Todos os dias, por volta das 7h00min, André chega no trabalho, toma café e se posiciona em sua mesa. Depois de uma reunião com o restante da equipe, começa a escrever - é assim que ele e outros do ramo da programação chamam a prática de desenvolver linhas de códigos. Em meio a trabalhos mais abstratos e diferentes, surgem demandas mais básicas, que precisam de mais execução que criatividade; nesses momentos, ferramentas de inteligência artificial são acionadas. André Luís deixou o Recife-PE há quase quinze anos. Em São Paulo, encontrou oportunidades de estudo e trabalho. Trabalha na mesma empresa, do ramo de tecnologia, desde 2018, em muitas funções. Já foi auxiliar administrativo, mas hoje trabalha numa função que lhe agrada mais: é um desenvolvedor júnior, responsável pela programação de softwares para outras empresas, fato que comprova o crescimento do mercado tecnológico.
Essas tecnologias estão assumindo cada vez mais protagonismo na área de programação - e assustam: uma pesquisa recente da Microsoft aponta para esse cenário: 49% dos entrevistados estão preocupados com a possibilidade de serem substituídos por inteligência artificial. Economistas do banco Goldman Sachs, estimam que 300 milhões de empregos poderão ser totalmente automatizados com esse tipo de ferramenta. O setor de programação e desenvolvimento, entretanto, não é o único mercado afetado pela tecnologia nos últimos anos. Ricardo Antunes, sociólogo, escritor e professor da Unicamp, considerado o maior especialista em trabalho do Brasil, conta que alguns dos muitos trabalhadores impactados por tecnologia são os entregadores e motoristas de aplicativo.
Esses profissionais passam por um processo chamado de “trabalho intermitente”. Os aplicativos dão duas escolhas ao trabalhador: ou recebe, ou descansa. Se o entregador parar para descansar e fechar o app, não será recomendado para uma entrega tão cedo; se o motorista recusa corridas para almoçar, idem. “Entre o almoço e a janta, e entre o café da manhã e o almoço, são horários com menos demanda. Eles [entregadores] ficam parados e não recebem. É criminoso, mas é assim que funciona. E o fato de ser intermitente faz com que os algoritmos paguem o que quiserem, explica Ricardo Antunes.
Apesar das críticas, o pesquisador diz não ser contra o avanço tecnológico, e sim contra o modelo capitalista vigente. “A tecnologia existe na humanidade desde o primeiro microcosmo familiar. O capitalismo mudou a tecnologia para ser um instrumental para acumulação de mais riqueza”, afirma.
UNIVERSO DA PROGRAMAÇÃO
André é especialista em “C#” (a pronúncia é C Sharp), uma das várias linguagens de programação existentes, assim como Java, HTML e Python, por exemplo. Ele conta que a parte mais difícil de seu trabalho não é escrever os códigos, e sim decifrar como “traduzir” uma ideia inicial na linguagem de programação. “Você tem que escrever algo que outros programadores possam entender, pra que eles não gastem dias tentando decifrar seus códigos”, conta. Há algumas estratégias para isso.
As inteligências artificiais ajudam, principalmente, na execução de tarefas repetitivas que demorariam muito mais para serem concluídas sem o uso delas. André conta que, quanto mais específico o pedido para a IA, maiores são as chances de um desempenho satisfatório. A assertividade de uma inteligência artificial depende dos dados que ela recebe. Vinicius Cassin, 29, também é desenvolvedor e trabalha como SRE (sigla em inglês para engenheiro de confiabilidade de sites) para a BEES, célula tecnológica da Ambev. Ele passou a utilizar inteligência artificial no dia a dia do trabalho há seis meses; desde então, o ganho foi tanto que a empresa resolveu adquirir uma versão do ChatGPT, da Open AI, para uso interno - e parar de fornecer dados para a versão aberta do site.
“O ChatGPT é assustador”, conta Vinicius. “Há muita coisa que eu não sei, e que em vez de comprar um curso para resolver um problema, eu só digitava lá e ele fazia para mim”. Ele relata que usa a IA como um bom apoio no desenvolvimento de sua função.
O MEDO
Em recente visita ao Brasil, Sam Altman, cofundador da Open AI, empresa criadora do ChatGPT, admitiu que, sim, o mercado de inteligência artificial vai causar desemprego: "Achamos que muitos empregos vão desaparecer, isso acontece em toda revolução tecnológica, mas muitos empregos vão melhorar. Eu acho que vamos ver impacto em todos os lugares. A sociedade pode regulamentá-la, mas não vai impedir isso de acontecer", afirmou o ex-executivo que foi contratado pela Microsoft para desenvolver projetos de IA.
Apesar do uso majoritariamente positivo das IAs, André Luís admite que essas tecnologias assumem funções básicas que anteriormente eram realizadas por programadores humanos. O GitHub Copilot, por exemplo, é um serviço de inteligência artificial que pode substituir facilmente um auxiliar ou um funcionário de suporte em alguns casos.
Ricardo Antunes afirma que, mesmo com seus evidentes benefícios, as inteligências artificiais tem um objetivo claro: substituir o trabalho humano - e isso pode causar um desemprego monumental. Para ele, as IA's são "um demônio contra a humanidade" quando poderiam ser um instrumento favorável - isso, porém, depende do sistema que molda a inteligência artificial. Hoje, é o "capitalismo destrutivo". Ele também conta que o cenário é mais preocupante do que a Open AI assume ser, e dá um exemplo hipotético: para cada 100 empregos eliminados, surgirão outros dez. A conta não fecha. É por isso que Elon Musk, dono do Twitter, e outras grandes high techs como Google, Microsoft e Amazon assinaram uma carta (divulgada em março de 2023) pedindo que os laboratórios de IA “parem imediatamente” o treinamento de sistemas mais poderosos que o ChatGPT4. É muito fácil se iludir com os primeiros passos. O capitalismo agora teme sua criação.
Por Davi Garcia (texto) e Matheus Santariano (audiovisual)
Letícia Dias tem 24 anos e é mais conhecida como “let”. No silêncio da noite, sentada em sua cadeira, ela tem um único objetivo e os olhos vidrados na tela de seu computador. O brilho do monitor reflete em seu rosto e mostra uma grande determinação, ele não está jogando apenas um jogo, está perseguindo um sonho de competir nos maiores palcos virtuais do mundo. Nos últimos anos, os esportes eletrônicos, ou e-sports, emergiram na indústria global em um enorme crescimento, atraindo jogadores de todas as idades e origens. No entanto, por detrás do glamour dos torneios, do dinheiro e da fama dos profissionais dos games, há histórias pessoais de sacrifício, resiliência e superação, que exigem muito do psicológico de quem escolhe essa carreira.
Let é jogadora profissional de VALORANT e já participou dos maiores campeonatos do Brasil, chegando em oito finais e conquistando três títulos. Quebrando qualquer estigma ou predefinição da sociedade, conheceu e se apaixonou pelos FPS (first person shooting) ainda com 12 anos. Não teve muito a presença de amizades femininas em sua adolescência, devido a estar sempre em lan houses assistindo seu irmão.
Foto: Reprodução / B4
À medida que viajamos através de suas experiências, vamos mergulhar no cenário atual dos e-sports, onde o brilho das competições é equilibrado pelas complexidades da saúde mental e a pressão de sustentar famílias. Para os jogadores novos, o caminho parece ser longo e cheio de desafios. A desconfiança dos pais pode ser um grande obstáculo difícil de ser superado antes que os resultados apareçam. Muitas vezes eles desejam um futuro estável e tradicional para seus filhos, e a ideia de seguir uma carreira “jogando videogame” pode ser vista com ceticismo. A paixão e o comprometimento que o jovem leva para o jogo são os primeiros passos em direção ao seu sonho e o principal “combustível” para assim conseguir convencer os familiares. Com dedicação, comunicação e mostrando o potencial que o atleta possui, ele pode gradualmente conquistar a confiança de seus pais e provar que este é um caminho válido e promissor. Mas pode haver problemas a enfrentar.
Let conta que seu início não foi nada fácil, principalmente com a desconfiança das pessoas que mais ama, quando chegou a largar o competitivo para cursar Medicina Veterinária. Porém, com o lançamento de VALORANT na pandemia, a hora de Letícia tinha chegado. Por fim, também conta de seu início complicado no Counter-Strike: Global Offensive, onde estava na fase considerada decisiva para estudos e seus pais eram contrários, com o argumento de ser algo sem futuro e que não dava um rumo para a vida. Contudo, Let queria ser diferente, não desistiu até chegar ao seu sonho e conseguir mostrar para seus pais que conseguiu
Foto: Valorant ZONE / Loud
Quando chegou o lançamento do VALORANT, era a sua hora. Ela começou a ter uma carreira profissional, com salário, apoio na área de saúde, escritório para treinamentos, então só assim os pais da jovem reconheceram os E-sports como uma profissão, e que Letícia Dias poderia viver disso. Seu pai virou seu maior fã, tendo uma coleção de camisa de todos os times que passou. Além da desconfiança dos pais, os jogadores muitas vezes se deparam com preconceitos presentes no mundo dos games. É um cenário onde estereótipos de gênero, idade e até mesmo habilidade podem criar barreiras. Como mulher, essas situações se agravam drasticamente, com diversos comentários misóginos sendo direcionados às atletas. Ainda assim, Let se mantém esperançosa e firme nessa batalha, vendo como algo que é de muito tempo dentro dos jogos, onde já se teve uma evolução, mas que a luta não pode parar de jeito nenhum. Mesmo o preconceito incomodando e mexendo com aquelas que querem uma carreira nos esportes eletrônicos, a vontade de vencer de Let é ainda maior, e ela já provou isso.
Foto: Reprodução / LOUD
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É fundamental lembrar que talento e paixão não têm gênero, idade ou cor. À medida que eles avançam em suas jornadas, podem se deparar com comentários desagradáveis ou resistência de outros jogadores e espectadores. Afinal, em uma posição de imagem pública que os atletas ficam, estão suscetíveis ao linchamento virtual e golpes baixos no psicológico. Let sabe que não é fácil, ainda assim, toma todos os cuidados possíveis para se manter nos trilhos, indo atrás de cuidados para a saúde mental em lidar com a toxicidade do público no cenário inclusivo, onde chega a ser muito pior, para que não a afete tanto. Com o passar dos tempos existem mais pessoas que se unem para combater esses preconceitos, o cenário está evoluindo. Quem está começando agora têm a oportunidade de desafiar essas normas antiquadas, demonstrando que o talento e a dedicação são as únicas métricas que realmente importam. À medida que ganham experiência e constroem suas reputações, criam um grande legado pelo caminho. Essas histórias, repletas de desconfiança, sacrifícios financeiros, e uma paixão inabalável, revelam um lado do mundo virtual que muitas vezes passa despercebido.
Por Rodolfo Dias (texto) e Ian Valente (audiovisual)
Os melhores dias para visitar o Louvre são na segunda e na quinta, como ele fecha às terças, na quarta-feira é lotado, assim como na sexta e fim de semana, o museu mais famoso do mundo recebe cerca de 190 mil visitantes por semana, para aproveitar suas 35.000 exposições. Na minha primeira visita ao site oficial do “forte” Francês, a primeira imagem que me deparo é com a Mona Lisa, a inestimável pintura de Leonardo da Vinci com os dizeres “Welcome to the Louvre”. A arte mais famosa do mundo marca o Renascimento, as técnicas usadas com a genialidade de seu criador a tornam única, e a estranheza de suas histórias que passam por roubos, tentativas de destruição e por ser pintada em madeira são o atrativo para a maioria dos visitantes do museu, que lotam a Salle des États o maior salão do local.
Continuando o tour pelo site, saindo do que seria os pontos altos do local, rolando um pouco o mouse para baixo, me deparo com a aba Louvre at home, como uma visita ao espaço sem precisar estar na frança, de casa é possível conhecer as lendárias paredes do museu. Entre as atrações possíveis de “visitar” em casa está a tal da Mona Lisa, porém em realidade virtual, um jeito de conhecer a mística criação sem precisar visitar a Europa, pegar horas de fila e enxergar por trás de um vidro espesso a prova de balas, a bela Mona Lisa.
A constante mudança na forma de fazer arte impacta diretamente na forma de vendê-la, para uma instituição como o Louvre a renovação de algo criado a 500 anos atrás é necessária, apesar do alto número de visitas feitas à obra, e seu valor em dinheiro inestimável, são muitos os motivos que levam o museu a adotar uma estratégia de interação digital, visto como um paradigma a artistas que trabalham com a tecnologia contemporânea, a utilização da internet é capaz de aproximar as pessoas da arte - É esse lugar que eu tento desvendar com a arte, a gente não pode negar que ela ajuda o desenvolvimento - Comenta Fernando Velázquez, expoente artista visual de São Paulo.
Velázquez além de artista é curador e professor, nascido em Montevidéu (Uruguai) atualmente reside e trabalha em São Paulo, suas principais expressões artísticas vão de encontro com o desenvolvimento tecnológico presente na sociedade contemporânea. Multimidiático, suas obras misturam os aspectos que ligam a arte à tecnologia. Com objetos interativos, elementos audiovisuais e a sustentação do algoritmo nas lógicas de programação, a arte do uruguaio é responsável por reunir a capacidade de percepção intrínseca ao corpo humano com os meios tecnológicos, misturando a arte com fatores científicos, filosóficos e antropológicos.
O artista afirma que a criação de artes relacionadas com a tecnologia é algo intrínseco na sociedade, que a sua evolução depende da relação dos artistas com as diferentes formas de inovar o seu trabalho com tais tecnologias. Considerar a arte como um complexo de ‘’coisas’’ conclui Velázquez, para ele é impossível defini la, já que caso ela seja, o seu caráter subjetivo, o de cada indivíduo interpretar de uma determinada forma, morrerá, impedindo a formação de um campo humano que trabalha justamente com imaginário.
A tecnologia constantemente associada como sinônimo de progresso, ressaltando a sua capacidade de compartilhar conhecimentos de forma instantânea e por permitir a interação entre vários setores, países, culturas e opiniões de forma global, pode apresentar perigos existentes nos meios tecnológicos, sobretudo com o desenvolvimento das Inteligências Artificiais (IA’s), capazes de reproduzirem algoritmicamente características até então monopolizadas pelos seres humanos, a mesma tecnologia capaz de auxiliar o desenvolvimento sociocultural é capaz também de cercear o fator humano das fontes relacionados ao desenvolvimento cultural.
Por serem criadas pelos humanos, esses meios estão, também, propícios a repetir nossos próprios erros e preconceitos. Como o seu desenvolvimento ocorreu de forma mais acelerada nos países colonizadores, elas, consequentemente, foram infectadas com a perspectiva de que o mundo está à mercê do homem branco europeu ocidental que segue tendo o protagonismo da humanidade. Ou seja, as Inteligências Artificiais podem ter alta capacidade de reproduzir o racismo, a homofobia, o machismo, entre outras mazelas, o assunto gera polêmica, mas para Velazquez a construção disso carrega responsabilidades, como indivíduos consumidores destas tecnologias intrínsecas na sociedade, é necessário pensar e analisar o viés desta inteligência.
Um terreno vasto e ainda muito inexplorado que depende de caminhos criativos para, por enquanto, dominar uma arte sem preconceitos. Em sua exposição Rituais da Complexidade, Velázquez consegue expressar artisticamente uma dualidade entre o passado e o futuro, o humano e tecnológico. Nela, imagens são criadas a partir de experiências que envolvem o uso das IA’s obtidas a partir de algoritmos manipulados pelo autor que aprendem e geram novas figuras através do hibridismo, resultado do encontro de estéticas diferentes, como a grega com a africana que, posteriormente, foram impressas por impressoras 3D e expostas. Refletindo sobre a Pós-modernidade, cria-se uma manifestação crítica a respeito de um passado que sequer existiu, bem como de um futuro que mistura arte e tecnologia de outras fontes de conhecimento que fujam de qualquer perspectiva eurocentrista.
Em um panorama, as manifestações artísticas estão sempre ligadas ao objetivo imagético de seu autor, as tecnologias que disparam na atualidade e dominarão potencialmente o futuro destas demonstrações culturais, acompanham as motivações de seus criadores, oligopólios massivos dominam o que há de mais novo no quesito tecnológico, empresas como Google, Microsoft e Meta são alguns nomes consideradas “Big Techs” que detém as melhores e mais novas ferramentas para impulsionar os avanços como lhes convém. Fernando Velázquez conclui falando sobre o papel dos artistas independentes que, diferentemente do Louvre, devem usar as tecnologias para “quebrar” sua lógica programada, criar processos que fujam a todo custo de uma ideia hegemônica e impositiva.
Por Artur dos Santos (texto) e Kawan Novais (audiovisual)
A antena de 30 metros com uma fundação de toneladas de cimento da Rádio Cidadã não há motivo para (e nem intenção de) cair. O que já foi uma antena leve de 20 metros com um dos pés amarrados em uma parede - arrancada com facilidade por uma chuva que Deus mandava enquanto os radialistas se abrigavam em um bar próximo - hoje seguraria até um avião.

O sinal varia, é circular, depende da topografia, no Butantã tem muito morro, e pode alcançar o estádio do Morumbi, mas não na avenida a menos de 2 quilômetros. 500 mil ouvintes são contemplados pela amplitude das ondas todo dia, bairros com mais densidade demográfica têm rádios com maior alcance de pessoas, consequentemente. A sintonia é FM 87.5, dial das rádios comunitárias (RC) legalizado pela Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) na cidade de São Paulo. “Entrando na Sola” e “Na Onda do Forró”, dois dos programas mais badalados da rádio, atingem ouvintes dos arredores de sua localidade, assim como suecos e tailandeses, via digital, mesmo que sem entender o idioma.



Assim como a antena sobe, por rampas ou escadas, a entrada para o estúdio desce, guardada por dois cachorros, um magro com focinho molhado e um velho, que ameaçam fugir do QG de Julio César, responsável pela Rádio Cidadã. “Não repare a bagunça” - diz qualquer dono de estúdio em qualquer lugar. As habilidades de Julio e seus anos de experiência como programador cortam os custos e a dor de cabeça de se manter uma rádio comunitária em pé. Os segredos nas tomadas e o raciocínio lógico de quem trabalha com a área de programação automatizam o funcionamento, e a rádio está no ar mesmo se ninguém estiver em casa.
“Bem tranquilo, apesar de parecer bagunçado. Tem uma parte aqui que você programa tudo que vai acontecer, toda a parte obrigatória, como prefixo, publicidades, tem que passar tem que falar a hora certa de hora… regras que você precisa seguir. Ele programa todas as playlists com parâmetros. Eu coloco a música que o menos tocou, então ele vai pegando sempre essa e separa por estilo também. Samba toca no meio-dia uma, de manhã um reggae, MPB… madrugada putaria toca.”
O estúdio da Cidadã mescla áudio e vídeo, tendência não muito escapável atualmente. Os programas transmitidos via FM 87.5 são, simultaneamente, veiculados no canal do YouTube e no site da rádio, possibilitando mais adesão do público aos programas no ar. Julio não sabe explicar o sucesso de um de seus programas, o Na Onda do Forró, apresentado por “Neguinho da Bahia”, que conversa com o público, faz piadas e realiza seus anúncios. As “tiradas” divertidas de Neguinho ser o motivo do encanto que faz a transmissão ao vivo atingirem 400 ouvintes, algo fora do comum na vida diária da rádio. Mesmo assim, foi impossível explicar como resulta em tanta audiência. Rádios comunitárias como a Rádio Cidadã estão sob as mesmas burocracias de rádios comerciais, com alguns adendos. Os radialistas de uma RC não podem anunciar os preços, a forma de pagamento de anunciantes, ou ao menos anunciar marcas que não tenham representação dentro do bairro. Mas, Neguinho da Bahia tem anunciantes de sobra.

A lei n° 4133, de 2012, impedia as rádios comunitárias de se adequarem a qualquer tipo de financiamento público ou privado visando custear seus serviços ou melhorar as atividades a serem prestadas. Como apoio cultural, era permitido patrocínio, mas restrito apenas aos estabelecimentos situados na mesma área que o rádio estaria estabelecido. Neste ano, 2023, ao fim de agosto, a Câmara Municipal de São Paulo sediou o terceiro Congresso das Rádios Comunitárias de São Paulo, reunindo radialistas da cidade paulista e de outros estados, como do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Bahia. Autoridades federais que também participaram dos debates, expuseram os auxílios existentes para os radialistas e apresentaram as “novidades” que visam suprir as necessidades dos comunicadores.
O principal tema da reunião foi a criação de políticas públicas e a regulação de leis vigentes direcionada às rádios comunitárias. Para se tornar um radialista desta modalidade, o processo se inicia por meio do requerimento para a abertura de uma rádio comunitária através do Plano Nacional de Outorgas (PNO), que é a identificação e seleção de municípios que ainda não têm esta modalidade comunicadora, mas que manifestaram o interesse de tê-la. Após uma série de etapas, o processo resulta no funcionamento legal do veículo de transmissão por 10 anos, podendo ser renovado por outro processo no fim da década.
Julio apresentou seu documento, uma espécie de RG (Registro Geral), mas que não o identifica enquanto um cidadão, e sim enquanto um radialista comunitário legal perante a lei. Mas, no início da vida da Cidadã, quando ainda era caracterizada como uma rádio clandestina, o atual responsável por ela chegou a entrevistar dois ministros, a qual ele não tem mais acesso atualmente. Criada em 1994, era assim que tinha que ser. Clandestina ou regularizada, as Rádios Comunitárias servem uma função social nos bairros em que atuam.
Em 1970, as da Zona Leste eram caixas de som hasteadas em um pau nas esquinas, disseminando informação que se recusava a chegar nas periferias pelos meios tradicionais. A criatividade é a saída. As favelas oferecem um público muito mais engajado, mais do que qualquer outro. Até a transmissão da queima de fogos realizada aos finais de anos, apenas por áudio acontecia, e mesmo que sem a imagem, atraía público a rádio. Pessoas de outras regiões, inclusive mais nobres, paravam para observar em um local que já ocupava o triplo de pessoas de sua capacidade. Mesmo com todo o engajamento, não é suficiente para tornar a Cidadã autofinanciável. De acordo com a lei já citada, as rádios comunitárias, assim como as educativas, conseguem financiamento por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Trata-se de empréstimo realizado por este órgão com a finalidade de modernização, aquisição de equipamentos e instalação de sistemas radiantes.
Por Lucas Allabi (texto) e Guilherme Gastaldi (audiovisual)
Há mais de 50 anos, uma equipe de pesquisa liderada por Woodrow W. Bledsoe realizou experimentos com o objetivo de verificar se computadores de programação seriam capazes de reconhecer rostos humanos. Apesar de não ter tido sucesso, Bledsoe deu o primeiro passo para uma “revolução tecnológica”, responsável pela criação de elementos imprescindíveis no nosso dia a dia. Hoje, por exemplo, os dispositivos móveis lançados já possuem o sistema de reconhecimento facial embutido, possibilitando que apenas o verdadeiro dono do aparelho possa acessar o equipamento.
Nos últimos anos, surgiram novas discussões em relação ao uso dessa nova tecnologia, a principal delas sendo o uso do reconhecimento facial como método de Segurança Pública. Utilizando algoritmos de processamento para identificar pessoas e verificar suas identidades com base nas características do rosto, governos ao redor do mundo enxergam o novo sistema como a solução de todos os problemas, capaz de evitar crimes, roubos e furtos. No entanto, quando vemos as reais implicações do sistema, principalmente no Brasil, começamos a questionar não apenas a sua eficácia, como também as verdadeiras intenções por trás daqueles que o operam.
Na última década, na medida em que avanços tecnológicos ocorreram, o debate ao redor do tema se intensificou. Sendo assim, sob o pretexto de modernizar a segurança pública, políticos da extrema-direita passaram a tomar para si o discurso das tecnologias de reconhecimento facial (TRF). Além de usar a temática como palanque político, o impacto negativo na sociedade causado por essa tecnologia se tornou evidente e esse cenário é facilmente observado no estado de Goiás. Desde o ano de 2014, verbas do governo estadual e emendas parlamentares financiam a instalação de câmeras de videomonitoramento em Goiânia. Em 2019, com a disponibilização de recursos para a instalação de TRFs, municípios goianos tiveram 37 projetos aprovados pelo Ministério, acumulando 50 milhões de reais destinados ao uso da tecnologia em apenas dois anos. Coincidentemente, na época, conhecido por ser o principal articulador e apoiador das TRF, o ex-deputado federal Delegado Waldir (PR e PSL) multiplicou por dez seu patrimônio e conseguiu se reeleger, escancarando o uso da pauta como manobra política.
Além disso, sob a justificativa de proteger a população, Goiânia priorizou o investimento em câmeras de segurança e deixou de gastar com áreas essenciais para a sociedade. No ranking de Competitividade dos Municípios, realizado em 2023 pelo Centro de Liderança Pública, Goiânia caiu 50 posições. De acordo com o instituto houve queda em indicadores importantes, como qualidade da educação, capital humano, telecomunicações, saneamento, meio ambiente, funcionamento da máquina pública e acesso à saúde.
Em conversa com Yasmin Rodrigues, pesquisadora associada ao Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV/SP e ao site Panóptico, quando questionada sobre a má utilização da tecnologia, usou especificamente o exemplo do estado de Goiás. Em suas palavras, milhões de reais foram destinados à implementação de câmeras com reconhecimento facial em locais onde a população sequer tem acesso a esgotamento sanitário. "Se isso não é um erro, não sei o que é”, respondeu a pesquisadora.
Fazendo parte do mesmo movimento, a prefeitura de São Paulo assinou no dia 7 de agosto deste ano um contrato para instalar 20 mil câmeras de reconhecimento facial nas ruas da cidade. A concorrência do edital fugiu da norma e das leis corriqueiras de uma licitação nestes moldes. A empresa que ganhou o edital, o Consórcio Smart City SP, liderado pela CLD Construtora, ficou em terceiro lugar com o custo médio de 600 mil reais a mais que as outras entidades.

Imagem: David Mcnew AFP
De pronto, se formou uma oposição a esse projeto. Um dos fronts, formado contra os percalços jurídicos do processo suspeito, foi formado pelas investigações do Ministério Público estadual e federal.
Lado a lado, ONGs como a Lapin e a Coding Rights se organizaram contra o projeto pelos moldes em que foi feito. Na primeira versão do edital previa-se que o sistema deveria reconhecer pessoas pela cor da pele, que poderia descambar a tecnologia em puro racismo, e identificar comportamentos suspeitos como “vadiagem”, uma posição elitista e retrógrada sobre a vida social dos indivíduos.
As suspeitas em torno desse projeto se fortaleceram quando informações antigas da CLD Construtora voltaram à tona. Quando ainda chamava-se Consladel, os donos da empresa, Auad e Moura, se envolveram em uma série de denúncias de corrupção em fraudes de licitações públicas, em grande parte na prefeitura de São Paulo. Em 2013 a empresa foi denunciada no caso “Máfia dos Radares”. Eles foram acusados pelo MP de pagar propina a funcionários da prefeitura de São Paulo, de cidades do interior e de outros estados para que comprassem os radares que eles fabricavam a preços superfaturados.
As movimentações contra o projeto Smart Sampa, entretanto, não foram suficientes para demover os planos do prefeito. A Smart Sampa foi aprovada e já começou a ser implementada. Ricardo Nunes, prefeito de São Paulo, justificou o projeto em nome da segurança pública dos cidadãos. Em contrapartida ele foi contra uma política muito elogiada por especialistas em segurança e violência urbana, as câmeras em fardas de policiais e guardas civis.
Não resta dúvida sobre a inclinação política do prefeito. Se ele adotou uma ferramenta e outra não, é só ligar os pontos para presumir o viés da tecnologia. Yasmin Rodrigues afirmou que sob a redoma discursiva da inovação que acompanha o uso de reconhecimento facial, têm sido implementadas políticas orientadas pelas velhas práticas: perseguição a jovens negros, desrespeito a direitos fundamentais e muito dinheiro destinado a prender, prender e prender como se isso resolvesse alguma coisa
A IA, entretanto, não é de todo mal para a segurança. A pesquisadora do Panóptico relembra que os usos da tecnologia dependem muito mais dos seus objetivos e nós não podemos ser deterministas sobre seus usos: “Certamente, a tecnologia pode ser nossa aliada. A tecnologia é isso: uma aliada. Ela não é a solução para nada. Desenhando bem a forma como ela será utilizada, a gente caminha. Veja como as ‘bodycams’ têm sido importantes para as polícias. Em relação a monitoramentos automatizados, por que não monitoramos a circulação das armas, por exemplo? É uma pergunta que sempre fazemos.”