“Frankenstein” de Guillermo Del Toro, traz uma perspectiva sensível sobre o clássico
por
Isabelli Albuquerque
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03/11/2025 - 12h

A nova adaptação cinematográfica do clássico da literatura gótica, “Frankenstein”, chegou aos cinemas brasileiros no dia 25 de outubro por um curto período de tempo. O filme, dirigido pelo ganhador do Oscar, Guillermo Del Toro, é uma produção da Netflix e será lançado mundialmente na plataforma dia 7 de novembro. A produção traz uma nova perspectiva sobre a história, contando com a sensibilidade de Del Toro, que é especialista em mostrar o lado humano de criaturas assustadoras.

 

Alerta de Spoiler!

 

A trama é dividida em três partes: um curto prólogo, o ponto de vista do Dr. Victor Frankenstein (Oscar Isaac) e, por fim, o ponto de vista do Monstro (Jacob Elordi). Já no prólogo, podemos ter uma ideia da relação de Victor com sua criação, por mais que essa primeira impressão se prova errada ao longo da história.

Primeiramente, o público é introduzido à uma embarcação presa no gelo, cuja tripulação tenta desesperadamente libertá-la. Em meio ao caos de homens trabalhando duro, o corpo inconsciente de Victor é avistado e imediatamente transportado para a cabine do capitão. Após seu resgate, a criatura ressurge em meio ao deserto congelado e ataca o navio durante um acesso de raiva, enquanto seu frágil e ferido criador se encolhe na cabine e implora ao capitão para ser sacrificado em prol de seus marinheiros. Essa introdução engana a audiência propositalmente, mostrando um Monstro desregulado e violento que faz de seu pobre criador sua vítima.

Após o caos ser controlado, Victor começa a narrar sua história de vida e explica o que o levou a criar o Monstro. De uma criança sensível a um adulto enlouquecido com ideais de grandeza, nós somos introduzidos à natureza narcisista do doutor aos poucos.

Sua maior motivação em seus estudos é a morte de sua mãe no parto e o fato de que seu pai - outro grande médico, outro mesquinho Victor - não conseguiu salvá-la de seu destino. O até então doce garoto, cresce com uma raiva reprimida que se torna seu combustível ao desenvolver ideias malucas e apresentá-las em frente a outros doutores em busca de financiamento.

 

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Oscar Isaac caracterizado como Victor. Foto: Divulgação/Netflix

Nessa sequência, somos introduzidos a outro personagem, Heinrich Harlender, um rico nobre e entusiasta da medicina que passa a apoiar Frankenstein em seu projeto. Herr Harlender patrocina o cientista e cede uma torre inóspita para seus experimentos.

Após cerca de 30 minutos do longa, um instrumental romântico toca ao fundo enquanto a câmera aos poucos se aproxima de Elizabeth Harlander (Mia Goth), a curiosa sobrinha de seu patrocinador, que cativa Victor com suas opiniões fortes e interesses “não-femininos” em ciência e política.

Durante o desenvolvimento da relação de ambos os personagens, já é possível perceber a presunção de Victor, que se apaixona por Elizabeth por mais que ela seja noiva de seu irmão mais novo, Will (Felix Kammerer). Os dois possuem uma natureza semelhante, obscura e melancólica, que faz com que se aproximem mais do que deveriam. Em seguida, ao confessar seu amor pela cunhada, o conde se zanga ao receber uma negativa.

O diálogo da cena é muito interessante e reflete sobre os papéis de gênero numa sociedade inglesa do século XIX. Elizabeth até possuía os mesmos sentimentos românticos que Victor expressou em sua confissão, porém fez a escolha segura de se casar com Will ao ver a propensão obsessiva do cunhado por seus projetos.

É na torre que Victor dá vida à sua obra-prima, o Monstro. O primeiro contato dos dois é lindo de se ver, uma criatura tão grande agindo como uma criança perante seu entusiasmado criador poderia ser cômico se não fosse uma obra de Del Toro.

O diretor é conhecido por abordar temáticas fantásticas com criaturas monstruosas, submergindo as regras e transformando essas bestas em seres lindos e humanizados. Afinal, “Frankenstein” é sobre isso. Um ser de aparência assustadora sendo tudo aquilo que seu belo e nobre criador nunca conseguiu:, um ser humano sensível.

O estilo de Del Toro continua ao longo de toda essa parte, mostrando as diferenças de comportamento entre Victor e o Monstro: o primeiro um homem bonito e inteligente que age com violência, e o segundo uma junção de partes humanas de aparência medonha que possuí mais alma que o doutor.

Um dos momentos mais significativos do filme é quando a criatura diz sua primeira palavra: Victor. Essa única palavra que contéêm tantos sentimentos por trás se torna a sina de Frankenstein. O que antes demonstrava ternura, virou a prova de sua falha como criador.

A partir deste momento que a loucura começa a sangrar pela bela fachada. Victor se mostra um homem violento e frustrado, descontando toda sua raiva em sua criação. Destaca-se a atuação de Oscar Isaac nos momentos de loucura de seu personagem, que interpreta um cientista paranóico com maestria. Em seus expressivos olhos é possível enxergar a mente perturbada do doutor, que fere a criatura sem motivos e causa nojo na audiência.

A atuação de Goth também é excepcional, em especial na cena mencionada anteriormente e no momento em que encontra a criatura pela primeira vez. Sua personagem é uma mulher inteligente e sensível, sendo retratada como uma figura materna em contraste com a paternidade tóxica de Victor. 

O primeiro contato que ela tem com o Monstro é doce, gentil e emocionante. Imediatamente ela evoca um sentimento de ternura misturado com raiva pelas ações de Victor. Mais um ponto importante é a química entre Goth e Elordi, que atuam com uma leveza e naturalidade juntos, se encaixando perfeitamente com o objetivo da cena: montar um cenário para o futuro romance.

 

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O primeiro encontro da criatura com Elizabeth. Foto: Divulgação/Netflix

 

No auge de sua loucura e raiva, evocada pelas opiniões de Elizabeth sobre seus métodos, Victor ateia fogo na torre de Harlender após a visita de seu irmão e da noiva. O gesto impulsivo é rapidamente arrependido, mas já é tarde para salvar sua criação.

Quem duvidou da capacidade de atuação de Elordi como o Monstro, foi positivamente surpreendido com sua retratação, sendo um dos pontos altos do filme. Desde os maneirismos da criatura ao nascer, remetente aos movimentos de um filhote que está conhecendo o mundo, à raiva melancólica que cresce por seu criador ao longo da película.

Seu capítulo, mesmo sendo mais curto que o de seu criador, mostra como é crescer num mundo onde tudo é novo sendo diferente dos demais. O telespectador é transportado para a mente do personagem imediatamente após Victor atear fogo à torre e vê a pobre criatura desesperada para se libertar do fim iminente. Assim, presa às correntes, ela se assemelha a um animal trancafiado em uma cela, lutando ao máximo para se libertar de seu captor.

A fuga é bem sucedida e o Monstro se depara com o mundo fora da torre escura pela primeira vez. A sensação da terra abaixo de seus pés, a luz do sol, tudo é novo para ele, que compartilha uma cena adorável com um cervo na floresta ao alimentar o animal.

Entretanto, sua inocência é repentinamente abalada quando encara a morte pela primeira vez e é atacado por outros seres humanos. Ele foge de seus caçadores e se esconde no celeiro de uma casa de camponeses, onde rapidamente desenvolve uma afeição por seus anfitriões, os ajudando secretamente. Esses camponeses são os mesmos que o atacaram anteriormente, mas a criatura, em sua inocente gentileza, cuida dos moradores sem esperar nada em troca. 

Mais para a frente, uma amizade entre ele e o ancião da casa nasce, e essa sequência é essencial para a formação do caráter da criatura. O velho possui um grande interesse por literatura, e ensina a besta a ler e escrever, além de ensinamentos importantes sobre filosofia e religião, que abrem a mente do Monstro e o ajudam a amadurecer.

Após uma tragédia acontecer na pequena casa, a criatura enfrenta sua própria mortalidade ao fugir mais uma vez. A percepção de que é imortal a devasta, ao ponto de ir atrás de Victor suplicar pela criação de uma companhia para sua alma solitária. O confronto acontece na noite do casamento de Elizabeth e Will e, ao ter o pedido negado pelo conde - que têm o ego ferido ao enfrentar sua obra falha - o Monstro destrói a cerimônia e leva sua paixão, Elizabeth, consigo.

 

A arte por trás das câmeras

 

A cenografia do longa é excepcional e foi assinada por Dan Lausteen, que já colaborou com Del Toro em outras obras. As cores são utilizadas de forma muito inteligente e esteticamente satisfatórias, tons vibrantes (como o vestido vermelho da mãe de Victor) em meio a cenários pálidos e quase que monocromáticos, criam um contraste belíssimo que valorizam e ajudam a contar a história sem a necessidade de diálogos.

A cena da criação do Monstro é multissensorial, desde a beleza dos cenários ao design de som, que juntos provocam uma explosão de sentimentos na audiência, que observa maravilhada pai dar vida ao filho em meio a uma tempestade torrencial.

Del Toro afirmou em uma entrevista no Festival de Veneza - onde o filme teve seu lançamento - que era muito importante para ele a utilização de cenários reais e efeitos práticos. "Sempre esperei que o filme fosse feito nas condições certas, criativamente, em termos de atingir o escopo necessário, para torná-lo diferente, para fazê-lo em uma escala que permitisse reconstruir o mundo inteiro", contou. Essa exigência do diretor foi essencial para o ar surrealista do longa, que conta com explosões e cenários ricos em detalhes. O laboratório do Dr. Frankenstein, por exemplo, remete ao Palácio de Esmeraldas de Oz, com seus tons de verde brilhante e arquitetura.

 

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Os cenários do filme foram todos construídos, exigência do diretor. Foto: Divulgação/Netflix

 

O diálogo final, entre Elordi e Isaac, é poderoso e tocante. Enfim, ambos deixam a raiva um pelo outro de lado e aceitam seus respectivos papéis: Frankenstein como pai e o Monstro como filho. A última fala da criatura no filme é “Victor”, o nome de quem ao mesmo tempo o trouxe ao mundo e se tornou seu mundo.

O filme é finalizado com um frame da criatura de costas observando o nascer do sol após a morte de seu criador. Além de visualmente fantástica, é uma perfeita representação do arco do personagem no longa, que passa de uma criatura que foi presa por quem a deu vida, para alguém livre para ver o mundo como quiser, com a alvorada trazendo um mundo de recomeços.

Entretanto, certos aspectos causam alguns incômodos. A obra chama a atenção por seus visuais impressionantes, mas faltou criatividade nos jogos de câmera, que não fazem juz à beleza do cenário. Em sua maioria, são quadros fechados focando apenas no objeto central da cena, sem explorar os arredores.

Outro ponto que desagrada, foi a obviedade de ser um filme para a TV. Produções da Netflix possuem estéticas parecidas, e precisam ser filmadas de certa forma para a imagem imprimir bem em uma televisão. Infelizmente, essa formatação é bem notável no longa, que, mesmo sendo uma obra incrível de experienciar no cinema, se encaixa melhor numa tela de 40 polegadas. “Frankenstein” é uma adaptação única e sensível sobre um clássico já conhecido no imaginário popular, uma perspectiva interessante que com certeza vale a pena ser presenciada numa tela de cinema. E, quem sabe, até mudar a visão do público sobre a verdadeira natureza humana.

Sob o foco de um olhar revolucionário, em sua primeira grande retrospectiva no Brasil, o IMS Paulista apresenta a obra multifacetada de Gordon Parks, artista que usou a imagem para expor injustiças e humanizar histórias silenciadas.
por
Anna Cândida Xavier
Manuela Amaral
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27/10/2025 - 12h

Imagem retirada do arquivo de fotografia - Fundação Gordon Parks

Quando Gordon Parks escolheu a fotografia como linguagem, não foi por acaso, foi por urgência. Afro-americano em um país que institucionalizava a exclusão, ele transformou a câmera em meio de combate, compreensão e memória. A partir deste mês de outubro, o público brasileiro tem a chance inédita de conhecer esse legado de perto.

A exposição "Gordon Parks: A América sou eu", em cartaz no Instituto Moreira Salles, na Avenida Paulista, entre os dias 4 de outubro de 2025 e 1º de março de 2026, reúne cerca de 200 obras que atravessam décadas da história dos Estados Unidos, e revelam como a arte pode ser um testemunho radical do seu tempo.

Entre fotografias, vídeos, publicações e documentos raros, a mostra percorre os anos de 1940 a 1970 com um foco preciso: revelar as marcas da desigualdade racial, os bastidores da luta por direitos civis e os pequenos gestos cotidianos que resistem à opressão. Através de sua lente, Parks não só documentou uma era, ele nos desafia a revê-la sob outra perspectiva.

Imagem retirada do arquivo de fotografia - Fundação Gordon Parks

Quem foi Gordon Parks

Nascido em 1912, no Kansas, Gordon Parks enfrentou a pobreza e o racismo desde muito jovem. Sem formação formal em fotografia, aprendeu por conta própria e, com uma mistura de talento, persistência e urgência política, se tornou o primeiro fotógrafo negro a trabalhar para revistas como Life e Vogue.

Seu trabalho ultrapassou as páginas editoriais e assumiu contornos de manifesto. Parks não registrava apenas o que via, ele buscava o que precisava ser visto. Sua lente alcançou desde os bastidores da luta pelos direitos civis até os lares da população marginalizada, revelando a vida com rara empatia e senso de justiça.

Mas Gordon Parks não era apenas fotógrafo. Dirigiu filmes (como o cultuado Shaft, de 1971), compôs trilhas sonoras, escreveu romances e memórias. Essa multiplicidade criativa se reflete na exposição, que apresenta não só sua obra visual, mas o pensamento e o ativismo que moldaram sua trajetória.

 

A exposição: 

 

· Escopo e curadoria

 A curadoria, assinada por Janaina Damaceno (curadora‑chefe) e Iliriana Fontoura Rodrigues (assistente) do IMS, foi organizada em parceria com a The Gordon Parks Foundation, que detém e preserva o acervo do fotógrafo.

 A mostra ocupa os 7º e 8º andares da sede paulista do IMS, com entrada gratuita, de terça-feira a domingo (10h às 20h), exceto às segundas-feiras.

 · Conteúdo e destaques

Cerca de 200 obras entre fotografias, filmes, matérias de revistas e livros;

Imagens de grandes personalidades do movimento pelos direitos civis dos EUA, como Martin Luther King Jr., Malcolm X e Muhammad Ali.

Séries que documentam a segregação racial e o cotidiano das comunidades negras, sobretudo no sul dos EUA.

Surpresa brasileira: imagens de Parks no Brasil, em 1961, onde ele fotografou em favelas cariocas a convite da revista Life. 

  · Por que visitar

 Porque a mostra combina excelência estética com peso histórico e político. É uma oportunidade não apenas de ver belas fotografias, mas de se inserir em narrativas cruciais da modernidade, racismo, dignidade, arte e memória.

A exposição assume uma relevância atual enorme: registrando o olhar de um fotógrafo negro sobre o próprio povo negro, em tempos de segregação e resistência, Gordon Parks coloca‑se na linha de frente da arte comprometida. 

 A presença de imagens no Brasil, que muitas vezes não são tão conhecidas, amplia o alcance da narrativa: mostra que o fotógrafo não se limitou aos EUA, mas teve também diálogo com o Brasil e sua própria complexidade social.

 Para o público contemporâneo, a mostra questiona: como lidamos hoje com as desigualdades raciais, que formas de visibilidade permitimos e quais vozes continuamos a silenciar? A arte de Parks nos convida a olhar de frente.

Imagem retirada do arquivo de fotografia - Fundação Gordon Parks

Como aproveitar sua visita

Verifique o horário de funcionamento: terças a domingos e feriados, 10h às 20h. Última admissão 30 minutos antes do fechamento. 

Local: IMS Paulista, Av. Paulista 2424, São Paulo (SP).

A entrada é gratuita.

Dica: dedique tempo para observar não só o “clique” famoso, mas as legendas, contexto histórico, objetos de revista ou filme que complementam as imagens.

Leve algum espaço para reflexão pessoal, ao ver uma fotografia de segregação, de infância, de cotidiano, vale pensar: “O que essa imagem me provoca? Qual história ela conta ou esconde?”

“A América sou eu” é muito mais do que uma exposição de fotografias: é um convite ao encontro com uma das vozes visuais mais poderosas do século XX, que articulou arte, denúncia, beleza e humanidade. Ver Gordon Parks é ver, e reconhecer a complexidade da vida negra, e a força de quem escolheu empunhar a câmera como arma de luz e de memória.

 

Após sua visita à exposição, teste seu conhecimento nesse quiz!

https://pt.quizur.com/trivia/a-vida-e-obra-de-gordon-parks-1r6mV

Protagonizado por IU e Park Bo-gum, o K-drama mostra como é possível florescer em meio às limitações e às inevitáveis dificuldades de cada momento
por
Ana Julia Bertolaccini
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11/09/2025 - 12h

Dirigida por Kim Won-seok e escrita por Lim Sang-choon, a produção sul-coreana “Se a vida te der tangerinas” não traz muita novidade em relação aos dramas sobre a inconstância da vida, mas é exatamente isso que a faz tão comovente. No tempo em que a racionalidade suprime as emoções, a obra é construída a partir de cenas que nos estimulam a sentir, antes de pensar. Estrelada por IU e Park Bo-gum, a série explora as experiências e os sentimentos que são frequentemente sufocados pelas circunstâncias de um contexto social menos favorecido. 

A protagonista, “Ae-sun” (IU), é filha de Jeon Gwang-rye (Yeom Hye-ran), que trabalha como haenyeo, uma mergulhadora tradicional da Ilha de Jeju. Um trabalho árduo, cansativo e mal remunerado. De início, cria-se uma expectativa de que o drama venha a se desenvolver a partir de uma história de superação, mas não é em cima disso que a obra é estruturada. O amor chega à porta de Ae-sun ainda criança e, na adolescência, ela é obrigada a escolher entre se casar com um homem mais velho, rico e sem empatia, ou permanecer na ilha com seu companheiro de vida por quem é apaixonada, Gwan-sik, interpretado por Bo-gum. 

Bo-gum tem carisma e uma grande facilidade de expressar sentimentos através do olhar e das expressões faciais, o que contribui para as cenas românticas do casal. IU, por sua vez, expressa bem a astúcia e a ambição de uma personagem que é sufocada pelas limitações impostas pela sua condição social. A amante de livros que sonha em ser poetisa, mas que precisa vender repolhos para sobreviver, funciona como denúncia de uma sociedade que privilegia poucos e exclui os desfavorecidos. 

O clichê acaba quando uma grande tragédia atravessa a vida da família. É neste momento que um dos assuntos mais importantes da trama entra em cena: o luto. Em grande parte dos filmes e séries, essa experiência tão complexa e particular é tratada como um período único de tristeza e falta de propósito quando, na verdade, precisa ser vivida ao mesmo tempo em que todas as outras coisas da vida continuam a acontecer. 

No drama, é possível perceber como cada parte do casal protagonista vive o luto. A dificuldade em olhar para outras famílias nas ruas, a culpa e o vazio deixado pela falta de um integrante da família; todos esses detalhes são experimentados por ambos os personagens durante anos. O silêncio, no entanto, fica no centro dessa experiência tão difícil. E essa angústia reprimida é muito bem retratada na sucessão de episódios. 

Um salto cronológico coloca Geum-myeong, a filha mais velha de Ae-sun, e seu irmão Eun-myeong, no foco da narrativa. Essa transição acontece quase que naturalmente no enredo e apresenta uma reflexão sobre o peso que traz a hierarquia familiar. Ver a filha alcançar objetivos que pareciam tão distantes da sua realidade é tão gratificante que os contratempos parecem ser mais leves para Ae-sun. A jovem, por sua vez, sente uma profunda culpa por saber das situações que seus pais precisam passar para mantê-la. Em meio ao caos da relação entre os pais e a filha mais velha, Eun-myeong cresce na sombra da irmã, sempre em busca da atenção dos pais.

Geum-myeong que, assim como Ae-sun na fase da adolescência, também é interpretada por IU, têm a essência da mãe, mas lida com desafios completamente diferentes. O diferencial da obra é traduzir como isso acontece na prática, deixando claro as perspectivas de ambas as personagens. “Se a Vida Te Der Tangerinas” ensina que a grande maioria dos problemas não podem ser resolvidos por meio de soluções pré-estabelecidas por experiências individuais. 

O irmão mais novo, Eun-myeong, não consegue resolver todos os problemas e assumir as responsabilidades que batem à porta. O filho que sempre foi deixado em segundo plano - não por falta de atenção, mas por uma rivalidade silenciosa, constante e internalizada - acaba tendo dificuldades em lidar com a vida adulta. A sensação de insuficiência aparece com as atitudes do personagem, que busca na ambição inconsequente uma saída para a tentativa salvar a família da pobreza. 

A linha do tempo muito bem definida é um dos principais pilares do drama. Enquanto os filhos vão crescendo, os pais vão envelhecendo. A filha, que agora é mãe, ainda precisa ser a preferida dos pais quando as coisas se tornam difíceis. O mais novo, apesar de não ser representado com a devida importância, tem parte de sua identidade pessoal construída e consolidada na narrativa. “Se a Vida te der Tangerinas” mostra que ser pai, mãe, filho, filha, companheiro e companheira são tarefas conjuntas e que podem ser destinadas aos mesmos personagens. 

A direção não poupa o enredo de grandes tragédias, o que traz uma maior veracidade e aproxima a ficção da vida real. Nenhum personagem é intocável. O recomeço é representado inúmeras vezes como uma saída para os obstáculos vividos pelos personagens durante as cenas, mais uma característica de uma narrativa ficcional que imita a realidade.

Nenhuma das ideias iniciadas fica em aberto na obra e o sonho de Ae-sun de se tornar poetisa é um exemplo disso. Se há uma lição que essa obra nos ensina, é que apesar de qualquer acontecimento, a vida continua, e para seguir, é preciso se reinventar.

 

Em seu sétimo álbum, cantora mistura ironia, sensualidade e melancolia em um pop cheio de identidade
por
João Luiz Freitas
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08/09/2025 - 12h

No dia 29 de agosto de 2025, Sabrina Carpenter lançou “Man’s Best Friend”, seu sétimo álbum de estúdio, já disponível em todas as plataformas. Com versões físicas em pré-venda, o disco tem até quatro capas alternativas, uma delas apelidada de “aprovada por Deus” após a primeira versão gerar polêmica.

Construído em parceria com Jack Antonoff, John Ryan e Amy Allen, os mesmos colaboradores de “Short n’ Sweet” (2024), o álbum explora uma pegada pop refinada, satírica e cheia de atitude. Contendo 12 faixas e cerca de 38 minutos, ele mistura elementos de disco, country-pop e grooves retrô, com influências que vão de ABBA e Fleetwood Mac a Dolly Parton e Donna Summer.

O single de abertura, “Manchild”, foi lançado em junho de 2025 e logo se tornou um fenômeno global, chegando ao topo das paradas nos Estados Unidos, Reino Unido e Irlanda, e se consagrando como o segundo número 1 de Carpenter na Billboard Hot 100.

O álbum trilha uma narrativa irreverente sobre relacionamentos modernos, Carpenter combina críticas aos homens imaturos com letras repletas de duplo sentido e frases afiadíssimas. A faixa-título “Manchild” já anuncia o tom: com country-pop animado, a faixa satiriza ex-amantes desengonçados.

Em “Tears”, a cantora se arrisca em uma faixa disco-pop sensual inspirada por Donna Summer, em que comportamentos aparentemente gentis de um homem provocam desejo. Já “House Tour” e “When Did You Get Hot?” seguem o clima provocador com letras que brincam com metáforas sexuais e chamam atenção por sua leveza e sagacidade.

Conforme a narrativa evolui, Sabrina transita entre o humor e o emocional, com “My Man On Willpower” e “Nobody’s Son” trazendo nuances mais reflexivas e vulneráveis, até chegar ao final com “Goodbye” — uma despedida que mescla melancolia com autoafirmação, acompanhada de piano honky-tonk, saxofone e camadas vocais quase lúdicas.

A recepção ao álbum tem sido majoritariamente positiva, com média de 76 no Metacritic e tom de “críticas geralmente favoráveis”. Publicações como Harpers Bazaar elogiam a versatilidade musical e a inteligência lírica da artista, que transita com naturalidade entre humor, empoderamento e sensualidade. A The Australian aplaude sua evolução e ousadia dentro do pop contemporâneo. A Financial Times destaca a mistura de satírico e emocional, notando que nem todas as experimentações funcionam, mas a produção se destaca.

Sabrina Carpenter posando para a capa principal de seu novo álbum
        Capa principal do álbum - Foto: Bryce Anderson

Outros meios, como El País e a imprensa norueguesa (Aftenposten), veem na provocação visual uma forma irônica e competente de subversão das expectativas sobre o comportamento feminino. A cantora tem defendido a imagem da capa controversa em entrevistas, afirmando que se trata de humor, poder e provocação consciente.

Já críticos mais reservados, como The Times (UK), apontam que o conteúdo musical não justifica a imagem polêmica e definem o álbum como “surpreendentemente sem complexidade”, com algumas letras que soam frouxas. De forma similar, Slant Magazine e The Independent destacam que as letras, embora espirituosas, podem pecar pela falta de profundidade.

Man’s Best Friend” reafirma Sabrina Carpenter como uma artista que domina o arsenal do pop moderno: carisma, humor sagaz, lirismo provocador e produção caprichada. É um disco confiante, pessoal e cheio de personalidade, ainda que soe como uma brincadeira que só funciona até ser repetida várias vezes.

Para quem espera canções radiofônicas semelhantes às de “Short n’ Sweet”, talvez faltem hits explosivos, mas para quem valoriza a narrativa sonora com atitude, charme e ironia, o álbum tem muito a oferecer.

Quem quiser conhecer de perto “Man’s Best Friend”, o álbum está disponível no Spotify. Ouça aqui!

Filme quebra paradigmas sobre originalidade e ancestralidade no cinema
por
Isabelle Rodrigues
|
07/05/2025 - 12h

“Pecadores”, a nova aposta do diretor, roteirista e co-produtor Ryan Coogler - a mente por trás dos sucessos “Creed” e “Pantera Negra” - estreou em abril de 2025. O longa acompanha uma história de liberdade e conflitos raciais com muito Blues e dança, sem perder o terror e o suspense de sua atmosfera surrealista.

Os gêmeos Stack e Smoke utilizam cores distintas durante o longa, como forma de demonstrar suas posições ao longo da narrativa. Foto / Reprodução IMDB
Os gêmeos Stack e Smoke utilizam cores distintas durante o longa, como forma de demonstrar suas posições ao longo da narrativa. Foto / Reprodução IMDB

O filme, situado em 1932, acompanha em seu elenco principal os gêmeos Fumaça e Fuligem, ambos interpretados por Michael B. Jordan. Tudo se centraliza no clube de Blues criado pelos gêmeos, o terreno que foi comprado de um senhor envolvido na Ku Klux Klan, com dinheiro roubado em Chicago com a ajuda do gangster norte americano, Al Capone, além do vinho e a cerveja importados que serviram como atrativo para a comunidade cansada da região. Mas claro, nada disso importa para os gêmeos, até o fim da noite todos os envolvidos no clube serão pecadores. Como dito pelo pastor e pai do personagem Sammie, “Se você continuar a dançar com o diabo, um dia ele vai te seguir até em casa".

Durante o desenrolar do longa, surgem outros personagens relacionados ao passado da dupla e o conflito central, como Sammie (Miles Caton), primo e filho do pastor local, Mary (Hailee Steinfeld), irmã de criação e Annie (Wunmi Mosaku), curandeira local. Todos têm seu lugar naquela sociedade, que situa de forma aguçada seu papel historicamente bem pensado. 

Destaque especial para Sammie, que demonstra a dualidade entre a religião e o conformismo, na qual, para ele, a música representa liberdade e salvação, o que fica ainda mais evidente após a chegada do personagem Remmick (Jack O'Connell). O roteiro utiliza diversos contextos históricos, que o torna um prato culturalmente cheio.

Por exemplo, o passado de Remmick demonstra ter relação com a opressão irlandesa, durante colonização dos ingleses no século XII, além das implicações a um proselitismo forçado, por conta das citações do personagem sobre ter sido obrigado a aprender hinos e cânticos religiosos no passado pelo homem que roubou as terras de sua família.

A ideia do vampiro, em uma narrativa banhada de elementos religiosos é uma escolha pensada e calculada aos mínimos detalhes, seja no batismo feito em Sammie ou na visão tida por Fumaça no ato final. O movimento do afro-surrealismo tem muita influência nessa decisão, em que os elementos do sobrenatural servem como analogia direta ao período de apagamento histórico e cultural que aconteceu com a população negra, o que torna ainda mais simbólica a representação do Blues na trama.

Outro elemento que vale a pena destacar é a posição da trilha sonora na narrativa.  O mérito vem da parceria entre Ludwig Göransson e Coogler que entraram em sintonia em todos os seus projetos. Mesmo não sendo um musical, a trilha sonora e seus números musicais fazem parte do âmago da história, principalmente nas músicas tocadas durante a sequência do clube, como “Lie to You” e “Rocky Road to Dublin”, performadas pelos atores.

Pecadores se torna uma das maiores apostas para o oscar de 2025, segundo a critica especializada Foto / Reprodução IMDB
Pecadores se torna uma das maiores apostas para o Oscar de 2025, segundo a critica especializada Foto / Reprodução IMDB

A recepção da crítica e público foi representativa, fazendo história além da tela, estando com 84% de aclamação no Metacritic. Além de ter conquistado uma das maiores bilheterias do ano, totalizando 230 milhões arrecadados por todo o mundo. 

O diretor Ryan Coogler conseguiu deixar um legado na indústria cinematográfica, com o contrato histórico feito para a produção do filme, no qual em vinte e cinco anos, todos os direitos relacionados a sua obra serão retornados para o diretor. 

Veja abaixo o trailer da produção: 

Título original: Sinners
Direção: Ryan Coogler
Roteiro: Ryan Coogler
Trilha sonora original: Ludwig Göransson
Produção: Ryan Coogler, Zinzi Coogler, Kevin Feige

Elenco principal: Michael B. Jordan, Miles Caton, Hailee Steinfeld, Wunmi Mosaku e Jack O’Connell.

Obra de Érico Veríssimo aborda temas atemporais que podem ser relacionados aos dias de hoje
por
Isabela Lago, Ramon de Paschoa e Tabitha Ramalho
|
01/06/2021 - 12h
Livro Incidente em Antares, capa roxa
Foto divulgação do livro Incidente em Antares.

 

No episódio de hoje comentamos um pouco sobre o livro “Incidente em Arantes” do escritor Érico Veríssimo. Publicado na década de 1970, durante a ditadura militar, a obra é, ao mesmo tempo, um drama e um romance. Para comemorar os 50 anos do livro, a obra ganhou debate para relembrar sua narrativa repleta de realismo fantástico e críticas contundentes ao autoritarismo e ditadura do contexto histórico, temas que podem ser relacionados com nosso contexto atual.

Disponível no SoundCloud.

Em coletiva, Aroeira comenta a função da charge e o seu impacto visual
por
Carlos Gonçalves
|
15/05/2021 - 12h

     Por mais que há a tendência em associar as charges com os traços humorísticos, devemos compreender que a sua função vai além de qualquer piada banal. Temos que observar o peso crítico que nela está envolvido e todo o enredo crítico criado pelo artista. Além do traço, do movimento ou da narrativa, o artista quer mostrar ao leitor que a expressão demonstrada em sua arte serve como ponte para uma reflexão crítica: a função do chargista é plantar o incômodo no leitor, gerar a dúvida, fazendo-o questionar o ambiente em que ele vive. Nada que é colocado em uma charge é irrelevante: o sorriso malicioso do personagem que age na má-fé, o gesto brusco de frustração, a inocência de quem está sendo enganado, são algumas formas que não só servem para mostrar os comportamentos sociais dos brasileiros, como também servem para retratar os nossos pensamentos ou como reagimos em certos momentos. A charge é a sátira ao comportamento social, é questionar as nossas fragilidades e dores; por isso, se ao ler uma charge você sentir vergonha, não se desespere, ela só está cumprindo a sua função de mostrar o quão cruel (ou ignorante) uma sociedade pode ser.

     Renato Aroeira é um dos artistas que se debruçam sobre a arte crítica. Como ferramenta, ele utiliza o traço marcante do nanquim para expor expressões energéticas, somada com a sutileza da aquarela para dar volume e vivacidade a suas artes. Para ele, além da arte em si, o enredo da charge precisa ser bem contextualizado, seguindo uma estrutura. Durante o seu processo de criação, o artista chegou a achar que o humor crítico poderia ser simplificado, porém percebeu que em certos assuntos a simplificação acaba levando a interpretações errôneas, pois pode acabar expressando uma visão sobre algo que não pretendia concluir daquela forma. Então, ele começou a complicar as charges para ser bem compreendido, mesmo que a charge se torne difícil de ser entendida em certos aspectos. Simplificar a charge pode acarretar diversos preconceitos, que acabam trazendo até um sorriso mais fácil, e é por isso que atualmente o chargista toma cuidado com a construção do humor.

 

“O papel da charge é um dos processos para a construção social, serve para informar, impactar. Mas quem transforma o mundo é o coletivo social, apontado para o lado certo, e fazer parte disso de alguma forma é bom demais! É bacana fazer parte dessa confraria, não sou humilde, mas entendo o papel da charge dentro da mídia e os seus limites.

  – Renato Aroeira

 

     O processo de criação artístico de quem trabalha diariamente com o leitor não é algo simples de ser conquistado, requer décadas de aperfeiçoamento. Diferente, por exemplo, dos artistas plásticos, que expressam a sua visão pessoal do mundo e não se preocupam tanto (ou nada) em mostrar de forma categórica o que foi exposto em sua arte, cabendo ao observador buscar as respostas em outros meios para compreendê-la. Já o chargista precisa expor os caminhos do seu pensamento ao leitor, para que ele ache de alguma forma o caminho na própria charge. Entre as dificuldades da profissão, há também a seleção de qual tema abordar; por ser um trabalho constante, o artista tem que estar sempre se atualizando das notícias que mais lhe chamam a atenção e quais servem como inspiração para serem adaptadas em forma de charge. Podendo ser um tema que está em voga ou algo polêmico que ocorreu naquele exato momento. No início da profissão, Aroeira diz que não sabia exatamente o que queria dizer ao público, tendo que buscar inspiração nos jornais, hoje ele já tem uma ideia do que ele quer expressar quando faz a sua arte.

     Mesmo que o papel da charge tenha um limite de influência, Aroeira gosta da função de ser crítico social. Consciente, ele diz que o papel da charge é só um braço entre tantos que há na mídia informativa; cabendo a todos os meios da comunicação unirem-se para criar dispositivos que irão mostrar as inquietações que movem o comportamento social. O grande revés, segundo o artista, é o aumento da perda de função e interesse pelas charges. Para ele, a charge está ficando de lado, não sendo valorizada da forma correta.

 

“Que se divirtam com a charge, mas também olhem para o que estou apontando, para a crítica. Que gostem, que gostem de mim, mas que também entendam que além de fazer rir, ela tem uma trava amarga, ela tem um gosto amargo no geral, pois estou falando de um genocida, de uma estupidez etc. Mas eu não espero que uma charge resolva nenhum problema, que gere uma revolução ou qualquer coisa do tipo. Eu tento desenhar para que as pessoas entendam o que está acontecendo e assim tomem uma decisão melhor, uma eleição bem votada por exemplo. Nosso papel na comunicação é informar da melhor forma possível.”

– Renato Aroeira