Documentário I’m Not a Robot instiga o telespectador a refletir sobre a evolução das máquinas
por
Vítor Nhoatto
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08/04/2025 - 12h

Não sou um robô, uma etapa de checagem comum ao navegar na internet e uma sentença obviamente verdadeira, ou talvez não. O curta-metragem de co-produção holandesa e belga de mesmo nome, problematiza o chamado teste Captcha, quando a protagonista Lara (Ellen Parren, produtora musical, entra em uma crise existencial ao não conseguir provar sua humanidade.

Logo de cara o enredo de Victoria Warmerdam, também diretora da obra,  pode parecer apenas cômico, e a interpretação de Parren colabora para essa atmosfera. Os diálogos curtos e a indignação diante de uma suposta certeza de Lara prendem a atenção do telespectador ao fazer com que haja identificação com a situação. Provavelmente todos nós já erramos um destes testes simples em algum momento.

A história com pouco mais de 20 minutos continua com a indicação que a personagem tem a chance de ser 87% um robô, segundo um quiz online, e a essência incômoda da ficção científica começa a reluzir. Conversas entre humano e máquina existem há cerca de 60 anos, com a criação do chatbot Eliza, e com o avançar dos anos é cada vez mais comum, de fato.

Seja aquele número para marcar consultas ou o serviço de atendimento ao cliente das operadoras, a Inteligência Artificial rodeia as esferas da vida cotidiana e vem evoluindo rapidamente. Tome como exemplo o robô humanoide que já foi capa de revista e é considerada cidadã saudita, Sophia, da Hanson Robotics desenvolvido em 2015. Ou ainda os influencers virtuais com milhões de seguidores do Instagram hoje como a carismática Lu da empresa de varejo brasileira, Magazine Luiza.

Robô Sophia
Sophia foi inclusive ao Talk Show do apresentador norte-americano Jimmy Fallon - Foto: Hanson Robotics / Divulgação

Parece que a barreira entre o físico e digital, natural e artificial vem sendo quebrada, como aborda a obra de Margareth Boarini, “Dos humanos aos humanos digitais e os não humanos”, lançada em julho do ano passado pela editora Estação das Letras e Cores. O primeiro livro da doutora em tecnologias da inteligência e mestre em comunicação se aprofunda nesses casos de coexistência entre robôs e pessoas, porém, até onde se sabe as diferenças entre máquinas e humanos são perceptíveis, ainda. 

Mas como uma boa teoria de ficção científica, o documentário explora justamente um possível futuro da humanidade, em que máquinas e humanos serão indistinguíveis, A saga de Lara por respostas acaba com a revelação de que Daniël (Henry van Loon), marido da personagem, a encomendou sob medida há alguns anos, como se faz com uma roupa hoje.

Suas memórias, sentimentos e até mesmo relações com outras pessoas, ou robôs, são todas fabricadas, como uma versão muito mais avançada do robô Sophia. A comédia permeia a narrativa um tanto quanto impensável aos olhos de hoje, mas curiosa. A seriedade da executiva da empresa que fabricou Lara, Pam (Thekla Reuten) cria uma atmosfera cômica ao assunto, completada pela tranquilidade que Daniël fala sobre sua “aquisição”.

Parren entrega uma atuação que transborda indignação, e o trabalho cinematográfico é inteligente, com cortes que acompanham a visão de Lara. Sobre o ambiente que o filme se passa, todas as gravações foram no CBR Building em Bruxelas, e a ambientação feita com cores vibrantes e apenas carros de época no estacionamento propõe um contraste entre antigo e moderno, frio e robótico, quente e humano. 

O desfecho se dá com o desejo da protagonista de ser dona do próprio destino, relegando o fato de não poder morrer antes de seu “dono”. Isso pode ser visto talvez como uma negação em aceitar a única coisa que a diferencia de um humano, ou como uma mensagem da autora da obra sobre uma rebelião das máquinas.

Fato é que Lara se joga do topo do prédio, em um take muito inteligente por parte da direção ao filmar de cima, e que apesar de pesado e grotesco consegue ser engraçado e não desagradável aos olhos. Tal qual uma morte comum, há muito sangue saindo do corpo, as necessidades fisiológicas também são como de humanos, mas após alguns instantes a robô volta à vida.

Lara e Daniel em um Volkswagen Fusca azul
Com cinematografia cativante e enredo inesperado, é um Sci-Fi cômico e dramático - Foto: Indie Shorts Mag / Reprodução

Incômodo e perspicaz são boas palavras para definir a quinta produção de Warmerdam, que a fez faturar uma série de prêmios internacionais incluindo o Oscar de Melhor Curta-metragem deste ano. Sua produção também se destaca por ser carbono neutro, com o plantio de uma agrofloresta na Holanda para compensar as emissões de gás carbônico (CO2) da obra.

I’m Not a Robot está disponível de forma gratuita no YouTube desde o dia 15 de novembro de 2025 no canal The New Yorker, com legendas apenas em inglês ou holandês. Mesmo com essa barreira linguística, o choque final é inevitável, e a reflexão provavelmente também, se o seu cérebro não estiver se perguntando se você pode ser também um robô.

Cientistas brasileiros deixam o País em busca de melhores oportunidades no mercado científico
por
Brenda Martins
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19/11/2024 - 12h

Por Brenda Costa Martins

 

Enquanto nossos melhores pesquisadores são acolhidos por laboratórios estrangeiros e embarcam em direção aos países que valorizam a academia e a ciência, ficamos à margem das grandes inovações e descobertas científicas, como espectadores de um progresso que poderíamos estar liderando. A formação de cientistas no Brasil enfrenta uma crise profunda, marcada não por apenas dificuldades estruturais como a escassez de equipamentos em Universidades e laboratórios, mas também pela falta de incentivo à estudantes para que sigam na área acadêmica de pesquisas, além das oportunidades limitadas desse marcado no país. Nos últimos anos, temos assistido a uma crescente “fuga de cérebros” — fenômeno em que profissionais qualificados, principalmente cientistas e pesquisadores, optam por desenvolver suas carreiras no exterior, sendo atraídos por melhores condições de trabalho e valorização profissional. Fuga que tem sido alimentada pela escassez de investimentos no campo da ciência e da tecnologia no país.

Desde 2015, cortes orçamentários intensos afetaram diretamente a manutenção de bolsas de estudo, o financiamento de projetos de pesquisa, bem como a continuidade de programas de pós-graduação em diversas áreas. Com menos verbas, muitos laboratórios foram fechados e projetos interrompidos, situação que acabou por criar um ambiente de insegurança e instabilidade para jovens pesquisadores que desejam contribuir com o avanço científico no país.

Nos centros de excelência, como a Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e a Universidade Federal do ABC (UFABC) doutores e mestres formados com alto nível de competência se deparam com um mercado de trabalho retraído. Apesar de contar com instituições de ensino que formam profissionais altamente capacitados, os cortes e as limitações severas no mercado de trabalho continua a fazer com que esses cérebros embarquem para o exterior buscando oportunidades de maior rentabilidade e visibilidade pois para muitos desses cientistas, o ambiente brasileiro se mostra inviável para o desenvolvimento de suas carreiras.  Mesmo entre os profissionais que conseguem uma colocação, as condições de trabalho são frequentemente limitadas, com infraestrutura insuficiente e salários que não condizem com o nível de formação e as exigências da carreira científica.

Esse êxodo de cientistas gera impactos econômicos e sociais observados em longo prazo. Ao investir na formação desses profissionais e, em seguida, vê-los partir para outros países, o Brasil perde o retorno desse investimento, bem como a possibilidade de desenvolver inovações e avanços tecnológicos que poderiam impulsionar setores como saúde, agronegócio e tecnologia. Fato que evidencia outro problema: Não é preciso investir apenas na educação básica e incentivo aos jovens cientista se, no futuro, eles não terão um lugar nas grandes corporações, já que as poucas que existem no país continuam não oferecendo benefícios tão competitivos quantos os de vagas alocadas no exterior, sedes dessas empresas.

Para cientistas como Paula Rezende, doutora em Biomedicina, a decisão de deixar o Brasil é dolorosa, mas necessária. Após anos lidando com infraestrutura insuficiente e atrasos em recursos para pesquisa, ela aceitou uma proposta de trabalho na Alemanha, onde encontrou o ambiente ideal para continuar seu trabalho. Casos como o de Paula são cada vez mais comuns, o que ilustra como o cenário nacional tem se tornado um impeditivo para o progresso da ciência e da carreira dos profissionais brasileiros. A falta de oportunidades no Brasil também gera uma lacuna na academia e nas universidades, onde a quantidade de concursos e oportunidades para docentes e pesquisadores é insuficiente para absorver os doutores formados a cada ano. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta que cerca de 25% dos doutores no Brasil ficam fora do mercado de trabalho adequado à sua formação, o que leva muitos a buscar alternativas no exterior, onde há mais estabilidade e reconhecimento.

Elisabeth Balbachevsky, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e coordenadora científica do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas (NUPPs) da USP, tem outra visão. A professora tenta analisar um lado positivo desse fenômeno da "fuga de cérebros", as mentes que vão embora do Brasil buscando melhores oportunidades podem "se inserir em redes de pesquisa internacionais, o que poderá ter um impacto extremamente positivo, porque irão se tornar lideranças brasileiras e, uma vez de volta ao Brasil, trarão novas expertises e abordagens para o País", diz a pesquisadora. Uma vez que esses cientistas brasileiros conseguem cada vez mais se estabelecer nas gigantes da tecnologia, por exemplo, o país indiretamente está ganhando reconhecimento, o que pode fazer com que os olhos dessas grandes corporações se voltem ao Brasil. Ainda que a "fuga" desses pesquisadores seja prejudicial no início, com mais profissionais produzindo ciência de qualidade em um ambiente no exterior que comporta suas necessidades, podemos colher frutos no futuro. Afinal, para que grandes corporações se desenvolvam no país, é preciso ver que a população tem capacidade de produzir recursos que possibilite sua expansão.

Outro fator que importante ser destacado é a busca pelo incentivo ao empreendedorismo desses jovens cientistas. Grandes empresas como o Facebook e a Amazon surgiram de um pequeno projeto de seus fundadores enquanto ainda eram estudantes, desenvolvendo uma start-up na garagem de suas casas. É claro que, a qualidade de ensino de ciências nas Universidades americanas possibilitam que seus alunos desenvolvam o pensamento empreendedor, enquanto no Brasil, os alunos são incentivados a bucar emprego fora, em empresas já estabelecidas, fator resultado do cenário de instabilidade não apenas do mercado científico, mas também do empreendedorismo. Algumas escolas de redes particulares no país contam com matérias de empreendedorismo e educação financeira, por outro lado, escolas da rede pública e estaduais se encontram em um cenário totalmente diferente. Ainda há um grande caminho a trilhar para que o acesso à uma educação de qualidade seja uma realidade igualitária entre todos os estudantes do país.

Propostas como a criação de um fundo nacional para Ciência e Tecnologia, que garanta recursos contínuos para a pesquisa, são defendidas por entidades como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Outra alternativa é fortalecer as parcerias entre universidades e empresas, criando oportunidades de inovação e desenvolvimento em conjunto com o setor privado, o que poderia abrir novas frentes de trabalho para cientistas dentro do Brasil.

Enquanto não houver um comprometimento estrutural e financeiro com a ciência, o Brasil permanece vulnerável à saída de seus talentos. A fuga de cérebros se torna um símbolo das dificuldades enfrentadas pela ciência brasileira, limitando o potencial de avanço científico e tecnológico do país. A valorização da ciência e o investimento em condições de trabalho são essenciais para que o Brasil não apenas forme cientistas, mas também consiga retê-los e fortalecer sua base científica para o desenvolvimento nacional e reconhecimento internacional.

Produzir orgânicos é um desafio que envolve altos custos, manejo artesanal e um compromisso com a sustentabilidade.
por
NINA JANUZZI DA GLORIA
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12/11/2024 - 12h

Por Nina J. da Glória

 

No coração de uma pequena fazenda nos arredores de São Paulo, a paisagem exibe fileiras simétricas de verduras, um campo verde que mais parece um quadro pintado com paciência e precisão. Cada folha simboliza uma promessa livre de químicos, cultivada à mão, mas também testemunha de um trabalho árduo, invisível ao consumidor final. Esse é o cotidiano de Mariana Silva, uma agricultora que decidiu, há quase uma década, abandonar a produção convencional para dedicar-se ao orgânico. No início, acreditava que seria um retorno ao básico, uma reconexão com a natureza. Mas a realidade mostrou-se mais densa e complexa do que o imaginado. O solo, como um organismo vivo, exigia constantes cuidados e uma compreensão que ia além dos métodos tradicionais. Cada semente carregava uma incerteza, e cada colheita trazia consigo os riscos de uma produtividade menor, vulnerável a pragas e intempéries. "O solo não aceita pressa", sua frase parece pairar na atmosfera ao redor das hortas, impregnada de paciência e resignação.

Nas redondezas, em outra propriedade de São Roque, Paulo Mendes compartilha a mesma visão, mas com uma trajetória que o levou ao orgânico por caminhos distintos. Ao contrário de Mariana, ele vem de uma família que cultivava com agroquímicos, mas sempre sentiu a necessidade de transformar as práticas de cultivo. Para ele, o orgânico é como um resgate da essência da terra, uma escolha que exige mais do que habilidades tradicionais. É um compromisso com o solo, com o ciclo de nutrientes e com o futuro. Paulo vê o campo como um delicado organismo, onde a compostagem e a rotação de culturas são essenciais, mas também um desafio financeiro. Cada safra se transforma em uma experiência quase artesanal, onde a eficácia do manejo natural precisa competir com a tentação das facilidades químicas. Esse processo, para ele, é como uma dança cuidadosa com a natureza, em que observar e respeitar o ritmo das estações torna-se tão vital quanto qualquer técnica de plantio.

                                                            Comunidade de pessoas que trabalham juntas na agricultura para cultivar alimentos

Para Mariana e Paulo, a colheita orgânica traz consigo um custo invisível ao olhar do consumidor. A vulnerabilidade às pragas, por exemplo, é uma preocupação constante. Sem pesticidas convencionais cada infestação é uma batalha natural que, muitas vezes, se perde. A introdução de insetos benéficos para conter pragas ou o uso de biofertilizantes representa um custo adicional, tornando a logística do manejo um quebra-cabeça financeiro. Além disso, há as certificações rigorosas exigidas para que o produto receba o selo de orgânico, que Mariana descreve como "um segundo trabalho", com visitas e inspeções que, embora necessárias, absorvem ainda mais recursos.

No centro dessa cadeia está Cláudia Ramos, proprietária de uma loja de produtos orgânicos em São Paulo. De seu ponto de vista privilegiado, ela percebe o esforço e as dificuldades de seus fornecedores, mas também o descompasso entre o preço desses produtos e a percepção dos consumidores. Em cada item das prateleiras, Cláudia vê um microcosmo de esforço e idealismo, mas, ao explicar as diferenças entre orgânico e convencional, enfrenta um público que ainda considera o orgânico um luxo. Ela afirma que cada produto é uma história de sacrifício, e explica que o custo mais alto representa a vulnerabilidade da produção orgânica, que exige cuidados permanentes e colheitas menos previsíveis.

                                                                                           Close-up de plantas verdes na estufa

A produção orgânica, então, emerge como uma complexa equação de valores, sacrifícios e riscos. Cada um dos envolvidos—do campo à prateleira—carrega uma parte dessa carga, como se fosse um ciclo contínuo de compromissos, onde o ideal e o real se encontram e se confrontam. A busca pela pureza e pelo cuidado no cultivo se mescla a um cotidiano cheio de dificuldades, e o produto final se transforma numa espécie de narrativa silenciosa sobre perseverança e dedicação ao que se acredita ser o melhor para o futuro do planeta e do ser humano.

A jornada dos entregadores não se limita ao trajeto, mas envolve obstáculos que vão da segurança no trânsito às incertezas de um dia de trabalho autônomo.
por |
12/11/2024 - 12h

Por Thais Oliveira 

 

Se antigamente era comum esperar dias ou semanas para que um pedido chegasse, hoje a demanda por rapidez e eficiência exige uma operação logística reforçada. O dia começa antes do sol nascer, com o medo e a ansiedade tomando conta de Joice Alves, mãe solteira de 50 anos que precisou se reinventar após um divórcio e o enfraquecimento das vendas em seu comércio de plantas. Seus cabelos longos e quase grisalhos carregam histórias de uma mulher forte que devido a gravidez, parou os estudos na quinta série. Tudo que aprendeu é resultado de suas vivências.

A tecnologia dominou o mundo e os seres humanos. Para Joice isso não passava de uma grande perda de tempo, até que tudo mudou em sua vida e a tecnologia virou sinônimo de estabilidade financeira e independência. Conseguir realizar uma entrega parece fácil aos olhos dos que recebem em casa. O suor do trabalho de prestadores de serviço das grandes empresas está presente em cada pacote entregue.

Os desafios começam à frente da seleção. Um aplicativo viabiliza para os entregadores os percursos disponíveis, juntamente ao valor a receber, e cada um seleciona o de sua preferência. Mas o número de prestadores é maior do que os de entregas e, às vezes é necessário passar horas olhando as atualizações no celular. Há dois meses o aparelho eletrônico, que não passava de uma ferramenta de comunicação com a família, amigos e clientes, se tornou o principal equipamento do trabalho de Joice. Foram semanas aprendendo a usar o mapa, abrir e fechar aplicativos, escrever mensagens mais rápidas e, principalmente, a contabilizar os resultados do seu novo emprego. No início de sua trajetória, Lucas, o filho mais velho, acompanhou a mãe em todos os percursos e assim, ela ganhou confiança para trabalhar sozinha. 

Desde a adolescência, Joice foi diagnosticada com TAG (Transtorno de Ansiedade Generalizada) e comenta que essa logística piora os sintomas diariamente. O seu conforto é o chá de camomila colhido diretamente dos vasos sobrepostos na janela do sexto andar e do calmante recomendado pela cardiologista. Ao conseguir uma corrida, agradece a Deus pela oportunidade e pula o café da manhã, colocando tudo que precisa dentro de uma bolsa térmica. De acordo com o aplicativo fornecido pela empresa, cada percurso tem a duração de 4h e 6h e os valores são correspondentes a estes horários. Explica que foi acordado entre a empresa e os prestadores de serviço que todas as entregas contariam com, no máximo, 45 pacotes e 40 paradas. 

Ao chegar no Centro de Distribuição, Joice recebe a rota com 52 paradas, 65 pacotes amarelos e o medo de não conseguir finalizar dentro do prazo estipulado. É necessário entregar todas as mercadorias para receber os valores completos, independente da chuva, dos ventos de 100km/h, dos postes desligados e das ruas escuras. Joice sai de Mauá com o seu destino traçado em um papel com nomes de pessoas desconhecidas diretamente para a cidade de São Paulo. Na travessa da Avenida Vila Ema e nas mãos Joice, o primeiro pacote foi entregue para a Renata, uma mulher simpática que desejou um bom dia para a entregadora.

Dentro do carro, o estômago de Joice espera por um alimento desde às 9h00min, porém os donos dos 50 pacotes pendentes têm prioridade na fila e as refeições ficam em segundo plano, sendo necessário seguir o caminho ingerindo apenas uma banana. A falta de hidratação e de nutrientes causa cansaço excessivo, perda de cabelo e, consequentemente, ausência de vitaminas importantes para o funcionamento do corpo. Relata, que praticava uma rotina saudável, alimentando-se bem e correndo na rua todos os dias de manhã com os seus filhos, porém precisou abrir mão do estilo de vida para arcar com os novos custos, como por exemplo o aluguel. A infraestrutura básica é uma questão: nas cidades grandes, com quilômetros percorridos entre um ponto e outro, muitas vezes não há onde parar para descansar ou usar o banheiro. A cidade se torna um palco de correria constante, onde não há tempo ou lugar para uma pausa, justifica Joice, ao informar que não consegue ingerir ao menos 200ml de água durante a jornada de trabalho. 

O futuro do setor aponta para uma integração cada vez maior entre tecnologia e logística, com inovações que prometem transformar ainda mais a experiência de compra e aproximar o e-commerce dos consumidores. Embora a constante evolução esteja dominando o cenário, não há direitos trabalhistas ou benefícios assegurados, como convênio médico ou seguro de saúde. Se houver algum acidente ou emergência, o entregador precisa arcar com os custos e lidar com as consequências sozinho. 

Dentro do aplicativo de entregas é possível saber que, dependendo do nível, o entregador terá acesso a mais pedidos, melhores comissões e suporte especializado. A grande corporação criou um sistema de níveis que funciona como uma espécie de escada, onde cada degrau alcançado representa mais oportunidades, e consequentemente, mais pressão. Estar em um nível mais alto pode significar, por exemplo, maior acesso a entregas em horários de pico ou de longa distância, que pagam melhor. Joice é prata, mas conta que demorou meses para alcançar a nomenclatura, afinal qualquer queda no desempenho pode significar uma descida de nível. Cancelamentos, avaliações ruins ou atrasos podem rebaixar o entregador, retirando seus, quase que invisíveis, benefícios. 

Joice conseguiu dois percursos no mesmo dia, isso significa que a corrida contra o tempo é primordial para finalizar o primeiro, voltar ao Centro de Distribuição e recolher as próximas encomendas. Ao sair, os clientes recebem notificações de que o produto está a caminho, causando ansiedade e desconfiança dos que aguardam em suas casas. Durante a noite as entregas são realizadas das 18h00 às 22h00 e Matheus, o filho mais novo, auxilia a mãe ligando para os clientes e entregando os pacotes enquanto ela separa os próximos. Em meio à movimentação, Matheus recebe uma mensagem de uma mulher que estava aguardando o produto há 30 minutos e precisava dormir. Era sexta-feira, 19h39min, quando os insultos começaram e mudaram a rota da família. Cada pacote recebe uma numeração de envio, o itinerário e os dados relevantes do consumidor, em consequência das mudanças Matheus e Joice aumentam a duração do percurso e os quilômetros rodados no carro. A quantidade de remessas no período da noite é majoritariamente maior, entretanto os consumidores não sentem confiança em recebê-las e, frequentemente, rejeitam a tão esperada aquisição. 

As embalagens amarelas recusadas devem atravessar a cidade e voltar à corporação até às 23h00min, horário de finalização dos serviços diários. Joice retorna com o peso da consciência de classe descendo em seus cabelos, refletindo sobre o comportamento interpessoal dos consumidores, do egoísmo e da falta de empatia. O mundo não é mais o mesmo e as pessoas estão preocupadas com as futilidades expostas nas prateleiras invisíveis dos comércios online. Não se importam se a voz que clama do lado de fora da residência está enfrentando a maior chuva do ano na cidade ou se está com um prazo apertado, o importante é aconchego e a novela das 21h00min. 

Após 15 horas, Joice finalmente chega em casa, sentindo-se cansada, fraca e estressada. O dia foi longo, repleto de entregas que exigiam rapidez, atenção e resistência. Cada pedido, cada quilômetro percorrido, parecia se arrastar em meio à chuva, ao trânsito caótico e à pressão por cumprir os prazos apertados. Como muitos entregadores, Joice não tem garantia de descanso ou segurança no trabalho, e mesmo ao chegar em casa, a sensação de que poderia ter feito mais, ou o medo de não atingir o número de entregas esperado, a acompanha. Mas para Joice, o trabalho nunca termina realmente. Ela reflete sobre o que poderia ter feito para ser mais rápida, ou se valeu a pena o esforço de correr contra o relógio. Em sua mente, os desafios que ela enfrentou ao longo do dia continuam vivos, a insegurança nas ruas, o risco de acidentes, a exaustão física e emocional. Mas amanhã, o caminho se repete, enfrentando as mesmas dificuldades em nome de um dia melhor, ou, quem sabe, uma coroa de ouro na guerra contra a logística desumana.

Os chamados cibercrimes são considerados um tipo de violência contra o idoso, e a campanha Junho Violeta busca conscientizar à população sobre a violência patrimonial
por
Alice Di Biase
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11/11/2024 - 12h

Por Alice di Biase

 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que a população acima de 60 anos no Brasil deve crescer em ritmo acelerado, quase triplicando até 2050. Dados como esse expõem o crescente aumento da população idosa, além de um novo perfil de envelhecimento que requer atenção especial em políticas públicas. Adriana Horvath, diretora voluntária de captação de recursos da Casa Ondina Lobo, relata que a principal queixa dos residentes da Casa é a invisibilidade, a visão estereotipada do “vovozinho” de cabelo branco e ingênuo, e adiciona que os idosos querem ser vistos como seres humanos que ainda tem muito a oferecer.

A Casa de Repouso Ondina Lobo é uma instituição de longa permanência para idosos em situação de vulnerabilidade social, o projeto é sustentado por doações filantrópicas. A missão da organização é promover o bem-estar e a integração do idoso na sociedade, por meio de atividades plurais. Ela relata que muitos dos idosos residentes da Casa já passaram por alguma violência ou situação de preconceito e atribui isso a forma como a sociedade olha os idosos, relacionando-o com a finitude da vida. E adiciona que é preciso entender que a velhice é apenas mais uma fase. Além disso, ela também cita a importância de campanhas de conscientização contra a violência ao idoso, como o Junho Violeta.

Existem vários tipos de violências direcionadas aos idosos, uma delas é a violência patrimonial. Com o avanço tecnológico, os mais velhos se tornaram mais vulneráveis para a violência patrimonial, por meio dos chamados golpes. O Disque 100, do governo federal, registrou, nos cinco primeiros meses de 2023 mais de 15 mil denúncias de violações financeiras ou materiais contra idosos; 73% a mais do que no mesmo período de 2022. Cada vez mais conectada, a terceira idade tem sido um dos principais alvos de quadrilhas especializadas em crimes cibernéticos que comprometem o patrimônio da vítima.

Ondina Lobo e Image Magica

“Mãe, mudei de número, salva esse contato aqui”, assim começa uma das formas mais comuns de fraudes financeiras contra os idosos, a foto de perfil é a mesma que o filho utiliza no seu número próprio e logo em seguida são solicitadas as transferências. Cláudia, aposentada de 66 anos relata como caiu no phishing - tipo de golpe realizado por e-mails, redes sociais e sites que utilizam uma “isca” para fazer a vítima fornecer informações pessoais. Uma loja conhecida com descontos extravagantes, a propaganda era feita por celebridades como Gisele Bündchen e a apresentadora Angélica que recomendavam a promoção. Tudo feito com inteligência artificial. O valor perdido não foi alto, como conta Claúdia, com alívio, no entanto, a sensação de ter sido enganado com facilidade pelos golpistas causa constrangimento.

O constrangimento também é um dos motivos que leva os idosos a se tornarem um alvo fácil dos golpistas. Envergonhados de demonstrar a fragilidade e, de certo modo, alimentar os estereótipos de ingenuidade que a sociedade cria em relação a faixa etária, muitos idosos não contam aos familiares a situação e deixam o ciclo de golpes se estender. Em 2024, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos já recebeu mais de 21 mil denúncias de violações deste tipo contra idosos, destes 80% dos casos são denunciados por terceiros, e não pela própria vítima.

A psicóloga e psicanalista Moema Sarmento compartilha suas perspectivas sobre a saúde mental na terceira idade, ela argumenta que a falta de respeito e os maus tratos podem levar ao isolamento e depressão, o que faz que muitos idosos que sofrem esses abusos patrimoniais não procurem ajuda, assim os casos só chegam aos familiares e autoridades quando já estão em estágios alarmantes.

Com o intuito de alterar esse cenário, a Casa Ondina Lobo em pareceria com a ONG Image Mágica, levou o Circuito Cultura e Inclusão para as mulheres da Casa. As aulas de inclusão digital e fotografia buscam conscientizar os moradores a respeito dos golpes digitais, resgate da autoestima e criar intimidade com o meio tecnológico.
 

Ondina Lobo e Image MagicaOndina Lobo e Image Magica

Como comenta Horvath, a velhice é só mais uma fase da vida que envolve atenção e deve ser aproveitada com qualidade de vida e isso envolve a liberdade de consumir a Internet com segurança.

A tecnologia 'apolítica' mostra suas facetas entrelaçadas diretamente com o sistema
por
Isabela Mendes
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30/06/2022 - 12h

Por Isabela Mendes

As criptomoedas se construíram como um fenômeno tecnológico característico do século XXI, que tem como peça-chave o pós-modernismo. Por conta da rapidez e a volatilidade com as quais as coisas estão fadadas a se moldarem nos dias de hoje, o mundo cripto surgiu como uma alternativa imediatista e tomada de celebracionismo tecnológico para uma problematização neoliberal do papel do Estado na economia pós crise de 2008. 

Os criptoativos, como o Bitcoin, por exemplo, possuem uma relação de retroalimentação com o sistema neoliberal, pois seguem a lógica do mercado para definir seu valor, sem a regulação de um Banco Central. Por isso, não se caracterizam como moedas fiduciárias, isto é, moedas de curso forçado, que possuem valor assegurado por decreto governamental e que são reconhecidas pela população. Para que haja esse reconhecimento popular, é necessário capital político e econômico expressivos, que não estão atualmente mobilizados em torno do universo cripto como um todo.

No entanto, muitos defendem a utilização das moedas digitais como saída para a inflação, já que elas possuem um sistema de mineração (processo de confecção das criptomoedas) limitado, ou seja, existe uma quantidade específica de transações permitidas em blockchain, tecnologia exclusiva desse segmento. Nesse sentido, se fossem adotadas como moeda oficial, poderiam, em teoria, ajudar a frear os índices inflacionários através da desaceleração da emissão do dinheiro em espécie que, se em alta circulação, tenderia a derrubar o valor da moeda vigente, de acordo com a ótica liberal. 

Para o professor e pesquisador Edemilson Paraná, autor do livro “Bitcoin: a utopia tecnocrática do dinheiro apolítico”, as criptomoedas foram desenvolvidas com o propósito de tirar das mãos do Estado, bancos e instituições financeiras a gestão monetária, contando com um arranjo tecnológico avançado criado exatamente para isso.

Porém, o mercado cripto não é estável o suficiente para ancorar a economia de uma nação, visto que é dominado pela alta especulação promovida por grandes empresários em benefício próprio numa espécie de esquema de pirâmide, tornando-o volátil e manipulável. Além disso, a crença de que é um nicho financeiro “descentralizado” e de que os processos tecnológicos em si são livres de ideologias é leviana, visto que dada a ausência do Estado como ponto central, a presença do mercado se faz intrínseca, carregando sua própria lógica tanto na idealização do mundo dos criptoativos como na sua execução que, como toda tecnologia, tem as mãos e mentes humanas por trás e, portanto, dispõe da ideologia liberal para a qual foi criada para servir.

Sendo assim, Edemilson caracteriza o Bitcoin como “o filho rebelde do neoliberalismo” e diz que ele “visa tratar o dinheiro, por meio do aparato tecnológico, como uma coisa neutra e apolítica, puramente técnica”. “Essa ideia de neutralidade técnica muito rapidamente nega a si mesma, já que está a serviço de uma forma particular, tecnocrática, de política”, acrescenta.

De acordo com ele, ainda, o perfil majoritário dos indivíduos que utilizam o Bitcoin consiste em um sujeito do gênero masculino com idade de 25 a 44 anos, representando 88% do total. Ele lembra que as transações feitas em Bitcoins dispõem de uma criptografia robusta que, via de regra, dificulta a identificação daqueles que as realizam. Nesse sentido, também cabe mencionar as portas que esse mecanismo abre para esquemas de corrupção como lavagem de dinheiro, por exemplo, visto que seus negociadores praticamente “inexistem” no ambiente cripto, como dito acima, e tampouco deixam rastros no que diz respeito à origem do dinheiro que está em jogo.
 

Uma discussão sobre a não neutralidade da tecnologia e suas implicações no Jornalismo.
por
Rafaela Eid Lucio de Lima
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30/06/2022 - 12h

Por Rafaela Eid Lucio de Lima

O Jornalismo, profissão que investiga, discute, expõe fatos, ideias e argumentos, sempre é alvo da discussão sobre a imparcialidade: É neutro ou não é? Por mais que a sociedade queira acreditar na neutralidade das coisas, como na da tecnologia e do próprio Jornalismo, é fato que tudo tem estímulos ideológicos. Assim como um jornalista - com suas escolhas de palavras e argumentos - coloca seus pensamentos naquilo que escreve, os mecanismos tecnológicos também replicam aquilo que “pensam”, ou seja, o que aprenderam. Os robôs no Jornalismo podem ser vistos, por alguns, como uma saída para parcialidade humana, mas os algoritmos também são capazes de reproduzir preconceitos e estereótipos.

Segundo um levantamento feito pelo coletivo Pretalab - projeto que estimula a inclusão de mulheres negras na tecnologia e na inovação - juntamente com a consultoria ThoughtWorks, homens brancos, héteros e de classes sociais média ou alta são a maioria dos funcionários do setor de tecnologia. Nesse sentido, quando produzem os algoritmos, esses cientistas alojam seus preconceitos, mesmo que inconscientemente, já que vivem em uma sociedade estruturalmente racista e machista. Consequentemente, há casos como quando o Google Fotos rotulou, em 2015, um casal de pessoas negras como gorilas e quando, em 2020, o Twitter priorizava exibir rostos brancos nas imagens que também continham rostos negros, entre tantos outros.

Além disso, outro elemento importante, que colabora para que a discussão sobre a falta de parcialidade ou excesso dela no Jornalismo exista, é a narrativa, produzida pelos próprios veículos, de que os meios de comunicação jornalísticos são imparciais. Entretanto, essa é uma maneira de controlar e enganar reiteradamente os leitores. O viés encontra-se nas entrelinhas, na linha editorial, nas escolhas de posicionamentos, no que é publicado e, principalmente, no que não é publicado.

Como colocado pela autora Clarissa Peixoto, no texto Jornalismo, hegemonia e reações contra-hegemônicas: “A imparcialidade pregada pelos veículos de jornalismo hegemônico cai por terra diante das evidências de desequilíbrio entre versões do fato ou do acontecimento. Falsas equivalências buscam dar a mesma dimensão para temas situados em horizontes diferentes. A exemplo disso, podemos atribuir ao jornalismo tradicional uma parte importante do incentivo a narrativas da extrema direita. Não à toa, teve papel fundamental na promoção de Bolsonaro nos anos anteriores à eleição de 2018, apresentando seus posicionamentos como válidos na discussão entre contraditórios, sem realizar um debate crítico e aberto com a sociedade sobre o que significavam. Outra forma de enquadramento recorrente na imprensa hegemônica consiste em tratar sem equidade as relações de poder. Os contraditórios não são mediados para garantir um equilíbrio entre as narrativas quando não lhes convém. O discurso da imparcialidade valida posições de poder na compreensão do que é público e do que é privado (MIGUEL; BIROLI, 2010), sintetizando a realidade em versões polarizadas e estanques”. Essas e outras maneiras são utilizadas pela grande mídia para colocar sua opinião sem que seja tão explícita.

Sendo assim, tudo tem um viés, seja ele por interesses políticos, econômicos, sociais, privados, públicos, entre outros. No caso da grande mídia, o interesse econômico é o que dita o que será veiculado. A linha editorial dos jornais, como o Estadão e a Folha de S. Paulo, publica o que não vai de encontro com as vontades dos anunciantes. Nesse sentido, faz-se necessário questionar as tecnologias que compactuam com o discurso hegemônico da sociedade, em qualquer âmbito, até mesmo no Jornalismo, a fim de entender as tendências ideológicas dos algoritmos, como impactam a vida da sociedade pelos meios de comunicação e os próprios meios de comunicação.

COMO FUNCIONAM OS ROBÔS

Pensando nisso, então, mesmo que fossem robôs escrevendo notícias, eles teriam que continuar mantendo o padrão de quando são escritas por humanos. Em 2014, por exemplo, o El País Brasil publicou uma matéria com o título “O jornalismo enfrenta o desafio dos robôs que produzem notícias", dizendo que a agência Associated Press começava, naquele ano, a usar robôs para produzir notícias automaticamente. Cristina Pereda, jornalista que a escreveu, cita no texto que: “Os robôs são na verdade programas de computador que já conquistaram outros setores, como o de atendimento ao cliente, serviços de venda online ou os buscadores de informação. Mas seu uso nas redações é o último desafio ao qual o jornalismo deve enfrentar no trabalho dos meios de comunicação depois do surgimento da Internet, o que mudou para sempre a distribuição das notícias e esvaziou os modelos de negócio baseados na publicidade.” Pereda ainda cita outros veículos, para além da Associated Press, que já utilizavam os robôs: The New York Times e Los Angeles Times, por exemplo.

Vale ressaltar que o uso dessa tecnologia não é uma novidade nas redações, elas datam a década de 70, segundo o artigo O uso de robôs no jornalismo brasileiro: três estudos de caso. Eles eram utilizados na redação de previsões do tempo já naquela época. Mas o debate se intensificou depois que grandes veículos como os citados acima e outros, como The Washington Post, Le Monde, Forbes, Metropolis Daily, começaram a usar os robôs que utilizam softwares de Natural Language Generation (NLG), que consiste no uso de Inteligência Artificial (AI) programada para produzir narrativas escritas e faladas a partir de um dataset - conjunto de dados. A NLG produz conteúdos com “natural-sounding language”, ou seja, com uma linguagem que soa natural, de acordo com o site Tech Target. Além disso, ela funciona em 6 estágios: análise de conteúdos; entendimento de dados; estruturamento de documentos; junção de frases; estruturamento gramatical; apresentação de linguagem. Quando se fala, então, de robôs no jornalismo, “não estamos falando de robôs humanoides que trabalharão, lado a lado, com repórteres nas redações. Estamos sim falando de computadores, softwares, algoritmos, tabelas e bancos de dados”, trecho do artigo O uso de robôs no jornalismo brasileiro: três estudos de caso. Vale ressaltar que, no Brasil, também existem veículos que usam robôs como “jornalistas”: Aos Fatos, G1, Jota, entre outros. 

Dessa maneira, os dados coletados pelos robôs, a fim de escrever notícias, são algoritmos que podem ser ensinados e que podem conter preconceitos. O racismo algorítmico, por exemplo, é uma das discussões mais atuais quando se fala do uso de IAs em diversos campos da nossa vida: redes sociais, aplicativos, reconhecimento facial, entre outros. Como fala o pesquisador Tarcízio Silva, autor do livro Racismo Algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes digitais, em entrevista para o programa Bem Viver da Rádio Brasil de Fato:

 

“Racismo algorítmico é um termo [que está] sendo utilizado globalmente por estudiosos e ativistas que tentam entender como tecnologias digitais podem intensificar práticas racistas e manifestações do racismo estrutural em diversas tecnologias digitais que temos no nosso dia a dia. E essas tecnologias digitais, hoje, são impulsionadas, de certa forma, pela lógica e pela ideologia da Inteligência Artificial e do aprendizado de máquina. E, para além disso, as plataformas que utilizam essas tecnologias dominam praticamente todas as esferas da vida. São as plataformas de comunicação, mas também são as plataformas de trabalho, de comércio, até as plataformas de serviço. Então, os aplicativos de transporte, de entrega, são exemplos disso. Além disso, para falar um pouco mais dessa pervasividade das tecnologias em todas as esferas, a gente ainda pode pensar em aplicativos de paquera e aplicativos de saúde. E, nos últimos 10 anos, muitos estudos descobriram que algumas tecnologias podem esconder práticas racistas e outros tipos de práticas discriminatórias - também relacionadas a gênero, ou região, ou capacitismo, e assim por diante. Não que os algoritmos sejam racistas, porque a questão não é pensar que um software tem vontade própria, mas sim o inverso, algoritmo como um qualificador do racismo. Então, as práticas racistas e discriminatórias hoje [se] utilizam das tecnologias, ou seja, [se] utilizam também dos algoritmos para intensificar a exploração, que está ligada a exploração financeira também, exploração do trabalho, em várias esferas diferentes. E isso é um risco enorme porque pode infringir diversos direitos que envolvem minorias raciais, mas a população como um todo também”.

Diante do que foi exposto por Tarcízio, surge a pergunta: Como poderiam ser imparciais os robôs que atuam no Jornalismo? A resposta é que eles não conseguem ser neutros, já que podem replicar práticas discriminatórias, pois a Inteligência Artificial que os opera é tendenciosa. Então, a utilização desses mecanismos tem como objetivo automatizar as redações, precarizar o trabalho e agilizar os processos de elaboração de notícias, jamais tornar o Jornalismo e seus veículos mais imparciais. Nesse sentido, o debate sobre a neutralidade torna-se infrutífero. O Jornalismo é parcial e não há como, nem por meio de robôs, torná-lo um pouco mais neutro. O que a sociedade vivencia, atualmente, é uma tentativa lucrativa de espalhar por toda a parte o uso dos algoritmos e, portanto, bem-sucedida, já que a tecnologia é, por muitas vezes, bem aceita sem nenhum questionamento. 

 

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

CARVALHO, Denise. Racismo Calculado. Uol, 2021. Disponível em: <httpws://www.uol.com.br/tilt/reportagens-especiais/como-os-algoritmos-espalham-racismo/>. Acesso em: 29 de jun. de 2022.

 

DALBEN, Silvia. O uso de robôs no jornalismo brasileiro: três estudos de caso. VI Seminário de Pesquisa em Jornalismo Investigativo. Universidade Anhembi-Morumbi, 26 de junho a 29 de junho de 2019. Disponível em: <https://projetos.abraji.org.br/seminario/PDF/6/SILVIA_DALBEN-O_uso_de_robos_no_jornalismo_brasileiro_tres_estudos_de_caso.pdf>.  Acesso em: 29 de jun. de 2022.

 

JUNIOR, Juracy Braga Soares. Jornalistas robôs substituem seres humanos no G1 a partir de 1 de janeiro de 2021. Unieducar, 2021. Disponível em: <https://unieducar.org.br/blog/jornalistas-robos-substituem-seres-humanos-no-g1-desde-1o-de-janeiro-de-2021>. Acesso em: 29 de jun. de 2022.

 

LACERDA, Nara. Racismo digitalizado: como funciona o preconceito impresso nos algoritmos?. Brasil de Fato, 2022. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2022/02/28/racismo-digitalizado-como-funciona-o-preconceito-impresso-nos-algoritmos>. Acesso em: 29 de jun. de 2022.

 

MACIEL, Camila. Algoritmos: pesquisadores explicam tecnologia que intensifica racismo. Agência Brasil, 2021. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2021-03/algoritmos-pesquisadores-explicam-tecnologia-que-intensifica-racismo>. Acesso em: 29 de jun. de 2022.

 

MEDEIROS, Davi. Robôs já escrevem ‘sozinhos’, mas podem ser melhores que humanos?. Olhar Digital, 2020. Disponível em: <https://olhardigital.com.br/2020/09/11/noticias/robos-ja-escrevem-sozinhos-mas-podem-ser-melhores-que-humanos/>. Acesso em: 24 de jun. de 2022.

 

PEIXOTO, Clarissa. Jornalismo, hegemonia e reações contra-hegemônicas. Observatório da Imprensa, 2020. Disponível em: <https://www.observatoriodaimprensa.com.br/objethos/jornalismo-hegemonia-e-reacoes-contra-hegemonicas/>. Acesso em: 24 de jun. de 2022.

 

PIERRO, Bruno de. O mundo mediado por algoritmos. Revista Pesquisa FAPESP, edição 266, Abr, 2018. Disponível em: <https://revistapesquisa.fapesp.br/o-mundo-mediado-por-algoritmos/>. Acesso em: 29 de jun. de 2022.

 

SILVA, Tarcízio. Racismo algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes digitais. São Paulo: Edições Sesc SP, 2022.

 

SILVA, Tarcízio. Linha do Tempo do Racismo Algorítmico. Blog do Tarcízio Silva, 2019. Disponível em: <https://tarciziosilva.com.br/blog/destaques/posts/racismo-algoritmico-linha-do-tempo/>. Acesso em: 29 de jun. de 2022.

 

WIGMORE, Ivy. Natural Language Generation (NLG). Tech Target, 2021. Disponível em: <https://www.techtarget.com/searchenterpriseai/definition/natural-language-generation-NLG>. Acesso em: 29 de jun. de 2022.



 

A iniciativa engloba desde uma página de checagem até vídeos no Tik Tok
por
Esther Ursulino
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30/06/2022 - 12h

Por Esther Ursulino

O TSE está se inserindo no mundo da tecnologia e das redes sociais para combater as notícias falsas que desestabilizam a democracia brasileira. A iniciativa também busca reforçar a confiança na Justiça Eleitoral, nas eleições e na urna eletrônica, que vêm sendo alvos constantes de campanhas difamatórias. 

Em agosto de 2021 o Tribunal Superior Eleitoral instituiu o Programa Permanente de Combate à Desinformação, que tem como objetivo reduzir os efeitos negativos das notícias falsas relacionadas, especialmente, à Justiça Eleitoral e seus integrantes, às urnas eletrônicas e às diferentes fases do processo eleitoral. As ações do programa estão baseadas em três eixos: Informar, Capacitar e Responder. O primeiro eixo promove o consumo de informações oficiais, confiáveis e de qualidade; o segundo é destinado à alfabetização midiática dos brasileiros; e o terceiro busca identificar casos de desinformação e respondê-los, de forma preventiva ou repressiva, para que seus efeitos negativos sejam contidos. Atualmente, a iniciativa mobiliza mais de 70 instituições, entre partidos políticos e entidades públicas e privadas. 

Visando a efetividade do Programa Permanente de Combate à Desinformação, a Justiça Eleitoral viu a necessidade de se adaptar às plataformas digitais, que se tornaram o principal meio de informação no país. Segundo o estudo Digital News Report 2022 do Instituto Reuters, 64% dos brasileiros dizem receber notícias pelas redes sociais. As principais são Youtube (43%), seguido pelo WhatsApp (41%) e Facebook (40%). O relatório também mostra a tendência dos mais jovens em privilegiar informações em formato de áudio e vídeo, características de redes como Instagram, Tik Tok e Spotify. Tendo em vista este cenário, o TSE realizou parcerias com as plataformas citadas na pesquisa, além do Google, Kwai e Telegram. Vale ressaltar que o Tribunal é o primeiro órgão eleitoral no mundo a firmar parceria com este último aplicativo. 

Além de ser parceiro das plataformas, o TSE também se insere nelas. Em sua conta do instagram @tsejus é possível encontrar publicações relacionadas à educação midiática, às eleições e à importância do voto – tudo isso feito de forma leve, informativa e até mesmo bem humorada. E por falar em humor, o órgão não poderia ficar de fora do Tik Tok. No app desde 2020, o perfil TSEjus posta conteúdos institucionais e informativos em formato de vídeos curtos, muitas vezes utilizando memes e elementos da cultura pop para se comunicar melhor com a população mais jovem – principal público do aplicativo. Em maio deste ano, o perfil oficial do Tribunal publicou uma paródia de uma das cenas da novela Pantanal, edição exibida pela TV Globo, em que Juma Marruá entrega um bilhete a Jove, seu par romântico na trama. Quando o moço abre o bilhete encontra a frase: “Não deixe de votar. Todo voto importa.”. https://www.tiktok.com/@tsejus/video/7103528900742958342?is_from_webapp=1&sender_device=pc&web_id=7131855846342395397 Em outros vídeos, podemos encontrar referências aos Vingadores, Star Wars, Irmão do Jorel etc. 

No YouTube, há o canal da Justiça Eleitoral. Nele, dentre outros conteúdos, há o quadro “Então é Isso!”, com vinheta que lembra a identidade visual dos games. O programa apresenta, toda sexta-feira, uma decisão da Justiça Eleitoral de forma simples e acessível. A presença do Tribunal Superior Eleitoral no WhatsApp se dá através do chatbot – assistente virtual – criado em parceria com o próprio aplicativo de mensagens. O robô virtual, como também é conhecido, foi criado para esclarecer dúvidas relacionadas às Eleições Gerais de 2022 e fornecer informações confiáveis aos usuários. As alianças não se limitam às plataformas. O Tribunal também se uniu a nove agências de checagem: AFP, Agência Lupa, Aos Fatos, Boatos.org, Comprova, E-Farsas, Estadão Verifica, Fato ou Fake e UOL Confere. As notícias checadas pela coalizão são publicadas na página “Fato ou Boato”, disponível no Portal da Justiça Eleitoral. 

Claudir Segura, doutor na área de Processos Cognitivos em Ambientes Digitais, e professor dos cursos de multimeios e comunicação da PUC-SP, diz que os propagadores de fake news conseguem entender as maneiras pelas quais as pessoas compreendem algo, e por isso sabem como utilizar as plataformas digitais para influenciá-las de maneira errada. “A informação é uma arma, e infelizmente pode ser utilizada para o lado negativo.”, diz. Entretanto, Segura ressalta que a tecnologia pode ser uma aliada no combate à desinformação, e cita a música “Nos Bailes da Vida”, de Milton Nascimento, para explicar a importância da inserção de um órgão governamental nas novas mídias: “‘Todo artista tem que ir onde o povo está’. O artista é o TSE e onde o povo está ele tem que estar junto. (...) O importante é não deixar faltar informação.”.

 

Tik Tok do TSE

O que é a slow fashion e como ela oferece uma nova perspectiva para a implementação de uma moda sustentável e consciente
por
Catharina Faria de Morais
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29/06/2022 - 12h

Por Catharina Morais

Ilustração de roupas sustentáveis - Foto: Getty Images
Ilustração de roupas sustentáveis - Foto: Getty Images

 

Giancarlo Pancioli, funcionário da Empresa Farfetch, uma das plataformas líderes mundiais no mercado online de moda de luxo, diz que a tendência é um subproduto da moda, mas que reflete no tempo e suas influências.  Para Gian, o que é usado vai muito além do que  simples vestimentas, já que dentro desse ato contém reflexos de efervescências sociais que criam a sensação de pertencimento e que ao se disseminar, torna-se a cultura do consumo; logo sendo a moda também um mecanismo de semelhança e atrativo social. É possível notar isto na prática, em como por via de regra, pessoas que frequentam determinados ambientes vestem-se de forma parecida, ainda que existam algumas exceções, tal observação é extremamente comum. Mais um exemplo disto, são as empresas, que atualmente em casos cada vez mais frequentes possuem dress code, a ser seguido por seus funcionários, desta forma padronizando seus contratados. 

Na era da contemporaneidade, vemos surgir um novo consumidor: com valores mais enfraquecidos e desesperados para submeter-se às demandas do mercado. Colocando uma lupa maior na situação, é possível enxergar no Brasil, país que enfrenta uma intensa desigualdade de concentração de renda, um fenômeno cultural globalizado.

A política e a industrialização moldaram então as normas da sociedade, se utilizando de uma lógica de isolamento e individualização do ser em relação ao seu meio. O período de crescimento demográfico mundial da modernidade causou uma eclosão de ideologias de poder e progresso que deram uma ilusão maior de autonomia de consumo. Como consequência desse desenfreamento, problemas ambientais como a intensificação de produção de lixo, intoxicação de rios e lençóis freáticos e desmatamento, se proliferaram. A exploração exacerbada da natureza para suprir as demandas populacionais, também a fez passar por um processo de transformação: a de mercantilização, sendo então vista somente como uma ferramenta de exploração humana.

Contudo, não foi só a nossa relação com o meio ambiente que mudou. A cadeia produtiva industrial humana e ética, se enfraqueceu no meio da era da ‘racionalização’ pós-moderna. Na proliferação dessa nova cultura globalizada, é possível traçar mudanças entre períodos: o do século XX até o término da Guerra Fria, que como um dos seus principais destaques, teve lutas de reivindicações de um proletariado explorado pela intensificação da cultura industrial, atrelada a uma constante tentativa de derrubar o sistema capitalista vigente; e a do após a Guerra Fria, onde a vitória capitalista, junto com a proliferação dos aparelhos eletrônicos nos anos 2000, provocaram uma era de fluidez e inconstância nos valores e reformas em diversas lutas sociais. 

A moda se insere no mundo e se associa com a liquidez do momento. Ela têm a capacidade dicótoma de individualizar mas também agrupar. A primeira forma surge no momento da escolhas do que usar, agindo de forma para realizar suas vontades e gostos; e a segunda na inserção da sua aparência para num meio social, então, como sua escolha pode ser influenciada por uma imposição do mercado, de forma com que você se vista num mesmo "estilo" com outros. Mas a inconsciência das mãos do mercado nas escolhas individuais é onde mora o perigo. 

A frase de Zygmunt Bauman que Mara Sant’ana usa em seu livro, Vida para consumo: Transformação das pessoas em mercadoria, de “Quanto mais escolhas parecem ter os ricos, tanto mais a vida sem escolha parece insuportável para todos”, demonstra como o consumismo se tornou uma forma de integração dentro da sociedade estratificada pós moderna. 

As tendências se alterando a cada mês dentro de redes sociais, impulsionadas por grandes marcas e figuras públicas, provocou uma nova forma entre a relação do mercado e consumidor e essa necessidade, com base no desejo, foi o resultado dessa transição. A busca incessante pela felicidade e pertencimento são projetadas em produtos que, assim que pararem de ser a tendência, se tornam descartáveis. Pancioli também contempla que:

O fast fashion se inseriu dentro desse contexto e conquistou um grande público que cresce a cada dia. Esses são os mesmos indivíduos inseridos na mentalidade pós moderna. As empresas de fast fashion proporcionam um mar de opções de tendências para o cliente caminhar livremente, com uma liberdade de escolha e com um menor compromisso de escolha. As tendências e novidades nos sites dessas empresas são atrativas pelos preços baixos e a vasta quantidade. As tendências criam um fenômeno de imitação, criando uma multidão homogênea ocidental. Com sua popularização, o setor se tornou uma grande fonte de tendências, sem distinções de classes, passou a ser consumido por predominantemente a classe média. Essa mistura pode ser explicada pelo boom do consumo das lojas rápidas, e o desejo pelos produtos que todos querem consumir. Com preço acessível e o consumo impulsionado pelo desejo e não necessidade, facilita o desapego e a superprodução de peças.

 Observa-se, então, uma indústria marcada pela efemeridade, onde o sistema apresenta materiais com um ciclo de vida curto. Seguir tendências acarretam num ciclo de vida programado, que impõe o descarte precoce dos produtos, que podem estar ou não em bom estado, por que deixam de “estar na moda”. A exploração laboral e a insustentabilidade presentes nas fábricas produtoras, são impactos diretos da modernidade nos tempos atuais. Passando então por muitas etapas que envolvem o gasto e desgaste de pessoas que trabalham na linha de produção até o meio ambiente, há uma deterioração dos valores de muitas empresas. Paula Bortz, formada em moda na faculdade Santa Marcelina, contempla sobre esse tipo de desenvolvimento.    

Um movimento contrário a essa forma é o slow fashion, que se baseia na sustentabilidade ética das mais diversas áreas, desacelerando esses impactos negativos. Ganhando notoriedade a partir de 2008, como uma alternativa para a crise que se instalou, ela se tornou uma forma de conscientização que junta princípios éticos conscientes. Os questionamentos sobre a origem e a produção dessas mercadorias, junto com a desaceleração, é o objetivo dessa forma de enxergar a moda.

Esse processo de transição, porém não é instantâneo, uma vez que a sociedade de maneira geral, por viver sob  um sistema capitalista frenético, o qual induz ao consumo desenfreado e nada consciente, muitas vezes apresenta resistência ao novo, além disso o consumo, não só relacionada a moda mas a tudo,  está fortemente ligado às propagadas e a mídia que pouco se importa com demandas sociais e sustentáveis, atentando-se apenas ao lucro, objetivando produzir e vender cada vez mais, para tal feito apropriando-se então dos padrões de  comportamento humano, para induzir e padronizar, os anseios de consumo, tendo como porta voz as mídias ( sociais, digitais, televisivas etc.) que moldam seus espectadores para ansiar não só pelos objetos apresentados mas pela sensação imagética que a indústria vende através dos mesmos.

 Quantas vezes é possível notar em filmes, séries e afins um padrão de marcas de roupa; a moda em especial exerce uma pressão significativa na vida das pessoas, os trajes tornam-se mais que apenas objetivos simples de vestimenta,  passando por uma personificação, sendo o ser humano julgado por aquilo que veste, o amplo uso dos aplicativos digitais, especialmente na era do instagram e do Tik Tok agravam este cenário já que as ditas “blogueiras de moda”, ditam regras daquilo que será almejado, exercendo um controle sobre a moda, especialmente sob um público mais jovem. O slow fashion então, passa por grandes desafios, no enfrentamento de um mercado selvagem e já consolidado, por isso deve ser pauta mais presente no dia a dia da população, que muitas vezes nem sequer o conhecem, servindo não só como uma alternativa, mas como uma prioridade consciente para com o  produtor,  o consumidor e meio ambiente.

Como a tecnologia e a engenharia trabalham em conjunto para dar esperança e uma nova perspectiva àqueles que de alguma forma passaram por uma amputação de membros.
por
Leticia Alcântara Andrade de Freitas
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27/06/2022 - 12h

Por Letícia Alcântara

Ilustração de confecção de prótese de perna  - Foto: Getty Images
Ilustração de confecção de prótese membro inferior - Foto: Getty Images

 

No dia 16 de agosto de 2021, Bárbara Caroline, moradora de São José dos Campos, município do interior do estado de  São Paulo, sofre um acidente de moto que mudaria sua vida. Pilotando na via Cambuí, de máscara e capacete fechado, Bárbara perdeu a consciência, devido a uma hipóxia, condição médica caracterizada  pela falta de oxigênio no corpo; a mesma narra que sentiu que iria desmaiar, porém não teve tempo de parar a moto.

Após ser socorrida, já no hospital realizou todos os exames necessários, Um dos vários ortopedistas que a  atenderam explicou que, de seu joelho para baixo, encontrava-se tudo destroçado incluindo todos seus ligamentos e o próprio joelho, restando apenas 20% de tecido da sua perna direita. Após a queda, a moto bateu no meio fio, seu corpo escorregou pela grama, e sua perna colidiu com uma placa de sinalização de trânsito. Caso não houvesse a placa, teria tido apenas arranhões leves. No mesmo dia de seu acidente, ela então passa por uma amputação. 

Bárbara conta que atualmente está no processo de fisioterapia para poder então utilizar uma prótese, a mesma pontua que todo seu tratamento é realizado através do SUS, dizendo ainda que enxerga na prótese que utilizará, a esperança da volta de  sua independência, sendo possibilitada novamente de realizar  o simples gesto de poder abraçar seu filho, de 6 anos, em pé, podendo caminhar e segura-lo pela mão na rua. A protetização trará novamente a segurança de andar livremente,  chegando mais perto daquilo que fazia antes, como correr, pular dançar… Atividades que eram presentes, antes do ocorrido, em sua rotina.

Por definição, próteses ortopédicas são aparelhos que desempenham funções motoras semelhantes às do membro amputado. Seu uso traz inúmeros benefícios, para aqueles que nasceram sem, ou que de alguma maneira perderam um de seus membros, a tecnologia das próteses não só representa funcionalidade para estas pessoas, bem como devolve e eleva a autoestima, entregando esperança e uma nova perspectiva aos usuários.  

As próteses ortopédicas, não são uma invenção nova do século XIX e XXI, desde a antiguidade os egípcios desenvolveram e faziam uso do mecanismo de membros artificiais para suprir a necessidade dos amputados. A diferença dos dias atuais, encontra-se no uso da tecnologia a favor destas demandas. Ao contrário do passado, em que esses membros eram desenvolvidos diante de condições rudimentares, hoje, a tecnologia se une  a medicina e a engenharia para estabelecer melhores condições, as quais são mais funcionais e com uma gama mais vasta de utilidades.

De fato hoje em dia a tecnologia é um elemento determinante para essas invenções, nos primeiros relatos relacionados ao assunto como mencionado, ainda que nem tão tecnológicos, estas descobertas sem sombra de dúvidas já faziam uma diferença imensurável na vida dos seres humanos. Nesta época as próteses geralmente eram feitas utilizando madeira, e o couro sendo utilizado para fornecer a sustentação necessária. Durante a primeira e a segunda guerra mundial, ocorrem avanços significativos neste campo, devido ao elevado número de soldados que sofreram amputações, logo uma maior demanda proporciona maiores avanços e descobertas. 

No ano de 1969, o médico cirurgião holandês Pieter Verduyn desenvolveu a primeira prótese transtibial articular sem travas, isto significa que, diferente das antigas, esta permitia algum grau de movimento e flexão para o usuário. A tecnologia não só promoveu uma melhora significativa nos materiais e funcionalidades das próteses, para além disso o passar dos anos e a modernização, da engenharia em conjunto com a medicina, baratearam os custos, de modo que as mesmas tornaram-se acessíveis a um maior número de pessoas.

Hoje em dia, existem diferentes tecnologias para a confecção e funcionamento das próteses. O Engenheiro de automação e controle Leandro Jussek, conta um pouco mais da prótese mioelétrica que desenvolveu. A mesma funciona através de estímulos elétricos, captados pelo músculo do antebraço, por sensores acoplados no coto do paciente. Leandro explica ainda que, a cada contração de um músculo se produz uma tensão elétrica, que pode ser medida através da pele. Estes sinais são captados e amplificados, enviados a um microprocessador, acionando então os servomotores contidos na prótese. No caso de pacientes amputados dos membros superiores, as próteses mioelétricas trazem maior independência e funcionalismo.

O engenheiro comenta que pessoas com deficiência física apresentam grandes problemas de integração na sociedade, em função da dificuldade de executarem tarefas consideradas simples do dia a dia. Com o avanço da tecnologia, hoje é possível desenvolver próteses eletrônicas, leves, resistentes e de baixo custo, para pessoas com deficiência física, melhorando sua qualidade de vida.

Infelizmente as próteses mioelétricas disponíveis no mercado, apresentam valor de compra relativamente alto, e muitas vezes envolvem custos adicionais, tais como, importação, custos de troca de peças e manutenção. No Brasil, não existe fabricante nacional que ofereça esse dispositivo para o mercado interno. Diferente destas, a prótese de Leandro é um produto de baixo custo, e com pouco investimento. Ele ainda lamenta que no País não haja incentivos do governo para o desenvolvimento das próteses, para membros superiores e pesquisas. Sendo suas alternativas procurar empresas privadas que manifestem interesse em investir nos projetos.

Ainda em relação às dificuldades de acesso às próteses através do governo,  Plínio Francisco, amputado do joelho para baixo narra as dificuldades que teve para ter acesso a sua prótese, que demorou cerca de dois anos até chegar a ele, e que muitas vezes ela não dura muito, devido ao material utilizado na confecção. Que as próteses mudam a vida das pessoas, devolvendo, autonomia e dignidade, não existem dúvidas, então quais são os impasses que circundam a falta de investimento e interesse por parte do Estado nesta área. Atualmente vivemos tempos obscuros, onde saúde, inclusão e educação, parecem não ser pautas prioritárias,  a tecnologia tem o poder de reescrever histórias, executando aquilo, que antes parecia impossível, de modo que deveria mais do que nunca ser uma primazia social, em especial por parte dos líderes e governantes.