Por Christian Policeno e Antônio Valle
Felipe acordou cedo aquela manhã, seu despertador tocou, ele levantou rapidamente para se arrumar, e a primeira atividade do seu dia, foi justamente filmar o caminho até o seu trabalho, para postar em uma das suas redes sociais, pronto para enfrentar mais um longo dia de trabalho e estudos. Vestiu seu uniforme e partiu para o metrô. Ele trabalhava em uma loja no centro da cidade, em uma rua muito movimentada, consequentemente, com muitos clientes. Ele gostava de ajudar as pessoas a achar exatamente o que precisavam. Sempre com um sorriso no rosto, era um dos atendentes mais procurados. Mas, aquele não era o sonho de Felipe, que desejava se tornar um advogado, e precisava do emprego para ajudar a pagar sua faculdade de direito, a qual estava cursando. Por isso, após o expediente, o atendente saia do serviço com pressa em direção ao metrô, para chegar à universidade. O trajeto da estação até a faculdade era curto, mas Felipe aproveitava a caminhada para ouvir músicas e relaxar.
Aquele dia, o jovem recebeu a notícia de que seu professor iria atrasar alguns minutos, então andou com mais calma, sentou em uma praça e bolou seu tabaco, que fumava todos os dias no trajeto. Felipe deu um trago e voltou a andar, com seu “cigarro” na mão. O sol caía, e o dia ficava escuro. De repente, passou uma viatura da polícia militar, que passou batida. A rua, naquele ponto, ainda estava movimentada, com alguns comércios abertos. Mas, o jovem foi se afastando das pessoas. Quando chegou em um ponto onde não tinha ninguém, porém ainda estava visível para quem estava na rua, percebeu que aquela mesma viatura voltava em sua direção, e, o jovem percebeu que seria enquadrado. Felipe é um jovem negro. Seu coração acelerou, estava um pouco nervoso. Felipe já tinha passado por muitos enquadros, então, logo se tranquilizou, não tinha nenhuma droga ou nenhum outro tipo de flagrante. Era mais uma “abordagem de rotina” e só, então, seria liberado. Pernas abertas, dedos cruzados e mão na cabeça, encostado no muro cinza por qual passava. Eram três policiais, uma mulher, que estava muito alterada, e os outros bem tranquilos. “Onde está a maconha!?”, ela repetia agressivamente, enquanto revistava o garoto. Felipe mostrou o tabaco, esvaziou os bolsos, mochila, tudo o que tinha para mostrar. Nada, estava limpo, sem maconha, drogas ou qualquer tipo de entorpecente. Ainda assim, ela insistia perguntando onde estava a maconha fumada com o tabaco.
Depois disso, a policial disse para seus colegas que era para eles desligarem a câmera porque eles estavam fazendo um serviço diferente e seria necessário economizar bateria, o que infringe a lei. O estudante não consegue lembrar o motivo exato usado na hora para justificar o desligamento do equipamento, mas foi inventada uma desculpa e as câmeras foram desligadas. Nesse momento, Felipe que estava tranquilo, passou a ter muito medo do que poderia acontecer. Apesar de ainda estar à vista de outras pessoas, a câmera, objeto para garantir sua segurança, não estava lá. Suas mãos ficaram frias, seu peito quente, o coração palpitava e, na noite fria, sentia ondas de calor. Medo. Não de morrer, ou de perder seus pertences, mas, com muito medo sofrer violência física, de apanhar. Aquilo o deixava muito aflito. Os policiais continuaram a mexer em seus pertences, dois dos policiais continuavam tranquilos, mas a mulher parecia ainda mais agressiva, agora, com a câmera desligada, voltando a questionar onde estavam as drogas, mesmo sem achar nada. Com o equipamento desligado, conforme o tempo passava, o medo só crescia e ameaças de agressão física começaram a acontecer, repetidamente. A tensão aumentava. Após isso tudo, a policial voltou a pedir os documentos e liberou o rapaz, ainda com uma atitude bem grossa, mas sem lesão física. O que era um dia normal, se transformou em um pesadelo. Felipe foi à aula, mas disse não conseguir prestar atenção no conteúdo, pois ainda estava assustado e reflexivo sobre o motivo e a forma da abordagem.
Michel Nicolau Netto, sociólogo e professor na UNICAMP, disse que as câmeras corporais da polícia, na verdade, é uma nova prática que tem se espalhado em vários lugares do mundo e no Brasil começou a ser usada em 2020, em mais de 60 batalhões. Ele acredita que ainda são necessários mais dados para se dizer de fato qual a eficácia do uso da tecnologia. Contudo, alguns estudos apontam dados promissores, com a diminuição de letalidade causada por policiais e do próprio corpo policial, a maneira que a lógica da câmera já justifica o seu uso. Por um lado, a lógica é para saber exatamente como a polícia está abordando as pessoas, porque, evidentemente, a força policial é uma força que se coloca em lugares e situações de violência e ela está lá para conter a violência, não para praticá-la. Então, a primeira coisa é saber se o poder público está justamente agindo dessa forma. Nesse caso, o objetivo é conter a violência e proteger a população. Ainda, em um país onde a mortalidade produzida por policiais é muito alta (uma das mais altas do mundo), a câmera se torna ainda mais necessária. Todavia, ela é de forma conjunta, uma forma de proteger os próprios policiais, porque com as câmeras os outros soldados, podem acompanhar uma ação e saber, por exemplo, que tem algum colega em perigo, e assim ter esta situação, pode justamente ir em seu resgate, etc. Nos primeiros dados que surgiram em 2022, as duas coisas aparecem como positivas, tanto a diminuição da letalidade provocada pela polícia, quanto a diminuição da letalidade contra os policiais. Porque você imagina as duas coisas, do mesmo jeito que um policial vai buscar agir dentro da norma, sabendo que ele pode estar sendo observado, um eventual criminoso, vai pensar duas vezes em agir contra o policial, porque ele obterá conhecimento que está sendo gravado. Então, é uma ação de um lado que protege a população, de outro lado, protege a própria polícia. E, por fim, é uma ação que profissionaliza e dá transparência, que é um princípio público. Um dos princípios públicos mais importantes é o da transparência. O equipamento dá a transparência do servidor público, como o policial. Então, também é um outro motivo para essas ações existirem.
A Justiça de São Paulo determinou que câmeras fossem instaladas em veículos e fardas da Polícia Militar, não podendo ser desligadas. A 8ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo determinou no dia 13 de setembro de 2023 que policiais em todo o estado deverão usar câmeras corporais nas fardas e mantê-las ligadas durante o expediente, com multa de até R$100 mil para policiais que desligarem a câmera durante o trabalho. O juiz também proibiu o uso de qualquer outro objeto para amarrar suspeitos, além das algemas, pois cordas eram bastante utilizadas. A decisão é decorrente de um processo movido pela ONG Educafro, que se manifestou depois de um vídeo que mostra um homem com mãos e pés amarrados sendo carregado por policiais circular nas redes sociais. Segundo o Fórum de Segurança Pública, a utilização de câmeras é vista como sinônimo de profissionalização da polícia. No Brasil, o instrumento é visto como uma forma de reduzir a letalidade causada pela polícia, principalmente de jovens negros, estabelecendo maior confiança da população em relação ao orgão da segurança pública. De acordo com o Comitê Paulista Pela Prevenção de Homicídios na Adolescência, houve quase 1.000 mortes de jovens com menos de 19 anos, decorrentes de intervenção policial no estado entre 2015 e 2018. O caso de Felipe não é único, e também, pode se ver nesse caso de Raphael Vicente, influenciador digital e cria do complexo da Maré, no Rio de Janeiro, em ambos os casos o uso de tecnologia está no centro da ação policial.
Raphael estava em casa, era dia. Abruptamente começou a ouvir batidas fortes em seu portão. O jovem se assustou, mas foi abrir a porta. Era a polícia que entrou em sua casa sem perguntar nada e saiu revistando tudo. Depois, os policiais perguntaram quem morava lá e só foram embora ao ver o Instagram de Raphael, que contava com muitos seguidores.
A história pode ser contada através de diferentes bocas entre os 120 mil moradores da comunidade. O relato de Raphael fala da operação policial que ocorreu no dia nove de outubro deste ano, na periferia da zona norte carioca. A operação policial contra o tráfico de drogas, envolveu três das maiores comunidades da zona norte da terra fluminense, a Vila Cruzeiro, o complexo da Maré e a Cidade de Deus. Com a justificativa de combate às drogas, os policiais resolveram adentrar as comunidades para realizar mais uma operação. Por mais que os anos de UPPs (Unidade de Polícia Pacificadora) já tenham comprovado que a busca pela paz nas comunidades não se resolve com mais policiamento violento e parcial, a situação infelizmente ainda não se alterou, e está longe de mudar. Porém, um detalhe importante nessa nova operação, que a diferencia de todas as outras que já aconteceram na cidade carioca nos últimos anos, é a soma de novas tecnologias para auxiliar o corpo policial na operação. A operação mostrou que as câmeras corporais não são a única tecnologia utilizada pela segurança pública. O uso de drones com reconhecimento facial e leitura de placas estão sendo utilizadas na operação, junto às câmeras corporais, monitoradas pelo Centro Integrado de Comando e Controle. Segundo o Secretário da Polícia Civil do Rio de Janeiro, a tecnologia é um diferencial para minimizar a quantidade de vítimas inocentes. Todavia, a história não parece ser bem assim. A ONG Redes da Maré, criada por moradores e ex-moradores da comunidade que monitora as ações de violência no território desde o início da Operação Maré, informa que ao menos 120 mil moradores estão sendo impactados de maneira direta ou indireta pelas ações policiais. Além disso, outro fator super importante, quando a questão é o uso das tecnologias na operação, é que a ONG registrou policiais sem identificação e sem câmeras nos uniformes, o que estaria em desacordo com as diretrizes estabelecidas na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635/2019, do Supremo Tribunal Federal (STF). Ou seja, o discurso utilizado pelo Secretário da Polícia Civil, demonstra que o uso do reconhecimento facial, como auxílio positivo para a população “inocente”, permanece apenas como um discurso, e não como algo benéfico na prática, inclusive, é muito perigoso, como podemos ver no caso a seguir.
Passeando com filho e esposa, um homem, negro, passou por uma das situações mais constrangedoras e de violação de seus direitos em praça pública. Ao chegar no Parque das Exposições, de Salvador, para aproveitar um dia tranquilo de festa junina, o vigilante foi abordado e preso por um roubo, que ele não cometeu. Foram 26 dias atrás das grades, por um crime cometido por outra pessoa, ainda em 2012. O autor do crime foi preso em flagrante e solto em 2013, posteriormente, sendo condenado a 5 anos de prisão. Após o ocorrido, não se sabe como, um mandado de prisão foi feito com o nome do vigilante, mesmo sem ele nunca ter cometido um crime. A SSP-BA alegou uma similaridade de 95% entre os dois homens, o que ocasionou a injustiça. Preso na frente de sua família e tendo seus direitos, garantidos por lei, violados, o homem ainda perdeu o emprego devido a prisão injusta, ele começaria a trabalhar em uma nova empresa três dias depois do ocorrido. Apenas um dos casos de erro do reconhecimento facial.
Um dos assuntos mais comentados na mídia atualmente, envolvendo a questão jurídica é a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), que “dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural”. Por isso, a advogada Karine Dias Eslar, presidente da comissão de compliance da OAB-GO e especialista em LGPD, disse que a tecnologia de reconhecimento facial é uma tecnologia necessária e útil nos nossos dias atuais, contudo, apontou que a imagem do indivíduo é tida como algo sensível, perante a LGPD e o reconhecimento facial. Por utilizar essa inteligência artificial que vai fazer a leitura desses dados, ela é ainda mais preocupante do ponto de vista do direito à personalidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. O reconhecimento facial por ser uma ferramenta que possui utilidade, e que tende a crescer cada vez mais no país, ela necessita de seriedade, e explicações para o cidadão que será submetido ao uso de seus dados para a tecnologia. Como o uso da tecnologia envolve uma ferramenta útil, ela não pode ser utilizada indiscriminadamente, e o dono da face, que é lida pelo reconhecimento facial, precisa ser plenamente informado assim como determinar a lei acerca da finalidade dos objetivos. Ou seja, explicar para o cidadão, o porquê da coleta daquele reconhecimento facial, daquela linguagem corporal, então é necessário que haja toda uma uma explicação eficiente, eficaz e transparente, pela instituição que estiver usando estes dados.
A utilidade e a pertinência do uso de reconhecimento facial na segurança pública é questionada por entidades de direitos digitais e do movimento negro. A relatora especial das Nações Unidas sobre formas contemporâneas de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância relacionada E. Tendayi Achiume, no relatório “Discriminação racial e tecnologias digitais emergentes: uma análise dos direitos humanos”, afirma que a adoção de novas tecnologias devem ser precedidas de avaliações obrigatórias de impacto nos direitos humanos e que “caso essas avaliações revelem que uma tecnologia tem alta probabilidade de impactos raciais díspares e prejudiciais, os Estados devem impedir seu uso por meio de proibição ou suspensão”. Iara Moura, coordenadora executiva do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social, e parte da campanha “Tire Meu Rosto da Sua Mira”, acrescenta e explica que ainda há uma brecha legal para o uso dessa tecnologia no país. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais ainda não tem uma regulamentação específica para o reconhecimento facial. Tem um projeto de lei que está em tramitação no Congresso sobre inteligência artificial e que vai trazer alguns parâmetros que podem ser aplicados ao reconhecimento facial, mas a gente não tem ainda uma regulação específica. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais traz alguns parâmetros que são importantes para serem observados, mas ela tem uma excepcionalidade no que tange a segurança pública e isso torna mais difícil a gente regular e estabelecer parâmetros. Somado a isso, Moura alerta para a quebra de direitos individuais garantidos por leis e para o uso de uma tecnologia enviesada que já aumenta a perseguição de minorias. Essa tecnologia traz diversos riscos para os direitos fundamentais dos indivíduos, como o direito da privacidade, o direito à liberdade de expressão, a manifestação e o direito de ir e vir, principalmente, porque não tem regulação específica sobre como será tratado esses dados, protegido esses dados pessoais, então abre possibilidades que já estão bastante concretas de aprofundar as discriminações, controle sobre populações e grupos específicos, não só do ponto de vista individual, mas coletivo. Segundo o relatório “Retratos da Violência”, 90,5% dos presos por monitoramento facial, são pessoas negras, competindo com uma minoria de 9,5% de pessoas brancas. Milhares de prisões foram feitas com a ajuda dessa tecnologia, apenas no estado da Bahia, a Secretaria de Segurança Pública divulgou um balanço de mais de mil detidos, com a justificativa de que as pessoas presas estavam nos dados de mandados de prisão. Mas, mesmo o estado considerando o uso do reconhecimento facial um sucesso, muitos inocentes foram presos por erros da tecnologia.
Iara explicou, em entrevista à AGEMT, um pouco sobre como funciona essa inteligência artificial: a tecnologia de reconhecimento facial tem um algoritmo próprio, baseado em sistemas do que a gente chama de inteligência artificial, que faz um cruzamento de dados com algum outro banco de dados já consolidado. No caso, um banco de dados da Secretaria de Segurança Pública, assim como é, quando é para buscar suspeitos ou foragidos da justiça ou o próprio dado geral dos RGs, CPFs, dos cidadãos. É a partir do cruzamento dos bancos de dados e das imagens, com dados biométricos, que é gerado o reconhecimento facial, determinando quem é aquele sujeito ou indivíduo. O que, como ficou claro no caso acima, muitas vezes não funciona, principalmente para pessoas negras e trans. Moura, explica como essa tecnologia é enviesada. É comprovado um viés racista e um viés transfóbico nesse uso. Várias dessas tecnologias utilizadas no Reino Unido, em vários países da Europa, nos Estados Unidos, já tem testes. Já tem muitos estudos científicos que comprovam maior dificuldade de reconhecer rostos de pessoas trans e que, por outro lado, coloca os rostos de pessoas suspeitas sempre na mira de pessoas negras. A tecnologia não é neutra, desde sua configuração construída a partir do norte global. São empresas privadas, como a Microsoft, que vendem esses sistemas, feitos por homens brancos. Então, elas já vêm desde a sua programação contaminadas, digamos assim, com o viés racista e com o viés, também, transfóbico. Fora isso, em um país como o Brasil, que já tem uma desigualdade estrutural baseada em raça e baseada em gênero, o uso dessa tecnologia tende a aprofundar as questões correntes de criminalização, de perseguição dessas populações. Por isso, para a campanha ‘Tire Meu Rosto da Sua Mira’, não é possível uma moratória, não é possível melhorar essa tecnologia para uso em segurança pública. Ela precisa ser banida para esse uso específico, porque senão ela só vai aprofundar e reiterar essas desigualdades estruturais.
Então, o discurso referente ao uso do reconhecimento facial, como ferramenta da segurança pública, demonstra erros, assim como a câmera corporal, que deve melhorar com a obrigação de mantê-las ligadas. A tecnologia é cara, mas falha. Só na Bahia, já foram mais de 650 milhões de reais investidos pelo Estado. Salvador tem sido referência no Brasil inteiro quanto ao uso do reconhecimento facial na segurança pública, mas Moura mostra como o sistema é falho. “Na Bahia, no mês de setembro, foram duas pessoas mortas por dia por conta de ação policial violenta, então teve toda uma crise, está tendo toda uma crise de segurança pública e esse é o estado que é tido como exemplo no uso das tecnologias de reconhecimento facial, então fica um contrassenso aí bem explícito de o quão ineficaz é essa tecnologia”.
Felipe disse ter medo da tecnologia estar na mão das pessoas erradas e teme como isso pode afetar a sociedade. Para ele, o mau uso das tecnologias como as câmeras pode prejudicar a vida de várias pessoas em um nível muito grande. O jovem agradece por não ter acontecido nada físico a ele, mas sabe que com as câmeras desligadas podem acontecer com outras pessoas. A tecnologia da câmera está à disposição da Segurança Pública, mas tem de servir para a proteção da população, não para causar medo. Tanto a câmera corporal, quanto o reconhecimento facial, de maneiras diferentes, ainda têm se mostrado com problemas para a população, principalmente a negra.
Por Gabriela Figueiredo (texto) e Victoria Leal (audiovisual)
Vento no rosto, uma pradaria em tonalidade verde queimada e muito suor. Esta era a visão de Zé Braz enquanto trabalhava na plantação com seu pai, ainda na pré-adolescência. A vida começa cedo para quem nasce na falta. Eram muitos irmãos e apenas algumas mãos para dar conta de toda a demanda da casa. Os semblantes cansados dos pais refletiam a falta de condições para manter a dignidade de uma família. Ainda mais comum do que se imagina, é dar um jeito de sobreviver à falta de emprego de carteira assinada e escolaridade do primário. O jeito foi mudar de Iapu, interior de Minas Gerais, para São Paulo, em um movimento migratório em busca da sorte, como os milhares que levantaram as estruturas e história da capital. Zé Braz está primeiro entre estes milhares.
Os bicos para arrumar dinheiro vieram antes das apostas, mas elas não deixaram de vir. Em suas próprias palavras “começou primeiro com a bebida, depois o cigarro... aí o jogo. O jogo é terrível. Eu sei que a gente não pode colocar a culpa na bebida, mas todo mundo fazia na época. Jogava truco, baralho, sempre valendo dinheiro, aí apareceram novos jogos... jogava na loteria também, fazia esses jogos de montante com os caras do bar sabe [...]. Joguei no bicho, sempre ganhava miudeza, qualquer dinheiro que entrava já era alguma coisa. Mas aí pegava e gastava no bar.”
Zé representa apenas uma pequena parcela das pessoas que tiveram problemas com apostas no Brasil. Apesar de ter experiências apenas com apostas em jogos de bares, casos semelhantes com apostas esportivas online vem se tornando algo comum na vida dos brasileiros. Tão comum, que segundo a pesquisa Industry Insights, feita pelo jornal O Globo, para 12% das pessoas que responderam, as apostas são a principal fonte de renda. Para 67% dos brasileiros, apostar hoje é entretenimento e para 43% é negócio. O risco está se tornando comum.
As apostas esportivas online funcionam por casas de apostas, que são os modelos mais populares hoje e mais simples. As pessoas escolhem uma situação dentro de um evento esportivo e apostam nas probabilidades com maiores chances de se concretizar dentro do jogo. Seja desde o cavalo que vai disparar em primeiro em uma corrida, até a quantidade de pênaltis em uma partida de futebol. Se o resultado se concretizar, os jogadores recebem um pagamento com base nessas probabilidades.
Em ritmo crescente no Brasil, essa modalidade já era muito comum em países europeus, que praticavam alternativas “rentáveis” para dinamizar ainda mais os jogos. Por ser uma questão emergente no País e que se acentuou ainda mais por conta da pandemia, o mundo das apostas online é a forma mais fácil de se lucrar. Desde que você não esteja do lado mais fraco da corda.
E o lado mais fraco da corda é formado pelos milhares dos quais, não só Zé Braz fez parte, mas Mateus Haidar, de 27 anos, advogado e empresário, também somou. Mas o verde que o Mateus enxergava deste lado, era o tecido da mesa de poker, que começou presencialmente, mas logo passou para o online, “em sites como pokerstars e partypoker, naquela época só existiam sites gringos. Percebi que estava viciado quando perdia rapidamente o dinheiro que recebia trabalhando para as casas”.
Segundo pesquisa do Datahub, publicada pela Máquina do Esporte, o crescimento de empresas de apostas esportivas digitais no Brasil foi de 360%, entre 2020 e 2022. E seguindo o movimento publicitário de todo novo comércio emergente, não demorou muito para que as casas começassem a patrocinar influencers, pagar por anúncios e até investissem em mídias offline - anúncios em estádios e telas espalhadas pelas cidades - para atingir seu público alvo.
Em uma polêmica recente, no mês de junho deste ano, o youtuber e influenciador digital Felipe Neto foi questionado de continuar apoiando e divulgando a casa de cassinos e apostas “Blaze” - que fechou contrato com o comunicador em 2022 - após ser acusada de calote na Internet pelos usuários, por não pagar os clientes que obtinham lucros financeiros. Outros influenciadores de grande impacto, como a advogada Deolane Bezerra, ex-esposa do funkeiro, Mc Kevin, também faz parte do grupo de pessoas patrocinadas pela empresa. A advogada tem mais de 5 milhões de seguidores no Instagram e também recomendava a casa em suas redes sociais.
Em declaração à Agência Mural, o diretor, André Gelfi, do Instituto Brasileiro de Jogo Responsável, composto pelos grupos Bet365, Flutter, Entain, Betsson Group, Betway Group, Yolo Group, Netbet Group, KTO Group, Rei do Pitaco, Novibet, LeoVegas, Grupo OKTO e Pay4Fun, afirma que o instituto se preocupa com a proteção de menores de 18 anos na divulgação das casas de aposta que o compõe.
O grupo desenvolveu uma nova cláusula que proíbe o direcionamento do conteúdo para menores de idade e a utilização de imagens de "pessoas ou personagens, reais ou fictícios, de relevância ou notoriedade pública que atraiam a atenção dos jovens”. Apesar da parcela significativa de casas de apostas que entendem e procuram minimizar o impacto negativo por meio da publicidade, não existe regulamentação oficial direcionada a publicidade de jogos para menores ou fiscalização de que a documentação cadastrada não seja de parentes maiores de idade, como também explicitado na reportagem da Agência Mural.
DE OLHO NO PERIGO
Na pesquisa de perfil de apostadores do Panorama Mobile Time/Opinion Box, publicada em maio de 2023, foi identificado que o padrão médio dos jogadores é homem, jovem e de baixa renda. Na análise de faixa etária, 36% dos indivíduos no grupo de 16 a 29 anos já apostaram em plataformas de apostas esportivas e dos mais de dois mil entrevistados, 30% são das classes D e E.
O risco das apostas esportivas passa a existir no momento em que ela deixa de ser feita por entretenimento e começa a simbolizar algo vital, como a principal fonte de renda do indivíduo ou o lugar em que a fonte de renda é “investida” - que gera a sensação falsa de uma possibilidade segura de lucro. Em primeiro plano, porque as estatísticas esportivas não são baseadas em padrões fixos, mas probabilidades, como tendências históricas e estatísticas defensivas de um time, que podem variar a cada jogo. E em segundo plano, pelo aumento dos casos de manipulação de partidas de futebol, em que, segundo os dados da Sportradar, o futebol mundial registrou um aumento de 34% no número de partidas suspeitas, apenas em 2022.
Em terceiro plano, a psicóloga e analista Adriana Munford explica que o vício, ou seja, a incapacidade de deixar um padrão de lado, pela perda de autocontrole sobre a situação, é o que caracteriza a compulsão de jogadores que não conseguem deixar de apostar, mesmo depois da frustração da perda, inclusive com frequências variadas.
Mas Adriana não é a única que alerta sobre os perigos de começar a apostar e transformar o jogo em uma parte essencial da vida. Mateus Haidar, depois de sobreviver às dificuldades de largar de vez o mundo das apostas, começou a criar conteúdos no TikTok e outras redes sociais para ajudar quem está endividado ou em situação extrema, correndo riscos de vida.
“Todos os dias recebo mensagens de pessoas que estão flertando com o suicídio, fora os casos de suicídio consumados que aparecem na mídia, aparentemente o jogo patológico será um enorme problema de saúde pública muito em breve”.
No fim, os atingidos pela expectativa da renda extra e lucro gerado pela efêmera probabilidade de ganhar algo que nunca tiveram, são os que nasceram na falta. Mais comum do que se imagina, é pensar que absolutamente nada pode nascer de uma falta, de algo que não existe. Mas foi ainda nessa vida que Zé Braz construiu a sua nova vida, antes de perder tudo. “Conheci minha ex-mulher, casamos, montamos uma casinha ali na Habitação [imóvel ofertado a pessoas de baixa renda em São Paulo] e eu segurei um pouco essa vida né [de apostas], arrumei um empreguinho registrado e comecei a pagar o INSS, mas a bebida continuou [vício], não deu pra parar não”.
Zé Braz primeiro perdeu o amor, depois o emprego, uma parte do dinheiro, mas ficou com a casa, que era seu único abrigo, mesmo que só tivesse o físico. Mas não foi suficiente para preencher o vazio de não mais falar com a filha e dividir conselhos com alguém. Zé começou a refletir o semblante dos seus pais. “Fui e voltei pra vida do cão” o seguro desemprego virou jogo e antes de voltar para os bicos e tentar reconstruir a sua vida, fez lembranças no bar da Dona Lina. O bingo de Internet era mais fácil, bastava sacar 50 ou 100 cartelas de uma vez, com números prontos, para ver quem ganhou dessa vez.
“Deixava todo o dinheiro do auxílio lá no bingo, na cachaça, até que não me deixaram jogar mais, a Dona Lina disse que não ia vender mais pra mim. Hoje eu vivo de bico de pintor, passo textura, grafiato e pequenos reparos, tô vivendo de aluguel porque vendi a casa na habitação e o dinheiro foi todo pra mulher, cachaça e jogo".
Por Maria Eduarda Camargo (texto) e Bianca Novais (audiovisual)
Para Suelma Feitosa, mãe da Sofia de 8 anos, é difícil acompanhar o conteúdo que a filha vê na Internet. Como a menina estuda na Escola do Campo, no interior de Goiás, a rotina do nascer do sol e a longa distância até a escola se tornaram motivos para que o celular entrasse na mochila, e consequentemente no ambiente familiar. Desde vídeos no Youtube até jogos online, Sofia passa o entardecer no aparelho – que serve como um funil do universo infantil. Celebridades como Luccas Neto e Julia MineGirl, que hoje possuem um público de acesso majoritariamente infantil, fazem parte do interesse da garota pelo digital. Mas, na sala de aula, a rotina é outra: desenhos, massinha e brincadeiras ao ar livre fazem mais sucesso no ambiente. Para minimizar esses efeitos negativos estão sendo usadas muitas estratégias pedagógicas.
Thaís Oliveira é professora do ensino fundamental na rede municipal de Guarulhos, em São Paulo. Em sua rotina de ensino entram jogos, atividades e pesquisas online mas ainda faltam recursos para que as tecnologias possam entrar com funcionalidade na classe. Mesmo assim, dentro de sala, as atividades manuais e escritas ainda são um dos pilares. A professora afirma que a falta da prática da escrita fora do ambiente escolar, fruto da facilidade ao acesso da tecnologia, é um dos pontos de perda desse novo mundo. O analfabetismo digital dos pais é um dos pontos de atenção para Thaís, que também se inclui em um grupo que tem dificuldade de acompanhar os avanços tecnológicos, mas que precisou correr atrás de se atualizar durante a pandemia de Covid-19.
A legislação mais recente sobre o tema, a Lei Federal 14.533 de janeiro de 2023, institui a Política Nacional de Educação Digital (PNED), prevendo o desenvovlimento da inclusão digital dentro da sala de aula, com investimento em infraestrutura e capacitação de educadores. O principal objetivo é deixar os alunos, de quaisquer níveis, a par dos avanços tecnológicos e familiarizados com as ferramentas digitais atuais. Já o desafio, é encontrar o equilíbrio entre os benefícios e os malefícios da exposição às telas, que ainda não estão completamente elucidados.
Whatsapp, Instagram e TikTok. Esses são, em ordem, os sites mais utilizados por crianças e adolescentes na faixa dos nove aos 17 anos, de acordo com o CGI (Comitê Gestor da Internet). Em meros três minutos – o tempo máximo de vídeo permitido em todas as redes mencionadas – crianças pesquisam conteúdos como ajuda emocional e sexual, dietas e dicas para entrar em forma e tratamento de doenças. O mundo do curto prazo chegou aos pequenos, e com ele, a metamorfose da pedagogia teve que andar.
A pandemia de coronavírus, que durou de 2020 a 2023, forçou uma inclusão desorganizada de tecnologia nas salas de aula, visando minimizar o impacto que as medidas de distanciamento social causaram nos jovens em idade escolar. Segundo o relatório "O abismo digital no Brasil" da PwC, de 2022, 33,9 milhões de brasileiros não têm qualquer tipo de acesso à Internet, ao passo que 81% da população com 10 anos ou mais são usuários da rede mundial de computadores. Esse recorte etário se reflete na sala de aula de Maria de Lourdes Freitas, professora de ensino infantil na rede municipal de São Paulo, capital. Apesar de haver tablets para inclusão digital dos pequenos, a professora esclarece que a função do ensino infantil é o desenvolvimento de habilidades motoras e sociais.
Apesar disso, é comum em locais públicos como restaurantes ou shoppings observar crianças pequenas vidradas em telas. A estratégia é utilizada por pais que buscam "aquietar" os filhos, muitas vezes sem se preocuparem com os efeitos a longo prazo da exposição contínua a recursos tecnológicos de consumo passivo.
Fugindo da dicotomia de malefícios e benefícios, Thaís observa que o lugar da tecnologia na educação é, hoje em dia, sobre entender a possibilidade de acesso e como as ferramentas digitais podem se tornar aliadas no processo pedagógico.
Por Manuela Dias (audiovisual) e Luísa Ayres (texto)
Tecnologia é o nome dado a aparelhos, sistemas e métodos criados para facilitar tarefas do cotidiano humano. Desde a pré-história, diversas delas foram desenvolvidas.
Do machado à espaçonave, o mundo foi se reinventando e tentando contemplar cada vez mais as necessidades evolutivas e modernas da sociedade. Mas será que as ferramentas criadas até aqui foram pensadas para todos?
Tecnologia e falsa acessibilidade
Apesar da evolução tecnológica presenciada nos últimos séculos, que já nos proporciona trabalhar com conceitos como nanotecnologia e inteligência artificial, nem toda a população global tem tido acesso aos meios mais simples de todos esses recursos.
Segundo dados da Oxfam (Comitê de Oxford para o Alívio da Fome), o desenvolvimento tecnológico ainda exclui metade da população mundial. Quando recortes como raça e gênero são feitos em meio a essas estatísticas, os dados são ainda mais alarmantes. Cerca de 90% das mulheres habitantes dos países mais pobres não têm acesso à internet, conforme indica a ONU (Organização das Nações Unidas). Além disso, de acordo com a pesquisa feita pela TIC Domicílios, 65% da população negra possui acesso à internet apenas através do celular.
A disparidade vista através desses dados e da chamada “exclusão digital”, dificultam a democratização da tecnologia e de diversos outros meios importantes ao funcionamento do mundo contemporâneo. Infelizmente, pensar em uma realidade acessível tecnologicamente a todos ainda parece utópico. A educação de milhares de crianças, sobretudo durante a última pandemia, bem como o acesso da população carente aos tratamentos e vacinas, exemplificou diversas facetas de um mesmo problema: a desigualdade social e a falta de acesso à recursos hoje, já vistos como básicos.
Em um mundo onde ter acesso aos meios e ferramentas significa ter o poder em suas mãos, a concentração de renda e posse desta tecnologia é pensada como forma de controle e autoridade perante àqueles que delas não podem usufruir. A inclusão social sempre estará distante enquanto espaços e direitos forem negados, seja através do preconceito e discriminação ou exclusão econômica e tecnológica.
PCD’s
Nessa mesma perspectiva, outro recorte social se faz necessário para o desenvolvimento da crítica ao ilusório conceito de integração e proximidade tecnológica que tanto se fala, principalmente com o advento das redes sociais e com o barateamento de aparelhos. É preciso pensar o lugar que pessoas com deficiência ocupam na sociedade moderna, que apesar de tantos recursos, ainda oferece meios de assistência e apoio limitados a esta parcela da população.
Não é incomum ver estabelecimentos sem sinalizações em braile ou mesmo sem acessibilidade através de rampas ou elevadores. Estas são demonstrações mais evidentes dos desafios cotidianos enfrentados por pessoas com deficiências visuais severas. Porém, o problema da integração social desses indivíduos vai muito além destes aparelhos e métodos de alcançabilidade mais típicos.
Em uma pesquisa apresentada no último seminário organizado pela Fiocruz, estimou-se que cerca de 16% da população mundial apresente algum tipo de deficiência. É importante lembrar que existem diversos tipos e graus de deficiência, variando entre visual, auditiva, intelectual, psicossocial e até mesmo múltipla.
Bengalas, linguagem de sinais, cadeiras de roda e tantos outros aparelhos mais popularizados facilitam a vida cotidiana de muitas das pessoas com algum tipo de deficiência. Ainda assim, pensar em instrumentos tão simples e que dificilmente possuem adaptações específicas a cada indivíduo e suas necessidades, é desconsiderar a complexidade e pluralidade de corpos que compõem esses dados.
Deficiência visual
Segundo a Pan American Health Organization, aproximadamente 1.3 bilhão de pessoas vivem com alguma forma de deficiência visual, também variada em graus de complexidade.
Com isso, os principais órgãos de saúde ao redor do mundo, incluindo a Anvisa, classificam os graus de deficiência visual e cegueira baseados na tabela de Snellen, do seguinte modo:

Legenda: A perdão de visão varia entre “leve” à “cegueira total”, conforme aponta a tabela. Reprodução: Luísa Ayres.
Tecnologia assistiva
Desde o ano de 1988, nos Estados Unidos, o termo “tecnologia assistiva” é utilizado dentro da sociedade comum, política e jurídica. No Brasil, também pode ser visto como “Ajudas Técnicas” ou “Tecnologia de Apoio”. De qualquer forma que seja grafado, o termo remete ao uso de tecnologias que visam apoiar e integrar socialmente quaisquer pessoas com algum tipo de deficiência. No caso dos deficientes visuais, os personagens principais deste texto, pode-se falar em aparatos mais difundidos, como as bengalas e escritas em braile, até aparelhos extremamente caros e de difícil acesso.
Em geral, existem cerca de 12 categorias de tecnologias assistivas, listadas a seguir:
- Auxílio para a vida diária: ferramentas mais básicas ligadas ao uso cotidiano mais básico e primeiras necessidades, como alimentação, tomar banho, se vestir, etc;
- Comunicação aumentativa e alternativa: permitem que pessoas mudas ou com limitações de fala possam se comunicar, como através das pranchas de comunicação ou vocalizadores;
- Recursos de acessibilidade ao computador: equipamentos eletrônicos como teclados especiais, softwares de leitores de tela, reconhecimento por voz e ditados que transformam falas em textos escritos;
- Sistemas de controle de ambiente: desenvolvidos para quem tem mobilidade reduzida, como aparelhos inteligentes que ligam e desligam luzes ou abrem portas, por exemplo;
- Projetos arquitetônicos acessíveis: são projetos pensados para pessoas com deficiência que necessitam de adaptações para que possam frequentar e usufruir dos espaços. É o caso das rampas, dos apoios ao lado de vasos sanitários em banheiros, etc;
- Órteses e próteses: trata-se de ferramentas ortopédicas que podem ajustar ou substituir partes do corpo;
- Adequação postural: produtos que promovem conforto e maior estabilidade no dia a dia, como encostos anatômicos para cadeiras de roda e posicionadores veiculares;
- Auxílios de mobilidade: O mais conhecido neste grupo é a cadeira de rodas. No entanto, os auxílios de mobilidade dizem respeito a qualquer veículo de auxílio, como andadores e scooters;
- Auxílio para pessoas cegas ou com deficiência visual: lupas, braille, leitores de tela ou até mesmo animais de estimação devidamente treinados como guias;
- Auxílios para pessoas surdas ou com deficiência auditiva: tradutores para línguas de sinais, telefones com teclado, sistemas de alerta visuais etc;
- Adaptações em veículos: rampas para cadeira de rodas, arranjos de pedais e demais utensílios que facilitem a direção de pessoas com deficiência;
- Esporte e Lazer: Para quem já assistiu as Paraolimpíadas ou aos jogos de GoalBall, sabe que diversos aparatos esportivos já estão sendo adaptados a pessoas com deficiência. As bolas que emitem sons, destinadas a pessoas com deficiência visual, as toucas com vibração, feitas para os nadadores saberem quando estão se aproximando das bordas das piscinas e até mesmo novas cadeiras de roda adaptadas e fabricadas pela BMW, são exemplos de que o esporte pode sim ser praticado por todos.
No entanto, nem todas essas tecnologias e aparatos estão disponíveis para que todos ter uma melhor qualidade de vida.
Segundo a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) mais de um bilhão de pessoas necessitam atualmente de meios assistivos. Apesar do aumento de produtos e da alavancagem do setor de bens e tecnologia na economia mundial, os preços ainda são demasiadamente elevados. China, Estados Unidos, Alemanha, Japão e Coreia do Sul se destacam como pesquisadores e produtores. Tudo isso contribui para que somente uma em cada dez pessoas no mundo tenha acesso aos produtos assistivos de que precisa. Assim, 90% da população com deficiência visual continua a viver sem os recursos cabíveis às suas condições e necessidades.
Esse é o caso da Fernanda, estudante de direito e integrante há três anos da Associação dos Deficientes Visuais de Sete Lagoas - ADVISETE, fundada dia 01/10/1984, que tem por objetivo o desenvolvimento de ações de apoio, proteção, informação, orientação e encaminhamentos aos usuários e seus familiares através do Serviço da Proteção Social Especial para Pessoas com Deficiência Visual de Média Complexidade. Fernanda também tem deficiência visual, o que nunca a impediu de lutar por seu espaço no sistema educacional e na sociedade.
Ela diz que chegou na Advisete por acaso. Enquanto procurava por um serviço foi atendida pela Tati, assistente Social da Advisete. Foi assim que começou a participar de todas as oficinas, principalmente as de Braille. Hoje, além de integrar a equipe de colaboradores da Advisete, ela tem aproveitado o seu tempo livre para aprender coisas novas que possam ajudar em seu dia a dia - como usar a bengala corretamente e aprofundar a leitura do Braille.
Na Advisete existem oficinas de artesanato, informática, Braille e música, de forma gratuita. O objetivo é a autonomia da pessoa com deficiência, garante a assistente social da entidade.

Legenda: Na Advisete, os alunos com deficiência visual têm a oportunidade de utilizar os teclados em Braille disponíveis na oficina de informática . Reprodução: Internet.
É direito
Segundo a Câmara dos Deputados “o projeto de Lei 708/23 obriga órgãos públicos a garantir condições de acessibilidade a todos os cidadãos, oferecendo a pessoas com deficiência recursos de tecnologia assistiva ou profissionais com habilitação em Libras e Braile”. Essa proposta, criada pelo deputado Márcio Honaiser (PDT-MA), viria a modificar o Estatuto da Pessoa com Deficiência e já está sendo analisada.
É fundamental lembrar, contudo, que o decreto Nº 10.645, de 11 de março de 2021 já propõe o debate acerca do Plano Nacional de Tecnologia Assistiva. Ele visa, através do apoio à produção, regulamentação e promoção de acesso aos bens assistivos, inclusive através do Sistema Único de Saúde (SUS), a “eliminação, redução ou superação de barreiras à inclusão social”, bem como a “promoção da inserção da tecnologia assistiva no campo do trabalho, da educação, do cuidado e da proteção social”.
Apesar do Decreto atrelar tais responsabilidades aos Ministérios da Educação; Cidadania; Saúde; Ciência, Tecnologia e Inovações e ao antigo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o dever de implementação de tais tecnologias no dia a dia das pessoas com deficiência deve ser considerado em todos os demais setores da sociedade como direito básico delas.
Teclado adaptado
Em um mundo cada vez mais digital, a acessibilidade se tornou uma pauta crucial na busca por inclusão, tendo a tecnologia como a sua maior aliada. Entre as diversas soluções inovadoras que têm surgido para melhorar a qualidade de vida de pessoas com deficiência visual, o "Teclado Adaptado" ganha destaque como uma ferramenta revolucionária para a alfabetização.
Desenvolvido pelo engenheiro eletrônico Maicon Gonzaga, o Teclado Adaptado é um exemplo notável das tecnologias assistivas que estão transformando a maneira como os deficientes visuais interagem com o mundo digital. Segundo Gonzaga, a criação visa reduzir a curva de aprendizado de estudantes que enfrentam desafios de acessibilidade. Ele explica que o teclado que ele desenvolveu é específico para a alfabetização. Ele facilita e diminui a curva de aprendizado do estudante,.
Além do custo acessível que fica por volta dos sessenta reais, o Teclado para alfabetização em Braille possui um botão rotativo que permite ao usuário navegar pelo texto palavra por palavra ou caracter por caracter. Assim, enquanto digita, o usuário consegue navegar e ouvir o texto. Ou seja, ele vai digitando e ouvindo as palavras simultaneamente.
Projetado para ser altamente intuitivo e de fácil uso, o Teclado Adaptado em Braille não é apenas para estudantes em processo de alfabetização, mas sim para pessoas de todas as idades.

Legenda: O teclado adaptado de Maicon, pertencente à marca Programatônica, leva dois dias para ser produzido. Reprodução: Maicon Gonzaga da Silva
Tecnologia X custos
Enquanto as tecnologias assistivas têm desempenhado um papel vital na promoção da inclusão de pessoas com deficiência visual, um problema preocupante está surgindo como um obstáculo significativo: o custo. Embora esses dispositivos sejam projetados para facilitar a vida daqueles que dependem deles, seus preços muitas vezes inacessíveis estão criando barreiras financeiras que prejudicam a viabilização do produto e a inclusão dessas pessoas na sociedade.
O engenheiro eletrônico Maicon Gonzaga, criador do Teclado Adaptado, têm se dedicado continuamente para a produção do seu eficiente dispositivo educativo, no entanto, devido à falta de apoio público e até mesmo particular, tem passado dificuldades para continuar com o projeto e compartilha sua preocupação. A ideia foi criar um kit completo para tornar independente a vida de alguém fisicamente desafiado pela cegueira dentro das escolas e universidades do Brasil, mas por conta da falta de verbas, esse serviço ficou praticamente inviável.
Na maioria das vezes, a aquisição de um teclado adaptado requer um investimento significativo, o que torna esses dispositivos fora do alcance de muitos. Isso, por sua vez, limita o acesso a oportunidades educacionais e profissionais, além de restringir a capacidade das pessoas com deficiência visual de participar plenamente da sociedade digital.
A acessibilidade não deve ser um luxo, mas sim um direito de todos. A redução dos custos dos teclados adaptados para deficientes visuais é um passo crucial para garantir que a inclusão digital seja uma realidade para todos, independentemente de suas condições físicas ou financeiras.
Legenda: Maicon explica melhor as funcionalidades e conceitos por trás do teclado assistivo. Reprodução: Maicon Gonzaga da Silva
Por Fernanda Querne (texto) e Amanda Tescari (audiovisual)
No final da Pré-História, na Idade dos Metais, ela já existia. Passou longe do Paleolítico e Neolítico. Era arte nas paredes. Emanava das necessidades e desejos daqueles que a pintavam. Essas são as pinturas rupestres. Assim, a escrita nasceu. Tanto para fins comerciais quanto artísticos. E ela sempre evolui. Desenhos em rochas; manuscritos bíblicos, impressos de Gütenberg e, agora, em legendas do Instagram no smartphone.
Desde então a civilização foi inundada por livros - a cada página que se passa, há edificação nos aprendizados de todos. Idosos, adultos, adolescentes e até crianças, ao serem alfabetizados, desfrutam da leitura. Entretanto, na nossa realidade Pós-Moderna, o Kindle ocupa o lugar do papel para a geração Tik-Tok. O digital não sairá da sociedade. Na verdade, a sociedade não sairá do digital por questão de sobrevivência. E, nesse sentido, a realidade vai sendo remodelada, criando novas dinâmicas de trabalho, de lazer e na educação.
A maior metrópole da América Latina não ficaria de fora de tais mudanças e aparentes avanços tecnológicos. No âmbito das políticas públicas relacionadas à educação, o que se teve foi a tentativa da implementação do material 100% digital na rede estadual de São Paulo. Por governança ou desgovernança de Tarcísio, o objetivo declarado era que esses equipamentos escolares “se adequassem ao currículo do Estado, mantendo a coerência pedagógica” - segundo a Secretaria de Educação de Estado.
A proposta de inclusão do material digital veio, contudo, de uma ruptura com o Programa Nacional de Livros Didáticos, programa do Ministério da Educação junto ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Até então, foi este programa federal que se ocupou de levar o material didático de maneira adequada para cada nível educacional, desde a educação infantil até o ensino médio.
Compreendida a importância de um material didático de qualidade para um bom desempenho escolar, a escolha desses livros passa por um processo minucioso até que seja efetivada. Nesse sentido, evidente que qualquer alteração na definição desses materiais deve seguir as mesmas cautelas, mas não foi a escolha do governador.
Segundo o governo estadual, a opção pela não adesão ao PNLD deu lugar à confecção de um material didático próprio, alinhado ao currículo do Estado. Diante disso, muitas questões foram levantadas por educadores, parlamentares e diversos setores da sociedade. Fica a dúvida sobre benefício do material 100% digital na rede pública estadual e a eficácia de se garantir a emancipação dos estudantes. Além disso, questionar o planejamento para os alunos que utilizarão esse material. São indagações sobre alguns dos pontos de dúvida dentro da nebulosidade de tal política.
Foto: Alexandre Lombardi/ Secom Sorocaba
Em conversa no gabinete da vereadora Luana Alves (PSOL), que trabalhava depois das 19h00min, após uma entrevista ao Fantástico sobre a fala racista do então Camilo Cristófaro na Comissão Parlamentar de Inquérito dos aplicativos. Quando ouviu o nome de Tarcísio e o seu “plano infalível educacional”, os seus gestos mudaram. Antes, ouvia atentamente a pergunta. Depois, sua cabeça mexia para lá e para cá em sinal de reprovação ao projeto enquanto repetia sobre a falta de sentido do projeto.
E não pense que Alves compartilha dessa opinião por causa apenas do seu partido. Ela mencionou até que os aliados de Tarcísio desaprovaram o projeto aqui na Câmara Municipal. Há 28,2 milhões de pessoas acima de 10 anos sem acesso à Internet, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. É incongruente aderir ao material online sem um estudo prévio da educação e acesso digital. Até a Suíça com os seus recursos disponíveis desistiu da didática proposta sem livros físicos.
Entre os educadores, a opinião permanece. A infraestrutura da escola está com superlotação das salas de aula; excluindo estudantes que são Pessoas Com Deficiências (PCDs) sem apoio e falta de comunicação entre educadores e Secretaria de Educação - explicou a professora da rede municipal, Fernanda Guimarães. Destacou também o desinteresse governamental na estrutura colegial: pensa que há pouco ou zero interesse em realmente implantar algo que funcione, se conhecessem a realidade escolar, perceberiam que o problema não está nos livros físicos, que aliás, são muito mais funcionais do que os digitais. - enfatizou Guimarães.
A funcionalidade do material online de Tarcísio não está desempenhando como o esperado. Com erros gravíssimos didáticos. Mencionaram que o D. Pedro II foi quem assinou a Lei Áurea e citaram que o Jânio Quadros foi o prefeito de São Paulo. Após pressão da mídia, a Secretaria de Educação só afastou os servidores responsáveis pela polêmica. Alves e Guimarães compartilham do sentimento de insuficiência governamental ao solucionarem o problema. A vereadora logo disse que Renato Feder, secretário de Educação do Estado de São Paulo, deveria sair do cargo e tentar ganhar dinheiro em outro lugar.
O Renato Feder é sócio da offshore Dragon Gem LLC, detentora de 28,16% das ações da Multilaser - empresa de capital aberto brasileira no segmento de eletrônicos e informática. Feder se envolve muito nesse mundo tecnológico, já que o secretário de Educação levou em frente a narrativa do material 100% digital sem hesitação. Expôs, rapidamente, que não seguiria o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Assim, o governo logo providenciou os livros serão comprados da empresa Bookwire Brazil Distribuição de Livros Digitais LTD.
O tema da educação é basilar para a formação de uma sociedade mais crítica e capaz de superar suas contradições. Garantido formalmente na Constituição Federal, esse direito fundamental precisa se traduzir a partir de políticas públicas de qualidade e que realmente busquem efetivar e materializar esse direito na vida de todos os cidadãos.
Nesse sentido, mais do que a letra da lei garantindo o acesso à Educação, cabe à Administração Pública encarar a conjuntura na qual está inserida e a realidade do acesso à tecnologia e do letramento digital antes de uma proposta drástica de mudança.
Diante do cenário nacional, a vereadora Luana Alves crê que não há alguma perspectiva dessa desigualdade digital na educação ser uma pauta de relevância para o governo federal - infelizmente. A movimentação percebida por ela é em relação ao combate às fake news, pois já virou uma reivindicação ideológica do Partido dos Trabalhadores (PT). Contudo, não percebe nenhuma pauta que tenha como objeto uma preocupação com o letramento digital dessa nova geração.
A vereadora refletiu sobre como uma educação de fato mais digital, tem que ter uma ideia e uma política de conseguir de fato uma espécie de letramento digital. Principalmente, com os adolescentes brasileiros. Alves explicou sobre a importância de ensinar a nova geração a diferença entre: anúncio, propaganda, reportagem e até mesmo fake news - o que há muito nesse mundo Pós-Moderno, para não permitir a desvinculação com a realidade.