Documentário I’m Not a Robot instiga o telespectador a refletir sobre a evolução das máquinas
por
Vítor Nhoatto
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08/04/2025 - 12h

Não sou um robô, uma etapa de checagem comum ao navegar na internet e uma sentença obviamente verdadeira, ou talvez não. O curta-metragem de co-produção holandesa e belga de mesmo nome, problematiza o chamado teste Captcha, quando a protagonista Lara (Ellen Parren, produtora musical, entra em uma crise existencial ao não conseguir provar sua humanidade.

Logo de cara o enredo de Victoria Warmerdam, também diretora da obra,  pode parecer apenas cômico, e a interpretação de Parren colabora para essa atmosfera. Os diálogos curtos e a indignação diante de uma suposta certeza de Lara prendem a atenção do telespectador ao fazer com que haja identificação com a situação. Provavelmente todos nós já erramos um destes testes simples em algum momento.

A história com pouco mais de 20 minutos continua com a indicação que a personagem tem a chance de ser 87% um robô, segundo um quiz online, e a essência incômoda da ficção científica começa a reluzir. Conversas entre humano e máquina existem há cerca de 60 anos, com a criação do chatbot Eliza, e com o avançar dos anos é cada vez mais comum, de fato.

Seja aquele número para marcar consultas ou o serviço de atendimento ao cliente das operadoras, a Inteligência Artificial rodeia as esferas da vida cotidiana e vem evoluindo rapidamente. Tome como exemplo o robô humanoide que já foi capa de revista e é considerada cidadã saudita, Sophia, da Hanson Robotics desenvolvido em 2015. Ou ainda os influencers virtuais com milhões de seguidores do Instagram hoje como a carismática Lu da empresa de varejo brasileira, Magazine Luiza.

Robô Sophia
Sophia foi inclusive ao Talk Show do apresentador norte-americano Jimmy Fallon - Foto: Hanson Robotics / Divulgação

Parece que a barreira entre o físico e digital, natural e artificial vem sendo quebrada, como aborda a obra de Margareth Boarini, “Dos humanos aos humanos digitais e os não humanos”, lançada em julho do ano passado pela editora Estação das Letras e Cores. O primeiro livro da doutora em tecnologias da inteligência e mestre em comunicação se aprofunda nesses casos de coexistência entre robôs e pessoas, porém, até onde se sabe as diferenças entre máquinas e humanos são perceptíveis, ainda. 

Mas como uma boa teoria de ficção científica, o documentário explora justamente um possível futuro da humanidade, em que máquinas e humanos serão indistinguíveis, A saga de Lara por respostas acaba com a revelação de que Daniël (Henry van Loon), marido da personagem, a encomendou sob medida há alguns anos, como se faz com uma roupa hoje.

Suas memórias, sentimentos e até mesmo relações com outras pessoas, ou robôs, são todas fabricadas, como uma versão muito mais avançada do robô Sophia. A comédia permeia a narrativa um tanto quanto impensável aos olhos de hoje, mas curiosa. A seriedade da executiva da empresa que fabricou Lara, Pam (Thekla Reuten) cria uma atmosfera cômica ao assunto, completada pela tranquilidade que Daniël fala sobre sua “aquisição”.

Parren entrega uma atuação que transborda indignação, e o trabalho cinematográfico é inteligente, com cortes que acompanham a visão de Lara. Sobre o ambiente que o filme se passa, todas as gravações foram no CBR Building em Bruxelas, e a ambientação feita com cores vibrantes e apenas carros de época no estacionamento propõe um contraste entre antigo e moderno, frio e robótico, quente e humano. 

O desfecho se dá com o desejo da protagonista de ser dona do próprio destino, relegando o fato de não poder morrer antes de seu “dono”. Isso pode ser visto talvez como uma negação em aceitar a única coisa que a diferencia de um humano, ou como uma mensagem da autora da obra sobre uma rebelião das máquinas.

Fato é que Lara se joga do topo do prédio, em um take muito inteligente por parte da direção ao filmar de cima, e que apesar de pesado e grotesco consegue ser engraçado e não desagradável aos olhos. Tal qual uma morte comum, há muito sangue saindo do corpo, as necessidades fisiológicas também são como de humanos, mas após alguns instantes a robô volta à vida.

Lara e Daniel em um Volkswagen Fusca azul
Com cinematografia cativante e enredo inesperado, é um Sci-Fi cômico e dramático - Foto: Indie Shorts Mag / Reprodução

Incômodo e perspicaz são boas palavras para definir a quinta produção de Warmerdam, que a fez faturar uma série de prêmios internacionais incluindo o Oscar de Melhor Curta-metragem deste ano. Sua produção também se destaca por ser carbono neutro, com o plantio de uma agrofloresta na Holanda para compensar as emissões de gás carbônico (CO2) da obra.

I’m Not a Robot está disponível de forma gratuita no YouTube desde o dia 15 de novembro de 2025 no canal The New Yorker, com legendas apenas em inglês ou holandês. Mesmo com essa barreira linguística, o choque final é inevitável, e a reflexão provavelmente também, se o seu cérebro não estiver se perguntando se você pode ser também um robô.

Cientistas brasileiros deixam o País em busca de melhores oportunidades no mercado científico
por
Brenda Martins
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19/11/2024 - 12h

Por Brenda Costa Martins

 

Enquanto nossos melhores pesquisadores são acolhidos por laboratórios estrangeiros e embarcam em direção aos países que valorizam a academia e a ciência, ficamos à margem das grandes inovações e descobertas científicas, como espectadores de um progresso que poderíamos estar liderando. A formação de cientistas no Brasil enfrenta uma crise profunda, marcada não por apenas dificuldades estruturais como a escassez de equipamentos em Universidades e laboratórios, mas também pela falta de incentivo à estudantes para que sigam na área acadêmica de pesquisas, além das oportunidades limitadas desse marcado no país. Nos últimos anos, temos assistido a uma crescente “fuga de cérebros” — fenômeno em que profissionais qualificados, principalmente cientistas e pesquisadores, optam por desenvolver suas carreiras no exterior, sendo atraídos por melhores condições de trabalho e valorização profissional. Fuga que tem sido alimentada pela escassez de investimentos no campo da ciência e da tecnologia no país.

Desde 2015, cortes orçamentários intensos afetaram diretamente a manutenção de bolsas de estudo, o financiamento de projetos de pesquisa, bem como a continuidade de programas de pós-graduação em diversas áreas. Com menos verbas, muitos laboratórios foram fechados e projetos interrompidos, situação que acabou por criar um ambiente de insegurança e instabilidade para jovens pesquisadores que desejam contribuir com o avanço científico no país.

Nos centros de excelência, como a Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e a Universidade Federal do ABC (UFABC) doutores e mestres formados com alto nível de competência se deparam com um mercado de trabalho retraído. Apesar de contar com instituições de ensino que formam profissionais altamente capacitados, os cortes e as limitações severas no mercado de trabalho continua a fazer com que esses cérebros embarquem para o exterior buscando oportunidades de maior rentabilidade e visibilidade pois para muitos desses cientistas, o ambiente brasileiro se mostra inviável para o desenvolvimento de suas carreiras.  Mesmo entre os profissionais que conseguem uma colocação, as condições de trabalho são frequentemente limitadas, com infraestrutura insuficiente e salários que não condizem com o nível de formação e as exigências da carreira científica.

Esse êxodo de cientistas gera impactos econômicos e sociais observados em longo prazo. Ao investir na formação desses profissionais e, em seguida, vê-los partir para outros países, o Brasil perde o retorno desse investimento, bem como a possibilidade de desenvolver inovações e avanços tecnológicos que poderiam impulsionar setores como saúde, agronegócio e tecnologia. Fato que evidencia outro problema: Não é preciso investir apenas na educação básica e incentivo aos jovens cientista se, no futuro, eles não terão um lugar nas grandes corporações, já que as poucas que existem no país continuam não oferecendo benefícios tão competitivos quantos os de vagas alocadas no exterior, sedes dessas empresas.

Para cientistas como Paula Rezende, doutora em Biomedicina, a decisão de deixar o Brasil é dolorosa, mas necessária. Após anos lidando com infraestrutura insuficiente e atrasos em recursos para pesquisa, ela aceitou uma proposta de trabalho na Alemanha, onde encontrou o ambiente ideal para continuar seu trabalho. Casos como o de Paula são cada vez mais comuns, o que ilustra como o cenário nacional tem se tornado um impeditivo para o progresso da ciência e da carreira dos profissionais brasileiros. A falta de oportunidades no Brasil também gera uma lacuna na academia e nas universidades, onde a quantidade de concursos e oportunidades para docentes e pesquisadores é insuficiente para absorver os doutores formados a cada ano. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta que cerca de 25% dos doutores no Brasil ficam fora do mercado de trabalho adequado à sua formação, o que leva muitos a buscar alternativas no exterior, onde há mais estabilidade e reconhecimento.

Elisabeth Balbachevsky, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e coordenadora científica do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas (NUPPs) da USP, tem outra visão. A professora tenta analisar um lado positivo desse fenômeno da "fuga de cérebros", as mentes que vão embora do Brasil buscando melhores oportunidades podem "se inserir em redes de pesquisa internacionais, o que poderá ter um impacto extremamente positivo, porque irão se tornar lideranças brasileiras e, uma vez de volta ao Brasil, trarão novas expertises e abordagens para o País", diz a pesquisadora. Uma vez que esses cientistas brasileiros conseguem cada vez mais se estabelecer nas gigantes da tecnologia, por exemplo, o país indiretamente está ganhando reconhecimento, o que pode fazer com que os olhos dessas grandes corporações se voltem ao Brasil. Ainda que a "fuga" desses pesquisadores seja prejudicial no início, com mais profissionais produzindo ciência de qualidade em um ambiente no exterior que comporta suas necessidades, podemos colher frutos no futuro. Afinal, para que grandes corporações se desenvolvam no país, é preciso ver que a população tem capacidade de produzir recursos que possibilite sua expansão.

Outro fator que importante ser destacado é a busca pelo incentivo ao empreendedorismo desses jovens cientistas. Grandes empresas como o Facebook e a Amazon surgiram de um pequeno projeto de seus fundadores enquanto ainda eram estudantes, desenvolvendo uma start-up na garagem de suas casas. É claro que, a qualidade de ensino de ciências nas Universidades americanas possibilitam que seus alunos desenvolvam o pensamento empreendedor, enquanto no Brasil, os alunos são incentivados a bucar emprego fora, em empresas já estabelecidas, fator resultado do cenário de instabilidade não apenas do mercado científico, mas também do empreendedorismo. Algumas escolas de redes particulares no país contam com matérias de empreendedorismo e educação financeira, por outro lado, escolas da rede pública e estaduais se encontram em um cenário totalmente diferente. Ainda há um grande caminho a trilhar para que o acesso à uma educação de qualidade seja uma realidade igualitária entre todos os estudantes do país.

Propostas como a criação de um fundo nacional para Ciência e Tecnologia, que garanta recursos contínuos para a pesquisa, são defendidas por entidades como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Outra alternativa é fortalecer as parcerias entre universidades e empresas, criando oportunidades de inovação e desenvolvimento em conjunto com o setor privado, o que poderia abrir novas frentes de trabalho para cientistas dentro do Brasil.

Enquanto não houver um comprometimento estrutural e financeiro com a ciência, o Brasil permanece vulnerável à saída de seus talentos. A fuga de cérebros se torna um símbolo das dificuldades enfrentadas pela ciência brasileira, limitando o potencial de avanço científico e tecnológico do país. A valorização da ciência e o investimento em condições de trabalho são essenciais para que o Brasil não apenas forme cientistas, mas também consiga retê-los e fortalecer sua base científica para o desenvolvimento nacional e reconhecimento internacional.

Produzir orgânicos é um desafio que envolve altos custos, manejo artesanal e um compromisso com a sustentabilidade.
por
NINA JANUZZI DA GLORIA
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12/11/2024 - 12h

Por Nina J. da Glória

 

No coração de uma pequena fazenda nos arredores de São Paulo, a paisagem exibe fileiras simétricas de verduras, um campo verde que mais parece um quadro pintado com paciência e precisão. Cada folha simboliza uma promessa livre de químicos, cultivada à mão, mas também testemunha de um trabalho árduo, invisível ao consumidor final. Esse é o cotidiano de Mariana Silva, uma agricultora que decidiu, há quase uma década, abandonar a produção convencional para dedicar-se ao orgânico. No início, acreditava que seria um retorno ao básico, uma reconexão com a natureza. Mas a realidade mostrou-se mais densa e complexa do que o imaginado. O solo, como um organismo vivo, exigia constantes cuidados e uma compreensão que ia além dos métodos tradicionais. Cada semente carregava uma incerteza, e cada colheita trazia consigo os riscos de uma produtividade menor, vulnerável a pragas e intempéries. "O solo não aceita pressa", sua frase parece pairar na atmosfera ao redor das hortas, impregnada de paciência e resignação.

Nas redondezas, em outra propriedade de São Roque, Paulo Mendes compartilha a mesma visão, mas com uma trajetória que o levou ao orgânico por caminhos distintos. Ao contrário de Mariana, ele vem de uma família que cultivava com agroquímicos, mas sempre sentiu a necessidade de transformar as práticas de cultivo. Para ele, o orgânico é como um resgate da essência da terra, uma escolha que exige mais do que habilidades tradicionais. É um compromisso com o solo, com o ciclo de nutrientes e com o futuro. Paulo vê o campo como um delicado organismo, onde a compostagem e a rotação de culturas são essenciais, mas também um desafio financeiro. Cada safra se transforma em uma experiência quase artesanal, onde a eficácia do manejo natural precisa competir com a tentação das facilidades químicas. Esse processo, para ele, é como uma dança cuidadosa com a natureza, em que observar e respeitar o ritmo das estações torna-se tão vital quanto qualquer técnica de plantio.

                                                            Comunidade de pessoas que trabalham juntas na agricultura para cultivar alimentos

Para Mariana e Paulo, a colheita orgânica traz consigo um custo invisível ao olhar do consumidor. A vulnerabilidade às pragas, por exemplo, é uma preocupação constante. Sem pesticidas convencionais cada infestação é uma batalha natural que, muitas vezes, se perde. A introdução de insetos benéficos para conter pragas ou o uso de biofertilizantes representa um custo adicional, tornando a logística do manejo um quebra-cabeça financeiro. Além disso, há as certificações rigorosas exigidas para que o produto receba o selo de orgânico, que Mariana descreve como "um segundo trabalho", com visitas e inspeções que, embora necessárias, absorvem ainda mais recursos.

No centro dessa cadeia está Cláudia Ramos, proprietária de uma loja de produtos orgânicos em São Paulo. De seu ponto de vista privilegiado, ela percebe o esforço e as dificuldades de seus fornecedores, mas também o descompasso entre o preço desses produtos e a percepção dos consumidores. Em cada item das prateleiras, Cláudia vê um microcosmo de esforço e idealismo, mas, ao explicar as diferenças entre orgânico e convencional, enfrenta um público que ainda considera o orgânico um luxo. Ela afirma que cada produto é uma história de sacrifício, e explica que o custo mais alto representa a vulnerabilidade da produção orgânica, que exige cuidados permanentes e colheitas menos previsíveis.

                                                                                           Close-up de plantas verdes na estufa

A produção orgânica, então, emerge como uma complexa equação de valores, sacrifícios e riscos. Cada um dos envolvidos—do campo à prateleira—carrega uma parte dessa carga, como se fosse um ciclo contínuo de compromissos, onde o ideal e o real se encontram e se confrontam. A busca pela pureza e pelo cuidado no cultivo se mescla a um cotidiano cheio de dificuldades, e o produto final se transforma numa espécie de narrativa silenciosa sobre perseverança e dedicação ao que se acredita ser o melhor para o futuro do planeta e do ser humano.

A jornada dos entregadores não se limita ao trajeto, mas envolve obstáculos que vão da segurança no trânsito às incertezas de um dia de trabalho autônomo.
por |
12/11/2024 - 12h

Por Thais Oliveira 

 

Se antigamente era comum esperar dias ou semanas para que um pedido chegasse, hoje a demanda por rapidez e eficiência exige uma operação logística reforçada. O dia começa antes do sol nascer, com o medo e a ansiedade tomando conta de Joice Alves, mãe solteira de 50 anos que precisou se reinventar após um divórcio e o enfraquecimento das vendas em seu comércio de plantas. Seus cabelos longos e quase grisalhos carregam histórias de uma mulher forte que devido a gravidez, parou os estudos na quinta série. Tudo que aprendeu é resultado de suas vivências.

A tecnologia dominou o mundo e os seres humanos. Para Joice isso não passava de uma grande perda de tempo, até que tudo mudou em sua vida e a tecnologia virou sinônimo de estabilidade financeira e independência. Conseguir realizar uma entrega parece fácil aos olhos dos que recebem em casa. O suor do trabalho de prestadores de serviço das grandes empresas está presente em cada pacote entregue.

Os desafios começam à frente da seleção. Um aplicativo viabiliza para os entregadores os percursos disponíveis, juntamente ao valor a receber, e cada um seleciona o de sua preferência. Mas o número de prestadores é maior do que os de entregas e, às vezes é necessário passar horas olhando as atualizações no celular. Há dois meses o aparelho eletrônico, que não passava de uma ferramenta de comunicação com a família, amigos e clientes, se tornou o principal equipamento do trabalho de Joice. Foram semanas aprendendo a usar o mapa, abrir e fechar aplicativos, escrever mensagens mais rápidas e, principalmente, a contabilizar os resultados do seu novo emprego. No início de sua trajetória, Lucas, o filho mais velho, acompanhou a mãe em todos os percursos e assim, ela ganhou confiança para trabalhar sozinha. 

Desde a adolescência, Joice foi diagnosticada com TAG (Transtorno de Ansiedade Generalizada) e comenta que essa logística piora os sintomas diariamente. O seu conforto é o chá de camomila colhido diretamente dos vasos sobrepostos na janela do sexto andar e do calmante recomendado pela cardiologista. Ao conseguir uma corrida, agradece a Deus pela oportunidade e pula o café da manhã, colocando tudo que precisa dentro de uma bolsa térmica. De acordo com o aplicativo fornecido pela empresa, cada percurso tem a duração de 4h e 6h e os valores são correspondentes a estes horários. Explica que foi acordado entre a empresa e os prestadores de serviço que todas as entregas contariam com, no máximo, 45 pacotes e 40 paradas. 

Ao chegar no Centro de Distribuição, Joice recebe a rota com 52 paradas, 65 pacotes amarelos e o medo de não conseguir finalizar dentro do prazo estipulado. É necessário entregar todas as mercadorias para receber os valores completos, independente da chuva, dos ventos de 100km/h, dos postes desligados e das ruas escuras. Joice sai de Mauá com o seu destino traçado em um papel com nomes de pessoas desconhecidas diretamente para a cidade de São Paulo. Na travessa da Avenida Vila Ema e nas mãos Joice, o primeiro pacote foi entregue para a Renata, uma mulher simpática que desejou um bom dia para a entregadora.

Dentro do carro, o estômago de Joice espera por um alimento desde às 9h00min, porém os donos dos 50 pacotes pendentes têm prioridade na fila e as refeições ficam em segundo plano, sendo necessário seguir o caminho ingerindo apenas uma banana. A falta de hidratação e de nutrientes causa cansaço excessivo, perda de cabelo e, consequentemente, ausência de vitaminas importantes para o funcionamento do corpo. Relata, que praticava uma rotina saudável, alimentando-se bem e correndo na rua todos os dias de manhã com os seus filhos, porém precisou abrir mão do estilo de vida para arcar com os novos custos, como por exemplo o aluguel. A infraestrutura básica é uma questão: nas cidades grandes, com quilômetros percorridos entre um ponto e outro, muitas vezes não há onde parar para descansar ou usar o banheiro. A cidade se torna um palco de correria constante, onde não há tempo ou lugar para uma pausa, justifica Joice, ao informar que não consegue ingerir ao menos 200ml de água durante a jornada de trabalho. 

O futuro do setor aponta para uma integração cada vez maior entre tecnologia e logística, com inovações que prometem transformar ainda mais a experiência de compra e aproximar o e-commerce dos consumidores. Embora a constante evolução esteja dominando o cenário, não há direitos trabalhistas ou benefícios assegurados, como convênio médico ou seguro de saúde. Se houver algum acidente ou emergência, o entregador precisa arcar com os custos e lidar com as consequências sozinho. 

Dentro do aplicativo de entregas é possível saber que, dependendo do nível, o entregador terá acesso a mais pedidos, melhores comissões e suporte especializado. A grande corporação criou um sistema de níveis que funciona como uma espécie de escada, onde cada degrau alcançado representa mais oportunidades, e consequentemente, mais pressão. Estar em um nível mais alto pode significar, por exemplo, maior acesso a entregas em horários de pico ou de longa distância, que pagam melhor. Joice é prata, mas conta que demorou meses para alcançar a nomenclatura, afinal qualquer queda no desempenho pode significar uma descida de nível. Cancelamentos, avaliações ruins ou atrasos podem rebaixar o entregador, retirando seus, quase que invisíveis, benefícios. 

Joice conseguiu dois percursos no mesmo dia, isso significa que a corrida contra o tempo é primordial para finalizar o primeiro, voltar ao Centro de Distribuição e recolher as próximas encomendas. Ao sair, os clientes recebem notificações de que o produto está a caminho, causando ansiedade e desconfiança dos que aguardam em suas casas. Durante a noite as entregas são realizadas das 18h00 às 22h00 e Matheus, o filho mais novo, auxilia a mãe ligando para os clientes e entregando os pacotes enquanto ela separa os próximos. Em meio à movimentação, Matheus recebe uma mensagem de uma mulher que estava aguardando o produto há 30 minutos e precisava dormir. Era sexta-feira, 19h39min, quando os insultos começaram e mudaram a rota da família. Cada pacote recebe uma numeração de envio, o itinerário e os dados relevantes do consumidor, em consequência das mudanças Matheus e Joice aumentam a duração do percurso e os quilômetros rodados no carro. A quantidade de remessas no período da noite é majoritariamente maior, entretanto os consumidores não sentem confiança em recebê-las e, frequentemente, rejeitam a tão esperada aquisição. 

As embalagens amarelas recusadas devem atravessar a cidade e voltar à corporação até às 23h00min, horário de finalização dos serviços diários. Joice retorna com o peso da consciência de classe descendo em seus cabelos, refletindo sobre o comportamento interpessoal dos consumidores, do egoísmo e da falta de empatia. O mundo não é mais o mesmo e as pessoas estão preocupadas com as futilidades expostas nas prateleiras invisíveis dos comércios online. Não se importam se a voz que clama do lado de fora da residência está enfrentando a maior chuva do ano na cidade ou se está com um prazo apertado, o importante é aconchego e a novela das 21h00min. 

Após 15 horas, Joice finalmente chega em casa, sentindo-se cansada, fraca e estressada. O dia foi longo, repleto de entregas que exigiam rapidez, atenção e resistência. Cada pedido, cada quilômetro percorrido, parecia se arrastar em meio à chuva, ao trânsito caótico e à pressão por cumprir os prazos apertados. Como muitos entregadores, Joice não tem garantia de descanso ou segurança no trabalho, e mesmo ao chegar em casa, a sensação de que poderia ter feito mais, ou o medo de não atingir o número de entregas esperado, a acompanha. Mas para Joice, o trabalho nunca termina realmente. Ela reflete sobre o que poderia ter feito para ser mais rápida, ou se valeu a pena o esforço de correr contra o relógio. Em sua mente, os desafios que ela enfrentou ao longo do dia continuam vivos, a insegurança nas ruas, o risco de acidentes, a exaustão física e emocional. Mas amanhã, o caminho se repete, enfrentando as mesmas dificuldades em nome de um dia melhor, ou, quem sabe, uma coroa de ouro na guerra contra a logística desumana.

Os chamados cibercrimes são considerados um tipo de violência contra o idoso, e a campanha Junho Violeta busca conscientizar à população sobre a violência patrimonial
por
Alice Di Biase
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11/11/2024 - 12h

Por Alice di Biase

 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que a população acima de 60 anos no Brasil deve crescer em ritmo acelerado, quase triplicando até 2050. Dados como esse expõem o crescente aumento da população idosa, além de um novo perfil de envelhecimento que requer atenção especial em políticas públicas. Adriana Horvath, diretora voluntária de captação de recursos da Casa Ondina Lobo, relata que a principal queixa dos residentes da Casa é a invisibilidade, a visão estereotipada do “vovozinho” de cabelo branco e ingênuo, e adiciona que os idosos querem ser vistos como seres humanos que ainda tem muito a oferecer.

A Casa de Repouso Ondina Lobo é uma instituição de longa permanência para idosos em situação de vulnerabilidade social, o projeto é sustentado por doações filantrópicas. A missão da organização é promover o bem-estar e a integração do idoso na sociedade, por meio de atividades plurais. Ela relata que muitos dos idosos residentes da Casa já passaram por alguma violência ou situação de preconceito e atribui isso a forma como a sociedade olha os idosos, relacionando-o com a finitude da vida. E adiciona que é preciso entender que a velhice é apenas mais uma fase. Além disso, ela também cita a importância de campanhas de conscientização contra a violência ao idoso, como o Junho Violeta.

Existem vários tipos de violências direcionadas aos idosos, uma delas é a violência patrimonial. Com o avanço tecnológico, os mais velhos se tornaram mais vulneráveis para a violência patrimonial, por meio dos chamados golpes. O Disque 100, do governo federal, registrou, nos cinco primeiros meses de 2023 mais de 15 mil denúncias de violações financeiras ou materiais contra idosos; 73% a mais do que no mesmo período de 2022. Cada vez mais conectada, a terceira idade tem sido um dos principais alvos de quadrilhas especializadas em crimes cibernéticos que comprometem o patrimônio da vítima.

Ondina Lobo e Image Magica

“Mãe, mudei de número, salva esse contato aqui”, assim começa uma das formas mais comuns de fraudes financeiras contra os idosos, a foto de perfil é a mesma que o filho utiliza no seu número próprio e logo em seguida são solicitadas as transferências. Cláudia, aposentada de 66 anos relata como caiu no phishing - tipo de golpe realizado por e-mails, redes sociais e sites que utilizam uma “isca” para fazer a vítima fornecer informações pessoais. Uma loja conhecida com descontos extravagantes, a propaganda era feita por celebridades como Gisele Bündchen e a apresentadora Angélica que recomendavam a promoção. Tudo feito com inteligência artificial. O valor perdido não foi alto, como conta Claúdia, com alívio, no entanto, a sensação de ter sido enganado com facilidade pelos golpistas causa constrangimento.

O constrangimento também é um dos motivos que leva os idosos a se tornarem um alvo fácil dos golpistas. Envergonhados de demonstrar a fragilidade e, de certo modo, alimentar os estereótipos de ingenuidade que a sociedade cria em relação a faixa etária, muitos idosos não contam aos familiares a situação e deixam o ciclo de golpes se estender. Em 2024, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos já recebeu mais de 21 mil denúncias de violações deste tipo contra idosos, destes 80% dos casos são denunciados por terceiros, e não pela própria vítima.

A psicóloga e psicanalista Moema Sarmento compartilha suas perspectivas sobre a saúde mental na terceira idade, ela argumenta que a falta de respeito e os maus tratos podem levar ao isolamento e depressão, o que faz que muitos idosos que sofrem esses abusos patrimoniais não procurem ajuda, assim os casos só chegam aos familiares e autoridades quando já estão em estágios alarmantes.

Com o intuito de alterar esse cenário, a Casa Ondina Lobo em pareceria com a ONG Image Mágica, levou o Circuito Cultura e Inclusão para as mulheres da Casa. As aulas de inclusão digital e fotografia buscam conscientizar os moradores a respeito dos golpes digitais, resgate da autoestima e criar intimidade com o meio tecnológico.
 

Ondina Lobo e Image MagicaOndina Lobo e Image Magica

Como comenta Horvath, a velhice é só mais uma fase da vida que envolve atenção e deve ser aproveitada com qualidade de vida e isso envolve a liberdade de consumir a Internet com segurança.

Uso de IAs traz facilidades, mas pode causar desemprego na área de programação
por
Lucas Gomes
Matheus Marcolino
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21/11/2023 - 12h

Todos os dias, por volta das 7h00min, André chega no trabalho, toma café e se posiciona em sua mesa. Depois de uma reunião com o restante da equipe, começa a escrever - é assim que ele e outros do ramo da programação chamam a prática de desenvolver linhas de códigos. Em meio a trabalhos mais abstratos e diferentes, surgem demandas mais básicas, que precisam de mais execução que criatividade; nesses momentos, ferramentas de inteligência artificial são acionadas. André Luís deixou o Recife-PE há quase quinze anos. Em São Paulo, encontrou oportunidades de estudo e trabalho. Trabalha na mesma empresa, do ramo de tecnologia, desde 2018, em muitas funções. Já foi auxiliar administrativo, mas hoje trabalha numa função que lhe agrada mais: é um desenvolvedor júnior, responsável pela programação  de softwares para outras empresas, fato que comprova o crescimento do mercado tecnológico.

Essas tecnologias estão assumindo cada vez mais protagonismo na área de programação - e assustam: uma pesquisa recente da Microsoft aponta para esse cenário: 49% dos entrevistados estão preocupados com a possibilidade de serem substituídos por inteligência artificial. Economistas do banco Goldman Sachs, estimam que 300 milhões de empregos poderão ser totalmente automatizados com esse tipo de ferramenta. O setor de programação e desenvolvimento, entretanto, não é o único mercado afetado pela tecnologia nos últimos anos. Ricardo Antunes, sociólogo, escritor e professor da Unicamp, considerado o maior especialista em trabalho do Brasil, conta que alguns dos muitos trabalhadores impactados por tecnologia são os entregadores e motoristas de aplicativo.

Esses profissionais passam por um processo chamado de “trabalho intermitente”. Os aplicativos dão duas escolhas ao trabalhador: ou recebe, ou descansa. Se o entregador parar para descansar e fechar o app, não será recomendado para uma entrega tão cedo; se o motorista recusa corridas para almoçar, idem. “Entre o almoço e a janta, e entre o café da manhã e o almoço, são horários com menos demanda. Eles [entregadores] ficam parados e não recebem. É criminoso, mas é assim que funciona. E o fato de ser intermitente faz com que os algoritmos paguem o que quiserem, explica Ricardo Antunes.

Apesar das críticas, o pesquisador diz não ser contra o avanço tecnológico, e sim contra o modelo capitalista vigente. “A tecnologia existe na humanidade desde o primeiro microcosmo familiar. O capitalismo mudou a tecnologia para ser um instrumental para acumulação de mais riqueza”, afirma.

UNIVERSO DA PROGRAMAÇÃO

André é especialista em “C#” (a pronúncia é C Sharp), uma das várias linguagens de programação existentes, assim como Java, HTML e Python, por exemplo. Ele conta que a parte mais difícil de seu trabalho não é escrever os códigos, e sim decifrar como “traduzir” uma ideia inicial na linguagem de programação. “Você tem que escrever algo que outros programadores possam entender, pra que eles não gastem dias tentando decifrar seus códigos”, conta. Há algumas estratégias para isso.

As inteligências artificiais ajudam, principalmente, na execução de tarefas repetitivas que demorariam muito mais para serem concluídas sem o uso delas. André conta que, quanto mais específico o pedido para a IA, maiores são as chances de um desempenho satisfatório. A assertividade de uma inteligência artificial depende dos dados que ela recebe. Vinicius Cassin, 29, também é desenvolvedor e trabalha como SRE (sigla em inglês para engenheiro de confiabilidade de sites) para a BEES, célula tecnológica da Ambev. Ele passou a utilizar inteligência artificial no dia a dia do trabalho há seis meses; desde então, o ganho foi tanto que a empresa resolveu adquirir uma versão do ChatGPT, da Open AI, para uso interno - e parar de fornecer dados para a versão aberta do site.

“O ChatGPT é assustador”, conta Vinicius. “Há muita coisa que eu não sei, e que em vez de comprar um curso para resolver um problema, eu só digitava lá e ele fazia para mim”. Ele relata que usa a IA como um bom apoio no desenvolvimento de sua função.

 

O MEDO

Em recente visita ao Brasil, Sam Altman, cofundador da Open AI, empresa criadora do ChatGPT, admitiu que, sim, o mercado de inteligência artificial vai causar desemprego: "Achamos que muitos empregos vão desaparecer, isso acontece em toda revolução tecnológica, mas muitos empregos vão melhorar. Eu acho que vamos ver impacto em todos os lugares. A sociedade pode regulamentá-la, mas não vai impedir isso de acontecer", afirmou o ex-executivo que foi contratado pela Microsoft para desenvolver projetos de IA. 

Apesar do uso majoritariamente positivo das IAs, André Luís admite que essas tecnologias assumem funções básicas que anteriormente eram realizadas por programadores humanos. O GitHub Copilot, por exemplo, é um serviço de inteligência artificial que pode substituir facilmente um auxiliar ou um funcionário de suporte em alguns casos.

Ricardo Antunes afirma que, mesmo com seus evidentes benefícios, as inteligências artificiais tem um objetivo claro: substituir o trabalho humano - e isso pode causar um desemprego monumental. Para ele, as IA's são "um demônio contra a humanidade" quando poderiam ser um instrumento favorável - isso, porém, depende do sistema que molda a inteligência artificial. Hoje, é o "capitalismo destrutivo".  Ele também conta que o cenário é mais preocupante do que a Open AI assume ser, e dá um exemplo hipotético: para cada 100 empregos eliminados, surgirão outros dez. A conta não fecha. É por isso que Elon Musk, dono do Twitter, e outras grandes high techs como Google, Microsoft e Amazon assinaram uma carta (divulgada em março de 2023) pedindo que os laboratórios de IA “parem imediatamente” o treinamento de sistemas mais poderosos que o ChatGPT4. É muito fácil se iludir com os primeiros passos. O capitalismo agora teme sua criação.
 

As pressões, desafios e preconceitos na visão de uma profissional
por
Davi Garcia
Matheus Santariano
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24/10/2023 - 12h

Por Davi Garcia (texto) e Matheus Santariano (audiovisual)

 

Letícia Dias tem 24 anos e é mais conhecida como “let”. No silêncio da noite, sentada em sua cadeira, ela tem um único objetivo e os olhos vidrados na tela de seu computador. O brilho do monitor reflete em seu rosto e mostra uma grande determinação, ele não está jogando apenas um jogo, está perseguindo um sonho de competir nos maiores palcos virtuais do mundo. Nos últimos anos, os esportes eletrônicos, ou e-sports, emergiram na indústria global em um enorme crescimento, atraindo jogadores de todas as idades e origens. No entanto, por detrás do glamour dos torneios, do dinheiro e da fama dos profissionais dos games, há histórias pessoais de sacrifício, resiliência e superação, que exigem muito do psicológico de quem escolhe essa carreira.

Let é jogadora profissional de VALORANT e já participou dos maiores campeonatos do Brasil, chegando em oito finais e conquistando três títulos. Quebrando qualquer estigma ou predefinição da sociedade, conheceu e se apaixonou pelos FPS (first person shooting) ainda com 12 anos. Não teve muito a presença de amizades femininas em sua adolescência, devido a estar sempre em lan houses assistindo seu irmão. 


Foto: Reprodução / B4

À medida que viajamos através de suas experiências, vamos mergulhar no cenário atual dos e-sports, onde o brilho das competições é equilibrado pelas complexidades da saúde mental e a pressão de sustentar famílias. Para os jogadores novos, o caminho parece ser longo e cheio de desafios. A desconfiança dos pais pode ser um grande obstáculo difícil de ser superado antes que os resultados apareçam. Muitas vezes eles desejam um futuro estável e tradicional para seus filhos, e a ideia de seguir uma carreira “jogando videogame” pode ser vista com ceticismo. A paixão e o comprometimento que o jovem leva para o jogo são os primeiros passos em direção ao seu sonho e o principal “combustível” para assim conseguir convencer os familiares. Com dedicação, comunicação e mostrando o potencial que o atleta possui, ele pode gradualmente conquistar a confiança de seus pais e provar que este é um caminho válido e promissor. Mas pode haver problemas a enfrentar.

Let conta que seu início não foi nada fácil, principalmente com a desconfiança das pessoas que mais ama, quando chegou a largar o competitivo para cursar Medicina Veterinária. Porém, com o lançamento de VALORANT na pandemia, a hora de Letícia tinha chegado. Por fim, também conta de seu início complicado no Counter-Strike: Global Offensive, onde estava na fase considerada decisiva para estudos e seus pais eram contrários, com o argumento de ser algo sem futuro e que não dava um rumo para a vida. Contudo, Let queria ser diferente, não desistiu até chegar ao seu sonho e conseguir mostrar para seus pais que conseguiu


Foto: Valorant ZONE / Loud

Quando chegou o lançamento do VALORANT, era a sua hora. Ela começou a ter uma carreira profissional, com salário, apoio na área de saúde, escritório para treinamentos, então só assim os pais da jovem reconheceram os E-sports como uma profissão, e que Letícia Dias poderia viver disso. Seu pai virou seu maior fã, tendo uma coleção de camisa de todos os times que passou. Além da desconfiança dos pais, os jogadores muitas vezes se deparam com preconceitos presentes no mundo dos games. É um cenário onde estereótipos de gênero, idade e até mesmo habilidade podem criar barreiras. Como mulher, essas situações se agravam drasticamente, com diversos comentários misóginos sendo direcionados às atletas. Ainda assim, Let se mantém esperançosa e firme nessa batalha, vendo como algo que é de muito tempo dentro dos jogos, onde já se teve uma evolução, mas que a luta não pode parar de jeito nenhum. Mesmo o preconceito incomodando e mexendo com aquelas que querem uma carreira nos esportes eletrônicos, a vontade de vencer de Let é ainda maior, e ela já provou isso.


Foto: Reprodução / LOUD
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É fundamental lembrar que talento e paixão não têm gênero, idade ou cor. À medida que eles avançam em suas jornadas, podem se deparar com comentários desagradáveis ou resistência de outros jogadores e espectadores. Afinal, em uma posição de imagem pública que os atletas ficam, estão suscetíveis ao linchamento virtual e golpes baixos no psicológico. Let sabe que não é fácil, ainda assim, toma todos os cuidados possíveis para se manter nos trilhos, indo atrás de cuidados para a saúde mental em lidar com a toxicidade do público no cenário inclusivo, onde chega a ser muito pior, para que não a afete tanto. Com o passar dos tempos existem mais pessoas que se unem para combater esses preconceitos, o cenário está evoluindo. Quem está começando agora têm a oportunidade de desafiar essas normas antiquadas, demonstrando que o talento e a dedicação são as únicas métricas que realmente importam. À medida que ganham experiência e constroem suas reputações, criam um grande legado pelo caminho. Essas histórias, repletas de desconfiança, sacrifícios financeiros, e uma paixão inabalável, revelam um lado do mundo virtual que muitas vezes passa despercebido.

A tecnologia como mudança definitiva do mundo artístico causa adaptações no mercado e nos artistas
por
Ian Valente Rossignoli
Rodolfo Soares Dias
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26/09/2023 - 12h

Por Rodolfo Dias (texto) e Ian Valente (audiovisual)

 

Os melhores dias para visitar o Louvre são na segunda e na quinta, como ele fecha às terças, na quarta-feira é lotado, assim como na sexta e fim de semana, o museu mais famoso do mundo recebe cerca de 190 mil visitantes por semana, para aproveitar suas 35.000 exposições. Na minha primeira visita ao site oficial do “forte” Francês, a primeira imagem que me deparo é com a Mona Lisa, a inestimável pintura de Leonardo da Vinci com os dizeres “Welcome to the Louvre”. A arte mais famosa do mundo marca o Renascimento, as técnicas usadas com a genialidade de seu criador a tornam única, e a estranheza de suas histórias que passam por roubos, tentativas de destruição e por ser pintada em madeira são o atrativo para a maioria dos visitantes do museu, que lotam a Salle des États o maior salão do local.

Continuando o tour pelo site, saindo do que seria os pontos altos do local, rolando um pouco o mouse para baixo, me deparo com a aba Louvre at home, como uma visita ao espaço sem precisar estar na frança, de casa é possível conhecer as lendárias paredes do museu. Entre as atrações possíveis de “visitar” em casa está a tal da Mona Lisa, porém em realidade virtual, um jeito de conhecer a mística criação sem precisar visitar a Europa, pegar horas de fila e enxergar por trás de um vidro espesso a prova de balas, a bela Mona Lisa.

A constante mudança na forma de fazer arte impacta diretamente na forma de vendê-la, para uma instituição como o Louvre a renovação de algo criado a 500 anos atrás é necessária, apesar do alto número de visitas feitas à obra, e seu valor em dinheiro inestimável, são muitos os motivos que levam o museu a adotar uma estratégia de interação digital, visto como um paradigma a artistas que trabalham com a tecnologia contemporânea, a utilização da internet é capaz de aproximar as pessoas da arte - É esse lugar que eu tento desvendar com a arte, a gente não pode negar que ela ajuda o desenvolvimento - Comenta Fernando Velázquez, expoente artista visual de São Paulo.

Velázquez além de artista é curador e professor, nascido em Montevidéu (Uruguai) atualmente reside e trabalha em São Paulo, suas principais expressões artísticas vão de encontro com o desenvolvimento tecnológico presente na sociedade contemporânea. Multimidiático, suas obras misturam os aspectos que ligam a arte à tecnologia. Com objetos interativos, elementos audiovisuais e a sustentação do algoritmo nas lógicas de programação, a arte do uruguaio é responsável por reunir a capacidade de percepção intrínseca ao corpo humano com os meios tecnológicos, misturando a arte com fatores científicos, filosóficos e antropológicos.

O artista afirma que a criação de artes relacionadas com a tecnologia é algo intrínseco na sociedade, que a sua evolução depende da relação dos artistas com as diferentes formas de inovar o seu trabalho com tais tecnologias. Considerar a arte como um complexo de ‘’coisas’’ conclui Velázquez, para ele é impossível defini la, já que caso ela seja, o seu caráter subjetivo, o de cada indivíduo interpretar de uma determinada forma, morrerá, impedindo a formação de um campo humano que trabalha justamente com imaginário. 

A tecnologia constantemente associada como sinônimo de progresso, ressaltando a sua capacidade de compartilhar conhecimentos de forma instantânea e por permitir a interação entre vários setores, países, culturas e opiniões de forma global, pode apresentar perigos existentes nos meios tecnológicos, sobretudo com o desenvolvimento das Inteligências Artificiais (IA’s), capazes de reproduzirem algoritmicamente características até então monopolizadas pelos seres humanos, a mesma tecnologia capaz de auxiliar o desenvolvimento sociocultural é capaz também de cercear o fator humano das fontes relacionados ao desenvolvimento cultural.

Por serem criadas pelos humanos, esses meios estão, também, propícios a repetir nossos próprios erros e preconceitos. Como o seu desenvolvimento ocorreu de forma mais acelerada nos países colonizadores, elas, consequentemente, foram infectadas com a perspectiva de que o mundo está à mercê do homem branco europeu ocidental que segue tendo o protagonismo da humanidade. Ou seja, as Inteligências Artificiais podem ter alta capacidade de reproduzir o racismo, a homofobia, o machismo, entre outras mazelas, o assunto gera polêmica, mas para Velazquez a construção disso carrega responsabilidades, como indivíduos consumidores destas tecnologias intrínsecas na sociedade, é necessário pensar e analisar o viés desta inteligência. 

Um terreno vasto e ainda muito inexplorado que depende de caminhos criativos para, por enquanto, dominar uma arte sem preconceitos. Em sua exposição Rituais da Complexidade, Velázquez consegue expressar artisticamente uma dualidade entre o passado e o futuro, o humano e tecnológico. Nela, imagens são criadas a partir de experiências que envolvem o uso das IA’s obtidas a partir de algoritmos manipulados pelo autor que aprendem e geram novas figuras através do hibridismo, resultado do encontro de estéticas diferentes, como a grega com a africana que, posteriormente, foram impressas por impressoras 3D e expostas. Refletindo sobre a Pós-modernidade, cria-se uma manifestação crítica a respeito de um passado que sequer existiu, bem como de um futuro que mistura arte e tecnologia de outras fontes de conhecimento que fujam de qualquer perspectiva eurocentrista. 

 

Em um panorama, as manifestações artísticas estão sempre ligadas ao objetivo imagético de seu autor, as tecnologias que disparam na atualidade e dominarão potencialmente o futuro destas demonstrações culturais, acompanham as motivações de seus criadores, oligopólios massivos dominam o que há de mais novo no quesito tecnológico, empresas como Google, Microsoft e Meta são alguns nomes consideradas “Big Techs” que detém as melhores e mais novas ferramentas para impulsionar os avanços como lhes convém. Fernando Velázquez conclui falando sobre o papel dos artistas independentes que, diferentemente do Louvre, devem usar as tecnologias para “quebrar” sua lógica programada, criar processos que fujam a todo custo de uma ideia hegemônica e impositiva.

A Rádio Cidadã, no Butantã, transmite diariamente um pedaço de São Paulo
por
Artur dos Santos
Kawan Novais
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14/11/2023 - 12h

Por Artur dos Santos (texto) e Kawan Novais (audiovisual

 

A antena de 30 metros com uma fundação de toneladas de cimento da Rádio Cidadã não há motivo para (e nem intenção de) cair. O que já foi uma antena leve de 20 metros com um dos pés amarrados em uma parede - arrancada com facilidade por uma chuva que Deus mandava enquanto os radialistas se abrigavam em um bar próximo - hoje seguraria até um avião.

 

Antena da Rádio Cidadã
Antena que distribui o sinal da Rádio Cidadã. Foto: Artur Santos.

 

O sinal varia, é circular, depende da topografia, no Butantã tem muito morro, e pode alcançar o estádio do Morumbi, mas não na avenida a menos de 2 quilômetros. 500 mil ouvintes são contemplados pela amplitude das ondas todo dia, bairros com mais densidade demográfica têm rádios com maior alcance de pessoas, consequentemente. A sintonia é FM 87.5, dial das rádios comunitárias (RC) legalizado pela Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) na cidade de São Paulo. “Entrando na Sola” e “Na Onda do Forró”, dois dos programas mais badalados da rádio, atingem ouvintes dos arredores de sua localidade, assim como suecos e tailandeses, via digital, mesmo que sem entender o idioma.

 

Cachorros guardando a entrada do estúdio.
Descida para o estúdio da Rádio Cidadã. Foto: Artur Santos.

 

Cachorros guardando a entrada do estúdio.
Ródio e Baguan na entrada do estúdio. Foto: Artur Santos.
Estúdio
Metade áudio, metade vídeo. Foto: Artur Santos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Assim como a antena sobe, por rampas ou escadas, a entrada para o estúdio desce, guardada por dois cachorros, um magro com focinho molhado e um velho, que ameaçam fugir do QG de Julio César, responsável pela Rádio Cidadã. “Não repare a bagunça” - diz qualquer dono de estúdio em qualquer lugar. As habilidades de Julio e seus anos de experiência como programador cortam os custos e a dor de cabeça de se manter uma rádio comunitária em pé. Os segredos nas tomadas e o raciocínio lógico de quem trabalha com a área de programação automatizam o funcionamento, e a rádio está no ar mesmo se ninguém estiver em casa.

“Bem tranquilo, apesar de parecer bagunçado. Tem uma parte aqui que você programa tudo que vai acontecer, toda a parte obrigatória, como prefixo, publicidades, tem que passar tem que falar a hora certa de hora… regras que você precisa seguir. Ele programa todas as playlists com parâmetros. Eu coloco a música que o menos tocou, então ele vai pegando sempre essa e separa por estilo também. Samba toca no meio-dia uma, de manhã um reggae, MPB… madrugada putaria toca.”

O estúdio da Cidadã mescla áudio e vídeo, tendência não muito escapável atualmente. Os programas transmitidos via FM 87.5 são, simultaneamente, veiculados no canal do YouTube e no site da rádio, possibilitando mais adesão do público aos programas no ar. Julio não sabe explicar o sucesso de um de seus programas, o Na Onda do Forró, apresentado por “Neguinho da Bahia”, que conversa com o público, faz piadas e realiza seus anúncios. As “tiradas” divertidas de Neguinho ser o motivo do encanto que faz a transmissão ao vivo atingirem 400 ouvintes, algo fora do comum na vida diária da rádio. Mesmo assim, foi impossível explicar como resulta em tanta audiência. Rádios comunitárias como a Rádio Cidadã estão sob as mesmas burocracias de rádios comerciais, com alguns adendos. Os radialistas de uma RC não podem anunciar os preços, a forma de pagamento de anunciantes, ou ao menos anunciar marcas que não tenham representação dentro do bairro. Mas, Neguinho da Bahia tem anunciantes de sobra.

Julio Cesar, responsável pela rádio Cidadã.
Julio trabalhou na Rádio Tupi e na Atual. Foto: Artur Santos

A lei n° 4133, de 2012, impedia as rádios comunitárias de se adequarem a qualquer tipo de financiamento público ou privado visando custear seus serviços ou melhorar as atividades a serem prestadas. Como apoio cultural, era permitido patrocínio, mas restrito apenas aos estabelecimentos situados na mesma área que o rádio estaria estabelecido. Neste ano, 2023, ao fim de agosto, a Câmara Municipal de São Paulo sediou o terceiro Congresso das Rádios Comunitárias de São Paulo, reunindo radialistas da cidade paulista e de outros estados, como do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Bahia. Autoridades federais que também participaram dos debates, expuseram os auxílios existentes para os radialistas e apresentaram as “novidades” que visam suprir as necessidades dos comunicadores.

O principal tema da reunião foi a criação de políticas públicas e a regulação de leis vigentes direcionada às rádios comunitárias. Para se tornar um radialista desta modalidade, o processo se inicia por meio do requerimento para a abertura de uma rádio comunitária através do Plano Nacional de Outorgas (PNO), que é a identificação e seleção de municípios que ainda não têm esta modalidade comunicadora, mas que manifestaram o interesse de tê-la. Após uma série de etapas, o processo resulta no funcionamento legal do veículo de transmissão por 10 anos, podendo ser renovado por outro processo no fim da década.

Julio apresentou seu documento, uma espécie de RG (Registro Geral), mas que não o identifica enquanto um cidadão, e sim enquanto um radialista comunitário legal perante a lei. Mas, no início da vida da Cidadã, quando ainda era caracterizada como uma rádio clandestina, o atual responsável por ela chegou a entrevistar dois ministros, a qual ele não tem mais acesso atualmente. Criada em 1994, era assim que tinha que ser. Clandestina ou regularizada, as Rádios Comunitárias servem uma função social nos bairros em que atuam.

Em 1970, as da Zona Leste eram caixas de som hasteadas em um pau nas esquinas, disseminando informação que se recusava a chegar nas periferias pelos meios tradicionais. A criatividade é a saída. As favelas oferecem um público muito mais engajado, mais do que qualquer outro. Até a transmissão da queima de fogos realizada aos finais de anos, apenas por áudio acontecia, e mesmo que sem a imagem, atraía público a rádio. Pessoas de outras regiões, inclusive mais nobres, paravam para observar em um local que já ocupava o triplo de pessoas de sua capacidade. Mesmo com todo o engajamento, não é suficiente para tornar a Cidadã autofinanciável. De acordo com a lei já citada, as rádios comunitárias, assim como as educativas, conseguem financiamento por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Trata-se de empréstimo realizado por este órgão com a finalidade de modernização, aquisição de equipamentos e instalação de sistemas radiantes.

Experiências da tecnologia em diversas cidades têm poucos indícios de eficácia
por
Lucas Allabi
Guilherme Gastaldi
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21/11/2023 - 12h

Por Lucas Allabi (texto) e Guilherme Gastaldi (audiovisual)

 

Há mais de 50 anos, uma equipe de pesquisa liderada por Woodrow W. Bledsoe realizou experimentos com o objetivo de verificar se computadores de programação seriam capazes de reconhecer rostos humanos. Apesar de não ter tido sucesso, Bledsoe deu o primeiro passo para uma “revolução tecnológica”, responsável pela criação de elementos imprescindíveis no nosso dia a dia. Hoje, por exemplo, os dispositivos móveis lançados já possuem o sistema de reconhecimento facial embutido, possibilitando que apenas o verdadeiro dono do aparelho possa acessar o equipamento.

Nos últimos anos, surgiram novas discussões em relação ao uso dessa nova tecnologia, a principal delas sendo o uso do reconhecimento facial como método de Segurança Pública. Utilizando algoritmos de processamento para identificar pessoas e verificar suas identidades com base nas características do rosto, governos ao redor do mundo enxergam o novo sistema como a solução de todos os problemas, capaz de evitar crimes, roubos e furtos. No entanto, quando vemos as reais implicações do sistema, principalmente no Brasil, começamos a questionar não apenas a sua eficácia, como também as verdadeiras intenções por trás daqueles que o operam.

Na última década, na medida em que avanços tecnológicos ocorreram, o debate ao redor do tema se intensificou. Sendo assim, sob o pretexto de modernizar a segurança pública, políticos da extrema-direita passaram a tomar para si o discurso das tecnologias de reconhecimento facial (TRF). Além de usar a temática como palanque político, o impacto negativo na sociedade causado por essa tecnologia se tornou evidente e esse cenário é facilmente observado no estado de Goiás. Desde o ano de 2014, verbas do governo estadual e emendas parlamentares financiam a instalação de câmeras de videomonitoramento em Goiânia. Em 2019, com a disponibilização de recursos para a instalação de TRFs, municípios goianos tiveram 37 projetos aprovados pelo Ministério, acumulando 50 milhões de reais destinados ao uso da tecnologia em apenas dois anos. Coincidentemente, na época, conhecido por ser o principal articulador e apoiador das TRF, o ex-deputado federal Delegado Waldir (PR e PSL) multiplicou por dez seu patrimônio e conseguiu se reeleger, escancarando o uso da pauta como manobra política.

Além disso, sob a justificativa de proteger a população, Goiânia priorizou o investimento em câmeras de segurança e deixou de gastar com áreas essenciais para a sociedade. No ranking de Competitividade dos Municípios, realizado em 2023 pelo Centro de Liderança Pública, Goiânia caiu 50 posições. De acordo com o instituto houve queda em indicadores importantes, como qualidade da educação, capital humano, telecomunicações, saneamento, meio ambiente, funcionamento da máquina pública e acesso à saúde.

Em conversa com Yasmin Rodrigues, pesquisadora associada ao Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV/SP e ao site Panóptico, quando questionada sobre a má utilização da tecnologia, usou especificamente o exemplo do estado de Goiás. Em suas palavras, milhões de reais foram destinados à implementação de câmeras com reconhecimento facial em locais onde a população sequer tem acesso a esgotamento sanitário. "Se isso não é um erro, não sei o que é”, respondeu a pesquisadora.

Fazendo parte do mesmo movimento, a prefeitura de São Paulo assinou no dia 7 de agosto deste ano um contrato para instalar 20 mil câmeras de reconhecimento facial nas ruas da cidade. A concorrência do edital fugiu da norma e das leis corriqueiras de uma licitação nestes moldes. A empresa que ganhou o edital, o Consórcio Smart City SP, liderado pela CLD Construtora, ficou em terceiro lugar com o custo médio de 600 mil reais a mais que as outras entidades.

Uma demonstração da tecnologia da Smart Sampa na Consumer Electronics Show de 2019
Uma demonstração da tecnologia da Smart Sampa na Consumer Electronics Show de 2019.
Imagem: David Mcnew AFP

De pronto, se formou uma oposição a esse projeto. Um dos fronts, formado contra os percalços jurídicos do processo suspeito, foi formado pelas investigações do Ministério Público estadual e federal.

Lado a lado, ONGs como a Lapin e a Coding Rights se organizaram contra o projeto pelos moldes em que foi feito. Na primeira versão do edital previa-se que o sistema deveria reconhecer pessoas pela cor da pele, que poderia descambar a tecnologia em puro racismo, e identificar comportamentos suspeitos como “vadiagem”, uma posição elitista e retrógrada sobre a vida social dos indivíduos.

As suspeitas em torno desse projeto se fortaleceram quando informações antigas da CLD Construtora voltaram à tona. Quando ainda chamava-se Consladel, os donos da empresa, Auad e Moura, se envolveram em uma série de denúncias de corrupção em fraudes de licitações públicas, em grande parte na prefeitura de São Paulo.  Em 2013 a empresa foi denunciada no caso “Máfia dos Radares”. Eles foram acusados pelo MP de pagar propina a funcionários da prefeitura de São Paulo, de cidades do interior e de outros estados para que comprassem os radares que eles fabricavam a preços superfaturados. 

As movimentações contra o projeto Smart Sampa, entretanto, não foram suficientes para demover os planos do prefeito. A Smart Sampa foi aprovada e já começou a ser implementada. Ricardo Nunes, prefeito de São Paulo, justificou o projeto em nome da segurança pública dos cidadãos. Em contrapartida ele foi contra uma política muito elogiada por especialistas em segurança e violência urbana, as câmeras em fardas de policiais e guardas civis. 

Não resta dúvida sobre a inclinação política do prefeito. Se ele adotou uma ferramenta e outra não, é só ligar os pontos para presumir o viés da tecnologia. Yasmin Rodrigues afirmou que sob a redoma discursiva da inovação que acompanha o uso de reconhecimento facial, têm sido implementadas políticas orientadas pelas velhas práticas: perseguição a jovens negros, desrespeito a direitos fundamentais e muito dinheiro destinado a prender, prender e prender como se isso resolvesse alguma coisa

A IA, entretanto, não é de todo mal para a segurança. A pesquisadora do Panóptico relembra que os usos da tecnologia dependem muito mais dos seus objetivos e nós não podemos ser deterministas sobre seus usos: “Certamente, a tecnologia pode ser nossa aliada. A tecnologia é isso: uma aliada. Ela não é a solução para nada. Desenhando bem a forma como ela será utilizada, a gente caminha. Veja como as ‘bodycams’ têm sido importantes para as polícias. Em relação a monitoramentos automatizados, por que não monitoramos a circulação das armas, por exemplo? É uma pergunta que sempre fazemos.”