Na chegada dessa casa
Na chegada dessa casa
Foram todos aos meus cuidados
Eu abalei foi um pé de rosas
Que nunca foi abalado
Dia três de setembro de dois mil e vinte dois, Museu das Culturas Indígenas, São Paulo. Celebra o toante - uma canção de sua mãe - Josi para Yvoty, mulher indígena que vive no contexto urbano. "A gente está lá resistindo, todo dia, e reafirmando todo dia esse território que também é nosso. Território que cresceu e foi levantado por mãos indígenas, assim como o estádio do Morumbi.” Assim como Josi, outras cento e oitenta famílias vivem na comunidade Real Parque no bairro do Morumbi, zona sul da cidade de São Paulo - totalizando em média mil e cem pessoas. Ser indígena e viver rodeado de concreto, na quarta cidade mais populosa do mundo é a constante realidade de “Sofrer preconceito dentro de uma UBS, das pessoas acharem que direito é privilégio.” - relata Josi. Privilégio contraditório esse, que silencia e invisibiliza povos originários que carregam mais de quinhentos anos de história e resistência em um país marcado pela colonização e responsável pelo extermínio em massa de etnias desde a invasão.
De acordo com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 11.918 indígenas vivem na zona urbana do município de São Paulo e 1.059 habitam a zona rural. A negligência de direitos básicos de qualquer cidadão é parte do cotidiano, desde pautas ligadas à educação até questões de saúde pública. Durante o período mais violento da pandemia do coronavírus, foram relatadas dificuldades de acesso às vacinas por comunidades indígenas, assim como episódios racistas dentro de Unidades Básicas de Saúde. Em depoimento para a página da Câmara Municipal do Estado de São Paulo, o advogado Augusto Pessin afirma que esse é um fato social da mais extrema gravidade, com o impacto em possivelmente centenas de milhares de pessoas que tiveram negado o acesso ao direito comprovadamente devido pelo STF.
Lidar com o cotidiano e enfrentar a realidade cruel de um País estruturalmente racista e preconceituoso é a escalada constante de construção de tecnologias e mecanismos que possibilitem a sobrevivência, de maneira relutante para que a cultura e as tradições não se despedacem dia após dia - do mesmo modo que foi imposto durante muitos anos e ainda é. Mesmo vivendo em uma conjuntura política e social contrária de seu modo de vida, os povos indígenas batalham para que seus costumes não se percam mesmo dentro de um contexto urbano, utilizando os avanços tecnológicos para impulsionar e dar mais voz e visibilidade às comunidades. “É possível preservar grande parte dos costumes indígenas mesmo com interferência do mundo contemporâneo. O indígena está começando a usar o ciberespaço para fazer processos de retomada, registro, preservação e divulgação da sua cultura.” - afirma Alexsandro de Mesquita, mestre e doutor em tecnologias indígenas pela PUC-SP e indígena do povo Potiguara.
Alex conta sobre o projeto em parceria com a ONG Thydêwá, um programa desenvolvido para que povos indígenas da região do nordeste brasileiro pudessem criar e desenvolver textos que manifestem seu modo de vida e também alcancem uma maior visibilidade através da Internet, em formato de livros digitais. “Lendo essas obras feitas pelos indígenas, é possível perceber que realmente eles vem fazendo um processo de retomada da sua história, registrando elas no meio digital e divulgando para todos aqueles que possuem acesso.” Além da possibilidade de preservar esses relatos históricos, o uso das tecnologias contemporâneas como meio de resgate de uma tradição secularmente apagada é extremamente essencial para perpetuar a cultura dos povos originários. “Esse projeto fez com que os jovens passassem a querer conversar mais com seus pais e com seus avós, para descobrir mais sobre a questão do modo de vida, de como é a história e como nós estamos aqui”, completa Alex.
Muitas vezes, como forma de deslegitimar os conhecimentos originários, termos corriqueiros e formas de banalização são utilizadas para se referir às tecnologias e conhecimentos indígenas. Em entrevista para o jornal Outras Palavras, João Paulo Lima Barreto, do povo Yebamasã, afirma que o conhecimento indígena não é melhor nem pior: é diferente. “Mas nas universidades há uma relação assimétrica. Daí vem todo um palavreado que é criado para o nosso modelo de conhecimento”. Expressões como sagrado, espírito, rezador, benzedor, são constantemente utilizadas para reduzir o conhecimento a uma simples “alternativa”. “Não temos um conjunto de saberes tradicionais, temos medicina indígena”, exclama Barreto.
Metaverso, realidade virtual, carros de última geração, robôs que se confundem com seres humanos. Assim como a tecnologia avança e criações denominadas como “progresso e evolução”, dentro das florestas no coração do Brasil e inclusive em contextos urbanos, as tecnologias originárias encontram seu pedacinho de espaço como forma de resistir dentro de um sistema cruel. Sustentabilidade, medicina, espiritualidade, política, conhecimento sobre as mais complexas particularidades do universo, ciência em seu estado puro e bruto. Conhecimentos esses que são deslegitimados dia após dia, por um país que dizimou etnias e povos que perderam tudo e só queriam o direito de existir. Se adaptar assim como a humanidade é inerente a qualquer povo, independente de seus costumes ou tradições, e esperar que isso não aconteça é - mais uma vez - um olhar colonizador. Alex termina pontuando que “Toda cultura passa por transformações. Toda sociedade vai passar por transformações culturais, então o fato do indígena deixar de praticar uma ação que ele fazia há quinhentos anos atrás não faz com que ele perca suas características”.
Por Jessica Midori
A condenação da tecnologia, comum argumento para justificar inúmeros problemas sociais, é a prova de que muitos ainda estão alienados, ou em estado de negação, do domínio que ela tem sobre todos nós. Esse fato gera um debate a respeito dos prós e dos contras da inserção das redes nas nossas vidas, que não deixa de fora o trabalho e o comércio. Se ouve falar sobre como a dependência digital é um caminho irreversível, podendo até ser prejudicial a longo prazo, principalmente ao trazermos à conversa o conceito de comprar sem precisar sair de casa, porém ao dialogar sobre um assunto que envolve milhares de pessoas, é necessário ouvir ambas as partes da pauta em questão e se perguntar “a tecnologia atrapalhou mesmo, de modo geral, o comércio?”.
Mayane Pinheiro, fundadora da loja virtual de roupas MTRINDADE STORE, quando iniciou o seu negócio era apenas uma estagiária, que no período de pandemia buscava uma fonte de renda extra. Sem experiência com vendas e recém-formada, a jovem encontrou no Instagram uma oportunidade de abrir a sua própria boutique, baseando-se nas lojas as quais ela mesma comprava e seguia em seu perfil pessoal. Conta que, como mulher, sempre estava comprando roupas novas, gostava de usar a moda do momento e se interessava pela ideia de tirar fotos para loja, então estudou pra começar e entender o que deveria ser feito. Nisso tudo, teve que escolher onde iria vender, e logo pensou no Instagram, pois, é uma plataforma imensa para qualquer mercado, e é onde as pessoas estão sempre conectadas, e ela sabia que veriam seu produto e também poderiam falar com ela através do WhatsApp.
O crescimento do comércio digital se deu exatamente pelo fato de que este é uma opção mais acessível, baseando-se na sua experiência pessoal, como comprador, é possível ter ideia o suficiente do que o mercado procura, como fazer uma divulgação do produto e como se comunicar com clientes. Ela destaca que as redes sociais são os lugares que os empreendedores estão colocando a cara pra divulgar seus produtos, assim como as pessoas que estão o tempo todo online também buscam o que desejam nessas plataformas digitais, porque querem ver o que é postado, o que é comentado, entre outras. Além disso, o baixo custo da venda online é uma grande vantagem para aqueles que estão começando um novo negócio ou estão entrando no mundo do empreendedorismo pela primeira vez. Ainda, conta que naquele momento inicial o comércio online, pessoalmente, era o mais barato, porque a pouparia de alguns gastos, como aluguel, energia, água e etc… e ao vender online, poderia ter um estoque em um local que já estava sendo utilizado por ela, com a luz e água que já usava.
Com a tecnologia houve uma democratização do empreendedorismo, assim muitas pessoas que estavam desempregadas, insatisfeitas com o seu cargo atual ou até mesmo buscando uma fonte de renda extra, encontraram nas plataformas digitais a solução de seus problemas. Mayane acredita que hoje o empreendedorismo seja para todos, porém, é necessário coragem e persistência para entrar nesse mundo, porque será bem diferente do seu trabalho cotidiano, principalmente com uso da tecnologia. Uma das vantagens é que o comércio digital não se limita a uma área especifica ou depende de uma formação em particular, por isso que ele é tão inclusivo, queira seguir o ramo da gastronomia, moda, beleza, ou dos serviços, no mundo digital tudo é possível.
Alessandra Leite, advogada e fundadora da empresa de consultoria GLOBAL TO BE, encontrou nas plataformas digitais a oportunidade de deixar o seu cargo de muitos anos, como funcionária de uma empresa, para seguir o seu caminho de forma autônoma e abrir a sua própria companhia. Juntando sua experiência com a disponibilidade de divulgação que as redes sociais oferecem, nasceu um novo negócio. Sobre a empresa, ela conta que é um serviço autônomo que surgiu após quase 15 anos trabalhando como funcionária em consultoria, desde estagiária até diretora. Com a experiência que ganhou acreditou que poderia fazer a mesma coisa, mas dando um atendimento mais personalizado, com custos menores, sem a massificação do atendimento das grandes consultorias em que o consultor mais experiente atende apenas as grandes contas e os clientes menores são atendidos por pessoas em treinamento. Afirma que a incorporação das plataformas digitais foi uma forma de apresentar permanentemente o seu trabalho, por ela não ter um nome consolidado no mercado, e assim, criar uma identidade profissional.
Nos tempos atuais, no contexto pós pandemia, será possível escutar de muitos que a possibilidade de comprar e vender online salvou as suas vidas durante os quase dois anos de isolamento social. A praticidade que a internet ofereceu, ampliou as portas do empreendimento, e nesse contexto muitos que estavam perdidos encontraram um ticket para adentrar um novo negócio, o seu próprio negócio.
Alessandra sugere, do seu ponto de vista, que o empreendedorismo cresceu como uma alternativa ao conceito de emprego que estávamos acostumados ao longo das décadas. Como muitas gerações nasceram e cresceram vendo seus pais trabalhando como funcionários de empresas de segunda à sexta em horário das 8 às 17, isso era o normal, e empreender era visto como uma opção àqueles que não tem mais emprego. Mas, com o avanço na área, muito também pela diminuição dos empregos formais, por causa da modernização e automação da produção, as pessoas se viram obrigadas a recriar e abrir seus próprios negócios, o que tem formado uma nova geração. Isso tudo vai moldando novos hábitos e um novo mercado de trabalho surge daí, no qual a tecnologia é essencial e ajuda a mapear negócios, estudar a distância, fazer contatos com clientes, etc, coisa que há alguns anos não era possível.
O sucesso dessa nova forma de comprar e vender foi tão visível, que mesmo após o fim das restrições sociais e a reabertura das lojas físicas, muitos vendedores optaram por manter a face virtual de seu negócio. Com alguns utilizando ambos os meios para desenvolver o seu comércio, e outros substituindo totalmente o espaço físico e adotando o espaço online como único meio, como ocorreu com muitos restaurantes que hoje só atuam através do serviço de delivery.
Thaisy Gomes, fundadora da loja VIPY COSMÉTICOS, além de conquistar autonomia ao deixar de trabalhar na loja do seu irmão e dar início no seu próprio empreendimento, encontrou nas redes sociais uma forma de elevar o seu comércio e ampliar a sua rede de consumidores. Ao disponibilizar, além da já existente loja física, o serviço de entrega para todo o Brasil, ela percebeu que o seu negócio ganhou mais visibilidade e a procura por seus produtos aumentou, com a praticidade da compra online. Relata que ideia surgiu através de uma pesquisa de mercado, na qual foi identificado que no bairro e região não tinha loja voltada para produtos de cosméticos, cuidados pessoais e beleza. Ela sempre acreditou que o comércio digital é um cenário positivo para todos os ramos e portes de empresas, pois ampliam oportunidades de venda, e foi com esse pensamento que decidiu criar um perfil no Instagram para a loja.
Com a sua experiência como consumidora, Thaisy foi aplicando seus conhecimentos e aprendizados pessoais no seu negócio, filtrando os pontos positivos e negativos de cada tipo de comércio, tanto o físico quanto o online, para então selecionar quais pontos gostaria de incorporar no seu empreendimento, visando satisfazer as vontades do cliente.
Ao analisar as diferenças da loja online para a física percebeu que ambas possuíam qualidades que poderiam ser somadas para criar um ambiente de compra e venda mais equilibrado, por exemplo, no virtual há a possibilidade de uma maior e mais rápida divulgação, trazendo visibilidade aos produtos, os custos e os investimentos necessários para tocar o negócio também são menores, a jornada de trabalho pode ser mais flexível e há a vantagem de atender uma área geográfica maior. O comércio físico traz um ar mais pessoal, mais acessível à loja, com os clientes sendo na maioria moradores do bairro e região, também há a possibilidade do contato físico do cliente com produto. Ao colocar essas diferenças lado a lado, é notável a vantagem que o digital possui, por isso que mesmo após a reabertura das lojas físicas ela escolheu manter a opção do atendimento online.
Pode-se afirmar que o comércio digital revolucionou o empreendimento, e a economia no geral, e é em tempos de isolamento, como a pandemia, que esse fato se torna mais incontestável. A prova dessa mudança é a permanência, e cada vez maior crescimento, dos comerciantes independentes que aparecem no nosso feed, seja no Instagram, Tik Tok, Facebook, e por todas as plataformas digitais. Esse novo mercado mudou os conceitos de quem pode e não pode ser dono do seu próprio negócio, e talvez essa possa ser uma das maiores e mais importantes mudanças atuais, pois não mudaram somente a vida de três mulheres brasileiras, mas de muitas pessoas no mundo inteiro.
Por Patrícia Almeida Mamede
‘’Boneca. Eu costumava brincar de boneca. E casinha, também brincava de casinha’’. Maria Neuza, uma senhora beirando os noventa anos, se lembra bem das brincadeiras de menina. Maria, apesar da memória gasta pela idade, não hesita em responder às perguntas relacionadas à sua infância, como quais eram os brinquedos que seus parentes costumavam lhe dar em aniversários ou natais, ‘’muita boneca, muita coisa de casa e muita roupa’’. Além de brincadeiras, Neuza se recorda de algumas frases que costumava ouvir como, ‘’seja educada’’ e ‘’fica quieta, menina!’’.
Para essa senhora, ser mulher é ‘’ser carinhosa, prestativa, amar seus familiares e ter opinião própria’’, enquanto ser homem equivale a ser ‘’trabalhador, carinhoso e um bom amigo’’. Mesmo pontuando essa disparidade entre os sexos, Maria concorda com a afirmação de que não existem diferenças cerebrais entre homem e mulher. Ou seja, ela concorda que a ideia de um cérebro masculino e um cérebro feminino é um mito.
Uma matéria publicada pela BBC em julho de 2021 afirma o seguinte, ‘’ A ideia de que as mulheres eram intelectualmente inferiores aos homens era considerada um fato há vários séculos. A ciência tentou por muito tempo encontrar as diferenças subjacentes a essa suposição. Aos poucos, vários estudos foram contestando muitas dessas diferenças propostas e, ainda assim, nosso mundo continua teimosamente marcado por esse viés’’.
A Neurogenderings é uma rede formada por mulheres pesquisadoras das mais variadas áreas, atuando em diferentes países, que se intitulam enquanto ‘’neurofeministas’’. Essas mulheres buscam discutir as relações entre sexo, gênero e cérebro, juntamente às relações entre feminismo e ciência. A rede tem como principal objetivo examinar, através de uma perspectiva crítica, a produção do conhecimento neurocientífico, visando combater o que chamam de ‘’neurossexismo’’ (estereótipos em relação à feminilidade e masculinidade que estão presentes em grande parte da produção neurocientífica). A rede defende o fazer ciência por mulheres, justamente por acreditar que nenhum conhecimento pode ser desvinculado do contexto social, tempo e lugar em que foi produzido. Segundo essas mulheres, não há ciência apolítica. Donna Haeaway, uma das mulheres que compõe a rede, diz que ‘’a ciência feminista, portanto, é uma ciência que possui um posicionamento crítico’’.
A produção de artigos e estudos encarregados a esclarecer as mentiras perpetradas por milênios de que exista um cérebro masculino e um cérebro feminino é escassa não só no Brasil, mas globalmente. A premissa de que mulheres eram inferiores foi sustentada ao longo dos anos através da ideia do ‘’essencialismo’’, que defende a ideia de que exista uma essência em ambos os sexos, cuja estrutura e funções cerebrais são fixas e inatas. Apesar de vários estudiosos terem erradicado tal possibilidade através de pesquisas acadêmicas da então nova ciência, o assunto não parece se dar por encerrado até os dias de hoje. Tanto dentro da neurociência, como no pensamento de massa do senso comum, a ideia do ‘’essencialismo’’ permeia disseminada na sociedade, inclusive nos artigos e no seio maior da neurociência. Mas por que o consenso neste assunto parece ser tão difícil de se estabelecer?
Século XIX
No século dezenove, com o movimento feminista em ascensão, os cientistas, assim como os demais profissionais das mais variadas áreas de atuação, trabalharam para reforçar os estereótipos que reforçavam a noção de inferioridade da mulher. A premissa do essencialismo ignora o fato de o gênero ser um conceito antropoceno, ou seja, socialmente construído.
Gerda Lerner, uma historiadora que dedicou vinte e cinco anos para estudar a origem da opressão das mulheres escreveu em seu livro A Criação do Patriarcado, "quero enfatizar que a minha aceitação de uma ‘explicação biológica’ só é aplicável aos primeiros estágios do desenvolvimento humano e não significa que a divisão sexual do trabalho ocorrida depois, com base na maternidade, seja ’natural’. Pelo contrário, mostrarei que a dominância masculina é um fenômeno histórico porque surgiu de um fato biologicamente determinado e tornou-se uma estrutura criada e reforçada em termos culturais ao longo do tempo’’, descreve.
Cecilia Carter, uma brasileira que atualmente mora na Inglaterra, agora aposentada, foi professora de alunos do jardim da infância e fez uma observação a respeito do que envolvia ser um homem e ser uma mulher, ‘’ai que tá, na verdade, pensando bem, eu acho que é tudo a mesma coisa. É o ser humano, eu vejo assim. Acho que são as pessoas que colocam em caixinhas’’. No entanto, ela acrescenta, ‘’acho que todos nós temos um lado feminino e um lado masculino’’.
As pesquisas neurocientíficas costumam usar a mesma linguagem que Cecília quando dizem respeito às características femininas e masculinas. Um estudo levantado pela Universidade de São Paulo (USP), realizado pelo departamento de Ginecologia e Obstétrica fez a seguinte afirmação, ‘’A. APO é rica em aromatase e em receptores dos esteroides sexuais, possibilitando assim a conversão da testosterona em estrogênio, sendo este crucial para o processo de masculinização do cérebro masculino. No cérebro masculino, o estrogênio promove a desfeminização, o que leva à supressão das funções cerebrais femininas no homem, induzindo-o a assumir atitudes e exercer funções tipicamente masculinas’’. O estudo, no entanto, parece ignorar que tais características são desenvolvidas através da cultura, tendo impacto nos primeiros anos de vida do indivíduo.
Ao perguntar às pessoas - em sua grande maioria, estudantes - quais características elas entendiam enquanto femininas, obteve-se respostas como, ‘’vaidade, falar de forma delicada, gostar de nenês’’, ‘’sensibilidade’’, ‘’características delicadas’’. Para características masculinas teve-se outro polo, ‘’seco, reto, frígido, instável’’, ‘’sentar de pernas abertas’’ e ‘’agressividade’’. De trezentas pessoas, 32 acreditam que essas características não são inatas, 5 creditam que são inatas e o restante não respondeu.
Nota-se, segundo o que dizem as feministas da rede Neurogendering há uma importância em estabelecer uma relação interdisciplinar para que se possa estudar de maneira ética e crítica o que, de fato, são características femininas e masculinas e como por que são separadas assim. Muitas mulheres feministas que estudam o gênero enquanto um conceito socialmente construído explicam que tais características, na verdade, são desenvolvidas através do processo de socialização e educação que cada sexo irá desenvolver nos dos primeiros estágios da infância.
Gênero
Apesar dos estudos e debates sobre a questão de gênero estarem sendo cada vez mais discutidos dentro da academia e pautados em assuntos políticos, o conceito de ‘’gênero’’ em si, ainda é colocado enquanto uma característica inata e imutável, e que, apesar de significar um grande passo – principalmente em relação à luta da libertação das mulheres – a discussão permanece supérflua segundo algumas mulheres que se posicionam enquanto críticas de gênero.
Kelly Cristina, uma jovem de 24 anos, crítica de gênero e feminista diz que suas brincadeiras quando criança não eram diferentes das brincadeiras de Neuza, por exemplo, ‘’minha mãe sempre brincou comigo de boneca e de casinha dentro de casa’’, recorda Kelly. Cristina também fala a respeito dos brinquedos que costumava ganhar, ‘’ boneca, casa de boneca, vassoura... apenas brinquedos socialmente ditos para meninas, que socializam e influenciam a ideia de que a mulher cuida da casa’’.
Curiosamente, a disparidade de gerações entre Neuza, Carter e Kelly não parece ter erradicado a ideia de que pessoas do sexo feminino ganhassem certos tipos de brinquedos como bonecas ou apetrechos de casa. Diversas mulheres feministas, mais conhecidas enquanto feministas materialistas, estão produzindo conhecimento enquanto críticas do modelo de gênero. A ideia predominante dessas mulheres é mostrar como o processo de socialização do indivíduo – tendo influência nos primeiros anos de vida na formação dos indivíduos – impacta decisivamente na construção da psique na vida adulta, moldando homens para dominância e mulheres para a subserviência.
No livro O Complexo de Cinderela, Colette Dowling irá abordar o conceito do medo inconsciente da independência nas mulheres enquanto um fenômeno sociocultural que será desencadeado pelo processo de uma educação superprotetora cujas pessoas do sexo feminino receberão de forma diferente das pessoas do sexo masculino. ‘’A menina passiva nos três primeiros anos de vida seguramente (ou quase) persistirá sendo passiva no início da adolescência; da mesma forma, pode esperar da adolescente passiva um comportamento dependente de seus pais também quando atingir a vida adulta’’.
Kelly, enquanto crítica de gênero, relata sua visão a respeito do processo de socialização enquanto uma violência, ‘’a socialização naturaliza violências. Ensina mulheres a ficarem quietas e caladas, e depois culpabilizam elas pela violência que sofrem por permanecerem em silêncio. Sem contar nos apetrechos físicos da feminilidade como; unhas grandes, salto alto, roupas sempre muito coladas que impossibilitam mulheres de se defender da violência, colocando-nos enquanto indefesas e frágeis. Tenho 25 anos e mesmo entendendo e tendo consciência que posso ser mais do que aquilo que me ensinaram, ainda sinto a socialização quando tenho medo de ocupar espaços e falar por mim mesma, já que cresci aprendendo que lugar de mulher é em casa, quieta e calada, na posição de servir".
A ideia de tentar atribuir determinadas características enquanto masculinas ou femininas enquanto algo inato tem trazido complicações sociais, políticas e no âmbito da saúde tanto para mulheres quanto para as crianças que sofrem com disforia de gênero. Devido a uma escassa produção de conhecimento a respeito do gênero, crianças com disforia estão sendo incentivadas a tomar hormônios e fazer cirurgias com a finalidade de transacionar de gênero.
Psicólogos, a indústria farmacêutica e a indústria cirúrgica, sem compromisso com a ética, têm tratado o gênero enquanto um fenômeno essencialista, o que tem prejudicado a vida de inúmeras pessoas que sofrem com a disforia de gênero de maneira permanente e sem obter um resultado benéfico e sem promessa de erradicar com os problemas psicológicos que essas pessoas vêm sofrendo.
Nos Estados Unidos há uma grande porcentagem de pessoas que começaram o tratamento com hormônios e não conseguiram se libertar dos problemas que costumavam se queixar. Cari Stella, uma mulher de 22 anos, começou a tomar hormônios aos 17 anos e começou o processo de destransição recentemente. Cari postou um vídeo em uma de suas redes sociais relatando o processo, ‘’a transição não é o único caminho nem o melhor caminho para tratar a disforia de gênero’’.
Stella relata que decidiu parar de tomar hormônios como testosterona por razões de saúde mental, ‘’é muito difícil descobrir que o tratamento que te disseram que iria te ajudar na verdade deixou sua saúde mental ainda pior’’.
Chloe Cole, mulher de 18 anos, conta que iniciou sua transição aos 15, ‘’começando por volta dos 12 anos eu comecei a acreditar que eu era transgênero. Essa crença não era orgânica. Toda a mídia que eu consumi quando criança mostrou como era estúpido e vulnerável ser uma garota. Todas as imagens sexualizadas de mulheres davam-me uma expectativa irreal de feminilidade. Eu estava obcecada em me tornar um menino.’’ Chole relata achar que sua ansiedade desapareceria uma vez que realizasse a transição, no entanto ela diz, ‘’ninguém explorou porque eu não queria ser uma garota’’, e complementa, ‘’mais e mais crianças estão caindo na falsa promessa de felicidade se fizerem a transição’’.
Os conceitos mal estabelecidos de feminilidade, masculinidade e gênero promovem uma desinformação massificada, acarretando problemas políticos e sociais cada vez mais graves. O processo de socialização dos indivíduos tem pouca, se não nenhuma, importância dentro da academia. Mulheres feministas e críticas de gênero vêm tentando alertar os profissionais e os demais a respeito desta problemática, no entanto, a mídia parece semear um desinteresse na hora de articular matérias sobre isso.
Kelly relata sobre seu processo a respeito do conhecimento feminista, ‘’ informação salva. Entender sobre socialização apesar de ser dolorido é também acolhedor. Você entende que feminilidade não é escolha porque quando você abre mão dela, a violência fica muito mais visível. Mas quando aceitei que não gostava de ser feminina e que isso não me fazia ser menos mulher, que eu podia usar roupas largas e não usar maquiagem, que eu podia cortar meu cabelo, que eu não só podia como também deveria ocupar espaços, falar por mim mesma, e não mais aceitar aquilo que me desagrada, foi libertador.’’
Por Nathalia Cristina Teixeira Bezerra
Aplicativos como Uber, Ifood, 99 táxi, Rappi e semelhantes começaram a surgir em meados de 2014 e hoje são mais usados que qualquer outro serviço do mesmo cunho que antecede a era dos smartphones. Acontece que, com a popularização destes, a demanda de trabalhadores informais aumentou e houve também um crescimento da precarização das condições de trabalho e do uso da mão de obra barata. Os prestadores de serviços dessas plataformas vêm se queixando dos baixos salários que recebem e da falta de humanização para atendê-los, problema que se agravou ainda mais na pandemia da Covid-19. Além de não ter acesso a um suporte de segurança decente, os motoristas e entregadores são trabalhadores informais, precisamente pela falta de regulamentação envolvendo esses aplicativos. Por esses e outros fatores que essa é considerada a era da terceira fase da escravidão moderna.
Tanto os servidores como os clientes que utilizam esses apps têm uma queixa em comum: a falta de um suporte decente para atendê-los. Se antes utilizávamos o SAC para tirar dúvidas e fazer reclamações, hoje somos respondidos com mensagens automáticas e programadas que, na maioria das vezes, não ajudam na resolução do problema. Essa falta de profissionais humanos para o atendimento faz com que os funcionários percam ainda mais seus direitos, que não são muitos. A ausência do registro assinado na carteira de trabalho torna a situação ainda mais delicada. Essa falta de um chefe por detrás da logística dos atendimentos consiste em fazer com que os entregadores tenham que realizar mais entregas do que os limites do corpo permitiriam. A quantidade excessiva de corridas em tempo recorde que eles precisam cumprir para garantir um salário mínimo é o que os leva ao cansaço extremo e, consequentemente, ao adoecimento.
Durante a pandemia, já era esperado que aumentasse a demanda de pedidos do Ifood e outros aplicativos de entrega de comida. Com a maioria das pessoas cumprindo o isolamento social em casa, houve um boom no consumo desse tipo de serviço e várias questões foram levantadas. A principal era a da saúde: se os colaboradores estavam colocando a própria saúde em risco, precisando aumentar o número de horas trabalhadas para atender o público crescente, por que o salário ainda era o mesmo? A queixa do grupo também era sobre as porcentagens altas que essas empresas recebem (até os dias de hoje) comparado ao que eles mesmos ganham no final do dia. Na quarentena, a mão de obra foi ainda mais precarizada justamente pelo fato de que, em meio a uma pandemia global de um vírus até então desconhecido, eles precisaram trabalhar com maiores chances de adoecer e não houve nenhuma mudança significativa na comissão. Essa série de problemas resultou na mobilização dos prestadores de serviços dos apps, que tentou ser impedida pelos donos dessas empresas, mas sem sucesso. Depois da greve de 2021, o Ifood entrou em um acordo com seus servidores para definir uma taxa mínima de entrega. Apesar de ter sido uma pequena vitória, ainda não é suficiente e muito menos proporcional ao que deveria.
Alan Moreira tem 47 anos e começou a trabalhar como entregador depois de perder o emprego na pandemia. Ele trabalhou durante 24 anos em uma multinacional, mas em 2020 foi um dos diversos colegas afetados pelo corte de funcionários da empresa. Atualmente ele está em busca de um novo trabalho com carteira assinada, entretanto, enquanto não consegue oportunidade para uma entrevista, faz entregas para duas dessas empresas de entregas de delivery. A rotina de Alan é extremamente “exaustiva e pesada”, como ele mesmo disse. Sua jornada de trabalho começa ao meio dia, com entregas no horário do almoço e termina por volta das 11 da noite, podendo se estender até meia noite. “De fim de semana então, piorou. Não tem horário para acabar. Já finalizei uma entrega às 6 da manhã”, contou.
Ao questionar Alan sobre como foi atuar na pandemia, ele disse que “foi desafiador [...]. Meu maior medo era transmitir o vírus para meus filhos. Mas não tinha o que fazer, eu precisei colocar comida na mesa”, lamentou. Pai de dois filhos, de 9 e 14 anos, respectivamente, ele seguiu à risca todas as recomendações da Organização Mundial da Saúde para se prevenir contra o coronavírus. Porém, em outubro de 2021 foi infectado e teve que ficar em isolamento por 15 dias: “Não tive nenhum direito. Fiquei sem receber durante a quarentena. Sorte que minha irmã me ajudou com as despesas, se não, não sei o que teria sido”. “Queremos somente o mínimo. Seguro de vida, condições básicas de trabalho, como por exemplo banheiros para usarmos no intervalo das corridas [...]. Nem um copo de água a gente pode ter. É para isso que fizemos e vamos continuar fazendo barulho. Por condições dignas, estamos aqui para sobreviver”, afirmou Alan, sobre as maiores reivindicações dos entregadores nos protestos.
Reinvenção da escravidão no capitalismo
O capitalismo tem a capacidade de se reinventar a cada novidade na era tecnológica. No mundo digital, a publicidade foi um dos maiores pilares que proporcionou o aumento do consumismo a partir de ferramentas básicas, como os celulares que hoje são acessíveis a toda a população. O surgimento dos aplicativos de serviços como Ifood e Uber não foi à toa: dentro desse sistema, o trabalhador informal sempre foi colocado à margem da sociedade. Um exemplo básico disso são as terceirizações. Empresas como Vivo, Claro e outras operadoras de telefone usam funcionários terceirizados tanto para o telemarketing, quanto para serviços técnicos, justamente para não gastar com o registro dessas pessoas. Atualmente, a terceirização conseguiu ser informalizada pelos apps, justamente porque essas empresas não precisam contratar outra empresa, apenas colocar pessoas que, no desespero de um país com alta taxa de desemprego como o Brasil, se inscreveram voluntariamente para trabalhar com eles.
Mas por que comparar o trabalho assalariado com a escravidão? Bem, apesar de ser remunerado, a falta dos direitos trabalhistas e os baixos valores que eles recebem por entrega, torna a condição de trabalho análoga a escravidão. O próprio Alan pontuou que “nossa situação se assemelha com a dos escravos. Acho que esse termo define muito bem o que somos, escravos modernos [...]. Só quem trabalhou anos com contrato CLT e diversos benefícios consegue enxergar a diferença de um emprego digno com o que passamos com esses aplicativos”. Não só entregadores de Ifood como Alan, como também motoristas de aplicativos estão sujeitos a trabalhar por diversas horas para ganhar o mínimo e não ter direito ao autocuidado. O fato de não existir uma regulamentação eficiente que atenda a esse grupo e a demanda ser disponibilizada por ferramentas robotizadas faz com que os servidores fiquem sem tempo para se profissionalizar em áreas que garantem condições melhores, para ganhar uma baixa comissão que será usada apenas para a sobrevivência, como custos com aluguel e despesas da casa. Em suma, eles são obrigados a estarem à disposição dos aplicativos para, no fim, conseguir a moeda de troca que garante um teto, tal qual a escravidão.
O método que garante a exploração
Dentro das estatísticas, o trabalho informal tem raça e classe: a grande maioria dos motoristas e entregadores de aplicativos são negros e periféricos. A exploração da mão de obra barata é o que faz a manutenção do capitalismo e o fato só condiz com a realidade do Brasil, porém agora dentro dos trâmites da era digital. Em média, um servidor do Ifood ganha 4 reais por corrida feita. Considerando o preço atual da gasolina e a velocidade que esse servidor precisa atingir para conseguir realizar a entrega a tempo, o valor é abusivo e não condiz com o proporcional para o tipo de trabalho.
Acontece que o padrão acontece da seguinte maneira: existem dois tipos de trabalhador no Ifood e semelhantes. O Nuvem e o OL (operador de logística). O primeiro é o mais comum e consiste no modelo adotado por Alan Moreira. Basicamente, ele recebe por entrega realizada, se não entregar, não recebe nada. Aqui, em tese, ele trabalha nos dias, horários e tempo que quiser, mas na prática não é assim que funciona, pois ele fica escravo do programa. Já o OL tem tudo acertado com seu operador logístico. Geralmente esse operador é um restaurante ou um mercado e ele trabalha somente para esse. Ainda que tenha um combinado mais “seguro”, os entregadores optam pela Nuvem porque podem trabalhar a hora que quiserem e ganhar um pouco mais de dinheiro. No final, ambas as formas abusam da força de trabalho deles, o que só confirma as falas de Alan sobre suas condições de vida.
É errado dizer que a escravidão moderna é causada pela tecnologia. A tecnologia que amplifica a escravidão moderna. O que sustenta esses meios é justamente o controle das classes dominantes no poder econômico, que precisa explorar as camadas mais pobres da sociedade para se manter no poder. Quanto mais funcionários perderem os empregos com carteira assinada para trabalhar ganhando 4 reais para uma plataforma milionária, mais os empresários e associados dessa plataforma estarão lucrando com ela. A invenção desse tipo de troca é vendida aos clientes como uma “solução justa”, já que eles pagam pequenos valores para receberem os pratos em casa. Apesar de não ser culpa de nós, fregueses, precisamos entender essas questões e refletir sobre a maneira como consumimos esse tipo de serviço. A principal forma de reverter esse cenário de forma eficiente, considerando as condições atuais, é apoiar a luta dos entregadores e motoristas e entender as reivindicações, para contribuir diretamente com eles.
Por Ana Beatriz de Souza Assis
Quem são os excluídos
“Ah, eu sei as horas porque vejo nas tvs das padarias e nos relógios na avenida, mas, isso não preocupa não, não tenho nenhum compromisso hoje.” Sabrina Reis de 36 anos dá uma risada triste após a resposta. Ela vive nas ruas há cerca de 5 anos. Foi expulsa de casa pelos familiares após problemas com drogas e preferiu guardar para si os detalhes do "exílio social". “Metaverso? Nunca ouvi falar não. É uma descoberta nova da ciência? ” Após explicado o conceito da palavra, faz cara de surpresa e diz rindo: “Não entendi nada. ”
Sabrina vive dentro do túnel José Roberto Franganiello Melhem caminho para a avenida Paulista, lá, mora dentro de uma barraca pequena que cuida com cuidado. “Não, não tenho celular e nem quero para falar a verdade, celular só traz desgraça na nossa vida” Ao ser questionada o motivo, ela faz uma careta e aumenta o tom de voz: “Minha filha, isso daí é ouro nas mãos daqueles” apontando com a cabeça para outro grupo de moradores do lado oposto do túnel “Quase morri na mão deles por causa de um”, conta. Sabrina explica o episódio que após achar um celular na rua (ela frisa diversas vezes que realmente achou o celular em suas caminhadas e que nunca roubou) dois caras bateram nela para pegá-lo: “ Eles vendem as peças para comprar droga, se eu fosse você não ia perguntar nada pra eles não tá?.”
- E se não fosse “eles” e a situação que se encontrava, você teria um celular?
“Com certeza fia, eu tinha um celular, mas vendi ele, era bom demais saber das coisas, falar com a família” Após falar da família Sabrina não quis se abrir a mais perguntas. “Não, não tô triste não, é que não sei o que falar mais não” Ela ri e diz que não saberia responder perguntas sobre como era sua relação com a internet quando tinha o aparelho. “Me sinto excluída sim, mas fazer o que né? Minha vida agora é essa aqui”.
Os sons de buzinas e carros passando é a trilha sonora de cada dia de Sabrina e de mais dezenas de pessoas que ali moram, não foi perguntado nada ao outro grupo que ela apontara, bem como recomendado. “Eu tinha um tevezinha antes sabe? Via as coisas por lá. Eu só entendia que passava pelo ar e pegava no pulmão dos idosos. Eu via as pessoas andando com máscaras pra cima e pra baixo e ficava com medo, se pegava só nos velhinhos porque todo mundo usava máscara?” Sabrina reflete sobre como descobriu sobre a pandemia sem nenhum acesso a internet ou informação(..) “A falta de informação mata a pessoa de angústia. O que passei não desejo pra ninguém não, ficava horas na frente da farmácia pedindo que comprassem máscara pra mim, agora imagina as pessoas que não tinha tevê nem nada? Morreram aí sem nem saber com o que. ”
“Entenda o que é o metaverso e por que ele pode não estar tão distante de você”; “Metaverso: O futuro nos investimentos”; “O que é o metaverso e por que você já vive nele mais do que imagina” Essas são umas das manchetes de matérias sobre a mais nova promessa do futuro: O metaverso. É reforçado o discurso que a novidade irá revolucionar o mercado tecnológico e a perspectiva de um novo mundo ao qual o usuário será submerso, uma realidade em que tudo será possível, mas, quem poderá ter esse mundo de possibilidades na palma da mão?
Com a chegada da Internet, uma nova realidade foi exposta as pessoas. No início, apenas uma parcela da população tinha acesso a esse mundo: “Internet era coisa de rico, meus patrões falavam sobre os programas, os aplicativos né? Eu não entendia nada” diz Malba Rejane (50), ao relembrar da década de 90: “Hoje tenho Internet e nem imagino minha vida sem” completa a aposentada. A tecnologia se disseminou em menos de meio século e se popularizou a nível de criar uma nova atmosfera de dados e informações. Hoje, ainda existe indivíduos que encaram um dia-a-dia de trinta anos atrás, porém, agora enfrentam a exclusão de estarem alheios a realidade digital.
As paredes invisíveis que nos separam
A Paulista é uma das mais importantes vias de São Paulo, sendo um grande conglomerando de centros financeiros e tecnológicos, porém, infelizmente foi uma tarefa muito fácil encontrar pessoas alheias a essa tecnologia nas ruas da avenida. Fabiana Ferreira de 28 anos, fica sentada em um pano estendido pelo chão a pouco menos de 10 metros da estação Consolação do metrô, ela e seu filho Davi Lucca de 4 anos, disputam lugar no asfalto da calçada com sapatos de marca e passos corriqueiros: “Fui mandada embora do meu serviço na pandemia” A moça responde as perguntas em meio a suplicas aos pedestres: “Moço me vê um trocado pro meu filho almoçar? ” Ao não receber nenhuma reposta, volta de onde parou: “Não consegui pagar meu aluguel, então fui para uma invasão lá em São Matheus. Quando a prefeitura tomou tive que ficar cinco dias na rua, ai vindo pra cá (são Paulo) consegui arranjar 500 reais e aluguei uma casa, ai tô pagando aluguel e tô aqui pra pegar dinheiro pra continuar pagando. ” Fabiana arruma a roupa abarrotada do filho enquanto fala que não conseguiu o auxílio, mas que pela rua, consegue pelo menos uma refeição para alimentá-lo. Ela ainda conta que tem outra filha de nove anos e tinha outro filho que faleceu por complicações em uma cirurgia no pulmão, a broncospia, cirurgia que foi paga com dinheiro de vaquinha online, ele morreu com 1 ano e 6 meses.
28,2 milhões de pessoas no Brasil não têm acesso à Rede de Dados global segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) parcela que corresponde a um pouco mais do dobro da população do Paraguai. Sabe aquele vídeo engraçado que rodou na Internet essa semana? Essas pessoas não fazem a mínima ideia do que se trata. Ou aquela notícia que foi tema da sua rodinha de amigos? Eles não podem conversar sobre isso com você. E até mesmo o medo de uma nova doença disseminado pelas mídias sociais? Eles não compartilham esse sentimento com você. Com o metaverso a vista do horizonte, eles irão ficar mais uma vez a margem de um mundo.
“Não tenho nada amiga, não tenho nada, para me encontrar é aqui, nesse ponto” Diz Fabiana ao ser questionada sobre se tinha algum contato com a Internet ‘Vendi meu celular para pagar meu aluguel” Fabiana diz que tem televisão em casa, onde sabe dos principais acontecimentos, cita também, que seus filhos estudam, mas ás vezes faltam para ajudá-la na coleta de trocados. “Eles voltam pra casa falando de tal jogo que o coleguinha falou e eu fico sem saber o que falar né? Dói não poder dar e nem saber como dar o que seu filho pede” Foi perguntado a ela sobre o metaverso e outros apetrechos da tecnologia: “Sei o que é porque já ouvi falar na tv”, responde, Mas afirma não ter nenhum problema de estar excluída do mundo tecnológico. " meus filhos tendo comida e um teto, já é o suficiente” Ela ainda completa citando que diversão e entretenimento são um luxo que por enquanto ela não pode bancar.
Entretenimento: luxo que muitos não podem bancar
Enquanto milhares de Sabrinas, Fabianas e Davis Luccas temem pela falta de um teto, no metaverso, os chamados avatares de influencers já possuem até apartamento no mundo real. Foi o que aconteceu com Satiko, a influencer virtual da artista Sabrina Sato, que em maio deste ano ganhou seu próprio apartamento real em São Paulo, o imóvel será utilizado para gravações das chamadas “publis” e outros eventos envolvendo o mundo digital, a noticia foi alvo de criticas. Já em agosto, a boneca virtual lançou um restaurante no jogo “cidade alta” sendo possível que os jogadores comprem comida para alimentar seu avatar, jogadores esses talvez, que não disponham de centavos para Davi lucca ter o que almoçar.
“Tô aqui desde 9h00min e só ganhei 10 reais e um resto de marmita fria” Fabiana denuncia em tom de tristeza. Já passava do 12h30min e a Paulista estava abarrotada de engravatados indo ou voltando de seu horário de almoço. é difícil para ela sentir os cheiros de comida e perfumes caros enquanto seu filho reclama de fome. Para Fabiana, pouco importa o metaverso e qualquer outros engenhos tecnológicos, sua desilusão a esse lado do mundo é tão concreta que ela nem cogita um dia usufruir dessas, segundo ela, regalias.
Ainda não se sabe se o metaverso será de fato o futuro da internet, ainda em forma primitiva, é utilizado com viés de entretenimento e recreação, mas já germina grande renda para marcas e famosos. Além disso, a sua aparição evidencia que as diferenças socais são bem mais profundas do que se pode vê. As pessoas lidam duas vezes com a exclusão: excluídas da Internet e da sociedade como um todo.