Ao ar livre ou em um espaço fechado, caixas e auto-falantes são empilhadas umas sobre as outras formando grandes estruturas - por vezes tão altas que é preciso erguer a cabeça rumo ao céu para acompanhar seu tamanho. A elas se unem o toca-discos, vinis e amplificadores. Com a missão de manter esse grupo em harmonia chega o selecta, comandante desse conjunto que, desde seu surgimento na Jamaica na década de 40, foi nomeado Sound System. De lá pra cá, esse cenário já se repetiu incontáveis vezes e, faça chuva ou faça sol, esse movimento segue firme em seu objetivo coletivo de unir, informar e empoderar o povo negro e periférico - seja ele jamaicano ou brasileiro.
Foi uma espontânea sequência de oitos de maio na vida de um homem chamado Hadley Jones a responsável por tecer o surgimento desse que é um dos movimentos culturais mais relevantes do século XX. Em 1943, ele foi convocado para a Força Aérea da Inglaterra por conta da Segunda Guerra Mundial. Lá foi treinado como engenheiro de radar e enviado para a guerra na Europa um ano depois. Nessa mesma data, em 1945, o conflito foi dado como encerrado e, em 1946, Jones embarcou em Glasgow, na Escócia, para atravessar o Oceano Atlântico e retornar à sua terra natal.
Em sua volta pra casa, ele trouxe na bagagem a habilidade de desenvolver circuitos elétricos e uma rede de contatos para a importação de discos de vinil. Em 1946, fascinado pelo rádio e sua capacidade de transmissão, o jamaicano - que também era músico - abriu uma loja de consertos do aparelho e aplicou ali seus novos conhecimentos adquiridos na Força Aérea. Confiando em seus novos saberes, Hadley Jones projetou, em 1947, seu primeiro amplificador. Em seguida, montou a loja Bop City e passou a comercializar vinis, tendo consigo uma coleção distinta de toda a ilha. Para valorizar essa coleção musical, trabalhou no desenvolvimento de um outro amplificador - dessa vez, de alta potência - e investiu em alto falantes poderosos. Seu equipamento realçava as frequências baixas, médias e altas como entidades separadas e permitia ao operador remixá-las. Seu principal objetivo era anunciar seus discos promovendo uma experiência de proximidade entre o público e a música.
Em certa ocasião, para promoção de um baile, o dono de uma loja de ferragens chamado Tom Wong encomendou à Hadley Jones um equipamento sonoro como o dele e o nomeou com o que, dali em diante, seria a nomenclatura substancial daquele conjunto: Sistema de Som. Assim, outros pedidos surgiram e o músico-engenheiro se firmou como o pioneiro inventivo da cultura Sound System jamaicana.
Pelo ar ou pelo mar, as ondas promoveram o intercâmbio cultural entre Brasil e Jamaica
O Mapa Sound System Brasil, primeira publicação nacional de mapeamento dos sistemas de som no país, explica que a ilha de São Luís do Maranhão foi a primeira parada em solo brasileiro que o reggae desembarcou. Na década de 70, o trajeto musical de uma ilha a outra foi realizado por meio das ondas de rádio, que superaram as marítimas e levaram as mensagens que protestam por justiça social aos ouvintes maranhenses. A conquista foi tamanha que, hoje, a cidade é conhecida como a Capital do Reggae.
Daniella Pimenta, integrante do coletivo Feminine-HiFi, seletora, produtora cultural e idealizadora do levantamento é uma das brasileiras arrebatadas pelo movimento. Ela conta que nenhum outro ambiente musical foi capaz de proporcioná-la uma experiência tão gratificante. O sentimento de pertencimento e a maneira como, a partir do grave, a música atinge, adentra e envolve o corpo são os principais fatores que contribuíram para o fascínio desde seu primeiro contato com o Sound System. Natan Nascimento, (também) seletor, produtor cultural, fundador do Favela Sound System e parceiro de Daniella no desenvolvimento do mapa, teve uma experiência semelhante a da colega: se apaixonou pela atmosfera da festa jamaicana à primeira vista. Já conhecia o reggae enquanto ritmo musical, mas a aliança entre o sistema de som e a música apresentou a ele a amplitude de sua dimensão cultural e social.
Tanto Dani quanto Natan foram atravessados pela magia desse movimento e o impacto foi terem seu estilo de vida transformado por ele, com convicções lapidadas e rotas profissionais reconduzidas. Mas apesar dos bons ventos nas festas do movimento, Dani confidencia que, em dado momento, empacou enquanto produzia o mapa. Ela própria contatava os coletivos para inseri-los no catálogo ilustrado mas, por alguma razão, passou a ser ignorada. O levantamento era fundamentado em perguntas simples, como fundação, equipe atual, principal vertente e localização. Além disso, uma foto do sistema de som era solicitada para que o conjunto pudesse ser registrado por completo.
O projeto só voltou a andar quando, em 2018, findou a parceria com Natan. Parte das equipes que não estavam listadas pelo fato de não terem retornado o contato a ela, curiosamente, o fizeram quando, por meio de uma publicação no Facebook, ele solicitou aos interessados o envio das mesmas informações. Ela ficou com a pulga atrás da orelha se perguntando, afinal, qual teria sido a razão para que ela nunca tenha recebido essas mesmas respostas. O resultado foi que ela conseguiu registrar 50 equipes e seu parceiro, o dobro.
Vivendo de Sound System
Outro brasileiro seduzido pela cultura jamaicana é João Vitor Lima, de codinome Vitor Fya, morador da Brasilândia - distrito mais populoso da zona norte de São Paulo - e entusiasta da cultura Sound System há mais de uma década. Hoje, ele trabalha como serralheiro, mas aspira ter condições de fazer de seu estilo de vida mais do que um hobby: uma fonte de renda aliada à paixão.
Seu caminho se cruzou com o movimento Sound System quando ele tinha 15 anos. A primeira festa foi na extinta Fazendinha Skate Parque, pista de skate que fazia parte do complexo esportivo do Centro Educacional Esportivo Oswaldo Brandão (C.E. Vila Brasilândia). O espaço foi eliminado para ceder lugar à construção do Hospital Municipal da Brasilândia - cuja obra, de acordo com a secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras, devia ter sido completamente entregue em 2017. No entanto, apenas em 2020 o hospital foi parcialmente aberto. A inauguração ocorreu pressionada pela alta da demanda hospitalar decorrente da pandemia de Covid-19. Não houve compensação pela retirada da pista de skate com a inclusão de um outro espaço público de lazer e esporte pela região e ficou “por isso mesmo”.
O Natural Dub, sistema de som comandado por Thales Silva, que comandava as sessões no Fazendinha, se posicionou via Facebook acerca da derrubada da área de lazer. Em nota, pontuou que é a favor de que mais hospitais possam ser construídos na Brasilândia, mas que isso ocorra - preferencialmente - em locais onde áreas de lazer recém construídas não precisem ser destruídas. Assim, o investimento na saúde do bairro não implicaria na dissolução de um espaço cultural frequentado pela juventude na região. Junto à mensagem datada de 22 de julho de 2015 foi publicado um conjunto de fotos do derradeiro evento realizado no local.
Em seguida, o Vitor conheceu o Anhangabaroots - como eram chamadas as sessões de diferentes coletivos promovidas ao longo do Vale do Anhangabaú, na região central de São Paulo - e ele foi essencial para aprofundar seu interesse pelo movimento Sound System. Foi lá que a chave virou, seus olhos brilharam e ele decidiu que a cultura dos sistemas de som seria a protagonista de seu estilo de vida. Ele relembra coletivos como o Trezeroots Sistema de Som e festas como a Terremoto, em que não só os sistemas de som das equipes África Mãe do Leão e Zyon Gate se agrupavam, mas que também formavam uma grande estrutura para amplificação a partir da união com outros coletivos.
Outro evento apontado pelo paulistano é a Virada Cultural. Ele destaca a variedade de vertentes reggueiras que podia prestigiar por conta da Arena Sound System, iniciativa que reuniu, simultaneamente, os principais coletivos no centro de São Paulo - sendo eles da capital ou não. Ele lamenta a falta de continuidade dessa programação.
Um sistema de som de qualidade aliado a bons discos faz relaxar e viajar sem sair do lugar
João Vitor considera que a cultura Sound System fisga seu público pela experiência completa e transformadora que proporciona. A qualidade dos equipamentos, sua instalação no espaço escolhido para a festa e o domínio musical de quem comanda a sessão são elementos essenciais para que a experiência seja agradável e enriquecedora. Estar em um ambiente seguro, acolhedor e com elementos educativos contribuem para instigar a curiosidade sobre os detalhes daquela cultura, expandindo sua consciência e fortalecendo a admiração e o vínculo com esse estilo de vida. São profundamente cultivados os princípios como respeito, tolerância e inclusão.
O sistema de som é estruturado por um conjunto de caixas equipadas de modo que a experiência sonora alcance e comova o público com o melhor desempenho possível. Para João Vitor, logo de cara, esse conjunto estrutural é o que mais chama a atenção. Os elementos gráficos, como cores e texturas, e a disposição de cada uma das peças de todo o aparato estrutural compõem a identidade do coletivo.
A preocupação com o repertório também é parte indispensável da construção da identidade do sistema de som e de seu seletor. Ele deve ser capaz de aliar diferentes elementos sonoros a fim de abrilhantar sua performance e complementar o impacto artístico trago com a escolha dos discos reproduzidos - afinidade com o vinil é fundamental para qualidade do espetáculo. João explica que cada seletor costuma se especializar em um dos vários gêneros possíveis, mas que, nas sessões, costumam transitar entre eles, trazendo variedade e alguns ineditismos às suas apresentações. Vivenciando diferentes festas, ele passou a reconhecer uma variedade de vertentes como Roots, Steppa e Rub-A-Dub.
Questionado sobre conhecer a qualidade feminina na cena, João Vitor Lima exalta o trabalho do coletivo Feminine Hi-Fi, formado pelas seletoras e produtoras Laylah Arruda e Daniella Pimenta - reggueira que deu o pontapé no mapeamento dos sistemas de som em solo nacional.
Entre todos, ele: o pioneiro
Em vários momentos ao longo da conversa, Vitor salienta as virtudes do DubVersão Sound System - comandado por Fábio Murakami, o Yellow P (pronuncia-se ‘pi’) e pioneiro em terras paulistas. Desde 2001, ele propaga a cultura por toda São Paulo e o faz no mais genuíno modelo jamaicano, no que diz respeito à escolha por ambientes abertos e vertentes clássicas em sua performance. É o predileto de João Vitor - que comparece tanto às suas apresentações públicas como privadas - e foi o primeiro contato de Daniella Pimenta com o movimento. O evento Dub Na Praça acontece anualmente na Praça João Cabral de Resende, no Jardim Primavera, zona norte da capital paulista. É um espaço aberto e convidativo para curtir uma tarde gratuita nos moldes tradicionais do Sound System jamaicano. Já o Java, também comandado pelo Yellow P, é o braço pago dos eventos realizados pelo DubVersão e hoje ocorre na Rua Simonsen, na Sé. Além dessas duas festas inegociáveis, a agenda cultural paulista costuma integrar o DubVersão a novos espaços ao longo do ano.
João ressalta que prioriza as festas em que sente seu corpo e espírito em estado de conforto e harmonia. Ele conta que, quando vai ao Java, renova suas forças e sai de lá novinho em folha. Segundo ele, mesmo quando uma força maior impede que consiga adquirir o ingresso de uma das edições da festa, ele não reclama da cobrança existir pois a considera justa diante da qualidade da experiência promovida. Ele frisa que o coletivo sempre promove eventos gratuitos e que a qualidade da performance não se abala diante da cobrança da entrada no evento.
Ele conta que já leu comentários nas redes sociais em que alguns perfis reclamavam do fato de o Yellow P performar de costas para o público e questionam se isso seria sinal de vergonha. Vitor esclarece que, na realidade, isso faz parte da apresentação do seletor. Sua intenção é que o público visualize os caminhos que ele percorre para projetar os efeitos sonoros que escolhe ao longo da sessão. Para ele, isso é uma aula. Ele assiste atento e idealiza meios de reproduzir aquela performance em seus próprios equipamentos. O Susi In Transe, casa noturna que recebeu a seleção de Yellow P em suas primeiras apresentações declarou o fechamento de suas portas no último mês. O jovem paulistano lamenta o encerramento das atividades de mais um espaço cultural da cidade.
O desejo de compartilhar
Por conta da influência positiva que o Sound System como estilo de vida o proporcionou, João Vitor deseja ter a oportunidade de multiplicar os beneficiados por ele com a mesma maestria que os pioneiros que admira. Até hoje, como Vitor Fya, ele pôde comandar sessões em eventos de terceiros, como o RNR, sistema de som de seu bairro que o apadrinhou. Entretanto, sua intenção é alçar voos maiores para expansão do conhecimento sobre a cultura em seu território. Para ele, o que mais dificulta sua atuação na cena é o alto custo para tirar um plano como esse do papel, pois montar um sistema de som envolve custos com equipamentos, locomoção e investimentos no repertório musical. Ele gostaria de envolver a criançada do seu bairro nesse movimento cultural, despertando seu interesse em se aproximar da música a partir do manuseio de um toca-discos, estimular sua criatividade na administração dos botões da amplificação e inseri-los em uma prática onde é forte a relação de comunidade.
O intercâmbio cultural entre as ilhas jamaicana e brasileira se findou pela recíproca identificação dos oriundos das periferias de ambos os territórios. Os discos de vinil puderam expandir o alcance dos protestos de um subúrbio ao outro tendo as caixas empilhadas como aliada no ecoar dessas mensagens. Essa celebração reggueira reafirma a importância da valorização do território e o vigor dos encontros presenciais - por isso, conectando sensibilidade e força, tornou-se tradição cá e lá.
Após quinze dias de calor intenso e qualidade do ar comprometida, a cidade de São Paulo experimenta mudança significativa nas condições climáticas, com a chegada de uma frente fria. Entre os dias 15 e 16 de setembro, o Centro de Gerenciamento de Emergências Climáticas (CGE) da Prefeitura registrou uma alta na umidade relativa do ar, que chegou a 98%, com algumas áreas atingindo 100%.
Melhoria da qualidade do ar
De acordo com dados do IQAir, São Paulo chegou a figurar na primeira posição do seu ranking global de metrópoles com piores índices de qualidade do ar, consequência direta da onda de calor, poluição, queimadas, e das condições atmosféricas desfavoráveis.
O CGE informou, na segunda-feira (16), que a formação de uma área de baixa pressão vinda do Paraná, na região Sul do país, trouxe instabilidades atmosféricas, o que provocou a chegada da chuva e a melhora da qualidade do ar.
Além disso, a precipitação e o aumento da umidade permitiram a dispersão de poluentes que se acumulavam na atmosfera, tornando o ar mais respirável. A expectativa é de que essa melhora seja contínua ao longo dos próximos dias, já que a previsão meteorológica indica que a umidade e as temperaturas amenas devem persistir.
A capital, que até a semana passada estava em primeiro lugar no índice global de poluição, agora ocupa a posição 73, com o ar classificado como “bom”, segundo a plataforma IQAir.
Previsão do tempo
Segundo o Climatempo, a chegada da frente fria trouxe queda nas temperaturas, com máximas que não ultrapassam os 20°C até quarta-feira (18). Para esta terça-feira (17), a mínima registrada foi de 14°C e a máxima não deve passar 20°C.
Embora a frente fria traga alívio momentâneo, ainda de acordo com o Climatempo, o efeito pode ser temporário. Com a previsão de retorno de temperaturas mais elevadas até o final da semana, com máximas de até 34ºC a partir de sexta-feira (20), é possível que a qualidade do ar volte a piorar, embora em menor intensidade e ainda com pancadas de chuva pontuais.
Estado de alerta
O Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) emitiu, na segunda-feira (16), o alerta amarelo de “perigo potencial”, para a cidade, áreas do litoral e da região metropolitana. A previsão é de chuvas entre 20 e 30 mm/h, com um volume total de até 50 mm por dia, e ventos intensos, que variam entre 40 e 60 km/h. O Inmet também alerta para a possibilidade de alagamentos e pequenos deslizamentos, embora o risco seja considerado baixo.
Já nas regiões de Ribeirão Preto e São José do Rio Preto, que recentemente sofreram com incêndios florestais devido ao tempo seco, há previsão de chuvas intensas. Essa chuva, que pode alcançar 50 mm por dia e ser acompanhada de ventos de até 60 km/h, representa uma mudança significativa para áreas que sofreram com a seca prolongada. No entanto, há riscos adicionais, como queda de galhos de árvores, cortes no fornecimento de energia elétrica e alagamentos localizados.
Não é apenas o sol que consegue aquecer o gélido concreto urbano. Lonas abertas, madeiras estruturadas, produtos apresentados, todos a postos. Uma reunião de almas comunicadoras, que buscam o sustento colocando suas hábeis mãos no que a terra melhor tem a oferecer. Em meio a gritos, sons de facas, sacolas e máquinas de cartão, o alimento cuidadosamente regado de energia pelos carregados olhos de amor dos personagens principais dessa festa, passa de um para o outro. Essa é a feira.
Como um palco a ser percorrido, fregueses vem e vão na Rua Ministro Godói em Perdizes, devidamente fechada para que o show possa continuar. No local encontra-se uma variedade de objetos, posicionados delicadamente pelos atores da peça, esses com texto ensaiado por anos e para diferentes públicos. À medida que se adentra no universo artisticamente comerciante a sensação térmica sobe. Sem ser desconfortável como as recentes ondas de calor ocasionadas em São Paulo pelas mudanças climáticas, o calor humano cativante dos negociantes sob as tendas das barracas fabrica uma atmosfera aconchegante.
Mais ao centro do palco asfaltado, uma estrutura de aço acompanhada de sacas de variadas batatas, instrumentos de batalha como balanças e sacolas, é preenchida pela irradiação energética de uma das protagonistas do evento. O bordado na roupa de gala anuncia seu nome, e a voz alegre e cheia de vitalidade proclama: "Fala amor, você quer um pinhão? Você vai fazer ele hoje ou não? Se for pode levar ele assim no saquinho plástico, porque esse outro assim respira mais, e esse tem que fazer ou tirar do saquinho". Um olhar cuidadoso debaixo dos óculos enxerga para além do físico. No alto dos seus 78 anos, Dona Beatriz alavanca sua barraca. Suas mãos vibram dentro das luvas de látex e cuidadosamente revelam a beleza dos alimentos que vende. "É oito amore. Yuri passa o PIX para ele aqui? Foi, passou! Obrigada amor". Sempre ressoando palavras de alto astral, e atendendo com todo o empenho os consumidores que ali param, assim segue ela durante o restante da apresentação, a qual já repete há 60 anos.
Entre idas e vindas de fregueses, uma tela começava a ser preenchida, e o que os cabelos brancos e as marcas de uma vida bem vivida no rosto, materializadas em forma de rugas, contavam, vão sendo verbalizadas. "Os meus pais eram feirantes, eu já vim assim de uma tradição. Quando conheci o meu marido, tinha 13 anos quando comecei a namorá-lo, ele comprou uma barraca de batata, e depois de 5 anos a gente se casou e ficamos nessa vida, sempre com batata". O rumo segue e mais cores vão compondo a atmosfera. "Nós somos os dois portugueses, nascemos lá. Ele que tem 88 anos, veio com 14, agora eu não. Eu vim em 1946, ano que nasci. Nasci em março, em setembro meus pais vieram para aqui".
As terras lusitanas passaram por uma crise econômica na metade da década de 1940, no final da segunda guerra mundial e após seu encerramento. Durante o conflito, Portugal registrava recordes positivos ao ser um dos maiores vendedores do minério volfrâmio, usado em armas. No entanto, apesar de ter se mantido neutro na época, acatou a pressão dos países aliados e a comercialização do volfrâmio foi proibida em junho de 1944, impactando fortemente o país. Isso levou a imigração de milhares de pessoas em busca de melhores condições. O Brasil foi o principal destino desses portugueses de 1930 a meados de 1960, e Dona Beatriz com seus pais e mais tarde seu marido, representam quatro dos 148.699 portugueses que entraram em terras brasileiras entre 1931 e 1950 segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Com uma voz que diz muito mais do que as palavras que da boca saem, a viagem no tempo segue com uma gratidão apaixonada. "Tivemos outros lugares, trabalhamos em Osasco, em Itapevi… mas sempre uma aqui, 60 anos aqui. E a vida foi assim, a vida foi para trabalhar na feira, criar os filhos, e viver eu e meu marido muito felizes graças a deus. 46 anos nós vivemos casados". Preenchida cuidadosamente de lembranças, o amor pelo marido, o qual se refere em alguns momentos ainda no presente, pode confundir o telespectador da obra. Antônio partiu há 12 anos e 10 meses, como especifica. "A vida é assim meu amor".
Antiga habitante do centro expandido de São Paulo, Dona Beatriz vive hoje com seus dois filhos no bairro transmorfo e de história curiosa, Granja Viana. Com nome que remete às suas origens de fazenda familiar, rodeado pela Mata Atlântica, o local já foi uma ilha de descanso de alto padrão, mas hoje está denso e prejudicado, apesar de aos olhos da ilustre moradora soar como um oásis pertencente a Cotia. "Eu moro no quilômetro 22,5 da Raposo Tavares, fui para lá em 2001, era bastante mato, até a rua que a gente desce para nossa casa era terra ainda, agora não, tudo lindo asfaltado. Muitas árvores. O lugar é gostoso para gente morar".
Em sua Kombi branca, vai e vem, cortando a rodovia nos cinco dias de trabalho, sempre bem pela manhã. "A gente chega mais ou menos 5 horas, e eu levanto todo dia 4 horas, todo dia… mas tô acostumada. Nem precisa mais do despertador, é aquele hábito, na graça de Deus é bom, que a gente tem saúde". As aparições da feirante e seu fiel escudeiro Yuri, com quem trabalha há quase uma década, foram designadas para ocorrer em bairros paulistanos distantes de sua atual casa pela prefeitura, em uma época que Dona Beatriz morava na zona oeste da cidade. "A vida é assim, a gente vai levando aonde se sente bem, onde tá feliz… e eu tô".
Formalmente regulamentadas em 1914 no estado de São Paulo, as feiras livres movimentam a economia e seguem resilientes frente à disputa de atenção. Os shows familiares e intimistas passaram por uma crise nas décadas de 1960 e 1970, com a chegada dos super festivais, chamados de supermercados. Espelhava-se na imprensa que era próximo o fim dos artistas locais, alegadamente incapazes de peitar as estrelas refinadas recém chegadas como Pão de Açúcar, Carrefour e o extinto Sirva-se.
Porém, representando mais do que um espaço de trocas comerciais, e sim de laços humanos, as constituintes da identidade nacional resistiram e se expandiram. De 2013 a 2023 houve aumento de 10% no número de feiras segundo a Prefeitura de São Paulo. Dona Beatriz integra 5 das 955 hoje registradas, e conta alegre que graças ao local de convivência e negócios, criou dois filhos. "O que importa é que dá para gente sobreviver com dignidade né? E a gente vai vivendo" O tempo não para, e os fregueses sobem ao palco, buscando matéria prima que alimenta além de seus corpos, mas a alma também.
"Bom dia meu amor, tudo bem minha querida? Olha que coisa linda essa batata maravilhosa". Aqui tem-se um momento de pausa na recapitulação histórica, mas não no trilhar do presente. Dona Beatriz agarra com a sua tonalidade vocal levemente estridente e recoberta por ternura e simpatia, a aura de quem para na barraca. "Aqui tem 1,6kg meu amor, quer completar dois? Pode deixar que a gente pega. Essa outra é só escovada por isso não tem tanta terra, mas essa daqui como eles colheram com a terra molhada ficou assim. Dois quilos, tá amor? Deu 18 com 16, é PIX? Brigada meu amor. Tchau amore, vai com Deus".
Apesar de não ser tão agitada como costumava, percebem-se vários públicos na feira. Entre alunos e funcionários da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), pedreiros das obras do entorno, e moradores da rua, que entram e saem dos prédios, algumas vezes em veículos de luxo. O bairro de Perdizes se transformou ao longo dos 60 anos de trabalho de Dona Beatriz no local. Nas últimas décadas a classe média se apropriou da região, originalmente familiar e pacata, como revela a arquitetura das poucas construções tombadas que resistiram à especulação imobiliária. Levantamento da Data Lello, instituto de pesquisas e inovação da Lello Condomínios, aponta que no ano vigente, 818 condomínios serão entregues, com destaque ao bairro da feira.
Engrenando-se novamente no monólogo, o brilho de Dona Beatriz é como uma chama intensa que ilumina o ambiente. Ela percorre seus antecedentes e os manifesta à plateia sempre que tiver quem escute, mas não por desespero de ser ouvida, e sim pelo orgulho de sua trajetória. O avental com seu nome inscrito, de cores intensas, faz jus ao magnetismo da pessoa que o veste, a qual não para em um só lugar. Nada parece abalar o desempenho da estrela da peça, que se refere aos potenciais clientes e amigos como uma artista se dirige a seu público. "Aqui só atrapalha quando o pessoal não vem".
Mãe orgulhosa, o amor por sua família reluz nas lentes grossas de seus óculos e na tela de seu celular com capinha cor de limão vibrante. As pálpebras se apertam e os olhos levemente se enchem de lágrimas de alegria enquanto mostra uma fotografia com seus dois netos, Rafael e Carolina. A feirante então para por um instante e com um suspirar profundo, desacelera para refletir sobre tudo que já viveu. "Foi assim, uma vida maravilhosa, feliz. Criei meus filhos, tenho dois netos [...] o que importa é que dá para gente sobreviver com dignidade. É difícil, não é fácil não, mas consegue… a gente tem que ter sempre bastante equilíbrio para ir sempre pelo caminho certo, a vida é assim, a gente vai levando."
A população brasileira vem envelhecendo gradualmente devido a melhores condições em áreas como a da saúde, educação e alimentação, refletindo em mais longevidade, apesar de haver muito ainda o que melhorar. Segundo o Censo 2022, a média nacional de vida dos brasileiros é 75,5 anos. "Agora só esperar o fim da vida, né? Tô com 78 anos e agora a gente não pode esperar mais muita coisa. Eu pretendo chegar aos 80 trabalhando, mas vamos ver o que Deus vai nos reservar, se eu tiver força do jeito que eu to agora acho que eu chego até os 80… é assim meu amor", comenta Dona Beatriz em tom de agradecimento, longe da lamúria ou de um esperado cansaço.
O tempo vai passando, e sem perceber o show se encaminha para seu fim. É chegada a hora de voltar a coxia e desmontar o palco para a próxima apresentação. A emoção transparece no olhar e as bochechas se alargam e se erguem dando lugar a mais um sorriso, dessa vez de despedida. "Você vê como a feira é gostosa? O contato, a amizade, o amor que a gente tem". Pouco a pouco o movimento vai cessando e as batatas, cebolas e pinhões vão entrando na Kombi pelas mãos de Yuri e Dona Beatriz, afinal, o tempo não para. O dia seguinte começa cedo e é de mais trabalho, na quarta-feira sendo a vez do bairro Pompéia.
A sensação térmica incômoda do calor escaldante volta a se impor sob as cabeças agora desprovidas de lonas. Cada um volta a seus próprios universos e preocupações da vida contemporânea incessante. Cascas, resíduos e alguns papéis ficam pelo chão, que será limpo pela Prefeitura, ao passo que as peças teatrais históricas que quase ninguém conhece, se dissipam no emaranhado de vias urbanas da selva de pedra. Esse é o ciclo, semana que vem haverá mais. E como diria Dona Beatriz, "é assim, a vida é um paraíso".
Esta matéria foi produzida como parte integrante das Atividades Extensionistas do curso de Jornalismo da PUC-SP.
Todo domingo na Avenida Paulista, o destino mais comum para aqueles que querem espairecer do caos do dia a dia paulistano, podemos desfrutar de diversas culturas e entretenimentos. Espalhados pelas ruas ou calçadas, encontramos "gente que faz trabalho de gente". Pessoas que colocam seu dom, seja vocal, corporal ou manual, em exposição à céu aberto e nos dá a honra de prestigiar.
As ruas que diariamente são cheias de carros, ônibus, trânsito e fumaça, dão mais cor aos diversos tipos de cultura. Em meio a tantas barracas, encontramos a de Vitor Amra. Ele vende placas pirografadas e além disso, também é tatuador. A arte da pirografia, basicamente é um modo de desenho sob uma madeira, que utiliza uma ponta de metal aquecido para gravar a peça. Para saber mais um pouco desse processo e de como é trabalhar na avenida mais movimentada do país, acesse o vídeo abaixo. "É o trabalho e um pouquinho de festa ao mesmo tempo", de acordo com o Vitor. Venha conferir nesta cobertura no Instagram!
No dia 28 de abril, a Praça Memorial Vladimir Herzog recebeu o evento "Todo mundo tem que falar, cantar e comer!", que acontece todo último domingo de cada mês. Dessa vez, o encontro "Ato e Canto pela Vida" reuniu diversas entidades, trabalhadores de diversas centrais sindicais em um ato unificado em memória às vítimas de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho, em homenagem ao dia mundial dessa causa. O encontro foi resultado de uma articulação significativa envolvendo 45 entidades, desde sindicatos até órgãos governamentais e organizações da sociedade civil. Entre elas estavam centros acadêmicos, federações, centrais sindicais, Ministério do Trabalho e Emprego, Fundacentro, Dieese, entre outras.
A reunião aconteceu a céu aberto, ao lado da Câmara Municipal de São Paulo, livre para todos que quisessem participar. O espaço estava decorado com faixas e cartazes trazidos pelas organizações e sindicatos, com mensagens e reivindicações de distintas origens.
A celebração iniciou às 11 horas, com o encontro e reencontro dos participantes, familiares e entidades. Em seguida, o grupo "Inimigos do Batente", comandado pelo cantor Paulinho Timor, apresentou em uma roda de samba músicas ao vivo que representam o trabalhador. Além das discussões, interações e música, o evento também contou com um almoço no sistema "quem pode, paga, quem não pode, come", servindo o prato Baião de dois, preparado pelos "Cozinheiros da Liberdade".
Por último, a artista plástica Laura Andreato conduziu uma intervenção artística coletiva, "A árvore da vida". A intervenção foi feita em uma lona, instalada próxima à Banca Livraria dos Jornalistas. Os participantes foram convidados a deixarem suas marcas carimbando suas mãos na lona, dando uma ideia de "folhas", criando assim uma imponente copa, simbolizando o compromisso com a vida e a solidariedade com as vítimas de acidentes de trabalho.
Para Danilo Zelic, estudante de Jornalismo, o evento foi especial. "É a primeira vez que eu vejo a praça super cheia. Por conta dessa articulação entre entidades e organizações, o evento foi grande. Comemorar esse ato do dia 28 lá na praça, que é um espaço público e unindo todas as centrais sindicais para um único propósito, é muito simbólico. O samba deu uma animada. O roteiro de músicas foi super importante porque reuniu sambas ligados ao trabalho e ao trabalhador, importante pensar isso. Fiquei bem feliz de ver o desenrolar do evento", comenta Danilo.
O “Todo mundo tem que falar, cantar e comer!” é uma realização do Instituto Elifas Andreato com apoio de Sindicato dos Engenheiros no Estado de São Paulo (SEESP), Associação dos Repórteres Fotográficos e Cinematográficos de São Paulo, Banca Livraria dos Jornalistas Vladimir Herzog, Canal da Praça, Coletivo Café Sem Pauta, Coletivo Paulo Freire, Colibri & Associados Comunicações, FotosPúblicas.com, Instituto Paulo Freire, Instituto Premier, Instituto Vladimir Herzog, OBORÉ e Câmara Municipal de São Paulo. A Praça Memorial Vladimir Herzog – Espaço Cultural a Céu Aberto Elifas Andreato fica na rua Santo Antônio, 33-139, no bairro de Bela Vista, São Paulo. Para saber mais sobre o evento, assista o vídeo feito por José Mota, do Coletivo Paulo Freire Zona Norte, disponível no Canal da Praça.
Os anos passam, nova gestões vem e vão, mas o descaso e a despreocupação com a cidade de São Paulo permanece, e são evidentes. Em uma simples caminhada, ou um passeio de carro, é possível observar casas e construções claramente abandonadas e até mesmo, inacabadas, deixadas de lado por anos. Além, é claro, dos danos à paisagem urbana, existem sérios riscos de segurança, como é o caso do Edifício garagem da Rua do Carmo, localizado no centro histórico e que foi construído na década de 1960. O constante abandono e negligência das autoridades com o bem-estar da comunidade vão lentamente decretando a decadência e a morte dos nosso arredores.
A vida cotidiana é cheia de altos e baixos. Ora estamos apressados para chegar em casa, ora preferimos caminhar mais devagar conversando com amigos. Independente do momento, vida é passar por cima das adversidades e se lembrar de pequenas coisas que fazem a diferença no nosso dia, como fazer carinho num gato que encontramos na rua. As imagens a seguir são registros feitos do caminho a partir da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo até a Barra Funda e retratam o cotidiano de diversos estudantes.
Em reportagem do Metrópoles, foi divulgado que, na cidade de São Paulo, são erguidos 2 prédios por dia em 2022. Em 2025, a previsão é que chegue à 1.700 novos prédios, sendo aproximadamente 300 só na Zona Oeste da capital paulista.
Com isso, surgirão 168 mil apartamentos com uma capacidade de abrigar mais de 600 mil pessoas! Novas vidas e novos lares!
O registro é de uma viela localizada no bairro do Inocoop, na região do Campo Limpo, zona sul de São Paulo. Denominada pelos próprios moradores como “Viela 32”, o local apesar de seu estreitamento, transborda vida com as adaptações projetadas pelos residentes, que fazem o que podem com o espaço que têm. As fotografias foram feitas em março de 2023.
Visão de dentro para fora da viela. Ao lado direito encontra-se uma adega, ao esquerdo uma casa e em frente é o postinho “Alto do Umuarama” que atende os moradores da região. A foto, diferentemente das outras, é feita na horizontal para dar uma sensação de algo amplo.
Entrada da viela, onde localizam-se as escadas e corrimão que dão acesso ao conglomerado residencial. Os postes competem espaço com as construções e piches. É visto na fotografia a paisagem que muitas das janelas dessas casas evidenciam.
Identidade da viela registrada na parede com tinta cinza. Ao dar nome a viela, os moradores afirmam a identidade do local e facilitam a organização geográfica do bairro.
Um garoto com mochila caminha no meio da viela. Quem estiver atrás, não conseguirá andar lado a lado com ele, já que as dimensões do local não permitem. Quem anda por aí, pode ver o percurso de encanamentos, fios e corrimões soltos.
Visão de cima de um trajeto da viela. Um prédio residencial evidencia a diferença de moradia em menos de 30 metros de distância. É possível os olhares de cada realidade se encontrarem esforço.
Um dos únicos trajetos da viela com iluminação. São duas lâmpadas, uma mais alaranjada e outra branca mais à frente. A primeira, segundo moradores, foi instalada pelo governo dez anos atrás, a segunda, mais clara, foi improvisada pelo morador da respectiva casa .
Garoto dividindo espaço entre a viela e uma escada laranja com grades de proteção. Entre eles ainda existe um pequeno poste.
Recado deixado por morador da casa 27 em sua porta que diz: “ Sem mais visita hoje evite esculacho”
Uma pessoa olhando os arredores dentro da sua casa, que possui cor salmão, um portão de segurança e com o número 41 de identificação. O emaranhado de fios predomina na parte superior da fotografia.
A sociedade civil na luta pela mobilidade urbana mais sustentável é o tema do episódio em formato podcast ¨CicloCidade e Cidadeapé: organizações civis na reivindicação por um deslocamento mais acessível e democrático." O episódio traz entrevistas com dois especialistas no assunto: Yuri Vasquez e Oliver Cauã. Yuri é associado da CicloCidade, Associação dos Ciclistas Urbanos de São Paulo, já Oliver é diretor da Cidadeapé, Associação pela Mobilidade a Pé em São Paulo. Eles contam quais são os principais desafios que as Associações enfrentam enquanto mediadoras entre o cidadão e a prefeitura quando a pauta é promover a mudança e a melhoria do espaço urbano aos que se deslocam por meios alternativos, como a pé e a bicicleta. Para conferir o podcast na integra.