Por Rafaela Eid Lucio de Lima
O começo do século XX foi marcado por doenças (febre amarela, tuberculose, peste bubônica, varíola), pela maioria da população negra nas ruas, ou ainda em condição de escravizada, já que a escravização acabava de ser abolida, em 1888, e pela necessidade de modernização após a Proclamação da República, em 1889.
O Rio de Janeiro, capital do Brasil na época, foi símbolo do marco entre o Brasil “moderno” e o atrasado. A “modernização” brasileira, que nada tinha de moderna, pois continuaria propagando ideais racistas, classistas e burgueses, marcou também o começo do processo de higienização de brasileiros pobres e racializados, a fim de tornar o Rio atrativo para estrangeiros, sobretudo europeus. Na época, a cidade foi apelidada de “túmulo de estrangeiros”, segundo o texto Uma revolta popular contra a vacinação, por conta das doenças que assolavam a cidade.
Rodrigues Alves, presidente à época, foi o responsável por idealizar o projeto que propunha modernizar o Brasil e sua capital, ou seja, fazê-los parecer com a Europa. Segundo a entrevista, contida no texto Cinco dias de fúria: Revolta da Vacina envolveu muito mais do que insatisfação com a vacinação, dada pelo historiador Carlos Fidelis da Ponte do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz: “O projeto de urbanização do governo começou a alargar as ruas da cidade, a exemplo do que tinha sido feito em Paris. Boa parte dos cortiços da região Central foram destruídos e a população pobre foi removida de suas moradias, dando início ao projeto de favelização”.
O projeto principal era de higienizar o Brasil, então investiu-se no embranquecimento racial por meio das ideias médico-sanitaristas divulgadas pela imprensa, além das páginas de jornais criminalizando corpos negros, e pelo estímulo da vinda de imigrantes da Europa.
Para complementar os dados, a socióloga Carla Cristina Garcia concedeu uma entrevista para melhor ilustrar o contexto da época. Carla é professora de História Contemporânea do Brasil no curso de Jornalismo da PUC-SP, doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP e autora de textos como: “Marielle, presente! Genocídio juvenil, feminismo e a vida dos negros e negras das favelas do Rio de Janeiro: a luta da vereadora brutalmente assassinada”; “Capitalismo e razão neoliberal: ódio colonial e extermínio de travestis e transexuais no Brasil”; “Entre inexistências e visibilidades: a agência sociopolítica de travestis e mulheres transexuais negras no Brasil”; entre outros. Em entrevista, Carla falou sobre a conjuntura social daquele período:
“Para a gente pensar no embranquecimento da população brasileira no final do século XIX e começo do século XX é preciso, em primeiro lugar, que a gente pense que o modo de produção escravista, no Brasil, foi o último a acabar nas Américas, em 1888. E não apenas por conta da força dos movimentos abolicionistas que havia no Brasil, mas também por força da economia capitalista, que vinha pedindo, digamos assim, a todos os países colonizados e ex-colônias que se adequassem ao novo Modo de Produção, quando ideias como a Eugenia vão nascer. Também vai ser nesse contexto que, dentro do Brasil, você começa a ter não apenas o embranquecimento da classe trabalhadora, pela substituição da mão de obra de pessoas escravizadas pela de trabalhadores estrangeiros, como também existia um movimento da elite intelectual brasileira de começar a pensar a identidade nacional, quem é o brasileiro, o que significa ser brasileiro. E, nesse sentido, você vai ter vários autores como Sílvio Romero, Nina Rodrigues, o próprio Euclides da Cunha, que vão começar a forjar uma ideia de raça degenerada, por causa da miscigenação, uma ideia que, nas últimas décadas do século XIX e das primeiras do século XX, vai ser denominada de racismo científico.”
A Eugenia seria, então, a teoria científica que encabeçaria todo esse movimento de higienização das cidades e sociedade brasileira e, consequentemente, da população. Os movimentos eugênicos começam a se formar a partir de 1910 no Brasil. Mas, se for feita uma análise de alguns anos antes dessa data, a Revolta da Vacina (1904), movimento que combatia, em suas raízes, o higienismo social e racial, pode ser identificada - o que denota que a Eugenia já estava em solo brasileiro antes de 1910. A Eugenia foi, portanto, “um movimento científico e social que foi iniciado por Francis Galton, no final do século 19. Como ciência, seu foco era o estudo da herança biológica de características físicas e não físicas dos seres humanos”, de acordo com o artigo História da Eugenia e Ensino da Genética.
Os jornais, nesse contexto, foram fundamentais para difundir o pensamento eugenista. Não bastava embranquecer a população fenotipicamente, era preciso embranquecer sua mente. Sendo assim, a violência simbólica foi indispensável para criar um ideal branco e um imaginário perfeito de uma população livre da negritude. Vale ressaltar que, por mais que os ideais eugenistas tenham chegado no Brasil apenas no século XX, o Brasil já era um país racista e racialmente dividido. A própria imprensa já expressava seu caráter racista ao ter veículos contra a abolição da escravatura, que não contestavam a escravidão, que veiculavam propagandas de compra e venda de escravos, além de anúncios de fugitivos, por exemplo.
A imprensa, com sua credibilidade, seu poder e sua visibilidade, influência e distribui saberes. Renato Kehl, médico farmacêutico e eugenista brasileiro, entendendo esses quesitos, usou-se da imprensa para difundir os ideais eugênicos na sociedade brasileira no início do século XX. Ele foi o responsável por criar, em 1929, o Boletim da Eugenia, jornal que tinha como objetivo influenciar pessoas importantes da época (médicos, intelectuais, políticos) e divulgar a eugenia falando sobre congressos, bibliografias, concursos e pesquisas, de acordo com o artigo História da Eugenia e Ensino da Genética. Kehl foi um dos responsáveis pela consolidação do movimento eugênico no Brasil entre 1910 e 1920. Mas, para além desse jornal criado somente para difundir a eugenia, a imprensa tradicional brasileira também ajudava e fazia parte desse movimento.
Os jornais mais importantes do país foram responsáveis por divulgar o discurso médico-sanitarista, que, segundo o artigo Por uma nação eugênica: higiene, raça e identidade nacional no movimento eugênico brasileiro dos anos 1910 e 1920, deriva da preocupação da elite brasileira com relação à mestiçagem, juntamente com o clima tropical brasileiro, que seria propício para o espalhamento de doenças, somado ao agravamento dos problemas sociais devido a industrialização dos principais centros urbanos do Brasil e a imigração trazendo um grande contingente de pessoas. Ou seja, “para muitos intelectuais brasileiros desse período, clima e raça eram acionados não apenas para explicar os dilemas raciais e os problemas sanitários, mas também para compreender a incapacidade do Brasil em organizar-se como uma nação moderna”. Sendo assim, livrar o Brasil dos seus problemas sanitários e daqueles que eram os responsáveis, para os eugenistas, de afundar o Brasil da degeneração racial e nos seus problemas sociais era fundamental. A ciência eugenista, então, passaria a mostrar que “se, até então, a mestiçagem e o clima eram vistos como as principais causas da degeneração racial, a ciência demonstrava, agora, que o atraso do país estaria relacionado às doenças e à falta de saneamento. De uma interpretação determinista sobre os problemas sociais, a ciência abriria caminho para uma interpretação médico-sanitarista”. Acreditava-se, segundo Carla, que:
“Por ser uma cultura miscigenada, era uma cultura degenerada. E, nesse sentido, você tinha duas saídas: miscigenar ainda mais para que o sangue negro sumisse ou que não houvesse mais miscigenação alguma, no sentido de você ter uma política de embranquecimento de médio a longo prazo que tornasse o brasileiro um povo com possibilidade de desenvolvimento. Então, a gente pode dizer que nas primeiras décadas do século XX a gente tem uma política de embranquecimento da população brasileira, uma tentativa de apagamento da herança escravista e colonial com a tentativa de invisibilização da população negra. Então, as ideias eugênicas e higienistas povoaram as políticas públicas, os livros e os intelectuais.”
Assim como nos livros e nas políticas públicas, nos principais jornais, tanto das maiores cidades, quanto do interior de Minas Gerais, por exemplo, como O Estado de Minas, A Gazeta, A Voz da Prata, Correio de Uberlândia e A Tribuna, entre 1930 e 1950, era possível identificar uma grande campanha com relação às práticas de higiene da população. Era possível identificar “a mobilização da imprensa e do rádio na promoção da educação sanitária em Minas Gerais seguia as diretrizes nacionais de saúde, sendo os meios de comunicação de massa amplamente utilizados enquanto meios de difundir os preceitos de higiene”, como colocado no artigo Discurso médico-sanitário e divulgação dos princípios higienistas na imprensa. As ditas “diretrizes nacionais de saúde” eram os ideais eugenistas da época. Nas suas páginas, os jornais mineiros publicaram notícias, palestras e textos que faziam menção à educação sanitária. No A Tribuna, era possível observar matérias que falavam dos cuidados com a higiene à profilaxia de doenças, tais como “Saneamento rural”, “A lepra e seu tratamento”, “Solução racional dos problemas sexuais”, “Campanha contra a tuberculose”, assim como algumas colunas específicas, como “Pela saúde pública”, publicadas entre 1933 e 1941. Também, nos artigos publicados na Divulgação Sanitária, coletânea de textos do Serviço de Propaganda e Educação Sanitária, “além de apresentar as inovações na medicina, como a introdução de remédios e métodos terapêuticos, os textos tratavam da profilaxia das enfermidades e questões ligadas à higiene, abordando assuntos diversos, tais como alimentação, puericultura, doenças sexualmente transmissíveis, alcoolismo, saúde do trabalhador, dentre outras. Os médicos sanitaristas procuraram difundir os valores higiênicos entre a população visando a transformação da sociedade por meio das ações de saúde e dos princípios higienistas da época. De acordo com esses princípios, a conservação da saúde estava ligada não somente a hábitos higiênicos, mas também a toda uma série de comportamentos. A medicina exercia uma função social importante, educando a população para evitar comportamentos perniciosos à saúde e vícios, tais como o alcoolismo. O saber médico adquiria cada vez mais uma função social para dar conta de uma sociedade em constante mutação e marcada por desajustes econômicos e sociais” - dados do artigo Imprensa, educação sanitária e interiorização do sanitarismo em Uberlândia.
Para além dos discursos médico-sanitaristas, que vinculavam a pobreza e a negritude à sujeira, os jornais da época reforçavam estereótipos classistas, psicofóbicos e, principalmente, racistas nas páginas de segurança pública:
“Nas matérias que não tratam exatamente de saúde, mas que tratam da segurança pública, toda essa ideia da vadiagem, do alcoolismo, da loucura, da saúde mental, vinculadas tanto com questões étnicas, quanto com questões de classe. Quando se pensa em higienismo, tem a ver com tornar o espaço público um lugar asséptico: sem pessoas pobres, sem pessoas negras, sem prostitutas, sem pessoas loucas. Você vai afastando da cidade toda e qualquer possibilidade de “desordem” porque a desordem está vinculada com saúde. A rua tem que ser o passeio do burguês, entendido como alguém branco e limpo. É toda uma política de comunicação, ciência e política pública que vai dando essa ideia de sociedade moderna”.
Criminalizar esses corpos era fundamental para mantê-los longe das cidades dos burgueses, que defendiam o higienismo social e racial. Na Revolta da Chibata (1910), os marinheiros se rebelaram contra o trabalho de longas horas, as torturas, a falta de direitos e “denunciavam, ao mesmo tempo, ainda que por vias indiretas, os abusos cometidos pelas elites contra as classes pobres”, trecho extraído do artigo Marinheiros em luta: a Revolta da Chibata e suas representações. Essa foi uma maneira encontrada para enfrentar os ideais da época, que criminalizavam pessoas negras e pobres. Jovens negros eram detidos nas ruas, dentro da Lei da Vadiagem, por estarem ociosos vagando pelas cidades e eram mandados para servir na Marinha. Vale lembrar que o contexto pós-escravidão era de pessoas negras ex-escravizadas sem trabalho, sem oportunidade, sem terra e sem moradia. Em contrapartida, a maioria do proletariado brasileiro, nesse contexto, era branca, já que houve o estímulo de trazer europeus para trabalharem no Brasil - como parte da “modernização” brasileira, pautada em ideais eugênicos.
Nos jornais do Rio de Janeiro, especificamente O Paiz (1884-1910), Jornal do Brasil (1891-1910) e Correio da Manhã (1901-1910), foi possível observar, por meio da pesquisa de Mestrado O Pós-abolição no Rio de Janeiro: Representações do negro na imprensa (1888-1910), que, no contexto pós-abolição, as pessoas pretas eram retratadas “num alto grau de vulnerabilidade, sobretudo, nos cenários das crônicas policiais, o que podia consolidar um processo de sub-representação social”. Nesse sentido, os jornais contribuíram para a formação de estereótipos dessa população, já que introjetaram a necessidade da burguesia de manter a população negra como subalterna, mesmo depois da abolição da escravatura, feita sob interesses econômicos e políticos, nunca humanitários. A imprensa contribui, de fato, para a forma que a sociedade enxerga as pessoas negras e reflete as ideias que a sociedade tem dessa população - principalmente os pensamentos da classe dominante. Segundo João Paulo Barbosa, autor da tese acima: “Os meios de comunicação, como produtos da sociedade capitalista, reproduzem a sub-representação da população negra. Nas novelas, nos filmes, no jornalismo etc., o negro ainda é maciçamente subestimado em matéria de status social, trabalho e consumo”.
A ATUALIDADE DO PROBLEMA
Por mais que já tenha se passado muito tempo, o discurso e prática eugênicos ainda permeiam as estruturas da sociedade. Pessoas negras e pobres continuam sendo a maioria nas periferias, lugares afastados dos centros das cidades. O discurso do vagabundo, da pessoa que não trabalha, ou seja, que não é produtiva para o sistema capitalista é, ainda, uma realidade. Pessoas negras, em sua maioria pobres, são mortas todos os dias nas periferias, principalmente jovens negros. Segundo dados do Monitor da Violência, de 2020, 78% dos mortos pela polícia são negros. Ainda há, sim, um processo de apagamento da história negra, um projeto de extermínio da população negra brasileira.
Nesse sentido, é preciso refletir sobre qual é o papel da imprensa nesse apagamento. A imprensa brasileira tradicional, como sempre, continua a ter maioria branca nas redações, além de reforçar estereótipos e contribuir, de certa forma, ainda hoje, com o discurso eugenista. Primeiramente, quando as pessoas negras são minoria nas redações, a história que é contada sobre o Brasil e sobre elas é relatada de forma embranquecida. De acordo com o estudo Perfil Racial da Imprensa Brasileira, 20,10% dos profissionais da imprensa se denominam pretos ou pardos, enquanto 77,60% veem a si mesmos como brancos. A imprensa sempre foi um lugar de maioria branca, o que demonstra o poder e a influência que as pessoas brancas têm dentro desse segmento e é determinante quando se reflete sobre o que é contado por ela.
Outro ponto importante a ser levado em consideração é que, mesmo depois de anos, os mesmos estereótipos que eram impostos às pessoas negras pela imprensa do início do século XX continuam sendo veiculados nos meios de comunicação deste início do século XXI. Segundo o artigo Negro(a)s na mídia brasileira: esteriótipos e discriminação ao longo da formação social brasileira, os estereótipos vinculados à população negra eram e são ainda neste século: “Dá-se visibilidade a uma imagem da maioria da população negra associando-a a estereótipos construídos no século XIX, tais como: a violência (como vítima ou, principalmente, como agressor), a falta de capacidade para reverter sua posição social de pobreza (pela inserção em ocupações precárias ou pela necessidade de acesso às políticas de assistência), a libido (colocando os homens como estupradores em potencial e as mulheres como objeto sexual) etc”.
Ainda no que diz respeito a essa problemática, soma-se ao problema a construção da imagem dessa população nos jornais policialescos, cujo alguns dos objetivos são: amedrontar a população, criar um inimigo comum, criminalizar corpos negros e instigar ideias racistas. “Se de um lado, há uma extrema exposição de uma imagem estereotipada de violência e de consequente criminalização da população negra, de outro, o que se observa de forma recorrente é uma constante invisibilidade de negro(a)s em posições que não sejam degradantes”, ainda de acordo com o artigo Negro(a)s na mídia brasileira: esteriótipos e discriminação ao longo da formação social brasileira, Antes, no início século XX, era preciso sempre reforçar a cor da pele para que os leitores entendessem que os personagens eram negros. Hoje, as imagens na televisão e nas redes sociais falam por elas mesmas. Nesse sentido, é construído o discurso punitivista e racista, além de criar justificativas para a guerra contra as drogas, o encarceramento em massa e a invasão das periferias brasileiras.
Por mais que tenha se passado muito tempo, os mesmos ideais ainda são veiculados para manter no imaginário social a inferioridade de uma determinada raça (negra) e a superioridade de outra (branca).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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Por Catharina Faria de Moraes
Durante muitos séculos no território demarcado atualmente como brasileiro, predominava uma visão espiritual sobre a conexão entre a natureza e o ser humano. Contudo, a partir de um processo de dominação territorial houveram imposições de novas crenças sobre o manuseio do solo do País. Para compreendermos as atuais conjunturas do agronegócio brasileiro e as consequências que a agro-exportação, como uma das principais fontes econômicas, têm sob as circunstâncias brasileiras é necessário voltar no tempo para analisar como se chegou até a realidade enfrentada no momento.
O pensamento social brasileiro já no século XVIII, em diversas produções textuais de autores desde José Bonifácio à Frei Vicente de Salvador e Joaquim Nabuco, demonstram uma percepção alarmante quanto ao problema ambiental no Brasil. O país foi fundado por um regime colonizador agrícola, monocultor e latifundiário, que estava inicialmente focado na exploração do pau Brasil. Em 1823, José Bonifácio escreveu um artigo em que atesta que caso o país não tomasse providências para preservação de suas florestas em menos de dois séculos, iria se transformar nos áridos desertos da Líbia.
É importante observar que os problemas ambientais tiveram diferentes problemas ao longo dos diversos planos de governo que tivemos, já que com eles, tinham projetos de desenvolvimento econômico distintos. Porém, os conflitos quase sempre se estabelecem em torno da preservação ambiental e projetos desenvolvimentistas.
Os problemas ambientais não são simplesmente dados. Os pensamentos ambientalistas críticos que surgiram desde cedo, ajudaram a construir nossas instituições políticas como órgãos, leis, etc. Elas não foram somente construções casuísticas de determinados governos, mas foram construídas e moldadas conforme foi se desenvolvendo uma percepção social dos impactos ambientais que existiam em ações cometidas por um setor agrícola desenfreado.
Políticas públicas para “controle da situação”
Existem diversas maneiras de conceituar e formar o que se caracteriza como problema ambiental. Dois principais tipos de legislações ambientais tem como característica: as que dizem respeito aos princípios de proteção ambiental, definindo o que é a proteção; e aquelas que definem como será estruturado o sistema para controle e implementação dessa proteção. Dentro da nossa política ambiental existe uma concepção marcada, desde a década de 1930, de responsabilidade entre o Estado e a sociedade na proteção da natureza.
Um dos marcos iniciais foi o código ambiental de 1934 (Decreto 23.793/34), feito no período do Governo Provisório de Getúlio Vargas, que obrigava os donos de terras a manterem 25% da área de suas propriedades com a cobertura de mata original. Essa necessidade de proteção florestal além de ser traçada para as “demandas econômicas”, se transformou depois nas áreas de preservação permanente - APPs. O projeto de modernização da agricultura do país iniciou na década de 1950, com a agricultura intensiva. A Revolução Verde acompanhou um novo processo de práticas de cultivo que dependiam de produtos químicos agrícolas, agrotóxicos e fertilizantes.
Mas foi a partir da década de 1960, principalmente no início do período ditatorial do governo militar em 1964, que foram elaborados planos de “modernização do campo”, moldando a produção de bens primários ao capital financeiro, diante dos interesses do mercado internacional. Essa reestruturação do campo foi por meio do plano Complexo Agroindustrial no Brasil (CAI) que incorporou tecnologias e mecanização industrial para a agricultura, criando assim uma interdependência entre elas.
Esse modelo agroindustrial trouxe mudanças sociopolíticas para diversos grupos que dependiam do meio, além de econômicos. A ausência de políticas públicas em relação às reformas da estrutura fundiária e da regulamentação das condições de vida dos trabalhadores do campo, ajudam a compreender o impacto do efeito da modernização conservadora que aconteceu. A concentração de terras nas mãos de poucos latifundiários foi mantida,criando assim uma grande quantidade de terras improdutivas, algo que pode se observar ainda hoje, e a disparidade de renda no campo aumentou. Essas foram as consequências de suprir as necessidades industriais e do aumento da exportação monocultural.
Existiam políticas governamentais que ajudaram a formar a estrutura agrária. O Estado na ditadura militar foi o pilar para toda essa reforma, que priorizou os interesses dos grandes grupos econômicos e empresariais. É possível ver isso com as estratégias de incentivos fiscais, créditos subsidiados e programas como o Serviço Social Rural e o Estatuto da Terra. Deixando de lado planejamentos de uma reforma agrária, não houve auxílio com os problemas enfrentados pelos trabalhadores e pequenos e médios produtores do campo, fortalecendo então a desigualdade social.
Durante todo o período da década de 1980 até os anos 2000, é possível observar que, marcado por duas crises cambiais, não houve medidas do governo de modificação fundiária. O agronegócio se consolida então, atualmente, como um modelo de acumulação de capital no campo, com um caráter predador e excludente. As exportações em pouco mais de uma década, de 1999 a 2012, quintuplicaram na produção de commodities. Destacando o aumento da produção, riqueza e novas tecnologias, o agronegócio se consolida a partir de um caráter produtivista.
Esse fenômeno é considerado como uma “reprimarização” ou especialização primária. É um processo de desnacionalização do meio agrário onde o próprio meio rural está submetido a interesses de empresas transnacionais. Cada vez mais, tendo em vista que sua própria economia é baseada substancialmente na produção agroexportadora, o país depende da economia globalizada.
Alan Azevedo, um ex-jornalista do Greenpeace Brasil que cobriu pautas socioambientais no Executivo, Judiciário, Congresso Nacional e realizou consultoria de comunicação para o Instituto Socioambiental junto ao povo indígena Yanomami, comentou sobre a organização da política para lidarem com as pautas ambientais afirmando que
Fertilizante e a guerra internacional
Uma das principais estratégias utilizadas para a superprodução de monoculturas é o uso intensivo de fertilizantes. Isso também criou uma dependência da produção nacional no mercado internacional. Tratando de fertilizantes, o Brasil é o quarto maior consumidor global, importando mais de 40 milhões de toneladas por ano, que corresponde a 85% do total utilizado no setor agrícola. Portanto, ao ano, segundo o relatório de outubro de 2021 na consultoria do COGO Inteligência em Agronegócio, o País gastou cerca de R$56 bilhões. No ano de 2021 o país bateu um novo recorde histórico, comprando 13% a mais do ano anterior e com um expressivo crescimento de quase 16 milhões de toneladas em apenas 6 anos.
Mas para a desfortuna brasileira, um de seus principais fornecedores em 2022 entrou em guerra. O conflito da Rússia e da Ucrânia desestabilizou o mercado agrícola do país, já que, segundo a última edição do Boletim Logístico da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a Rússia é responsável por 28% das importações brasileiras. Por conta disso, em meio também à crise global de fertilizantes, os preços dos alimentos podem ficar ainda mais altos, causando um desabastecimento e um crescimento na taxa da fome.
Surgiu então, diante disso, um plano, o Programa Nacional de Fertilizantes (PNF). Essa tentativa de desenvolver alternativas de fertilizantes, além do estrangeiro, é um processo gradativo, contudo, ainda existem desafios com essa adaptação. Uma dos substitutos seriam os fertilizantes naturais, que geram um impacto menor para o meio ambiente e que são utilizados para a produção de alimentos orgânicos. Porém, o setor resiste a novas propostas que possam substituir os fertilizantes químicos. A fim de manter a estrutura fundiária ligada a projetos de capital internacional, o agronegócio prejudica também a imersão de substitutos naturais. Como um efeito dominó, a baixa na demanda por esses produtos aumentam seus preços e dificultam sua produção.
De acordo com Marcos Araújo, diretor comercial de uma empresa brasileira de fertilizante natural chamada PrimaSea, os fertilizantes naturais são fontes que precisam de pouco processamento, quando comparados aos complexos industriais das fontes minerais clássicas, para a sua exploração. A empresa que extrai algas mortas presente no litoral baiano chamada lithothamnium, compreende que existe uma vantagem na maior sustentabilidade aos sistemas de solo/planta, quando são utilizados produtos naturais, já que esses têm base em resíduos orgânicos e são ricos em minerais. Contudo, mesmo num processo simples de coleta, moeção e distribuição eles enfrentam um mercado tradicionalista com
“pouco apetite para inovação ou mudanças de hábitos.”
Considerando que há certo preconceito com produtos de origem natural, Araújo também reflete na dominação de grandes empresas de insumos que mantêm uma pressão no mercado e formam uma opinião contrária ao uso de produtos naturais.
Aprovação de agrotóxicos
O uso de agrotóxicos em alta escala, e dos mais variados tipos é fruto do agronegócio contemporâneo. Ao contrário dos fertilizantes, que servem para nutrir os solos, os agrotóxicos atuam como pesticidas agrícolas que afetam diretamente a saúde humana, além do meio ambiente. O Brasil é o terceiro maior consumidor de agrotóxicos no mundo que, segundo a Embrapa, tem gastos que superam US$2,7 bilhões por ano.
O mais assustador é que, mesmo tendo pesquisas como a da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz, órgão do Ministério da Saúde), que relata casos de óbitos de intoxicação humana por agrotóxico a cada ano ou projetos como Programa de Vigilância da Saúde das Populações Expostas a Agrotóxicos da Unicamp que apresenta pesquisas de que cerca de 1,5 milhão de trabalhadores do campo que com contato prolongado com os agrotóxicos estão contaminados, o governo atual continua, em ritmo acelerado, aprovando diferentes tipos de veneno. Em 2019, foram liberados 239 tipos de agrotóxicos, sendo que 31% deles não são permitidos na União Européia.
Conclusão
A reflexão da Suzana Pádua, que é doutora em educação ambiental e presidente do IPÊ- Instituto de Pesquisas Ecológicas, mapeia o que vivemos atualmente. O Estado brasileiro, contra seu próprio bem estar, está se submetendo às demandas do mercado do agronegócio para assegurar as condições de crescimento econômico em escala global. Porém, de forma com que o meio ambiente fique totalmente negligenciado em prol do “desenvolvimento” e permaneça em constante risco. Não só pelo uso de toxinas ao plantar, que poluem as áreas superficiais e internas do solo, mas pela própria estrutura latifundiária monocultural.
A ideologia dominante é o modo de produção intensivo. Milton Santos mapeou o período atual como sendo um onde as mudanças econômicas podem ser atingidas a partir de manipulações ideológicas, antes mesmo que uma presença mais maciça do capital de produção ou comercial seja necessária. A super utilização dos recursos naturais e a distorção na destinação desses recursos são resultados de um desenvolvimento histórico do país em relação ao mundo.
O agronegócio atingiu uma escala de produção tão grande que se tornou o principal regente da economia do país. Os problemas enfrentados no meio rural demonstram a necessidade de uma reorganização do seu próprio modelo, a partir de políticas públicas que ajudem a enfrentar os desafios ambientais que surgem nesse plano. O que não precisamos é de um órgão submisso às demandas de um negócio, que estimula esse sistema fadado à devastação.
Por Letícia Alcântara
O sonho de Isleida Moura de ser mãe já tem mais de 15 anos, sem sucesso, devido a problemas de fertilidade. Tal aspiração não é exclusiva de Isleide, o desejo de tornar-se mãe é expressivo no coração de milhares de outras mulheres; não é exagero afirmar que a maioria delas já nascem mães, pois até mesmo quando elas não podem gerar filhos, isso não as impedem de adotarem e assim, exercerem este instinto natural. A grande pergunta feita por muitos é: Porque essas mulheres não adotam já que existem orfanatos repletos de crianças à espera de um lar? A resposta talvez esteja na expressão do direito de exercer sua maternidade, e quando possível de modo a sua escolha, e a ciência, estando disposta para possibilitar a concretude desta decisão.
O sonho de ser mãe, portanto, é algo presente na vida de muitas delas, mas algumas anseiam em vivenciar a experiência nas entranhas, na carne, gerar a vida dentro de si, sentir as mudanças físicas, hormonais e, principalmente emocionais durante o processo dentro do seu ventre. Acima de tudo, é mais do que realizar um sonho, é experienciar por meses o milagre da reprodução. Durante esse processo a mulher passa por uma metamorfose e para a maioria é uma vivência inigualável, sendo para elas os sacrifícios, físicos, psicológicos ou as dores passadas, sentidas, em prol de colocar seu bebê no mundo, heroicamente suportadas, pois ao vislumbrar-se tornando-se mãe ela se dispõe a enfrentar este momento com bravura e nada, absolutamente nada, deve ser mais importante ou maior em sua vida. É um desejo que a acompanhará por todo o sempre; sentir uma vida dentro de outra vida, dois corações batendo no mesmo corpo. Este é o ideal romântico da fertilização, que para alguns é só ciência e mercantilização, entretanto para estas pessoas a expectativa e por fim sua realização, é o milagre da vida falando mais alto.
O desejo especial de se tornar mãe, figura a vida de muitas mulheres ao redor do mundo, gerar outra vida, através do próprio ventre, trás consigo um ideal mágico, divino, espetacular; Porém pouco se fala daquelas mulheres, que se deparam com dificuldades ao longo deste processo, ainda que dados da OMS apontem que 50 a 80 milhões de pessoas em todo o mundo podem ser inférteis. No caso específico do Brasil, este número chega a 8 milhões, estando relacionado cerca de 35% dos casos de infertilidade,
Número que coloca a infertilidade como o bicho papão para todas que querem engravidar ou seja, as mulheres que colocam a maternidade como projeto de futuro. Mais que curar e tratar doenças, os avanços da ciência carregam a possibilidade da realização de sonhos, sendo um destes mecanismos a reprodução assistida. Entende-se por reprodução assistida todo e qualquer processo reprodutivo, que tenha alguma espécie de intervenção científica, viabilizando desta forma a gravidez. Tais intervenções podem ser divididas em procedimentos de baixa e alta complexidade, sendo o primeiro quando não há manipulação dos óvulos e espermatozoides em laboratório, já no caso do segundo, ocorre esse manuseio o que explica a terminologia “In vitro”, de forma simplificada, como esclarece a pesquisadora e especialista em reprodução humana, Michelli Montãno, que hoje reside na Espanha, um dos destinos mais procurados na Europa e no mundo, para as técnicas de reprodução.
Tudo depende de quão invasiva é esta intervenção. Dentro destas duas subdivisões, existem diversos métodos que podem ser adotados, a depender da necessidade de cada paciente. Ainda em relação ao método, a especialista pontua que o mesmo deveria ser decidido de forma individual, com cada paciente porém isso na prática ,não ocorre, os ginecologista em sua maioria, não costumam pedir exames para investigar como está a reserva ovariana da mulher, e quando pedem , são em pacientes já com idade avançada, o que para Michelli é um erro, pois isso deveria ser pedido inclusive para mulheres jovens, para alertá-las, a fim das mesmas ponderarem as opções, incluindo o congelamento de óvulos.
Quando nos referimos ao método é importante salientar, que não é correto usar as expressões taxa de sucesso e de falha, uma vez que cada organismo é um, e mesmo obtendo sucesso na tentativa, em algumas situações, a gravidez não irá adiante, pelo contrário em diversos casos uma primeira experiência não é o suficiente. Muitos fatores levam mulheres, a recorrerem a estes tratamentos, como problemas genéticos, e até mesmo o avanço da idade. Estudar, trabalhar, casar, alcançar estabilidade emocional e financeira, é um processo longo, e quem segue essa ordem, não necessariamente a risca, mas que escolhe deixar por último a concepção dos filhos, acaba se deparando com alguns desafios, especialmente em se tratando de mulheres, que não só tiveram uma inserção tardia no mercado de trabalho, pós constituição de 1934, como também seguem enfrentando diversos estigmas e preconceitos sociais referentes a conciliação de vida profissional e maternidade.
Como esclarecem os especialistas, a idade reprodutiva das mulheres, atinge seu pico entre os 25 e os 29 anos, após 29 anos até os 35, as chances ainda são consideradas boas, depois dos 35 as dificuldades aumentam gradativamente ao passar dos anos, sendo depois dos 40 frequentemente necessário o suporte médico, e os riscos de complicações gestacionais, considerados altos. A entrevistada Francielle Delabio, relata que ao chegar próximo aos 40, vinda de tentativas naturais infrutíferas, não queria mais esperar, então aos 38 anos começou o processo, Francielle que recorreu ao congelamento dos óvulos, para fertilização em um momento propício, seguindo orientação médica, com testes de ovulação e administração de medicamentos, obteve êxito na primeira tentativa, e hoje tem uma filha de 5 meses de vida.
Na caminhada, para a tão sonhada gravidez, as mulheres lidam com constantes adversidades, encarar a expectativa, ansiedade e frustrações. Amanda Bueno, que realizou duas FIVs (Fertilização In Vitro) relata seu sofrimento, afirmando que a parte mais complexa de lidar é o psicológico, e que vivenciou uma montanha russa de emoções incluindo, medo, frustração e luto. Ela sinaliza a importância de toda mulher que passa por este tratamento ter um acompanhamento psicológico, principalmente porque ele influencia muito no resultado final. Amanda, ainda não conseguiu engravidar, porém afirma que após se recuperar psicologicamente, pretende continuar tentando.
Outro fator determinante são os elevados valores, as medicações são caras, juntando procedimentos e internação, tornam-se menos acessíveis ainda; os valores de uma inseminação giram em torno de 10 mil reais, e uma fertilização in vitro, não ficando abaixo de 20 mil. Os procedimentos, por enquanto, não estão no rol de cobertura de nenhum convênio, o que gera ainda mais desilusão para as contratantes. No Brasil já existem tratamentos realizados pelo SUS, para famílias de baixa renda, porém ainda que mais acessíveis, nem sempre são 100% gratuitos, requerendo custos altos para o padrão da maioria da população, além de uma burocracia significativamente demorada.
Isleide Moura atualmente conseguiu o tratamento pela UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), que detém um programa de assistência para pessoas de baixa renda, a mesma narra que a instituição cobra um valor de 3 mil e 900 reais pela internação e os procedimentos cirúrgicos, além do custeio da medicação, que totaliza 5 mil reais, e também fica por sua conta.
Os dilemas que circundam a reprodução assistida são muitos, além de negligenciados pela população em geral e pelo governo, pouco se fala de um tema que é realidade constante para muitas mulheres, para muitas famílias. Aquelas que exprimem o desejo da maternidade biológica, gerar uma nova vida, não deveriam jamais ser privadas desta vontade, especialmente quando o fator determinante se restringe ao dinheiro, ou melhor a falta dele.
Que avanços médicos/científicos são imprescindíveis e essenciais não existem dúvidas, ou questionamentos, mas e quando estes avanços só chegam para alguns? E quando a ciência se torna reduzida a só mais um objeto de aparthaid social, quanto vale um sonho? E mais quanto vale uma nova vida, que a ciência pode e deve, ajudar a gerar, más que por assimetrias sociais presta este auxilio apenas para alguns.
Por Pedro Guimarães Labigalini
O que hoje chamamos de centro-velho já foi palco de diversas transformações sociais, diásporas, movimentos de industrialização e, depois, de acentuada gentrificação. A verdade é que o solo entre a Avenida São João e a Alameda Cleveland protagoniza a história da cidade de São Paulo, e esboça, invariavelmente, um reflexo, da urbanização paulista. Até o início da década de 30, o fluxo econômico de São Paulo, e até mesmo grande importância das movimentações financeiras nacionais, corriam entre a Santa Cecília e a Catedral da Sé. É justamente com a quebra da bolsa de Nova Iorque, em meados de 1930, que ocorre a debandada empresarial do centro. Empresas, rádios, televisões e bancos migram da região central, e partem para o logradouro de mais altitude: a Avenida Paulista.
Mas, para compreender com eficácia as dinâmicas habitacionais da área em apreciação, devemos retornar à 1878, quando o empresário suíço Frederico Glete e o alemão Victor Nothmann, arremataram grande terreno na circunvizinhanças da ainda incipiente São Paulo, e repartiram a terra em lotes para dar fundação a grandes mansões. Ali, ergueu-se o primeiro bairro planejado da cidade, onde se aportaram vultosos industriais e o baronato cafeeiro, haja vista a boa localização assegurada para as viagens de tratativas negociais. Esse empreendimento tem marcantes traços e influências dos mestres-de-obra e artesãos portugueses, italianos e espanhóis que foram empenhados na construção civil.
O bairro manteve essa atmosfera do baronato até a, já mencionada, quebra da bolsa de Nova Iorque. Quando ocorre o capital sobe a colina e se instala na Av. Paulista, as grandes mansões começam a dar espaço a cortiços, e os habitantes dos Campos Elíseos passam a ser, majoritariamente, parte do proletariado de uma cidade que aportava indústrias no seu recinto residencial. Ocorre que muitas estruturas foram mantidas, e edifícios sobreviveram à industrialização, de forma que a Prefeitura decidiu, por meio do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT), tombar as características urbanísticas do perímetro, em 1986.
CRACOLÂNDIA
Apesar do tombamento conferido pela municipalidade, a degradação dos Campos Elíseos teria início quatro anos depois, e não seria através do esmorecimento da identidade urbana, mas através de um fenômeno social sintomático.
De acordo com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. do Ministério da Justiça e Segurança Pública o crack surgiu nos Estados Unidos na década de 1980 em bairros pobres de Nova Iorque, Los Angeles e Miami. O baixo preço da droga e a possibilidade de fabricação caseira atraíram consumidores que não podiam comprar cocaína refinada, mais cara e, por isso, de difícil acesso. Aos jovens atraídos pelo custo da droga juntaram-se usuários de cocaína injetável, que viram no crack uma opção com efeitos igualmente intensos, porém sem risco de contaminação pelo vírus da Aids, que se tornou epidemia na época.
Em oitenta e seis, ano que o CODEPHAAT conferiu proteção ao bairro, o crack ainda não era conhecido no Brasil. O primeiro relato da droga data de 22 de julho de 1990. A Polícia Militar teria apreendido um jovem com pouco mais de 200 gramas, na zona leste de São Paulo. No início, o consumo acabou se concentrando, em grande parte, naquele lado da cidade. Até que uma disputa entre os traficantes deslocou o fluxo de vendas para a região da Luz.
Em 1988, o Terminal Rodoviário da Luz havia sido desativado. Sem-tetos e pessoas em situação de rua habitaram o complexo no primeiro momento. Quando ocorre, porém, a mencionada diáspora do tráfico, em movimento semelhante ao que ocorrera com o capital nos anos 30, a região é tomada pela presença dos usuários e pela “cena aberta de uso de drogas”.
A primeira vez que o termo apareceu no vocabulário escrito remete a 1995, em reportagem do Estadão que tratava da inauguração da Delegacia de Repressão ao Crack . A concentração para consumo, desde lá, foi apenas aumentando. Até que em 2005, a gestão municipal de José Serra deu estopim às ações:
Serra desligou bares e hotéis associados ao tráfico da região, tentou retirar aqueles em situação de rua da região, e declarou imóveis como sendo de “Utilidade Pública”, para viabilizar a desapropriação. As medidas não surtiram efeito significativo nenhum.
Em 2007, a gestão era de Gilberto Kassab. Promoveu o programa “Nova Luz”, que renunciava 50% da cobrança de IPTU da região, e 50% do ISS. Apesar de beneficiar, notadamente, os menos vulneráveis, a ação também não provocou grandes alterações nas estruturas já estabelecidas de degradação urbano-social que agora assolavam os arredores da Rua Helvétia.
Diante do pujante insucesso das políticas de Kassab, o Governo Estadual se levantou da cadeira, e Geraldo Alckmin foi quem deu início a uma política que correu paralela e conjuntamente às empreitadas municipais, o Programa Recomeço.
O Recomeço contou, em sua elaboração, com a participação do médico psiquiatra da Unifesp, Ronaldo Laranjeiras. Com Ph.D na Inglaterra, e prática conhecidamente mais conservadora, ele concedeu entrevista a esta reportagem, que será reproduzida mais adiante. Ele foi um dos responsáveis pela implementação dos CRATOD’s (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas), que acolhe os usuários na Rua Prates.
De acordo com o Portal do Governo do Estado, “as mães dos pacientes procuram orientação no chamado ‘Recomeço Família’, um braço do Programa Recomeço. (...)
Muitos dos pacientes recebem ali mesmo o encaminhamento para o tratamento, de acordo com o seu quadro e nível de intoxicação. Além das Comunidades Terapêuticas, eles podem ser direcionados também a uma avaliação médica ou, em casos menos graves, para um Caps do município ou da própria instituição.”
A ação chegou a atender mais de 3.000 pessoas por dia em todo o estado paulista, e, apesar de também oferecer assistência social e atendimento ao paciente, recebeu tantas opiniões contrárias quanto pacientes.
As críticas recaem, em sua maioria, no direcionamento às Comunidades Terapêuticas. A psiquiatria parece não ter entendimento sedimentado e único a respeito do tratamento de dependência química. Mas duas frentes se ressaltam nas políticas de saúde pública lançadas nas últimas décadas.
A primeira caminha pela via da internação e afastamento do usuário. A outra anda ao lado da assistência social e redução de danos. Esta segunda teve expressividade em alta quando embasou o programa Braços Abertos, com Fernando Haddad à frente da Prefeitura em 2014. O programa foi coordenado pelo psiquiatra Dartiu Xavier, colega de casa de Laranjeiras, também da Unifesp. Usuários de crack eram acolhidos em hotéis e a Prefeitura tentaria promover alimentação, assistência médica e trabalho. Aqueles que varriam as ruas passaram a receber R$ 15 reais.
As ações foram desmontadas quando João Dória assumiu. Em meados de 2016 pediu à justiça a internação compulsória de mais de 400 usuários de crack da região. O Ministério Público entendeu a ação da prefeitura como improcedente, e a justiça rejeitou o pedido.
Concorrentemente ao Programa Recomeço, estadual, Dória lançou o Redenção, que ficou marcado por uma grande intervenção policial que tomou as ruas do centro, no mesmo 21 de maio em que acontecia a Virada Cultural. Se, naquele momento, houve uma pulverização dos usuários, não demorou uma semana até que se concentrassem novamente, desta vez no preciso endereço da R. Helvétia. Ali permaneceram, e assim mantiveram-se os esforços do Poder Público. Até o presente ano de 2022, em que ocorreu a ocupação da Praça Princesa Isabel, e a consequente operação policial que retirou os usuários e cercou a praça para as reformas a agendadas alguns meses antes.
A movimentação de pessoas que usam e traficam drogas a céu aberto voltou a crescer na região da Cracolândia, no centro de São Paulo, após dois anos de queda. A média de frequentadores chegou a 579 pessoas por dia de janeiro a setembro de 2021, número 21% maior do que o registrado no mesmo período em 2019 (478) e 14% maior que em 2020 (506).
A prefeitura, no primeiro dia de ações de zeladoria, retirou onze toneladas de lixo em duas rodadas de limpeza na Princesa Isabel. O que leva a subprefeitura da Sé, responsável por aquele território, ao pódio das despesas em varrições e limpeza de calçadas.
Se a manutenção do espaço é, ora, tão custosa, e sequer há retorno fiscal para a Prefeitura, por quê não encontramos soluções efetivas até o momento? A medicina parece tampouco ter uma resposta. Ou tem respostas, mas elas são bastante idiossincráticas.
O QUE DIZ A MEDICINA?
Ronaldo Laranjeiras concedeu entrevista a esta reportagem quando dos mais recentes fatos acerca da mudança para a Princesa Isabel.
Do consultório de sua clínica de dependência, Ronaldo conversou via zoom. Ao fundo, as estantes de livros eram atingidas pela luz do sol vespertino, que entrava por uma ampla janela. De sua mesa, respondeu descontraidamente às perguntas, e o trecho de maior relevância está aqui transcrito.
Na sua visão, onde está a ponta do novelo pra gente desatar esse nó da ‘Cracolândia’? São 30 anos de Políticas Públicas, o senhor inclusive participou do Programa Recomeço e disse que foi descontinuado. Mas onde o Poder Público, e talvez nós, como sociedade, estamos errando e o que estamos deixando de encontrar para desatar esse nó?
“Acho que você tem que saber que são várias populações que estão na cracolândia. Você tem ali a população de rua que não usa drogas; você tem a população de rua com transtornos mentais severos; e você tem pessoas usuários de drogas, eventualmente com transtornos mentais; e tem usuário que fica de passagem, que não é frequentador da cracolândia, mas vai, passa, fica naqueles hotéis.
Então, o ponto central é que você não teve uma política que levasse em consideração essa complexidade. E tem um pilar central aí que é o crime organizado, que ganha 9 milhões, no mínimo, por mês. É uma empresa que fatura nove milhões por mês; não existe isso. Você tem a feirinha de objetos roubados ali. Você pergunta pros usuários como eles consegue dinheiro, se a pessoa não trabalha, é por roubo, fruto, prostituição.
Então, a política pública, ela é muito pontual e muito frágil pra lidar com essa complexidade. Isso é válido aqui em São Paulo, lá em São Francisco, Los Angeles. Enquanto a política pública não levar essa complexidade... e não são os moradores de ruas só, ‘puros’ (apenas), tem o crime organizado que se beneficia. (...)
(...)Então a política falha porque ela não leva em consideração essa complexidade. Aí fica num debate muito pobre, ao meu ver: ‘vamos internar todo mundo, ou vamos prender todo mundo’. Eu acho o debate meio pobre. Acho que não vai ser uma solução única, você prender ou internar. Ou dar casa para todo mundo.
É não levar em consideração a complexidade da política para uma população muito vulnerável. Porque tem gente que sai da prisão, a gente tem esse dado, não tem para onde ir, e vai pra cracolândia. Ou então a família não aguenta mais o cara usar crack, manda embora, e ele vai lá pra cracolândia. E ele é se abrigado, de alguma forma, pelo crime organizado, acaba tendo alguma função dentro da cadeia de venda de drogas, nos pequenos roubos e furtos.
Então tem uma complexidade, todo mundo ‘ah, vamos fazer prevenção’, aí a pessoa acha que uma ação de prevenção, qualquer que seja, vai resolver essa complexidade.
O que eu acho... é uma ingenuidade! Ou eu estou velho, (risadas) e com bastante tempo de cadeira, (por isso) não acredito nessas ingenuidades. (...)
(...)O Prefeito, ao meu modo de ver ver, deveria se reunir com a Câmara de vereadores, com o Ministério Público, com a Defensoria Pública, e ter um consenso do que fazer. De qual setor fazer. É saúde, é social? Isso é parte do governo... e então fazer uma política consensual do que fazer com a cracolândia. Essas medidas unilaterais e isoladas, elas tem um efeito imediato (...) mas se não tiver uma dimensão, se achar que ‘do prefeito’. Se tiver um cara que vai ser o ‘xerife’ da cracolândia, está fadada ao erro.(...)”
Esta é a visão de um médico com prática e postura mais conservadoras, e anteriores a que é encampada posteriormente por, e tem como maior expoente o coordenador do Braços Abertos, Dartiu Xavier. Dartiu segue a linha da Redução de Danos. Foi procurado por esta reportagem, que não obteve respostas. Para Xavier, que coordena o Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Unifesp (PROAD), conforme entrevista ao portal UOL: “os modelos mais repressivos e coercitivos fracassaram no mundo inteiro”. Internar o usuário, retirando-o de seu ambiente para o tratamento, não produz efeitos a longo prazo, mesmo com recursos financeiros, porque a droga "não é causa, é consequência”. Ele afirma também que, o usuário ficar “limpo” em uma clínica, é uma situação fácil. "Mas quando a pessoa volta para a sua vida e seus problemas, ela recai",
Em outra entrevista concedida à Folha de São Paulo, desta vez por escrito, delineou melhor sua impressão:
“Aquela imagem do engenheiro que perdeu tudo e foi morar na cracolândia é a raridade da raridade. A droga é efeito, não causa da exclusão. A pessoa já vive excluída socialmente, e sua miserabilidade faz a droga florescer. Há uma grande diferença entre o usuário ocasional e o dependente. Para o segundo, a droga, seja álcool, seja crack, não é recreacional, é fuga”
Quando a gestão municipal de João Dória trouxe à tona, novamente, a internação compulsória, Dartiu disse ao Brasil de Fato:
“Para você ter uma ideia, mais de 90% de quem é internado contra a vontade recai e volta a usar drogas menos de um mês depois da internação. Ou seja, a eficácia é tão baixa que não se justifica do ponto de vista médico. Isso sem mencionar as atitudes que são tão afrontosas às liberdades individuais, aos direitos humanos. Então, eu acho lamentável que a gente, em 2017, esteja ainda voltando ao retrocesso"
Ao Mídia Ninja, disse:
“A minha impressão é que estamos indo na contramão da história, cada vez mais retrógrado nas políticas públicas para drogas. Embora a gente veja uma tendência mundial mais reacionárias, o mundo inteiro está revendo suas políticas de drogas e se flexibilizando. Há vários países regulando e legalizando. Os Estados Unidos e o Canadá, por exemplo, estão indo para uma linha francamente de redução de danos, se abrindo para outra visão, muito mais parecida com a Holanda.”
Na contemporaneidade, o mesmo país que clamava por liberdade alguns anos atrás, chora os reflexos de um período sem precedentes. A recente invasão russa à Ucrânia, no fim de fevereiro, marca uma nova era global, principalmente no que diz respeito as disputas pelo poder. O confronto, reverbera uma vertente híbrida da guerra, pautada nos estudos cognitivos da mente humana, e em três pilares fundamentais: ciência, tecnologia e mídia.
A guerra, por sua vez, possui uma trajetória longínqua que iniciou-se nas antigas batalhas relacionadas ao estado de Lagash, por volta de 2525 a.C. Já durante o Renascimento, Nicolau Machiavel defendia a tese de que um grande governante deveria assumir sua profissão nada mais além do conflito. A ótica de que “O Príncipe” não deveria ser amado por seu povo, mas sim temido por ele, perdura desde a Idade Média. Aliado a essa premissa, com a finalidade de se tornar bem-sucedido durante os conflitos, o italiano pregava que o domínio das técnicas, sistemas e estratégias era essencial.
Dessa forma, desde o século XIV a ideologia de que a ciência era fundamental dentro das discussões sobre logística de guerra vem sendo propagada, uma vez que foi ela quem sempre produziu e, ainda produz, meios para a continuação de confrontos. Por sua vez, o desenvolvimento tecnológico na produção das armas, tornou ainda mais brutais as consequências dos conflitos. Segundo o coronel da reserva do Exército, Orizon Ruyter de Freitas Jr, com o advento da tecnologia, foi possível incorporar dispositivos capazes de maximizar o dano causado, como por exemplo, a mira eletrônica. Ainda de acordo com o militar, é o uso da ciência que dita as relações de poder nos dias de hoje.
Contudo, para se compreender o período exato em que, principalmente os europeus reconheceram a vantagem que ela poderia lhes proporcionar, é preciso retornar ao cerne da Primeira Guerra Mundial. Até então, nenhum outro enfrentamento havia causado mais de dois milhões de mortes. Todavia, entre 1914 e 1918, nove milhões de pessoas perderam suas vidas, não pelas mãos da Tríplices Aliança, ou dos “Aliados”, mas sim pela ciência.
E foi pela Ciência, durante o conflito, que a invenção da metralhadora, creditada à Hiram Maxim, se transformou em um mecanismo mais mortífero. No entanto, a química também teve um papel muito importante no decorrer da guerra. Levando em consideração o enorme número de armas e munição, as formações em linha deixaram de fazer sentido, ao passo que o de canais abaixo do solo tornou-se uma maneira viável de defesa. Com o intuito de fazer os inimigos saírem das trincheiras, os alemães utilizaram o gás cloro, que atacava as células do sistema respiratório. O contra-ataque não demorou e veio quando os cientistas desenvolveram filtros e máscaras capazes de neutralizar os efeitos do gás.
O confronto, porém, ainda estava longe do seu desfecho. Enquanto a química continuava a causar danos localizados, tanques começaram a ser utilizados, ao mesmo tempo em que os aviões foram equipados com metralhadoras. Nos oceanos, os submarinos também tiveram sua importância durante o combate. Por fim, dentro de um contexto cibernético, o fato dos alemães terem atrapalhado a circulação de produtos para a Inglaterra foi um dos combustíveis que levaram a Europa a destruição.
Mas, além das milhões de perdas irreparáveis, as consequências da Primeira Guerra Mundial foram experimentadas no mundo inteiro. A criação de um ciclo competitivo de inovação provocou incessantes desdobramentos, presentes até os dias de hoje. Entretanto, a principal concepção deixada pelo conflito foi que, para realmente ter sucesso, era estritamente necessário inventar e inovar antes dos demais. Tal máxima impulsionou a criação de novos mecanismos ainda mais letais que deixariam sua marca duas décadas depois.
Idealizada por H. G. Wells, a bomba atômica não passava de uma utopia, um conceito ficcional atrelado às obras do escritor britânico, ainda em 1914. No entanto, anos mais tarde o cientista Leo Szilard realmente descobriu-a, ao passo que Albert Einstein sugeriu que ela poderia ser construída na prática. Em agosto de 1939, o alemão assinou uma carta destinada ao então presidente americano Franklin Roosevelt, alertando que a Alemanha Nazista poderia construir um novo tipo de bomba, extremamente perigosa e que por essa razão estavam extraindo urânio em minas na Tchecoslováquia.
A carta, apenas foi assinada por Einstein. Quem a escreveu foi justamente Szilard. Sob um ponto de vista global, a escritura marcava o surgimento de uma nova era na história da guerra. Roosevelt tomou a frente do Comitê do Urânio que deu origem a principal corrida armamentista da Segunda Guerra Mundial. Em 1943, cerca de quatro anos após o início do conflito, Estados Unidos e Reino Unido fundiram suas pesquisas. Os cientistas britânicos tiveram um papel muito importante ao decifrarem o código secreto dos alemães. Além disso, ajudaram no desenvolvimento do radar e, mais tarde, no projeto Manhattan.
Dois anos após unirem forças, Estados Unidos e Reino Unido tornaram Manhattan uma espécie de segredo absoluto. Ninguém saberia quais seriam os próximos passos do projeto até 16 de junho de 1945, dia em que a primeira explosão nuclear foi realizada no Novo México. A experiência Trinity serviu como um teste para aquilo que se transformaria em uma das tragédias mais dolorosas testemunhadas pelo homem.
Em agosto do mesmo ano, após a morte de Roosevelt, Truman autorizou o uso das bombas de Hiroshima e Nagazaki. Centenas de milhares de pessoas foram assassinadas durante o ataque ou por consequência dele, algum tempo depois. Trinity não apenas decretou o início da Era Atômica, mas provou que a Ciência, responsável pelo surgimento de inúmeras tecnologias que alavancaram a humanidade, também tinha o poder de causar uma destruição em massa. Os cientistas assumiram o projeto com um grande entusiasmo, tanto pelo que poderia significar militarmente, quanto, principalmente, pela oportunidade de explorar os limites do conhecimento humano e recursos da época. Contudo, uma vez concluída, a bomba causaria um efeito nunca antes visto e eles assistiriam, perplexos, as consequências do que haviam ajudado a construir. Mesmo após as críticas aos ataques, a tragédia marcou o ponto inicial da corrida nuclear.
Quase quatro anos após o desfecho da Segunda Guerra Mundial, no dia 29 de agosto de 1949, a União Soviética também testou sua primeira bomba atômica em Semipalatinsk. O experimento apenas endossou o que já se sabia: a Guerra Fria se tornaria uma realidade. A partir desse momento, o desenvolvimento tecnológico já consistia na principal frente do conflito. O lançamento dos satélites Sputnik 1 e 2, fez com que o Departamento de Defesa dos Estados Unidos criasse a ARPA (Advanced Research Projects Agency), divisão apoiada pelo governo americano, que desenvolvia pesquisas em tecnologias de computadores nas universidades
É exatamente nesse contexto de embate tecnológico que, em 1969, surge a Internet, sob o nome de Arpanet. A visão do Pentágono à época era que a rede seria um importante mecanismo de defesa, caso houvesse um ataque nuclear dos soviéticos. Os dados permaneceriam armazenados, com o intuito de manter ativa a comunicação entre militares e cientistas. De acordo com o coronel Orizon, ainda que restrita ao uso militar, o novo sistema comunicacional adquiriu um caráter revolucionário. Segundo ele, o grande efeito que ela trouxe foi na questão da velocidade das comunicações. Como consequência disso, as disputas pelo poder começaram a ser pautadas pelo acesso a informação, o que deu origem a guerra de narrativas. É justamente nesse contexto tecnológico que a Guerra Fria se instaurou.
Sob um ponto de vista global, o conflito impulsionou o uso da ciência e da tecnologia. A Guerra Fria se caracterizou como um fenômeno plural que moldou as condições e as decisões, assim como as relações internacionais, em meio a rivalidade entre Estados Unidos e União Soviética. O embate, ainda que indireto, criou um forte clima de tensão sobre a possibilidade de um confronto aberto entre as duas potências. Como consequência desse processo, após a dissolução da URSS, Ucrânia, Bielorrússia e Cazaquistão assinaram um acordo na década de 90, no qual abriram mão de seu armamento nuclear.
Na contemporaneidade, entretanto, os reflexos desse acordo começaram a ser testemunhados. De acordo com a ONU, mais de 3 mil civis morreram na Ucrânia desde a invasão russa ao país. A entidade considera que esse número é ainda maior, uma vez que o confronto dificulta o acesso a determinadas áreas do país. A estimativa é de que pelo menos 5,5 milhões de pessoas fugiram do território ucraniano desde o princípio da guerra. Tal cenário não remete em nada aquele de uma década atrás, no qual Estados Unidos e Rússia assinaram o New Start.
O acordo, firmado em 2010, limitaria o arsenal nuclear das duas potencias a “somente” 1500 ogivas ativas até 2021. Contudo, embora ele tenha sido prorrogado por mais cinco anos, ainda não cobre pontos críticos da tensão entre os países. Por esse motivo, Moscou continua desenvolvendo novos super mísseis nucleares, enquanto Washington multiplica e rearma as bases da OTAN. Era evidente que uma hora o preço viria. Porém, o mais cruel é que aqueles que não tinham nada a ver com o embate entre Estados Unidos e Rússia são os que pagam com a própria vida.
Diante desse cenário, chega a ser uma utopia acreditar que a Guerra Fria, de fato, acabou. Ela está ai, para todo mundo ver. Os desdobramentos recentes sugerem que, na Ucrânia, a nova ordem mundial está sendo decidida. O conflito entre russos e norte-americanos está muito longe de acabar, principalmente em um contexto global cada vez mais dominado pela tecnologia que, por sua vez, permite a construção e consolidação de confrontos dessa magnitude à qualquer instante. Caminhamos a passos largos ao encontro de uma realidade pautada pelo desenvolvimento científico e tecnológico e essa conjuntura pode ter pontos positivos e negativos. Depende do caminho que a humanidade escolher. Fato é que se nenhuma medida for tomada nos próximos anos, poderemos sim, ficar reféns das máquinas.