é oferecer um produto barato e eficaz. A equipe estima que cada unidade custe menos de dois reais, o que permitiria sua distribuição em larga escala. O canudo foi pensado para ser usado em bares, festas e eventos, mas também por órgãos de fiscalização e vigilância sanitária. Os testes vêm sendo realizados com diferentes tipos de bebidas, como cachaças, vodcas e licores artesanais, para garantir que a reação funcione em todas as composições.

O projeto começou em 2023, nos laboratórios da UEPB, em Campina Grande, e desde então tem recebido apoio de estudantes de graduação e pós-graduação. O grupo trabalha agora na padronização dos resultados, no registro de patente e na busca por parceiros que viabilizem a produção em escala comercial. Paralelamente, a universidade pretende promover campanhas de conscientização sobre os riscos do metanol, incentivando o consumo responsável e a compra de produtos de origem confiável.

O consumo de bebidas adulteradas é um problema de saúde pública no Brasil. O metanol, por ser mais barato que o etanol, é usado ilegalmente na fabricação clandestina. Essa prática ainda causa tragédias em várias regiões do país. Em 2025, surtos de intoxicação foram registrados em estados do Nordeste e do Sul, com dezenas de vítimas. A ausência de métodos simples de detecção e a dificuldade de fiscalização contribuem para o aumento dos casos.

Para David, o canudo funciona como uma ferramenta de prevenção e alerta. Ele não substitui a análise laboratorial, mas serve como um primeiro passo para evitar o consumo da bebida contaminada e estimular denúncias às autoridades. O pesquisador destaca que o ideal seria que ninguém precisasse recorrer a esse tipo de recurso, mas que, diante da realidade do mercado informal, oferecer um meio de defesa à população se torna essencial.

Os sintomas de envenenamento por metanol podem aparecer entre meia hora e doze horas após a ingestão. Entre os mais comuns estão visão turva, dor de cabeça, tontura, náuseas, dificuldade para respirar e, em casos graves, convulsões e coma. O tratamento precisa ser feito rapidamente em ambiente hospitalar. 

O desenvolvimento da pesquisa também mostra a força da ciência feita em universidades públicas regionais. Para o pesquisador, o projeto demonstra que é possível criar soluções inovadoras e de impacto social fora dos grandes centros de pesquisa. Ele destaca que o trabalho coletivo, envolvendo alunos e técnicos, é o que torna o resultado possível. O grupo já estuda novas aplicações para a tecnologia, como o desenvolvimento de palitos, adesivos e fitas reagentes capazes de identificar outros tipos de adulterantes, como solventes e corantes ilegais.

Douglas lembra que, em outros países, iniciativas parecidas ainda são raras e muitas vezes caras. O diferencial da equipe paraibana está no foco na simplicidade. O canudo é barato, descartável e usa materiais que não agridem o meio ambiente. É uma tecnologia pensada para o cotidiano, para chegar a quem mais precisa. A pesquisa tem despertado o interesse de instituições de ensino e de agências de fomento científico. O grupo da UEPB já foi convidado a apresentar os resultados preliminares em eventos acadêmicos e feiras de inovação. A expectativa é que, até o final de 2026, o produto esteja disponível comercialmente, após os testes de segurança e a aprovação dos órgãos reguladores.

Além da inovação química, o canudo também levanta um debate sobre educação científica e cidadania. O pesquisador acredita que a disseminação da informação é essencial para reduzir o número de casos de intoxicação e para valorizar o papel da ciência pública no enfrentamento de problemas sociais. A equipe planeja, junto à Pró-Reitoria de Extensão da UEPB, criar oficinas educativas em escolas e comunidades, unindo ciência, saúde e responsabilidade social.

Casos de intoxicação por metanol têm sido recorrentes no mundo todo. Em 2022, um surto na Índia matou mais de 40 pessoas após o consumo de uma bebida clandestina. No México, dezenas foram hospitalizadas em festas locais. No Brasil, os registros se multiplicam, especialmente em períodos de festas populares. Apesar disso, são raros os métodos de detecção acessíveis ao público. O canudo criado na Paraíba surge como uma inovação com potencial global, justamente por unir simplicidade, baixo custo e impacto social.

Enquanto o produto não chega ao mercado, os pesquisadores reforçam a importância de comprar bebidas apenas de fontes confiáveis, com rótulo e registro. Preços muito baixos e embalagens improvisadas são sinais de alerta. O pesquisador também destaca que as autoridades precisam intensificar a fiscalização, especialmente em períodos de festas populares e feriados prolongados.

O Brasil é pioneiro na criação de um medicamento que regenere a medula óssea de pacientes
por
manuela schenk scussiato
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03/11/2025 - 12h

Por Manuela Schenk

 

Não fora uma sexta-feira qualquer para Júlia. A caminho do ponto de ônibus para voltar para sua casa após um dia de aula na faculdade um motorista embriagado atropelou-a e fugiu sem prestar socorro que mudou sua vida para sempre quando tinha apenas 19 anos. Júlia teve lesões nas vértebras T8, T9 e T10 que a deixaram paraplégica depois de cinco dias em coma quando recebeu a notícia de que jamais andaria novamente.

Hoje Júlia tem 22 anos e teve que reaprender a viver. Coisas que jamais imaginou ter dificuldades agora são grandes conquistas, como quando conseguiu tomar banho sozinha pela primeira vez ou quando pode se deitar na própria cama sem auxílio. Escadas se tornaram rampas, seu restaurante favorito virou delivery, já que não possui acessibilidade para que ela consiga entrar na cadeira de rodas. As festas que frequentava semanalmente agora são eventos anuais, pois a locomoção dentro de uma balada é quase impossível para alguém que não consegue usar as próprias pernas.

No início se adaptar parecia impossível, noites mal dormidas quando chorava no travesseiro até seus olhos cederem. Depois de receber alta do hospital ela foi encaminhada para terapia, consultas três vezes por semana que depois de dois anos se tornaram duas. A fisioterapia que antes era uma tortura aos poucos se tornou um momento divertido.

Nos anos que se passaram Júlia conheceu mais pessoas na mesma situação que ela e de pouco a pouco sua nova vida se tornou mais tolerável, mas mesmo depois de quase 4 anos do acidente ela ainda tem dias ruins, sua autoestima nunca mais foi a mesma já que por muito tempo não conseguia se arrumar como antes. Júlia conta que o momento mais difícil da vida dela foi descobrir que seu caso não tinha cura. Sem possibilidade de tratamento ou cirurgia, uma menina que antes era ativa, amava se exercitar, sair com suas amigas, passear com sua cachorrinha, agora se vê forçada a reaprender a viver.   

É possível perceber as dificuldades que marcam a vida das pessoas que são afetadas pela paraplegia. Infelizmente muitos casos não são reversíveis, mas graças a estudos de um grupo da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), o mundo pode estar mais próximo de encontrar uma cura para uma deficiência que interrompe a vida de tantas pessoas.

A pesquisa, desenvolvida no Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, representa um marco para a medicina brasileira. O medicamento experimental chamado Polilaminina foi criado a partir de uma proteína natural da placenta humana, capaz de estimular a regeneração das células nervosas. Em estudos com animais, especialmente cães que haviam perdido os movimentos, o tratamento apresentou resultados impressionantes: alguns conseguiram voltar a andar mesmo após anos de paralisia. Esse avanço chamou a atenção da comunidade científica internacional e fez com que o Ministério da Saúde e a Anvisa classificassem o estudo como de prioridade absoluta no País.

A equipe liderada por Tatiana Sampaio começou o estudo da eficiência polilaminina para promover a regeneração de fibras nervosas/axônios e reconectar áreas lesadas da medula espinhal começou em 2007, embasado em outro estudo da faculdade que iniciou em 1998. São quase três décadas de trabalho árduo que trouxeram a equipe ao sucesso que é exposto para o mundo hoje, com seis dos oito pacientes humanos recuperando, parcial ou completamente, os movimentos que lhes foram tomados. 

Além dos testes clínicos em andamento, o projeto da UFRJ tem recebido apoio de instituições públicas e privadas, como o Laboratório Cristália, que colabora na etapa de desenvolvimento farmacêutico e produção em larga escala da substância. O próximo passo dos pesquisadores é a realização de estudos em uma quantidade maior de voluntários, o que permitirá avaliar com mais precisão a segurança e a eficácia do medicamento. Caso os resultados se confirmem, o Brasil poderá ser o primeiro país a oferecer um tratamento realmente regenerativo para lesões medulares, uma conquista inédita na história da ciência.

Para Júlia e milhares de pessoas que convivem com a paraplegia, essa descoberta reacende uma esperança que parecia perdida. Mesmo que o caminho até a cura ainda seja longo, cada passo da pesquisa representa uma vitória contra a limitação imposta pela lesão medular. A história de Júlia mostra a força de quem se reinventa diante da adversidade. O que a ciência da UFRJ faz agora é provar que o impossível pode estar mais perto do que se imagina. Aquilo que antes era apenas sonho, agora começa a ganhar forma nas mãos de pesquisadores brasileiros dedicados a devolver o movimento e com ele a liberdade a tantas vidas interrompidas.

Consumo consciente e busca por saúde impulsionam a produção nacional
por
Chloé Dana
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30/09/2025 - 12h

Por Chloé Dana

 

Em meados de 2025, pesquisas agronômicas da Embrapa e da Organis, apontam que a produção de orgânicos no País aumentaram em 12%, visando um consumo mais saudável e consciente. O crescimento aponta à prioridade por produtos sem agrotóxicos e ao fortalecimento de políticas públicas voltadas à agricultura ecológica. 

Porém, é preciso entender como esse aumento surge, en que se diferencia de outras nações por suas profundas raízes em movimentos sociais e agroecológicos, em vez de ser impulsionada exclusivamente por lógicas de mercado. Mais do que apenas um método de cultivo, a agricultura orgânica é definida por um sistema de produção agropecuária que utiliza técnicas particulares com a finalidade de aprimorar a utilização dos recursos naturais e socioeconômicos à disposição, preservando a integridade cultural das comunidades do campo. Seus fundamentos incluem a sustentabilidade econômica e ambiental, a maximização de vantagens sociais, a redução da dependência de fontes de energia não-renováveis e a adoção de métodos biológicos e mecânicos em lugar de organismos que foram geneticamente alterados.

O surgimento da agricultura orgânica no Brasil remonta a meados da década de 1970, impulsionado por uma reação ao avanço da Revolução Verde, que propunha uma modernização da agricultura em prol do melhoramento genético, uso de insumos e agrotóxicos. Nessa época, a comercialização de produtos ocorria de maneira direta, baseado em um simples sistema de confiança entre quem produzia e quem comprava. 

O mercado inicial consistia em um "segmento natural" oferecendo entregas semanais de cestas contendo frutas, verduras e legumes na casa dos clientes. A presença de lagartas e bichinhos no alimento, era percebida pelos primeiros clientes como uma sinalização de qualidade, indicando que os alimentos tinham sido cultivados sem o uso de produtos químicos. A valorização dos produtos orgânicos não se baseava em certificações formais, mas sim na confiança entre as partes e na evidência concreta da falta de químicos, o que destaca que as origens do movimento no Brasil são fundamentadas em princípios agroecológicos e filosóficos, e não apenas comerciais. 

O produtor de orgânicos e feirante na Vila Madalena Carlos Nascimento explica alguns motivos de porque optou pelo orgânico ao invés do convencional. Nascimento afirma que sua decisão surgiu de um desejo de produzir de maneira mais consciente pois ao observar a prática convencional, notou os efeitos negativos do uso incessante de pesticidas e fertilizantes químicos. O solo se tornava exaurido, a biodiversidade se perdia e a saúde das pessoas que lidavam frequentemente com esses produtos era comprometida. 

Outro fator que influenciou sua escolha foi a valorização crescente do mercado de produtos orgânicos. O agricultor percebe que esse segmento possui um grande potencial de crescimento, impulsionado por consumidores mais conscientes e prontos para apoiar práticas sustentáveis. Apesar do notável crescimento e das conquistas legislativas, o setor orgânico no Brasil enfrenta desafios estruturais que representam obstáculos significativos ao seu desenvolvimento pleno, e isso implica em tempo e políticas públicas para o setor.

Quando discute o amanhã, o produtor demonstra uma visão otimista, porém fundamentada na realidade. Ele enxerga um grande potencial para o crescimento da agricultura orgânica no Brasil, especialmente devido à mudança na conscientização dos consumidores. Cada vez mais, famílias estão em busca de alimentos que não contenham agrotóxicos, valorizando a origem dos produtos que adquirem e desejando apoiar práticas sustentáveis. Para ele, esse movimento representa não uma moda passageira, mas uma tendência crescente que deve se intensificar nos anos vindouros, alinhando-se à preocupação global com a saúde e o meio ambiente.

Outro aspecto que ele enfatiza é a urgência de aumentar o acesso. Atualmente, os produtos orgânicos ainda alcançam uma fração reduzida da população, frequentemente restrita às grandes áreas urbanas e a consumidores com maior capacidade financeira. Para o futuro, ele aspirar por um cenário em que os orgânicos se tornem mais disponíveis, integrando-se a feiras comunitárias, merendas escolares e até programas de abastecimento público, garantindo que alimentos saudáveis deixem de ser um privilégio e se tornem um direito.

O mercado de orgânicos no Brasil encontra-se em uma fase de crescimento explosivo, impulsionado por uma mudança no perfil do consumidor e políticas de fomento. No entanto, o setor enfrenta desafios estruturais significativos, como o desequilíbrio entre oferta e demanda, a fragmentação dos dados oficiais e as barreiras de entrada para os pequenos produtores. A superação desses gargalos, especialmente a questão da certificação e o fortalecimento da logística e da cadeia de valor, é crucial. Ao abordar essas questões de forma estratégica, o Brasil tem a oportunidade de não apenas manter sua liderança na América Latina, mas de se consolidar como um dos principais players globais, alinhando seu potencial de produção com o vigor de seu mercado consumidor.

Maior evento europeu do setor continua na rota por novidades eletricas e mais concorrência a cada ano
por
Vítor Nhoatto
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22/09/2025 - 12h

Ocorrido entre os dias 9 e 14 de setembro, o IAA Mobility recebeu mais de 500 mil visitantes, superando a sua última edição em 2023. Estiveram presentes as germânicas Audi, BMW, Mercedes, Opel, Porsche e Volkswagen, mas Fiat, Peugeot e nenhuma japonesa compareceu. Com isso, mais uma vez uma grande parte de Munique foi palco para as chinesas se consolidarem e expandirem.

Com o lema “It’s all About Mobility”, em tradução livre, “É Tudo Sobre Mobilidade”, o foco da mostra se manteve em soluções inteligentes e inovadoras. Startups como a Linktour com  seus micro carros elétricos, e marcas de bicicletas e motocicletas elétricas estavam por todos os lados do München Expo Center. E repetindo o formato aplicado desde 2021, com o chamado “Open Space”, uma área de experiências interativas gratuitas ao ar livre, os visitantes podiam experimentar tudo isso.

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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 Além disso, a inovação tecnológica foi tema de muitos debates e coletivas de imprensa com representantes da indústria. Fornecedoras como a Bosch, Aisin e Revolt, além de empresas de carregadores como a Charge X e E-Mobilio e a gigante de baterias CATL foram só alguns dos mais de 750 expositores presentes. 

Setor premium atento

Falando em eletricidade, ela estava no centro das atenções de todas as marcas, apesar das vendas de carros elétricos (BEV) terem sido prejudicada na Europa no ano passado. O fim ou diminuição de subsídios governamentais e metas de descarbonização estagnadas na União Europeia foram os principais motivos segundo o Global EV Outlook 2025 da International Energy Agency (IEA). No entanto, as projeções para esse ano e os próximos são de crescimento.

De olho nisso a BMW lançou o novo iX3, modelo mais importante em anos ao inaugurar uma nova era para a alemã. A segunda geração do modelo estreia uma plataforma sob medida e exclusiva para elétricos de nova geração, chamada de Neue Klasse. O destaque fica com a nova bateria de 108.7kWh de capacidade integrada ao chassi, compatível com carregamento ultrarrápido de até 800V - ganha 372km em apenas dez minutos - e autonomia de 805km em uma carga segundo o ciclo WLTP. 

No quesito design a ruptura com o passado é ainda mais evidente, com uma nova linguagem visual, inspirado nos modelos da BMW dos anos 80. No interior foi inaugurado o Panoramic iDrive, com o painel de instrumentos correndo ao longo de todo o para-brisa, um novo volante de quatro raios e um multimídia com inteligência artificial de 17,5 polegadas. “A Neue Klasse é o nosso maior projeto futuro e marca um grande salto em termos de tecnologias, experiência de condução e design”, frisou o presidente do conselho de administração da marca, Oliver Zipse.

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Alemã aproveitou o evento para apresentar o futuro Sedan i3, que seguirá o capítulo iniciado pelo SUV iX3,  irmão de plataforma. Foto: BMW Group / Divulgação 

Do outro lado do pavilhão, a Mercedes-Benz fez um movimento parecido, lançando a segunda geração do GLC elétrico. O modelo foi o primeiro elétrico da marca, ainda em 2018 como EQC. Mas pelas vendas baixas havia sido descontinuado no ano passado, e agora retorna com o nome “GLC With EQ Technology”, para evidenciar as mudanças. Rival direto do iX3, segue a linguagem de design inaugurada no novo CLA no ano passado, aqui com uma grade iluminada e enormemente proeminente.

Construído sob a inédita plataforma elétrica MB.EA Medium, independente do GLC, a combustão portanto, possui carregamento de até 800V e uma bateria de 94kWh, traduzidos em 713 km de autonomia. No interior, o SUV inaugura o “Hyperscreen”, transformando o painel inteiro em uma tela de 39.1 polegadas. O interior pode ser todo vegano e certificado, e a comunicação Car-to-X - que coleta e envia dados para comunicar outros veículos - se destaca no quesito segurança. O preço inicial deve girar em €60 mil quando chegar às lojas ainda esse ano, tal qual o rival.

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Faróis possuem tecnologia Matrix, e sob o capô há um espaço de 128 litros para bagagens. Foto: Mercedes-Benz / Reprodução

Mas nem só de SUVs o mercado premium é formado, e a Polestar compareceu a Munique para o lançamento mundial do seu novo modelo de topo, o sedã 5. A marca do grupo Geely, divisão de performance da Volvo até 2017, aposta em sustentabilidade e alta performance, estreando a nova plataforma PPA do grupo. São 872 cavalos, tração integral, aceleração de 0 a 100 em 3,2 segundos e ausência de janela traseira, tal qual no crossover 4.

Um presente e futuro elétrico

Nas duas últimas edições do Salão de Munique, ambientalistas protestaram em frente ao evento em defesa de uma mudança sistêmica da indústria, o que se repetiu. As ONGs Extinction Rebellion e Attac levaram placas pedindo por mais investimento em transporte público e justiça social, jogando atenção para uma mentalidade individualista e o preço dos elétricos. 

Em relação a essa questão, um estudo da empresa de consultoria, Gartner, mostra que até 2027 os BEVs serão mais baratos de produzir que os carros a combustão (ICEVs), e o Grupo Volkswagen promete preços competitivos para sua nova geração de elétricos. 

Foram revelados no evento quatro modelos para o segmento B baseados na plataforma MEB Entry do conglomerado. O principal deles foi o ID.Polo da Volkswagen, com previsão de início de vendas em maio na casa dos € 25 mil. Como o seu nome sugere, é a versão elétrica do hatch Polo, e contará com baterias de 38 e 56 kWh, com uma autonomia de 350 e 450 km respectivamente. Uma versão GTI do modelo será também comercializada, com 223 cavalos.

Continuando o apelo esportivo que a versão encurtada da plataforma em que os modelos do segmento C, ID.3 e ID.4, são construídos, a espanhola Cupra mostrou a versão de produção do Raval. Com dimensões e motorizações basicamente iguais às do ID.Polo, promete continuar a expansão da nova marca do grupo, antigamente uma divisão de performance da Seat.

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Cupra Raval, ID.Polo e ID.Polo GTI  (direita) serão lançados em março do ano que vem, enquanto os SUVs Epiq e ID.Cross (esquerda) chegarão no segundo semestre. Foto: Volkswagen AG / Divulgação

Como era de se esperar pela relação do Polo com o T-Cross, sua versão SUV, o conceito ID.Cross foi mostrado. Com o mesmo tamanho do modelo que substituirá em 2026, integra o segmento disputado dos B-SUV elétricos, formado por nomes como Peugeot e-2008, Renault 4 e Volvo EX30. Focando em espaço e ergonomia, marca a volta de botões físicos no volante e do ar condicionado, além de um maior uso de materiais reciclados. 

Por fim, a Skoda apresentou a sua versão do SUV, denominada Epiq. Tal qual os irmãos de plataforma, será construído em Pamplona, na Espanha, e contará com a capacidade de carregar dispositivos externos como eletrodomésticos (V2L). A velocidade de carregamento é de até 125 kW, indo de 10% a 80% em 20 minutos, e o modelo estreará uma nova identidade visual para a tcheca no ano que vem.

Ascensão chinesa continua 

Aprofundando essa questão dos preços, são as marcas chinesas que se destacam globalmente, como destaca a IEA. Com grandes reservas dos minérios utilizados nas baterias, as fábricas para construí-las e anos de investimento estatal na tecnologia, seguiram com sua expansão em solo alemão. 

A BYD, maior marca chinesa em números, marcou presença com o recém lançado Dolphin Surf - a versão europeia do Dolphin Mini. Avaliado com cinco estrelas pelo Euro NCAP, é um dos BEVs mais baratos hoje à venda na Europa, custando cerca de € 20 mil. No campo dos híbridos plug-in (PHEV) a Station Wagon do segmento D, Sealion 06, foi lançada, focada em conforto e tecnologia com até 1.092 km de autonomia combinada.

Outra marca com novidades foi a Leapmotor, que já vende o hatch subcompacto T03 e o D-SUV C10 no continente, de lançamento marcado para o Brasil ainda em 2025. Pertencendo 20% à Stellantis, que controla a sua operação internacional, apresentou o inédito hatch B05, rival de Volkswagen ID.3 e BYD Dolphin. Sob a mesma plataforma do C-SUV B10, terá cerca de 400 km de autonomia e início de vendas para o ano que vem por cerca de € 30 mil.

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"O B05 (direita) reflete nosso compromisso com a inovação, acessibilidade e a capacitação da próxima geração de motoristas em toda a Europa e além", declarou o CEO global da marca, Zhu Jiangming. Foto: Leapmotor / Divulgação

Munique foi para além de um lugar de novos modelos, mais uma vez o palco de marcas inteiras debutando em solo europeu. A marca AITO, do grupo Seres, que usa a tecnologia da Huawei, se lançou no mercado internacional com os SUVs 9, 7 e 5. Mirando as marcas premium alemãs nos segmentos E e D, podem ser tanto BEVs ou elétricos com extensor de autonomia (REEV), repetindo a abordagem da Leapmotor com o C10.

O grupo Changan Auto iniciou as operações da sua marca Deepal com os SUVs de apelo jovem e esportivo S05 e S07, ambos com opções de serem elétricos ou PHEVs. No campo de luxo, a marca Avatr da gigante chinesa mostrou seu primeiro concept car, o Xpectra, além dos modelos 06, 07 e 12, já comercializados em alguns países europeus e com planos de chegarem a 50 mercados em breve.

A premium Hongqi esteve presente e revelou o C-SUV elétrico EHS5, além de anunciar planos de expansão com 15 modelos e 200 pontos de venda pela Europa nos próximos anos. E aumentando a sua aposta no evento, a Xpeng teve um stand dentro do pavilhão e apresentou a nova geração do P7, sedã que começou a ser comercializado na Europa no IAA Mobility 2023.

Além disso, a recém chegada ao Brasil, GAC, estreou no velho continente levando cinco modelos para a mostra. Seguindo com o “European Plan Market” anunciado no ano passado, lançou como modelos de topo o novo GS7, um SUV grande híbrido plug-in, e a MPV híbrida (HEV) E9. Mas os destaques da marca foram o hatch AION UT, rival de BYD Dolphin, e o D-SUV rival de Tesla Model Y, o AION V.

O primeiro possui bateria de 60 kW/h com 430 km de autonomia e previsão de início da comercialização em 2026 na casa dos € 30 mil. Já para o segundo, comercializado no Brasil por R$214.990, o preço de € 35.990 foi anunciado, muito competitivo para o segmento. Com 510km de autonomia e cinco estrelas no teste do Euro NCAP - com mais ADAS que o brasileiro - será o primeiro a chegar às lojas, já em setembro em mercados como Portugal, Finlândia e Polônia. O plano é que a marca venda em todos os países europeus até 2028.

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Estava ainda em Munique o carro elétrico voador GOVI AirCab (ao fundo) buscando mostrar os avanços da indústria chinesa, segundo a empresa. Foto: GAC Group / Divulgação

Eletrificação em todos os níveis 

Para além das novatas, ícones do mercado aproveitaram os holofotes da feira para se renovarem completamente. Esse foi o caso da única francesa presente, a Renault, que lançou a sexta geração do hatch Clio, o segundo carro mais vendido no continente em 2024.

Construído sob a mesma plataforma que o seu predecessor, mantém o motor 1.2 TCe e uma opção movida a GPL, mas as semelhanças acabam por aqui. No powertrain, estreia um novo sistema full-hybrid (HEV) formado por um motor 1.8 e dois elétricos, resultando em 160 cavalos e modo de condução elétrico na cidade. Conforme a estratégia da marca, o Clio não terá versão elétrica, papel delegado ao hatch de estilo retrô, o 5.

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Hatch cresceu 6 centímetros em comprimento, evocando uma silhueta mais esportiva e afilada. Foto: Renault Group / Divulgação

No quesito design, o carro rompe por inteiro com a geração anterior, o oposto do que havia acontecido com a quinta geração em relação à quarta. A frente ostenta uma nova assinatura em DRL, que forma o símbolo da Renault, e a traseira possui lanternas duplas, nunca vistas em um Clio. O interior é todo novo também em relação ao antecessor, mas com o mesmo layout e sistema operacional do Google do irmão elétrico 5.

A Volkswagen foi outra que debutou no IAA uma nova geração de um best-seller, o T-Roc. Em sua segunda encarnação, também não terá versões elétricas, sendo o último novo carro a combustão desenvolvido pela marca. Haverão pela primeira vez no SUV opções micro-híbridas (MHEV), já conhecidas dos irmãos de plataforma como o Golf e A3, além de um novo sistema HEV, com 134 e 168 cavalos. Não haverá, pelo menos por ora, versões PHEV, sendo o único modelo sob a MEB Evo sem essa possibilidade, no entanto.

Seu exterior é uma evolução da primeira geração, mantendo linhas semelhantes e o seu apelo descolado, descrito pela marca. As dimensões aumentaram, 12 centímetros em comprimento, chegando a 4.37 metros, o colocando alinhado a rivais como o Toyota CH-R e Mazda CX-30. Por dentro a abordagem continua, com telas maiores e mais itens de conectividade e segurança assistida, mas com uma disposição de elementos clássica, vista nos últimos Golf e Tiguan.

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Modelo construído em Portugal foi o quinto carro mais vendido na Europa no ano passado. Foto: Volkswagen Group / Divulgação

Concorrência de todos os lados

Além das chinesas em franca expansão nos últimos anos no continente, outras concorrentes vêm se destacando na corrida pelos elétricos principalmente. A coreana Kia compareceu ao evento e mostrou ao público os novos integrantes da família EV, o EV4 e o EV5. 

O primeiro é um hatch do segmento C, acompanhado de uma variante sedã. Já o último se trata de um modelo lançado em 2023 - inclusive a venda no Brasil desde o ano passado - mas que chega só agora à União Europeia como a versão elétrica do Sportage. Sua conterrânea e marca irmã também esteve em Munique com o Concept 3, prevendo o futuro Hyundai Ioniq 3, equivalente do EV4.

Mas nem só da Ásia as novidades chegam, com a primeira marca turca de automóveis elétricos, a Togg, debutando em solo alemão a sua ofensiva no continente europeu. Fundada em 2018 e com a primeira fábrica inaugurada em 2022, apresentou o C-SUV T10X e o sedã T10F ao público. A pré-venda dos modelos começará em 29 de setembro na Alemanha, e no ano que vem a empresa pretende iniciar seus trabalhos na França e Itália, com meta de ter até 2030 um milhão de veículos em toda a Europa.

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Preços ainda não foram divulgados, mas devem ficar em torno de € 40 mil tomando como base as cifras no mercado turco. Foto: Togg / Divulgação

Construídos sob uma plataforma elétrica, ambos receberam nota máxima no Euro NCAP recentemente, com mais de 9% de proteção para adultos e 80% nos ADAS. A respeito do desempenho, a bateria possui 88.5 kWh de capacidade, e autonomias de até 500 e 600 km para o SUV e o sedã respectivamente. 

“Nossos modelos proporcionam uma experiência de mobilidade voltada para o usuário e voltada para o futuro”, comentou Gürcan Karakaş, CEO da marca durante o evento. A marca anunciou ainda que trabalha no terceiro de cinco modelos que irá lançar até o fim da década, o B-SUV T8X. Karakaş finalizou destacando que prepara para introduzir baterias de pirofosfato de lítio (LFP), e que a indústria deve estar preparada para as mudanças e maior concorrência.

A tecnologia como mudança definitiva do mundo artístico causa adaptações no mercado e nos artistas
por
Ian Valente Rossignoli
Rodolfo Soares Dias
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26/09/2023 - 12h

Por Rodolfo Dias (texto) e Ian Valente (audiovisual)

 

Os melhores dias para visitar o Louvre são na segunda e na quinta, como ele fecha às terças, na quarta-feira é lotado, assim como na sexta e fim de semana, o museu mais famoso do mundo recebe cerca de 190 mil visitantes por semana, para aproveitar suas 35.000 exposições. Na minha primeira visita ao site oficial do “forte” Francês, a primeira imagem que me deparo é com a Mona Lisa, a inestimável pintura de Leonardo da Vinci com os dizeres “Welcome to the Louvre”. A arte mais famosa do mundo marca o Renascimento, as técnicas usadas com a genialidade de seu criador a tornam única, e a estranheza de suas histórias que passam por roubos, tentativas de destruição e por ser pintada em madeira são o atrativo para a maioria dos visitantes do museu, que lotam a Salle des États o maior salão do local.

Continuando o tour pelo site, saindo do que seria os pontos altos do local, rolando um pouco o mouse para baixo, me deparo com a aba Louvre at home, como uma visita ao espaço sem precisar estar na frança, de casa é possível conhecer as lendárias paredes do museu. Entre as atrações possíveis de “visitar” em casa está a tal da Mona Lisa, porém em realidade virtual, um jeito de conhecer a mística criação sem precisar visitar a Europa, pegar horas de fila e enxergar por trás de um vidro espesso a prova de balas, a bela Mona Lisa.

A constante mudança na forma de fazer arte impacta diretamente na forma de vendê-la, para uma instituição como o Louvre a renovação de algo criado a 500 anos atrás é necessária, apesar do alto número de visitas feitas à obra, e seu valor em dinheiro inestimável, são muitos os motivos que levam o museu a adotar uma estratégia de interação digital, visto como um paradigma a artistas que trabalham com a tecnologia contemporânea, a utilização da internet é capaz de aproximar as pessoas da arte - É esse lugar que eu tento desvendar com a arte, a gente não pode negar que ela ajuda o desenvolvimento - Comenta Fernando Velázquez, expoente artista visual de São Paulo.

Velázquez além de artista é curador e professor, nascido em Montevidéu (Uruguai) atualmente reside e trabalha em São Paulo, suas principais expressões artísticas vão de encontro com o desenvolvimento tecnológico presente na sociedade contemporânea. Multimidiático, suas obras misturam os aspectos que ligam a arte à tecnologia. Com objetos interativos, elementos audiovisuais e a sustentação do algoritmo nas lógicas de programação, a arte do uruguaio é responsável por reunir a capacidade de percepção intrínseca ao corpo humano com os meios tecnológicos, misturando a arte com fatores científicos, filosóficos e antropológicos.

O artista afirma que a criação de artes relacionadas com a tecnologia é algo intrínseco na sociedade, que a sua evolução depende da relação dos artistas com as diferentes formas de inovar o seu trabalho com tais tecnologias. Considerar a arte como um complexo de ‘’coisas’’ conclui Velázquez, para ele é impossível defini la, já que caso ela seja, o seu caráter subjetivo, o de cada indivíduo interpretar de uma determinada forma, morrerá, impedindo a formação de um campo humano que trabalha justamente com imaginário. 

A tecnologia constantemente associada como sinônimo de progresso, ressaltando a sua capacidade de compartilhar conhecimentos de forma instantânea e por permitir a interação entre vários setores, países, culturas e opiniões de forma global, pode apresentar perigos existentes nos meios tecnológicos, sobretudo com o desenvolvimento das Inteligências Artificiais (IA’s), capazes de reproduzirem algoritmicamente características até então monopolizadas pelos seres humanos, a mesma tecnologia capaz de auxiliar o desenvolvimento sociocultural é capaz também de cercear o fator humano das fontes relacionados ao desenvolvimento cultural.

Por serem criadas pelos humanos, esses meios estão, também, propícios a repetir nossos próprios erros e preconceitos. Como o seu desenvolvimento ocorreu de forma mais acelerada nos países colonizadores, elas, consequentemente, foram infectadas com a perspectiva de que o mundo está à mercê do homem branco europeu ocidental que segue tendo o protagonismo da humanidade. Ou seja, as Inteligências Artificiais podem ter alta capacidade de reproduzir o racismo, a homofobia, o machismo, entre outras mazelas, o assunto gera polêmica, mas para Velazquez a construção disso carrega responsabilidades, como indivíduos consumidores destas tecnologias intrínsecas na sociedade, é necessário pensar e analisar o viés desta inteligência. 

Um terreno vasto e ainda muito inexplorado que depende de caminhos criativos para, por enquanto, dominar uma arte sem preconceitos. Em sua exposição Rituais da Complexidade, Velázquez consegue expressar artisticamente uma dualidade entre o passado e o futuro, o humano e tecnológico. Nela, imagens são criadas a partir de experiências que envolvem o uso das IA’s obtidas a partir de algoritmos manipulados pelo autor que aprendem e geram novas figuras através do hibridismo, resultado do encontro de estéticas diferentes, como a grega com a africana que, posteriormente, foram impressas por impressoras 3D e expostas. Refletindo sobre a Pós-modernidade, cria-se uma manifestação crítica a respeito de um passado que sequer existiu, bem como de um futuro que mistura arte e tecnologia de outras fontes de conhecimento que fujam de qualquer perspectiva eurocentrista. 

 

Em um panorama, as manifestações artísticas estão sempre ligadas ao objetivo imagético de seu autor, as tecnologias que disparam na atualidade e dominarão potencialmente o futuro destas demonstrações culturais, acompanham as motivações de seus criadores, oligopólios massivos dominam o que há de mais novo no quesito tecnológico, empresas como Google, Microsoft e Meta são alguns nomes consideradas “Big Techs” que detém as melhores e mais novas ferramentas para impulsionar os avanços como lhes convém. Fernando Velázquez conclui falando sobre o papel dos artistas independentes que, diferentemente do Louvre, devem usar as tecnologias para “quebrar” sua lógica programada, criar processos que fujam a todo custo de uma ideia hegemônica e impositiva.

A Rádio Cidadã, no Butantã, transmite diariamente um pedaço de São Paulo
por
Artur dos Santos
Kawan Novais
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14/11/2023 - 12h

Por Artur dos Santos (texto) e Kawan Novais (audiovisual

 

A antena de 30 metros com uma fundação de toneladas de cimento da Rádio Cidadã não há motivo para (e nem intenção de) cair. O que já foi uma antena leve de 20 metros com um dos pés amarrados em uma parede - arrancada com facilidade por uma chuva que Deus mandava enquanto os radialistas se abrigavam em um bar próximo - hoje seguraria até um avião.

 

Antena da Rádio Cidadã
Antena que distribui o sinal da Rádio Cidadã. Foto: Artur Santos.

 

O sinal varia, é circular, depende da topografia, no Butantã tem muito morro, e pode alcançar o estádio do Morumbi, mas não na avenida a menos de 2 quilômetros. 500 mil ouvintes são contemplados pela amplitude das ondas todo dia, bairros com mais densidade demográfica têm rádios com maior alcance de pessoas, consequentemente. A sintonia é FM 87.5, dial das rádios comunitárias (RC) legalizado pela Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) na cidade de São Paulo. “Entrando na Sola” e “Na Onda do Forró”, dois dos programas mais badalados da rádio, atingem ouvintes dos arredores de sua localidade, assim como suecos e tailandeses, via digital, mesmo que sem entender o idioma.

 

Cachorros guardando a entrada do estúdio.
Descida para o estúdio da Rádio Cidadã. Foto: Artur Santos.

 

Cachorros guardando a entrada do estúdio.
Ródio e Baguan na entrada do estúdio. Foto: Artur Santos.
Estúdio
Metade áudio, metade vídeo. Foto: Artur Santos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Assim como a antena sobe, por rampas ou escadas, a entrada para o estúdio desce, guardada por dois cachorros, um magro com focinho molhado e um velho, que ameaçam fugir do QG de Julio César, responsável pela Rádio Cidadã. “Não repare a bagunça” - diz qualquer dono de estúdio em qualquer lugar. As habilidades de Julio e seus anos de experiência como programador cortam os custos e a dor de cabeça de se manter uma rádio comunitária em pé. Os segredos nas tomadas e o raciocínio lógico de quem trabalha com a área de programação automatizam o funcionamento, e a rádio está no ar mesmo se ninguém estiver em casa.

“Bem tranquilo, apesar de parecer bagunçado. Tem uma parte aqui que você programa tudo que vai acontecer, toda a parte obrigatória, como prefixo, publicidades, tem que passar tem que falar a hora certa de hora… regras que você precisa seguir. Ele programa todas as playlists com parâmetros. Eu coloco a música que o menos tocou, então ele vai pegando sempre essa e separa por estilo também. Samba toca no meio-dia uma, de manhã um reggae, MPB… madrugada putaria toca.”

O estúdio da Cidadã mescla áudio e vídeo, tendência não muito escapável atualmente. Os programas transmitidos via FM 87.5 são, simultaneamente, veiculados no canal do YouTube e no site da rádio, possibilitando mais adesão do público aos programas no ar. Julio não sabe explicar o sucesso de um de seus programas, o Na Onda do Forró, apresentado por “Neguinho da Bahia”, que conversa com o público, faz piadas e realiza seus anúncios. As “tiradas” divertidas de Neguinho ser o motivo do encanto que faz a transmissão ao vivo atingirem 400 ouvintes, algo fora do comum na vida diária da rádio. Mesmo assim, foi impossível explicar como resulta em tanta audiência. Rádios comunitárias como a Rádio Cidadã estão sob as mesmas burocracias de rádios comerciais, com alguns adendos. Os radialistas de uma RC não podem anunciar os preços, a forma de pagamento de anunciantes, ou ao menos anunciar marcas que não tenham representação dentro do bairro. Mas, Neguinho da Bahia tem anunciantes de sobra.

Julio Cesar, responsável pela rádio Cidadã.
Julio trabalhou na Rádio Tupi e na Atual. Foto: Artur Santos

A lei n° 4133, de 2012, impedia as rádios comunitárias de se adequarem a qualquer tipo de financiamento público ou privado visando custear seus serviços ou melhorar as atividades a serem prestadas. Como apoio cultural, era permitido patrocínio, mas restrito apenas aos estabelecimentos situados na mesma área que o rádio estaria estabelecido. Neste ano, 2023, ao fim de agosto, a Câmara Municipal de São Paulo sediou o terceiro Congresso das Rádios Comunitárias de São Paulo, reunindo radialistas da cidade paulista e de outros estados, como do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Bahia. Autoridades federais que também participaram dos debates, expuseram os auxílios existentes para os radialistas e apresentaram as “novidades” que visam suprir as necessidades dos comunicadores.

O principal tema da reunião foi a criação de políticas públicas e a regulação de leis vigentes direcionada às rádios comunitárias. Para se tornar um radialista desta modalidade, o processo se inicia por meio do requerimento para a abertura de uma rádio comunitária através do Plano Nacional de Outorgas (PNO), que é a identificação e seleção de municípios que ainda não têm esta modalidade comunicadora, mas que manifestaram o interesse de tê-la. Após uma série de etapas, o processo resulta no funcionamento legal do veículo de transmissão por 10 anos, podendo ser renovado por outro processo no fim da década.

Julio apresentou seu documento, uma espécie de RG (Registro Geral), mas que não o identifica enquanto um cidadão, e sim enquanto um radialista comunitário legal perante a lei. Mas, no início da vida da Cidadã, quando ainda era caracterizada como uma rádio clandestina, o atual responsável por ela chegou a entrevistar dois ministros, a qual ele não tem mais acesso atualmente. Criada em 1994, era assim que tinha que ser. Clandestina ou regularizada, as Rádios Comunitárias servem uma função social nos bairros em que atuam.

Em 1970, as da Zona Leste eram caixas de som hasteadas em um pau nas esquinas, disseminando informação que se recusava a chegar nas periferias pelos meios tradicionais. A criatividade é a saída. As favelas oferecem um público muito mais engajado, mais do que qualquer outro. Até a transmissão da queima de fogos realizada aos finais de anos, apenas por áudio acontecia, e mesmo que sem a imagem, atraía público a rádio. Pessoas de outras regiões, inclusive mais nobres, paravam para observar em um local que já ocupava o triplo de pessoas de sua capacidade. Mesmo com todo o engajamento, não é suficiente para tornar a Cidadã autofinanciável. De acordo com a lei já citada, as rádios comunitárias, assim como as educativas, conseguem financiamento por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Trata-se de empréstimo realizado por este órgão com a finalidade de modernização, aquisição de equipamentos e instalação de sistemas radiantes.

Experiências da tecnologia em diversas cidades têm poucos indícios de eficácia
por
Lucas Allabi
Guilherme Gastaldi
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21/11/2023 - 12h

Por Lucas Allabi (texto) e Guilherme Gastaldi (audiovisual)

 

Há mais de 50 anos, uma equipe de pesquisa liderada por Woodrow W. Bledsoe realizou experimentos com o objetivo de verificar se computadores de programação seriam capazes de reconhecer rostos humanos. Apesar de não ter tido sucesso, Bledsoe deu o primeiro passo para uma “revolução tecnológica”, responsável pela criação de elementos imprescindíveis no nosso dia a dia. Hoje, por exemplo, os dispositivos móveis lançados já possuem o sistema de reconhecimento facial embutido, possibilitando que apenas o verdadeiro dono do aparelho possa acessar o equipamento.

Nos últimos anos, surgiram novas discussões em relação ao uso dessa nova tecnologia, a principal delas sendo o uso do reconhecimento facial como método de Segurança Pública. Utilizando algoritmos de processamento para identificar pessoas e verificar suas identidades com base nas características do rosto, governos ao redor do mundo enxergam o novo sistema como a solução de todos os problemas, capaz de evitar crimes, roubos e furtos. No entanto, quando vemos as reais implicações do sistema, principalmente no Brasil, começamos a questionar não apenas a sua eficácia, como também as verdadeiras intenções por trás daqueles que o operam.

Na última década, na medida em que avanços tecnológicos ocorreram, o debate ao redor do tema se intensificou. Sendo assim, sob o pretexto de modernizar a segurança pública, políticos da extrema-direita passaram a tomar para si o discurso das tecnologias de reconhecimento facial (TRF). Além de usar a temática como palanque político, o impacto negativo na sociedade causado por essa tecnologia se tornou evidente e esse cenário é facilmente observado no estado de Goiás. Desde o ano de 2014, verbas do governo estadual e emendas parlamentares financiam a instalação de câmeras de videomonitoramento em Goiânia. Em 2019, com a disponibilização de recursos para a instalação de TRFs, municípios goianos tiveram 37 projetos aprovados pelo Ministério, acumulando 50 milhões de reais destinados ao uso da tecnologia em apenas dois anos. Coincidentemente, na época, conhecido por ser o principal articulador e apoiador das TRF, o ex-deputado federal Delegado Waldir (PR e PSL) multiplicou por dez seu patrimônio e conseguiu se reeleger, escancarando o uso da pauta como manobra política.

Além disso, sob a justificativa de proteger a população, Goiânia priorizou o investimento em câmeras de segurança e deixou de gastar com áreas essenciais para a sociedade. No ranking de Competitividade dos Municípios, realizado em 2023 pelo Centro de Liderança Pública, Goiânia caiu 50 posições. De acordo com o instituto houve queda em indicadores importantes, como qualidade da educação, capital humano, telecomunicações, saneamento, meio ambiente, funcionamento da máquina pública e acesso à saúde.

Em conversa com Yasmin Rodrigues, pesquisadora associada ao Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV/SP e ao site Panóptico, quando questionada sobre a má utilização da tecnologia, usou especificamente o exemplo do estado de Goiás. Em suas palavras, milhões de reais foram destinados à implementação de câmeras com reconhecimento facial em locais onde a população sequer tem acesso a esgotamento sanitário. "Se isso não é um erro, não sei o que é”, respondeu a pesquisadora.

Fazendo parte do mesmo movimento, a prefeitura de São Paulo assinou no dia 7 de agosto deste ano um contrato para instalar 20 mil câmeras de reconhecimento facial nas ruas da cidade. A concorrência do edital fugiu da norma e das leis corriqueiras de uma licitação nestes moldes. A empresa que ganhou o edital, o Consórcio Smart City SP, liderado pela CLD Construtora, ficou em terceiro lugar com o custo médio de 600 mil reais a mais que as outras entidades.

Uma demonstração da tecnologia da Smart Sampa na Consumer Electronics Show de 2019
Uma demonstração da tecnologia da Smart Sampa na Consumer Electronics Show de 2019.
Imagem: David Mcnew AFP

De pronto, se formou uma oposição a esse projeto. Um dos fronts, formado contra os percalços jurídicos do processo suspeito, foi formado pelas investigações do Ministério Público estadual e federal.

Lado a lado, ONGs como a Lapin e a Coding Rights se organizaram contra o projeto pelos moldes em que foi feito. Na primeira versão do edital previa-se que o sistema deveria reconhecer pessoas pela cor da pele, que poderia descambar a tecnologia em puro racismo, e identificar comportamentos suspeitos como “vadiagem”, uma posição elitista e retrógrada sobre a vida social dos indivíduos.

As suspeitas em torno desse projeto se fortaleceram quando informações antigas da CLD Construtora voltaram à tona. Quando ainda chamava-se Consladel, os donos da empresa, Auad e Moura, se envolveram em uma série de denúncias de corrupção em fraudes de licitações públicas, em grande parte na prefeitura de São Paulo.  Em 2013 a empresa foi denunciada no caso “Máfia dos Radares”. Eles foram acusados pelo MP de pagar propina a funcionários da prefeitura de São Paulo, de cidades do interior e de outros estados para que comprassem os radares que eles fabricavam a preços superfaturados. 

As movimentações contra o projeto Smart Sampa, entretanto, não foram suficientes para demover os planos do prefeito. A Smart Sampa foi aprovada e já começou a ser implementada. Ricardo Nunes, prefeito de São Paulo, justificou o projeto em nome da segurança pública dos cidadãos. Em contrapartida ele foi contra uma política muito elogiada por especialistas em segurança e violência urbana, as câmeras em fardas de policiais e guardas civis. 

Não resta dúvida sobre a inclinação política do prefeito. Se ele adotou uma ferramenta e outra não, é só ligar os pontos para presumir o viés da tecnologia. Yasmin Rodrigues afirmou que sob a redoma discursiva da inovação que acompanha o uso de reconhecimento facial, têm sido implementadas políticas orientadas pelas velhas práticas: perseguição a jovens negros, desrespeito a direitos fundamentais e muito dinheiro destinado a prender, prender e prender como se isso resolvesse alguma coisa

A IA, entretanto, não é de todo mal para a segurança. A pesquisadora do Panóptico relembra que os usos da tecnologia dependem muito mais dos seus objetivos e nós não podemos ser deterministas sobre seus usos: “Certamente, a tecnologia pode ser nossa aliada. A tecnologia é isso: uma aliada. Ela não é a solução para nada. Desenhando bem a forma como ela será utilizada, a gente caminha. Veja como as ‘bodycams’ têm sido importantes para as polícias. Em relação a monitoramentos automatizados, por que não monitoramos a circulação das armas, por exemplo? É uma pergunta que sempre fazemos.”


 

Diferentes tecnologias de captura de imagem foram incluídas no trabalho policial, mas continua a demonstrar problemas
por
Christian Policeno
Antônio Bandeira
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27/11/2023 - 12h

Por Christian Policeno e Antônio Valle

 

Felipe acordou cedo aquela manhã, seu despertador tocou, ele levantou rapidamente para se arrumar, e a primeira atividade do seu dia, foi justamente filmar o caminho até o seu trabalho, para postar em uma das suas redes sociais, pronto para enfrentar mais um longo dia de trabalho e estudos. Vestiu seu uniforme e partiu para o metrô. Ele trabalhava em uma loja no centro da cidade, em uma rua muito movimentada, consequentemente, com muitos clientes. Ele gostava de ajudar as pessoas a achar exatamente o que precisavam. Sempre com um sorriso no rosto, era um dos atendentes mais procurados. Mas, aquele não era o sonho de Felipe, que desejava se tornar um advogado, e precisava do emprego para ajudar a pagar sua faculdade de direito, a qual estava cursando. Por isso, após o expediente, o atendente saia do serviço com pressa em direção ao metrô, para chegar à universidade. O trajeto da estação até a faculdade era curto, mas Felipe aproveitava a caminhada para ouvir músicas e relaxar. 

Aquele dia, o jovem recebeu a notícia de que seu professor iria atrasar alguns minutos, então andou com mais calma, sentou  em uma praça e bolou seu tabaco, que fumava todos os dias no trajeto. Felipe deu um trago e voltou a andar, com seu “cigarro” na mão. O sol caía, e o dia ficava escuro. De repente, passou uma viatura da polícia militar, que passou batida. A rua, naquele ponto, ainda estava movimentada, com alguns comércios abertos. Mas, o jovem foi se afastando das pessoas. Quando chegou em um ponto onde não tinha ninguém, porém ainda estava visível para quem estava na rua, percebeu que aquela mesma viatura voltava em sua direção, e, o jovem percebeu que seria enquadrado. Felipe é um jovem negro. Seu coração acelerou, estava um pouco nervoso. Felipe já tinha passado por muitos enquadros, então, logo se tranquilizou, não tinha nenhuma droga ou nenhum outro tipo de flagrante. Era mais uma “abordagem de rotina” e só, então, seria liberado. Pernas abertas, dedos cruzados e mão na cabeça, encostado no muro cinza por qual passava. Eram três policiais, uma mulher,  que estava muito alterada, e os outros bem tranquilos. “Onde está a maconha!?”, ela repetia agressivamente, enquanto revistava o garoto. Felipe mostrou o tabaco, esvaziou os bolsos, mochila, tudo o que tinha para mostrar. Nada, estava limpo, sem maconha, drogas ou qualquer tipo de entorpecente. Ainda assim, ela insistia perguntando onde estava a maconha fumada com o tabaco.

Depois disso, a policial disse para seus colegas que era para eles desligarem a câmera porque eles estavam fazendo um serviço diferente e seria necessário economizar bateria, o que infringe a lei. O estudante não consegue lembrar o motivo exato usado na hora para justificar o desligamento do equipamento, mas foi inventada uma desculpa e as câmeras foram desligadas. Nesse momento, Felipe que estava tranquilo, passou a ter muito medo do que poderia acontecer. Apesar de ainda estar à vista de outras pessoas, a câmera, objeto para garantir sua segurança, não estava lá.  Suas mãos ficaram frias, seu peito quente, o coração palpitava e, na noite fria, sentia ondas de calor. Medo. Não de morrer, ou de perder seus pertences, mas, com muito medo sofrer violência física, de apanhar. Aquilo o deixava muito aflito. Os policiais continuaram a mexer em seus pertences, dois dos policiais continuavam tranquilos, mas a mulher parecia ainda mais agressiva, agora, com a câmera desligada, voltando a questionar onde estavam as drogas, mesmo sem achar nada. Com o equipamento desligado, conforme o tempo passava, o medo só crescia e ameaças de agressão física começaram a acontecer, repetidamente. A tensão aumentava. Após isso tudo, a policial voltou a pedir os documentos e liberou o rapaz, ainda com uma atitude bem grossa, mas sem lesão física. O que era um dia normal, se transformou em um pesadelo. Felipe foi à aula, mas disse não conseguir prestar atenção no conteúdo, pois ainda estava assustado e reflexivo sobre o motivo e a forma da abordagem.

Michel Nicolau Netto, sociólogo e professor na UNICAMP, disse que as câmeras corporais da polícia, na verdade, é uma nova prática que tem se espalhado em vários lugares do mundo e no Brasil começou a ser usada em 2020, em mais de 60 batalhões. Ele acredita que ainda são necessários mais dados para se dizer de fato qual a eficácia do uso da tecnologia. Contudo, alguns estudos apontam dados promissores, com a diminuição de letalidade causada por policiais e do próprio corpo policial, a maneira que a lógica da câmera já justifica o seu uso. Por um lado, a lógica é para saber exatamente como a polícia está abordando as pessoas, porque, evidentemente, a força policial é uma força que se coloca em lugares e situações de violência e ela está lá para conter a violência, não para praticá-la. Então, a primeira coisa é saber se o poder público está justamente agindo dessa forma. Nesse caso, o objetivo é conter a violência e proteger a população. Ainda, em um país onde a mortalidade produzida por policiais é muito alta (uma das mais altas do mundo), a câmera se torna ainda mais necessária. Todavia, ela é de forma conjunta, uma forma de proteger os próprios policiais, porque com as câmeras os outros soldados, podem acompanhar uma ação e saber, por exemplo, que tem algum colega em perigo, e assim ter esta situação, pode justamente ir em seu resgate, etc. Nos primeiros dados que surgiram em 2022, as duas coisas aparecem como positivas, tanto a diminuição da letalidade provocada pela polícia, quanto a diminuição da letalidade contra os policiais. Porque você imagina as duas coisas, do mesmo jeito que um policial vai buscar agir dentro da norma, sabendo que ele pode estar sendo observado, um eventual criminoso, vai pensar duas vezes em agir contra o policial, porque ele obterá conhecimento que está sendo gravado. Então, é uma ação de um lado que protege a população, de outro lado, protege a própria polícia. E, por fim, é uma ação que profissionaliza e dá transparência, que é um princípio público. Um dos princípios públicos mais importantes é o da transparência. O equipamento dá a transparência do servidor público, como o policial. Então, também é um outro motivo para essas ações existirem.

A Justiça de São Paulo determinou que câmeras fossem instaladas em veículos e fardas da Polícia Militar, não podendo ser desligadas. A 8ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo determinou no dia 13 de setembro de 2023 que policiais em todo o estado deverão usar câmeras corporais nas fardas e mantê-las ligadas durante o expediente, com multa de até R$100 mil para policiais que desligarem a câmera durante o trabalho. O juiz também proibiu o uso de qualquer outro objeto para amarrar suspeitos, além das algemas, pois cordas eram bastante utilizadas. A decisão é decorrente de um processo movido pela ONG Educafro, que se manifestou depois de um vídeo que mostra um homem com mãos e pés amarrados sendo carregado por policiais circular nas redes sociais. Segundo o Fórum de Segurança Pública, a utilização de câmeras é vista como sinônimo de profissionalização da polícia. No Brasil, o instrumento é visto como uma forma de reduzir a letalidade causada pela polícia, principalmente de jovens negros, estabelecendo maior confiança da população em relação ao orgão da segurança pública. De acordo com o Comitê Paulista Pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, houve quase 1.000 mortes de jovens com menos de 19 anos, decorrentes de intervenção policial no estado entre 2015 e 2018. O caso de Felipe não é único, e também, pode se ver nesse caso de Raphael Vicente, influenciador digital e cria do complexo da Maré, no Rio de Janeiro, em ambos os casos o uso de tecnologia está no centro da ação policial.

Raphael estava em casa, era dia. Abruptamente começou a ouvir batidas fortes em seu portão. O jovem se assustou, mas foi abrir a porta. Era a polícia que entrou em sua casa sem perguntar nada e saiu revistando tudo. Depois, os policiais perguntaram quem morava lá e só foram embora ao ver o Instagram de Raphael, que contava com muitos seguidores.

A história pode ser contada através de diferentes bocas entre os 120 mil moradores da comunidade. O relato de Raphael fala da operação policial que ocorreu no dia nove de outubro deste ano, na periferia da zona norte carioca. A operação policial contra o tráfico de drogas, envolveu três das maiores comunidades da zona norte da terra fluminense, a Vila Cruzeiro, o complexo da Maré e a Cidade de Deus. Com a justificativa de combate às drogas, os policiais resolveram adentrar as comunidades para realizar mais uma operação. Por mais que os anos de UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) já tenham comprovado que a busca pela paz nas comunidades não se resolve com mais policiamento violento e parcial, a situação infelizmente ainda não se alterou, e está longe de mudar. Porém, um detalhe importante nessa nova operação, que a diferencia de todas as outras que já aconteceram na cidade carioca nos últimos anos, é a soma de novas tecnologias para auxiliar o corpo policial na operação. A operação mostrou que as câmeras corporais não são a única tecnologia utilizada pela segurança pública. O uso de drones com reconhecimento facial e leitura de placas estão sendo utilizadas na operação, junto às câmeras corporais, monitoradas  pelo Centro Integrado de Comando e Controle. Segundo o Secretário da Polícia Civil do Rio de Janeiro, a tecnologia é um diferencial para minimizar a quantidade de vítimas inocentes. Todavia, a história não parece ser bem assim. A ONG Redes da Maré, criada por moradores e ex-moradores da comunidade que monitora as ações de violência no território desde o início da Operação Maré, informa que ao menos 120 mil moradores estão sendo impactados de maneira direta ou indireta pelas ações policiais. Além disso, outro fator super importante, quando a questão é o uso das tecnologias na operação, é que a ONG registrou policiais sem identificação e sem câmeras nos uniformes, o que estaria em desacordo com as diretrizes estabelecidas na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635/2019, do Supremo Tribunal Federal (STF). Ou seja, o discurso utilizado pelo Secretário da Polícia Civil, demonstra que o uso do reconhecimento facial, como auxílio positivo para a população “inocente”, permanece apenas como um discurso, e não como algo benéfico na prática, inclusive, é muito perigoso, como podemos ver no caso a seguir. 

Passeando com filho e esposa, um homem, negro, passou por uma das situações mais constrangedoras e de violação de seus direitos em praça pública. Ao chegar no Parque das Exposições, de Salvador, para aproveitar um dia tranquilo de festa junina, o vigilante foi abordado e preso por um roubo, que ele não cometeu. Foram 26 dias atrás das grades, por um crime cometido por outra pessoa, ainda em 2012. O autor do crime foi preso em flagrante e solto em 2013, posteriormente, sendo condenado a 5 anos de prisão. Após o ocorrido, não se sabe como, um mandado de prisão foi feito com o nome do vigilante, mesmo sem ele nunca ter cometido um crime. A SSP-BA alegou uma similaridade de 95% entre os dois homens, o que ocasionou a injustiça. Preso na frente de sua família e tendo seus direitos, garantidos por lei, violados, o homem ainda perdeu o emprego devido a prisão injusta, ele começaria a trabalhar em uma nova empresa três dias depois do ocorrido. Apenas um dos casos de erro do reconhecimento facial.

Um dos assuntos mais comentados na mídia atualmente, envolvendo a questão jurídica é a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), que “dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural”. Por isso, a advogada Karine Dias Eslar, presidente da comissão de compliance da OAB-GO e especialista em LGPD, disse que a tecnologia de reconhecimento facial é uma tecnologia necessária e útil nos nossos dias atuais, contudo, apontou que a imagem do indivíduo é tida como algo sensível, perante a LGPD e o reconhecimento facial. Por utilizar essa inteligência artificial que vai fazer a leitura desses dados, ela é ainda mais preocupante do ponto de vista do direito à personalidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. O reconhecimento facial por ser uma ferramenta que possui utilidade, e que tende a crescer cada vez mais no país, ela necessita de seriedade, e explicações para o cidadão que será submetido ao uso de seus dados para a tecnologia. Como o uso da tecnologia envolve uma ferramenta útil, ela não pode ser utilizada indiscriminadamente, e o dono da face, que é lida pelo reconhecimento facial, precisa ser plenamente informado assim como determinar a lei acerca da finalidade dos objetivos. Ou seja, explicar para o cidadão, o porquê da coleta daquele reconhecimento facial, daquela linguagem corporal, então é necessário que haja toda uma uma explicação eficiente, eficaz e transparente, pela instituição que estiver usando estes dados.

A utilidade e a pertinência do uso de reconhecimento facial na segurança pública é questionada por entidades de direitos digitais e do movimento negro. A relatora especial das Nações Unidas sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância relacionada E. Tendayi Achiume, no relatório “Discriminação racial e tecnologias digitais emergentes: uma análise dos direitos humanos”, afirma que a adoção de novas tecnologias devem ser precedidas de avaliações obrigatórias de impacto nos direitos humanos e que “caso essas avaliações revelem que uma tecnologia tem alta probabilidade de impactos raciais díspares e prejudiciais, os Estados devem impedir seu uso por meio de proibição ou suspensão”.  Iara Moura, coordenadora executiva do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social, e parte da campanha “Tire Meu Rosto da Sua Mira”, acrescenta e explica que ainda há uma brecha legal para o uso dessa tecnologia no país. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais ainda não tem uma regulamentação específica para o reconhecimento facial. Tem um projeto de lei que está em tramitação no Congresso sobre inteligência artificial e que vai trazer alguns parâmetros que podem ser aplicados ao reconhecimento facial, mas a gente não tem ainda uma regulação específica.  A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais traz alguns parâmetros que são importantes para serem observados, mas ela tem uma excepcionalidade no que tange a segurança pública e isso torna mais difícil a gente regular e estabelecer parâmetros. Somado a isso, Moura alerta para a quebra de direitos individuais garantidos por leis e para o uso de uma tecnologia enviesada que já aumenta a perseguição de minorias. Essa tecnologia traz diversos riscos para os direitos fundamentais dos indivíduos, como o direito da privacidade, o direito à liberdade de expressão, a manifestação e o direito de ir e vir, principalmente, porque não tem regulação específica sobre como será tratado esses dados, protegido esses dados pessoais, então abre possibilidades que já estão bastante concretas de aprofundar as discriminações, controle sobre populações e grupos específicos, não só do ponto de vista individual, mas coletivo. Segundo o relatório “Retratos da Violência”, 90,5% dos presos por monitoramento facial, são pessoas negras, competindo com uma minoria de 9,5% de pessoas brancas. Milhares de prisões foram feitas com a ajuda dessa tecnologia, apenas no estado da Bahia, a Secretaria de Segurança Pública divulgou um balanço de mais de mil detidos, com a justificativa de que as pessoas presas estavam nos dados de mandados de prisão. Mas, mesmo o estado considerando o uso do reconhecimento facial um sucesso, muitos inocentes foram presos por erros da tecnologia. 

Iara explicou, em entrevista à AGEMT, um pouco sobre como funciona essa inteligência artificial: a tecnologia de reconhecimento facial tem um algoritmo próprio, baseado em sistemas do que a gente chama de inteligência artificial, que faz um cruzamento de dados com algum outro banco de dados já consolidado. No caso, um banco de dados da Secretaria de Segurança Pública, assim como é, quando é para buscar suspeitos ou foragidos da justiça ou o próprio dado geral dos RGs, CPFs, dos cidadãos. É a partir do cruzamento dos bancos de dados e das imagens, com dados biométricos, que é gerado o reconhecimento facial, determinando quem é aquele sujeito ou indivíduo. O que, como ficou claro no caso acima, muitas vezes não funciona, principalmente para pessoas negras e trans. Moura, explica como essa tecnologia é enviesada. É comprovado um viés racista e um viés transfóbico nesse uso. Várias dessas tecnologias utilizadas no Reino Unido, em vários países da Europa, nos Estados Unidos, já tem testes. Já tem muitos estudos científicos que comprovam maior dificuldade de reconhecer rostos de pessoas trans e que, por outro lado, coloca os rostos de pessoas suspeitas sempre na mira de pessoas negras. A tecnologia não é neutra, desde sua configuração construída a partir do norte global. São empresas privadas, como a Microsoft, que vendem esses sistemas, feitos por homens brancos. Então, elas já vêm desde a sua programação contaminadas, digamos assim, com o viés racista e com o viés, também, transfóbico. Fora isso, em um país como o Brasil, que já tem uma desigualdade estrutural baseada em raça e baseada em gênero, o uso dessa tecnologia tende a aprofundar as questões correntes de criminalização, de perseguição dessas populações. Por isso, para a campanha ‘Tire Meu Rosto da Sua Mira’, não é possível uma moratória, não é possível melhorar essa tecnologia para uso em segurança pública. Ela precisa ser banida para esse uso específico, porque senão ela só vai aprofundar e reiterar essas desigualdades estruturais.

Então, o discurso referente ao uso do reconhecimento facial, como ferramenta da segurança pública, demonstra erros, assim como a câmera corporal, que deve melhorar com a obrigação de mantê-las ligadas. A tecnologia é cara, mas falha. Só na Bahia, já foram mais de 650 milhões de reais investidos pelo Estado. Salvador tem sido referência no Brasil inteiro quanto ao uso do reconhecimento facial na segurança pública, mas Moura mostra como o sistema é falho. “Na Bahia, no mês de setembro, foram duas pessoas mortas por dia por conta de ação policial violenta, então teve toda uma crise, está tendo toda uma crise de segurança pública e esse é o estado que é tido como exemplo no uso das tecnologias de reconhecimento facial, então fica um contrassenso aí bem explícito de o quão ineficaz é essa tecnologia”. 

Felipe disse ter medo da tecnologia estar na mão das pessoas erradas e teme como isso pode afetar a sociedade. Para ele, o mau uso das tecnologias como as câmeras pode prejudicar a vida de várias pessoas em um nível muito grande. O jovem agradece por não ter acontecido nada físico a ele, mas sabe que com as câmeras desligadas podem acontecer com outras pessoas. A tecnologia da câmera está à disposição da Segurança Pública, mas tem de servir para a proteção da população, não para causar medo. Tanto a câmera corporal, quanto o reconhecimento facial, de maneiras diferentes, ainda têm se mostrado com problemas para a população, principalmente a negra.

 

 

A história de milhões de brasileiros nasce na falta
por
Gabriela Figueiredo Rios
Victoria Leal
|
21/09/2023 - 12h

Por Gabriela Figueiredo (texto) e Victoria Leal (audiovisual)

Vento no rosto, uma pradaria em tonalidade verde queimada e muito suor. Esta era a visão de Zé Braz enquanto trabalhava na plantação com seu pai, ainda na pré-adolescência. A vida começa cedo para quem nasce na falta. Eram muitos irmãos e apenas algumas mãos para dar conta de toda a demanda da casa. Os semblantes cansados dos pais refletiam a falta de condições para manter a dignidade de uma família. Ainda mais comum do que se imagina, é dar um jeito de sobreviver à falta de emprego de carteira assinada e escolaridade do primário. O jeito foi mudar de Iapu, interior de Minas Gerais, para São Paulo, em um movimento migratório em busca da sorte, como os milhares que levantaram as estruturas e história da capital. Zé Braz está primeiro entre estes milhares.

Os bicos para arrumar dinheiro vieram antes das apostas, mas elas não deixaram de vir. Em suas próprias palavras “começou primeiro com a bebida, depois o cigarro... aí o jogo. O jogo é terrível. Eu sei que a gente não pode colocar a culpa na bebida, mas todo mundo fazia na época. Jogava truco, baralho, sempre valendo dinheiro, aí apareceram novos jogos... jogava na loteria também, fazia esses jogos de montante com os caras do bar sabe [...]. Joguei no bicho, sempre ganhava miudeza, qualquer dinheiro que entrava já era alguma coisa. Mas aí pegava e gastava no bar.”

Zé representa apenas uma pequena parcela das pessoas que tiveram problemas com apostas no Brasil. Apesar de ter experiências apenas com apostas em jogos de bares, casos semelhantes com apostas esportivas online vem se tornando algo comum na vida dos brasileiros. Tão comum, que segundo a pesquisa Industry Insights, feita pelo jornal O Globo, para 12% das pessoas que responderam, as apostas são a principal fonte de renda. Para 67% dos brasileiros, apostar hoje é entretenimento e para 43% é negócio. O risco está se tornando comum. 

As apostas esportivas online funcionam por casas de apostas, que são os modelos mais populares hoje e mais simples. As pessoas escolhem uma situação dentro de um evento esportivo e apostam nas probabilidades com maiores chances de se concretizar dentro do jogo. Seja desde o cavalo que vai disparar em primeiro em uma corrida, até a quantidade de pênaltis em uma partida de futebol. Se o resultado se concretizar, os jogadores recebem um pagamento com base nessas probabilidades.

 Em ritmo crescente no Brasil, essa modalidade já era muito comum em países europeus, que praticavam alternativas “rentáveis” para dinamizar ainda mais os jogos. Por ser uma questão emergente no País e que se acentuou ainda mais por conta da pandemia, o mundo das apostas online é a forma mais fácil de se lucrar. Desde que você não esteja do lado mais fraco da corda.

E o lado mais fraco da corda é formado pelos milhares dos quais, não só Zé Braz fez parte, mas Mateus Haidar, de 27 anos, advogado e empresário, também somou. Mas o verde que o Mateus enxergava deste lado, era o tecido da mesa de poker, que começou presencialmente, mas logo passou para o online, “em sites como pokerstars e partypoker, naquela época só existiam sites gringos. Percebi que estava viciado quando perdia rapidamente o dinheiro que recebia trabalhando para as casas”.

Segundo pesquisa do Datahub, publicada pela Máquina do Esporte, o crescimento de empresas de apostas esportivas digitais no Brasil foi de 360%, entre 2020 e 2022. E seguindo o movimento publicitário de todo novo comércio emergente, não demorou muito para que as casas começassem a patrocinar influencers, pagar por anúncios e até investissem em mídias offline - anúncios em estádios e telas espalhadas pelas cidades - para atingir seu público alvo. 

Em uma polêmica recente, no mês de junho deste ano, o youtuber e influenciador digital Felipe Neto foi questionado de continuar apoiando e divulgando a casa de cassinos e apostas “Blaze” - que fechou contrato com o comunicador em 2022 - após ser acusada de calote na Internet pelos usuários, por não pagar os clientes que obtinham lucros financeiros. Outros influenciadores de grande impacto, como a advogada Deolane Bezerra, ex-esposa do funkeiro, Mc Kevin, também faz parte do grupo de pessoas patrocinadas pela empresa. A advogada tem mais de 5 milhões de seguidores no Instagram e também recomendava a casa em suas redes sociais. 

Em declaração à Agência Mural, o diretor, André Gelfi, do Instituto Brasileiro de Jogo Responsável, composto pelos grupos Bet365, Flutter, Entain, Betsson Group, Betway Group, Yolo Group, Netbet Group, KTO Group, Rei do Pitaco, Novibet, LeoVegas, Grupo OKTO e Pay4Fun, afirma que o instituto se preocupa com a proteção de menores de 18 anos na divulgação das casas de aposta que o compõe. 

O grupo desenvolveu uma nova cláusula que proíbe o direcionamento do conteúdo para menores de idade e a utilização de imagens de "pessoas ou personagens, reais ou fictícios, de relevância ou notoriedade pública que atraiam a atenção dos jovens”. Apesar da parcela significativa de casas de apostas que entendem e procuram minimizar o impacto negativo por meio da publicidade, não existe regulamentação oficial direcionada a publicidade de jogos para menores ou fiscalização de que a documentação cadastrada não seja de parentes maiores de idade, como também explicitado na reportagem da Agência Mural. 

DE OLHO NO PERIGO

Na pesquisa de perfil de apostadores do Panorama Mobile Time/Opinion Box, publicada em maio de 2023, foi identificado que o padrão médio dos jogadores é homem, jovem e de baixa renda. Na análise de faixa etária, 36% dos indivíduos no grupo de 16 a 29 anos já apostaram em plataformas de apostas esportivas e dos mais de dois mil entrevistados, 30% são das classes D e E.

O risco das apostas esportivas passa a existir no momento em que ela deixa de ser feita por entretenimento e começa a simbolizar algo vital, como a principal fonte de renda do indivíduo ou o lugar em que a fonte de renda é “investida” - que gera a sensação falsa de uma possibilidade segura de lucro. Em primeiro plano, porque as estatísticas esportivas não são baseadas em padrões fixos, mas probabilidades, como tendências históricas e estatísticas defensivas de um time, que podem variar a cada jogo. E em segundo plano, pelo aumento dos casos de manipulação de partidas de futebol, em que, segundo os dados da Sportradar, o futebol mundial registrou um aumento de 34% no número de partidas suspeitas, apenas em 2022.

Em terceiro plano, a psicóloga e analista Adriana Munford explica que o vício, ou seja, a incapacidade de deixar um padrão de lado, pela perda de autocontrole sobre a situação, é o que caracteriza a compulsão de jogadores que não conseguem deixar de apostar, mesmo depois da frustração da perda, inclusive com frequências variadas. 

 

Mas Adriana não é a única que alerta sobre os perigos de começar a apostar e transformar o jogo em uma parte essencial da vida. Mateus Haidar, depois de sobreviver às dificuldades de largar de vez o mundo das apostas, começou a criar conteúdos no TikTok e outras redes sociais para ajudar quem está endividado ou em situação extrema, correndo riscos de vida. 

“Todos os dias recebo mensagens de pessoas que estão flertando com o suicídio, fora os casos de suicídio consumados que aparecem na mídia, aparentemente o jogo patológico será um enorme problema de saúde pública muito em breve”. 

No fim, os atingidos pela expectativa da renda extra e lucro gerado pela efêmera probabilidade de ganhar algo que nunca tiveram, são os que nasceram na falta. Mais comum do que se imagina, é pensar que absolutamente nada pode nascer de uma falta, de algo que não existe. Mas foi ainda nessa vida que Zé Braz construiu a sua nova vida, antes de perder tudo. “Conheci minha ex-mulher, casamos, montamos uma casinha ali na Habitação [imóvel ofertado a pessoas de baixa renda em São Paulo] e eu segurei um pouco essa vida né [de apostas], arrumei um empreguinho registrado e comecei a pagar o INSS, mas a bebida continuou [vício], não deu pra parar não”. 

Zé Braz primeiro perdeu o amor, depois o emprego, uma parte do dinheiro, mas ficou com a casa, que era seu único abrigo, mesmo que só tivesse o físico. Mas não foi suficiente para preencher o vazio de não mais falar com a filha e dividir conselhos com alguém. Zé começou a refletir o semblante dos seus pais. “Fui e voltei pra vida do cão” o seguro desemprego virou jogo e antes de voltar para os bicos e tentar reconstruir a sua vida, fez lembranças no bar da Dona Lina. O bingo de Internet era mais fácil, bastava sacar 50 ou 100 cartelas de uma vez, com números prontos, para ver quem ganhou dessa vez. 

“Deixava todo o dinheiro do auxílio lá no bingo, na cachaça, até que não me deixaram jogar mais, a Dona Lina disse que não ia vender mais pra mim. Hoje eu vivo de bico de pintor, passo textura, grafiato e pequenos reparos, tô vivendo de aluguel porque vendi a casa na habitação e o dinheiro foi todo pra mulher, cachaça e jogo".