O protagonismo negro no cinema nacional é mais do que uma tendência, é uma necessidade urgente para construir uma indústria cinematográfica verdadeiramente inclusiva e representativa. Com o apoio de organizações como a Associação dos Profissionais do Audiovisual Negros (APAN) e eventos como a Mostra OJU, o Brasil está trilhando um caminho positivo em direção a um futuro cinematográfico mais diversificado e vibrante.
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 56% da população brasileira se autodeclara negra. No entanto, historicamente, o cinema nacional não refletiu essa diversidade. Nos últimos anos, houve um aumento notável no número de filmes e produções que apresentam protagonistas negros, mas ainda há muito a ser feito. Segundo a Agência Nacional do Cinema (ANCINE), em 2022, apenas 20% dos filmes nacionais tinham protagonistas negros. Este número, embora crescente, sublinha a carência de mais representatividade.
Ignorados pela indústria cinematográfica ao longo da história, os cineastas negros sentiram a necessidade de se unirem em uma única voz para reivindicarem seus direitos, assim em 2016 foi criada a APAN, com o objetivo de desenvolverem políticas públicas. Entre os seus projetos oferecem um laboratório de roteiro, direção e produção para realizadores negros terem a oportunidade de se inserir e se firmar no mercado audiovisual, além de também possuir sua própria plataforma de streaming para garantir uma distribuição mais diversa. “Embora haja progressos, ainda há muito trabalho a ser feito para garantir diversidade e inclusão em todas as áreas da produção cinematográfica.” declara Kayke Leonel, estudante de cinema. O que começou com apenas 20 profissionais, hoje conta com quase mil associados.
Outro passo importante foi a criação da Mostra OJU em 2022 pelo Sesc São Paulo. Pensada como um meio de difusão, a mostra tem foco através da exibição de desde curtas a longas-metragens, cursos, palestras e oficinas celebrar cineastas negros e aumentar a visibilidade de seus projetos. Para o futuro cineasta, Leonel, é importante que essa difusão não se limite apenas ao cinema independente “É fundamental que a indústria mainstream também abrace e promova histórias diversas, para que a representatividade não seja limitada a um segmento específico do cinema, mas esteja presente em todas as formas de produção cinematográfica.”
A representatividade no cinema nacional não é apenas uma questão de números. Ela tem um impacto profundo na sociedade, desafiando estereótipos e oferecendo modelos positivos para crianças e jovens negros. Ao verem histórias que refletem suas próprias experiências, o público é capacitado e incentivado a sonhar mais alto.
Para a comunidade negra, ver personagens que se parecem com eles nas telas é mais do que uma experiência cinematográfica. É um lembrete poderoso de que suas histórias importam, que suas vozes são ouvidas e que suas vidas são dignas de serem contadas. Esse tipo de representatividade não é apenas uma questão de entretenimento, mas uma fonte de identidade e pertencimento para milhões de brasileiros. O cinema tem o poder de moldar a maneira como se vê o mundo e, por muito tempo, as narrativas negras foram limitadas a estereótipos prejudiciais. No entanto, o protagonismo negro no cinema nacional está desafiando essas narrativas restritivas. Ao apresentar personagens complexos, multifacetados e reais, o cinema está redefinindo como a sociedade enxerga a comunidade negra, promovendo uma compreensão mais profunda e compassiva.
Domingo, 21 de Maio, Valência e Real Madrid disputavam uma partida pela La Liga, o campeonato espanhol, no Estádio Mestalla, casa do Valência. Durante a partida era possível ouvir pela transmissão de televisão gritos de "mono" - que significa macaco em espanhol - vindos da torcida do clube mandante do jogo. O alvo era o atacante brasileiro Vinícius Junior, do Real Madrid. Aos 24 minutos do segundo tempo, o brasileiro chama o árbitro da partida, Ricardo de Burgos. O atleta apontava para torcedores que estão proferindo os gritos
Torcedores do Valencia chamam o atacante do Real Madrid de macaco durante a partida no domingo - Foto: Reprodução Declaração do Vini Jr/ reprodução: instagram
Atendendo ao protocolo da FIFA, o árbitro da partida paralisou o jogo. Os alto-falantes anunciaram que a partida estava interrompida por um episódio de racismo. Pouco mais de oito minutos depois, o jogo é retomado. Já nos acréscimos, Vinícius Junior se envolve em um lance com o goleiro Mamardashvili, do Valência, dentro da área e próximo a torcida mandante.
O brasileiro foi atacado por um mata-leão do jogador Hugo Duro, do Valência, e ao reagir, atinge o goleiro Mamardashvili. O árbitro de vídeo (VAR) chamou o árbitro principal até a cabine para avaliar melhor o lance. O que ele sugeriu ? A expulsão do atacante brasileiro pela agressão ao goleiro. Após a revisão, de Burgos voltou a campo e aplicou o cartão vermelho para o jogador brasileiro.
Na saída do gramado, entre vaias e mais gritos racistas, Vinícius aplaudiu ironicamente ao que havia acabado de acontecer. Pela décima vez em La Liga o atleta era alvo de racismo, e nesta ainda foi punido com a expulsão. Nas redes sociais o atelta ironizou a competição. "Não foi a primeira vez, nem a segunda e em a terceira. O racismo é o normal na La Liga [...] Mas eu sou forte e vou até o fim contra os racistas", disse o jogador. Entre publicação, Vini Jr. ironiza o slogan do campeonato. "O prêmio que os racistas ganharam foi a minha expulsão! Não é futebol, é La Liga", desabafou o atacante.
A atitude das mais de 46 mil pessoas no Estádio Mestalla nesse jogo, abriu um amplo debate mundial sobre racismo no futebol europeu. Javier Tebas, diretor da “La Liga”, afirmou não ter acontecido racismo e questionou quando Vini Jr. iria pedir desculpas aos torcedores do Valência pelo ocorrido.
Ao final da partida, o Valência divulgou um comunicado oficial sobre o ocorrido, dizendo que condena a violência física e verbal nos estádios. De acordo com a nota, o acontecido foi um "caso isolado", e afirmou que o clube "está investigando o ocorrido e tomará as medidas mais severas".
Reprodução Super Deporte-ESP- 22/05/2023
A imprensa espanhola, mesmo após a repercussão do caso, continuou atribuindo a culpa a Vinicius Jr, afirmando que ele provocou a torcida e que os xingamentos foram um caso único.
“O racismo abala a nossa relação com nós mesmos”
Quando tinha 12 anos, a estudante de enfermagem Camila Esteves, que hoje tem 18 anos, participou de uma competição de judô e ouviu da arquibancada: “Macaco tá permitido ganhar qualquer luta”. A fala criou na jovem uma insegurança em relação a sua vitória no confronto. "O racismo abala a nossa relação com nós mesmos, nos torna inseguros, com medo de seguir em frente", disse à AGEMT.
Ao comentar o episódio de racismo sofrido por Vinicius Junior, a jovem lamentou, não apenas pelo caso de racismo, mas também a falta de intervenção por parte da La Liga. "As atitudes tomadas durante o jogo conseguiram tornar a situação ainda mais cruel", afirma.
"O governo espanhol deve impor à população medidas mais radicais em relação a atos racistas, porém, a população deva acatar a essas medidas". Entendemos toda a construção histórica da Europa no que diz respeito ao racismo, como foi feito durante o período colonial, por exemplo. Portanto as medidas devem ser tomadas com seriedade dentro de um país tão habituado com situações como a de Vinícius Júnior.
Não foi a primeira vez e provavelmente não será a última.
No total, Vinícius Júnior já sofreu mais de 10 casos de racismo dentro de campo. O primeiro ocorreu em 24 de outubro de 2021, durante uma partida contra o Barcelona no Camp Nou. Vinícius Júnior foi insultado pelos torcedores depois de ser substituído, no segundo tempo. Como resposta, o jogador apontou para o placar: o Real Madrid vencia por 1 a 0.
Em 14 de março de 2022, o Real Madrid vem por 3 a 0 contra o Mallorca, fora de casa. Durante a partida, torcedores do time da casa foram flagrados insultando Vinícius Júnior, chegando a pedir ao atacante para "pegar bananas", em clara referência racista. Além de ofensas, sons de macaco também foram ouvidos no estádio.
"Pare de fazer macaquices", disse o empresário Pedro Bravo, em 26 de setembro do mesmo ano em um programa esportivo da televisão espanhola, em referência às danças de Vini nas comemorações de gols. A situação deu início ao movimento "Baila, Vini!", que tinha como objetivo apoiar o jogador em meio aos ataques racistas.
No fim daquele ano, em 30 de dezembro, torcedores do Valladolid atacaram Vinícius Júnior em partida contra o Real Madrid, que venceu por 2 a 0, resultando em inúmeras ofensas racistas destinadas ao atacante. "Os racistas seguem indo aos estádios e assistindo ao maior clube do mundo de perto e a La Liga segue sem fazer nada... Seguirei de cabeça erguida e comemorando as minhas vitórias e do Madrid. No final a culpa é MINHA", desabafou o jogador.
No ano seguinte, em 26 de janeiro, às ações conseguiram passar ainda mais dos limites, na qual torcedores colchoneros penduraram um boneco de Vinícius Júnior enforcado em uma ponte na cidade de Madri. O fato chocou a todos, porém clubes como a La Liga e Federação Espanhola apenas publicaram notas oficiais pedindo "sanções severas". O jogador atuou normalmente e foi provocado em campo.
No mês seguinte, em 05 de fevereiro, o atacante brasileiro foi alvo novamente de racistas durante a partida do Real Madrid contra o Mallorca, quando um torcedor o chamou de "mono" (macaco). Dessa vez o criminoso foi identificado e foi impedido de frequentar estádios por um ano e multado em 4 mil euros (aproximadamente R$ 22 mil).
A sétima denúncia de racismo contra Vinícius Júnior ocorreu em 5 de março, durante a partida entre Betis e Real Madrid. Torcedores do time rival chamaram o atacante de "macaco" e viraram alvos de uma queixa prestada ao Juizado de Instruções de Sevilha, com imagens de televisão como prova. Em comunicado, LaLiga tratou a situação como "comportamento racista intolerável".
O último caso conhecido de racismo contra o jogador ocorreu neste domingo. Apenas um desses episódios resultou em algum tipo de consequência para o criminoso, porém em todos os casos houve queixas de Vinícius Júnior para o clube La Liga e para a Federação Espanhola, mas nada tem sido feito. A pergunta que fica é: até quando essa humilhação será considerada tolerável pelo clube espanhol?
Um problema além da Europa
O futebol é só mais uma das formas em que o racismo é ser exposto. Mas a questão não se restringe apenas a Europa, os jogos brasileiros também já tiveram diversos episódios de racismo, tanto jogadores quanto torcedores já foram alvo de hostilização por parte de racistas.
Segundo o Observatório da discriminação racial do futebol, casos de racismo registrados em campo aumentaram em 40% em 2022. Esse é o estudo mais atualizado sobre a injúria racial do esporte no país. Em 2021 o Instituto Locomotiva apontou que apenas 4% da população se considera racista, enquanto 84% percebe o racismo no outro.
Em entrevista à AGEMT, o doutor em história, pesquisador de relações étnico-raciais e professor da PUC-SP, Amailton Azevedo, afirmou que esse comportamento do brasileiro se dá de maneira histórica. "Esta postura de achar que o racismo está sempre no outro e não em nós é o que marca a ideologia que ensinou os brasileiros que aqui não havia problemas raciais. De maneira geral, o brasileiro trabalha com esse dispositivo ideológico ", afirma o professor.
O combate ao racismo
Em 2019, a FIFA divulgou um novo código disciplinar para determinadas ações dentro do campo. O principal foco dessa nova declaração era o combate ao racismo, lá ele prevê quais são os passos que devem ser dados, sendo eles: 1) Interrupção do jogo pelo sistema de som do estádio, dando um anúncio formal contra os comportamentos racistas; (2) Suspensão temporária do jogo pelo árbitro, solicitando uma nova mensagem oficial; (3) Abandono da partida, com a saída de todos em campo.
Uma palestra sobre a abolição da escravatura no Brasil aconteceu no último dia 17, na capital de São Paulo. O evento realizado pela prefeitura, teve a presença de professores e especialistas para a reflexão sobre a população negra no Brasil. Segundo o poder público, um documento chamado ‘orientações pedagógicas: educação antirracista - povos afro-brasileiros’ será criado com a ajuda dos educadores
O "Farol de combate ao racismo estrutural” é uma política pública realizada em parceria com a Secretaria Municipal de Relações Internacionais (SMRI) e a Secretaria Municipal de Educação (SME). Tem como objetivo conscientizar as futuras gerações, a partir da educação, e combater o racismo estrutural.
"[O evento] é uma maneira de mostrar à população que é necessário ensinar a história verdadeira e fazer com que todos reflitam e entendam a importância de programas em prol do tema”, diz Marta Suplicy.
ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO
Dia 13 de maio foi assinada pela princesa Isabel a Lei Áurea , na qual determinava a abolição da escravidão, resultado de uma grande luta dos escravos e movimentos abolicionistas da época. Porém, com a libertação dos escravos não foram criadas políticas públicas para a reintegração da população negra na sociedade brasileira, causando hoje o racismo estrutural.
A abolição foi um processo lento e de muita luta pelo território brasileiro. Muitos nomes não foram devidamente homenageados e sua história esquecida, como Luís Gama, José do Patrocínio, André Rebouças e alguns líderes de movimentos separatistas abolicionistas que é o caso da Conjuração Baiana.
QUEM SÃO OS HERÓIS?
Luís Gama: jornalista e advogado, usou de seus conhecimentos para libertar mais de 500 escravos, além de denunciar atos racistas. Filho de mão preta e pai branco, foi vendido pelo pai quando tinha 10 anos por dívidas. Quando chegou em São Paulo, aprendeu a ler e fugiu da escravidão em busca de reconquistar sua liberdade. Como jornalista, escreveu sobre o fim da escravidão e criticava a aristocracia do Império.
foto: reprodução
André Rebouças: Se formou como engenheiro militar e em 1861 recebeu uma oportunidade de estudar na Europa para se aprofundar em engenharia civil. Com esse conhecimento adquirido, André propõe soluções para a cidade do Rio de Janeiro, como por exemplo uma rede de abastecimento de água para a cidade.
André sofreu com discriminação racial e sempre se posicionou a favor da abolição. Se juntou com Luis Gama em manifestações contra a escravidão, mas sua participação era apenas na organização e administração dos fundos. Rebouças se preocupou com o destino dos pretos após a abolição, para ele era necessário um projeto de inserção deles na sociedade brasileira.
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José do Patrocínio: jornalista e escritor, Patrocínio fez-se presente no movimento abolicionista.
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Movimentos Abolicionistas: Cipriano Barata, médico, João Ladislau de Figueiredo, farmacêutico, e Francisco Gomes, professor. Os três revolucionários lideraram a conjuração baiana que foi um movimento abolicionista, com objetivo de separar a Bahia de Portugal e atender às reivindicações das camadas mais pobres. Diferentemente da inconfidência mineira, na qual alguns líderes foram exilados pela coroa, na conjuração baiana, os líderes foram condenados a enforcamento público, e não viraram ‘mito’ ou herói como Tiradentes virou.
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ÀS 11H30, SARAVÁ
Enquanto uns enrolavam até o almoço e jogavam conversa fora, outros discutiam sobre o racismo. Mas quem são os outros? A conversa começa na presença. Quem se reuniu no Pátio da Cruz na manhã e noite desta quinta-feira, 16, tinha história para contar na primeira pessoa, sabendo que não seria a última.
As expectativas eram maiores do que o corpo presente. Que fossem cem em vez dos oito que se dispuseram a discutir, dividir, enxergar uns aos outros como iguais, qualquer interação já soma. Se parece pouco, é porque não se compara às salas de aula. “Quantos [pretos] tinham na nossa turma, amigo? Duas, três pessoas?”.
O Coletivo Saravá age nas sombras procurando o sol. A primeira reunião serviu assuntos que a espontaneidade do encontro marcado trouxe à tona, e que os membros sentem na pele: o racismo. É inevitável. Mais do que na sociedade, que é maior do que os portões do campus podem guardar, esse tema estava estampado na razão de cada um estar ali, à sombra da cruz. “Tem professor negro no curso de vocês? Eu nunca vi nenhum”. Lembraram alguns nomes, que não cobrem sequer os dedos da mão.
As oito vozes ali reunidas ressoavam como uma. Queixavam-se do mesmo descaso, dos mesmos olhares, da mesma impotência. Estavam perdidos. Nas últimas semanas, foram procurados por supostas vítimas que buscavam justiça e que só encontraram ouvidos porque “não tem o que fazer”.
E os militantes se sentiram impotentes. Levantaram bandeiras, planos, fúrias, tudo para quê? Nada seria suficiente, e o sabiam. Eram minoria, até mesmo no pátio. Estavam cercados de mesas e corredores ocupados por quem não se interessou em saber o que estava acontecendo nos degraus à beira da cruz. A simbologia do lugar pode ser obra da coincidência, mas foi redentora desta edição do Papo Preto.
À luz do Pai, somos todos iguais. Mas e quanto aos filhos?
ÀS 17H00, ONDE ESTÃO OS BRANCOS?
"Gente, essas outras pessoas. Elas estão…de boas?", indagou Dandara (nome fictício). Os alunos ali em volta - que não eram negros, aliás - agiram com indiferença perante o Papo Preto. Talvez por desconhecerem o Saravá e/ou por simplesmente não se importarem.
É fruto do privilégio da branquitude não apoiar ou procurar medidas educacionais afirmativas ao seu redor, pois essas são refutadas como suas prioridades. “O racismo é uma problemática branca”, como provoca a portuguesa Grada Kilomba. Mas o conformismo dos brancos em relação às pautas antirracistas é ainda naturalizado, o que dificulta uma branquitude crítica - aqueles que condenam o racismo ativamente, abrindo mão de seus privilégios.
Mas onde estão esses puquianos? Bom, os pretinhos da Pontifícia de cada sala, quiçá do curso, são contados nos dedos de uma só mão. Já os alunos brancos são a grande maioria, tanto pelos corredores do prédio velho quanto do novo. Há brancos o suficiente para edificarem a luta antirracista junto com o Saravá - logo, não existe desculpinha. Afinal, não são as vítimas que devem mudar seu comportamento, mas os réus.
Nesse âmbito, não cabe o receio com o "lugar de fala”, ainda que, obviamente, nunca compartilharão das vivências de um negro. Portanto, um dos seus papéis é reconhecer as vantagens provenientes da (ausência de) opressão. Como defende a ex-professora da PUC Djamila Ribeiro: "Uma pessoa branca deve pensar seu lugar de modo que entenda os privilégios que acompanham a sua cor".
ÀS 18H00, UM PRETO SALVA OS OUTROS
"Eu tava faltando muito. Entrei no surto do curso e faltei. Quando chegou a segunda semana do último semestre, voltei para frequentar a faculdade”, desabafou Anielle (nome fictício), uma futura diplomata, sobre a ausência de diversidade no curso de Relações Internacionais, até que ela encontrou uma igual. “Nos conhecemos e viramos amigas porque olhamos: uma preta, outra preta". Com uma mistura de alívio e salvação, encontrar mais pretos em uma faculdade privada com a maioria branca é um colírio para os olhos.
É perceptível nesses vinte anos de exercício das cotas raciais que as faculdades escureceram. Aliás, o black power reinou nas instituições públicas. Contudo, os bolsistas pretos nas particulares lidam com as dificuldades econômicas e raciais. Segundo um formulário respondido pelos integrantes do coletivo no final de 2022, mais da metade dos pretos bolsistas não se sentem representados de jeito nenhum. Chica (nome fictício), aluna pelo programa filantrópico da Fundação São Paulo (FUNDASP), apontou que o bandejão, que estava fechado no começo do ano passado, é uma das únicas iniciativas em prol dos bolsistas. Já Viola (nome fictício), ingressante pelo Programa Universidade Para Todos (Prouni), relembrou benefícios que hoje não passam de uma memória veterana. “Não tenho o que reclamar, a comida é ótima”, comenta. “Porém, antes davam apoio com xerox, agora não”.
Através da pesquisa, estima-se que as pretas puquianas que sentem, com certeza, a solidão da mulher negra somam mais de 70%. Esse sentimento é derivado das situações que as colocaram em segundo plano. Chica enfatiza como o tratamento dos garotos com ela é diferente em comparação às meninas brancas: “Não me chamam para encontro, cinema ou até pra ir na casa deles. Normalmente, ficam comigo nas festas, sem compromisso”. Viola, por sua vez, abordou as impressões de ser uma mulher gorda e preta: “Não me sinto bonita o suficiente. Para mim, ir em festas da PUC, só se for para beber. Se for para conhecer pessoas, no quesito sentimental, nem rola”.
[Confira a pesquisa na íntegra sobre o cenário da comunidade negra na PUC-SP]
ÀS 19H00, VAI PELA SOMBRA
Não grita. Não corre. Não abre os braços. Não mexe muito nos bolsos. Carrega sempre a identidade, a carteira de trabalho. Não dá motivo para eles. Não reclama, não responde, não reage. Na dúvida, não faça. É perigoso ter coragem quando o medo deles comanda as grades. Você não quer ver a mãe chorando na televisão.
Escuta, engole em seco, segue a vida. Agradece, para garantir. Eles guardam com facilidade o teu rosto - qualquer dúvida morre na cor. Escolha com cuidado as palavras. As pessoas aqui são poderosas. Quem é minoria não pode se dar o luxo de esperar a boa vontade da maioria, e o contrário é irrelevante. Enquanto só os poucos se incomodam, a indiferença dos muitos já os configura cúmplices.
Diante de tudo isso, é preciso aquilombar. Buscar os seus, que nunca mais serão deles. Encontrar na luta e na dor do outro a razão para continuar firme onde está. Na soma, encontra-se o sustento de uma reivindicação que vai além da Consciência Negra, que busca no coletivo o que o indivíduo não conquista sozinho.
Enquanto ecoarem os açoites do chicote colonial, que sejam mais altas as vozes da indignação e da reparação. Enquanto existir PUC-SP, que resistam e existam os pretos de sua história. Que gritem, sem medo, aos quatro cantos: Saravá!
Ao longo da história do Brasil, é inegável a importância das mulheres negras na luta por uma sociedade mais igualitária, ainda que essas presenças passem despercebidas pelo povo brasileiro. Grandes personagens como Dandara, que foi líder do grupo feminino do exército de Palmares e um dos maiores nomes do país na luta contra a escravidão, detêm uma a duas páginas nos livros didáticos, enquanto os colonizadores ocupam a maior parte do conteúdo.
No âmbito da literatura, Maria Firmina dos Reis foi a primeira romancista brasileira a ter sua obra publicada em território nacional. Além disso, foi a primeira mulher aprovada em um concurso público no Maranhão, e fundou a primeira escola pública mista na região.
Nas telonas, Ruth de Souza foi a primeira indicação brasileira ao prêmio de melhor atriz em um festival internacional de cinema, o Leão de Ouro, em 1954, por sua atuação no filme “Sinhá Moça”. Ruth também foi a primeira mulher negra a atuar no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Yvonne da Silva Lara, também conhecida como Dona Ivone Lara, foi a primeira mulher a compor um enredo de escola de samba: “Os Cincos Bailes Tradicionais da História do Rio”, em 1965, apresentado pela escola Império Serrano. Formada em Enfermagem e Serviço Social, ela se especializou em terapia ocupacional e atuou em conjunto com a médica psiquiátrica Nise da Silveira no Serviço Nacional de Doenças Mentais. Dona Ivone Lara se destacou ao compor sambas, assinando como um de seus primos, uma vez que as obras produzidas pelos homens tinham mais chances de serem aceitas e reconhecidas na época. A sambista escreveu sucessos como “Sonho Meu” e “Alguém Me Avisou”, regravados por grandes nomes da MPB.
Não à toa, a tradicional escola Estação Primeira de Mangueira foi consagrada campeã do carnaval carioca, em 2019, com um samba-enredo que bradava “Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês”. Durante o desfile, a Marquês de Sapucaí foi palco da “história que a história não conta”, preenchendo a avenida com as passagens de Dandara, Luiza Mahin e demais personalidades tão relevantes e pouco abordadas nos livros.
Nesse caminho, é necessário compreender os desafios sociais que permeiam a vida de mulheres negras desde a sua ancestralidade, principalmente no Brasil.
Beta Ferreira é educadora social e empresarial, fundadora do projeto “Uma Deusa Africana” e coautora da antologia “As Áfricas dentro de mim”, lançada este ano na modalidade presencial. “A gente já tem essa questão de não saber de qual país africano vem a nossa família”, compartilha. “Todas as pessoas afrodescendentes têm isso como interrogação, e só conseguem tirar essa dúvida fazendo aqueles testes de DNA supercaros, então quem é de classe social mais baixa não consegue”.
A educadora ainda relata sobre sua busca pela ancestralidade, que se concretizou no ano passado, enquanto morava em Salvador. Sua mãe perdeu os pais ainda muito nova e teve que morar em um orfanato, onde se distanciou de suas raízes baianas. Após pesquisar documentos e endereço, Beta foi a primeira de sua família paulista a visitar a cidade de origem de seus avós, no sertão baiano. “Eu queria muito saber de onde eles vieram, queria muito ouvir o sotaque dos meus avós de alguma forma, saber o que eles faziam”.
Por outro lado, Mare Baptista, estudante de Moda e integrante da comunidade “Black in Business” da Ascential pela WGSN, relata que buscou saber mais sobre sua ancestralidade já no período da escola, quando estudava em colégio particular. “A maioria dos meus amigos, majoritariamente brancos, sabiam a nacionalidade de suas descendências e, quando me perguntavam, eu não sabia o que dizer”, expõe. “Então eu perguntei para a minha mãe, que sabia responder com mais precisão porque minha avó é branca”.
Mare relembra o período de seu ensino médio, quando começou a sair mais e viveu, na pele, os reflexos da segregação racial. “Quando eu ia para as festas, os meninos que eu queria beijar preferiam minhas amigas brancas”, desabafa. “Chegou ao ponto em que um menino falou que só me beijaria se minha amiga – branca - beijasse ele primeiro, e foi nesse momento que caiu a ficha”.
Em razão da recorrência dessa prática, a estudante percebia que não era tratada, tampouco enxergada, da mesma forma que suas amigas brancas. Desse modo, conversando com uma amiga de descendência asiática, que também passava pela mesma situação, as duas uniram forças para entender o que estava acontecendo. “Foi quando descobri que existe a solidão da mulher negra, o que ela é e que eu passei por isso a maior parte da minha vida”.
Dentro disso, Beta denota a importância de aquilombar ao se reconhecer na sociedade enquanto mulher preta. “Quando você tira os filtros [coloniais] dos olhos, você enxerga com mais clareza e com mais dor, mas também é mais resistência, mais vontade de lutar e até mais vontade de desistir porque a luta cansa”, explica. “Você vai entendendo que só os nossos - as pessoas que também vivem isso - vão entender essa dor, então é importante aquilombar para também se fortalecer porque você vai ter mais vontade de lutar com os seus”.
Nesse sentido, a educadora compartilha sua experiência de levantar provocações aos seus alunos, adaptando os exercícios de reflexão às faixas etárias de suas turmas. Com as crianças, por exemplo, Beta questionava a partir da pintura, começando pelos lápis de cor atribuídos à “cor-de-pele”. Já com o público adolescente, ela incentiva a quebra de barreiras, a ir além dos muros sociais, a reconhecer os espaços que podem ocupar, além dos que lhes foram apresentados. “Como educadora, essa é a missão: abrir os olhos desses educandos, fortalecendo a autoestima, o autoconhecimento e o reconhecimento no mundo”, reforça.
Para além da educação, as artes também atuam em apoio a essas reflexões, não somente pela ancestralidade, como pela identificação com as letras. Por influência da família, Beta foi naturalmente se aproximando da MPB e do samba-rock, crescendo com esse fortalecimento de sua cultura através da música. “Querendo ou não, mesmo que não saibam, as pessoas estão cantando um pouco da nossa história”, aponta. “A minha escuta, meu olhar e a forma como vejo o mundo mudaram depois que eu comecei a desconstruir esse olhar do racismo estrutural que foi imposto para mim”.
No âmbito da grande mídia, em menção à literatura e ao cinema, Mare discorre sobre uma representação romantizada da cultura afrodescendente, que muitas vezes não mostra toda a violência que as pessoas negras sofrem no Brasil. Ela cita o longa-metragem distópico “Medida Provisória” (2020), de Lázaro Ramos, como o marco inicial de uma onda de produções visuais que possam retratar o que a comunidade negra reivindica. “Os livros e filmes que realmente contam a história da cultura negra só são consumidos pelos negros”, defende a estudante. “Acredito que agora o mercado e a mídia entenderam o que os pretos querem que seja mostrado quando pedem representatividade”.
Mare ainda destaca a artista visual Rosana Paulino como uma de suas maiores referências culturais desde que conheceu a série de obras “As filhas de Eva” (2014), que reforça a imagética de que as mulheres pretas também são filhas de Eva. “Todas as obras [da série] têm uma sombra preta, que é a sombra da mulher tentando se encaixar na sociedade”, analisa a estudante.
A representação nas páginas e nas telas acende a identidade de mulheres negras, principalmente jovens, que começam a se enxergar em suas semelhantes e compreender o que o espelho insiste em refletir. Com o avanço, a passos de formiga, das lutas raciais, a transição capilar se torna um processo mais viável e acessível, ao passo que reacende as raízes e incentiva o mercado a fomentar essas mudanças. “Hoje em dia, tem prateleiras só para cachos e cabelos crespos”, aponta Beta. “Na época da minha mãe e das minhas tias, era só um ou dois tipos de creme, e aí alisavam porque não sabiam o que fazer com o cabelo”.
Por outro lado, essa exposição de um corpo retratado às vontades dos opressores pode aprofundar também as raízes do preconceito, que se sustentam por meio de estereótipos caricatos e da hipersexualização. “Só por ser negra eu automaticamente tenho que ter uma bunda grande, peito grande e uma personalidade que foi criada na grande mídia: a negra cômica, a negra barraqueira, a mãe que não é tão amorosa com os filhos e está sempre gritando”, ressalta Mare.
Não obstante, a opressão também se manifesta redutora nas relações de trabalho, seja de forma velada ou não. Quando Mare se inseriu no mercado de trabalho, foi estagiária de uma pequena empresa, em que trabalhava com colegas de trinta a cinquenta anos mais velhos. “Se apenas ser mulher no Brasil já é difícil, ser mulher negra é três vezes pior porque as pessoas vão te diminuir cada vez mais”, afirma. “Eu era estagiária de e-commerce em uma loja de roupas de luxo e fazia feira para a minha chefe. Eu ia na feira de rua, comprava melancia e tudo mais que ela pedisse, e deixava na casa dela”.
Para Beta, desde criança, o reconhecimento do espaço social que ocupava nestes dois mundos – dos brancos e dos não-brancos – foi esclarecido já no começo de sua criação e se estende até hoje. “Minha mãe não é uma militante extrema, mas ela sempre criou uma filha preta. Criar uma filha preta é conscientizá-la”.
A fundadora do projeto “Uma Deusa Africana” ainda planta uma mensagem às meninas pretas que estão no começo de sua transição capilar, e no início dessa jornada de autoconhecimento e reconhecimento: “É um processo individual. Tem o tempo da pessoa para ela se reconhecer. Mais do que falar, eu daria um abraço e mostraria que tem um quilombo esperando por ela”.