Mesmo após avanços na ciência, a saúde feminina continua sub-representada em pesquisas e consultas. O corpo das mulheres segue sendo tratado como exceção.
por
Helena Costa Haddad
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27/10/2025 - 12h

Por Helena Haddad

 

Apesar de representarem metade da população mundial, as mulheres continuam sub-representadas nas pesquisas médicas. A lacuna nos ensaios clínicos compromete a eficácia, a segurança e a equidade dos tratamentos disponíveis hoje. Segundo levantamento publicado na Nature Medicine (2024), menos de 35% dos estudos clínicos globais incluem dados diferenciados por sexo, e apenas 20% consideram como os medicamentos afetam homens e mulheres de forma distinta. Até 1993, o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH) proibia a participação de mulheres em idade fértil em ensaios clínicos, sob o argumento de proteger possíveis gestações. O resultado foi uma medicina construída sobre o corpo masculino como padrão universal: dosagens, efeitos colaterais e até sintomas de doenças graves, como o infarto, foram definidos a partir de corpos de homens jovens e brancos.

Durante décadas, o corpo feminino foi visto como instável, hormonal e difícil de estudar — uma percepção que moldou uma ciência que não representa as mulheres. Até hoje, muitos sintomas femininos são subestimados ou confundidos com causas psicológicas, explica a psiquiatra Maria Franco.

Casos recentes reforçam a urgência dessa discussão. Um exemplo é o medicamento Zolpidem, usado para insônia. Estudos mostraram que as mulheres metabolizam a substância mais lentamente, o que faz com que acordem ainda sob efeito sedativo — aumentando o risco de acidentes. A FDA já havia reduzido pela metade a dose recomendada para mulheres em 2013, e, em 2024, a Anvisa atualizou as bulas no Brasil após relatos de efeitos adversos graves, como sonambulismo e confusão mental.

Um estudo publicado na Biology of Sex Differences em 2024, analisou 86 medicamentos aprovados pela FDA: em 76 deles, as mulheres apresentaram maior concentração da substância no sangue, e em 96% dos casos isso estava associado a maior incidência de reações adversas — como náusea, tontura e arritmia. Em resumo, a maioria dos remédios vendidos hoje ainda é testada e dosada para corpos masculinos.

O corpo feminino possui diferenças de massa magra, gordura e metabolismo hepático. Essas variáveis interferem diretamente na absorção e eliminação de medicamentos, explica a psiquiatra.

A desigualdade de gênero também aparece no atendimento médico. Em 2024, um levantamento do Instituto Patrícia Galvão apontou que 61% das mulheres brasileiras afirmam não se sentirem ouvidas por profissionais de saúde. As queixas vão de dores crônicas desconsideradas a diagnósticos errados de doenças cardíacas, endometriose e lúpus. Casos como o de Lidiane Vieira Frazão, que morreu 22 dias após o parto durante a pandemia de Covid-19, sem atendimento adequado, ilustram o impacto disso. A família denunciou o hospital por violência obstétrica e negligência médica. 

O viés masculino na medicina é tão antigo quanto a própria ciência. A partir do século XIX, o corpo feminino passou a ser tratado como “anômalo” — sujeito a histerias, desequilíbrios hormonais e instabilidade emocional. Essa visão ainda ecoa em práticas clínicas e diagnósticos enviesados. A Organização Mundial da Saúde reconhece que o viés de gênero é uma das principais causas de erro de diagnóstico no mundo. Não basta incluir mais mulheres nos testes. É preciso mudar o olhar, considerar o ciclo hormonal, a gravidez e a menopausa, conclui a Dra. Franco.

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Apesar da eficácia na prevenção do HIV, mulheres têm acesso limitado à medicação
por
Maria Dantas Macedo
Pedro da Silva Menezes
Yan Gutterres Ricardi
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24/09/2025 - 12h

Desde 2017, o Brasil oferece gratuitamente a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), método de prevenção eficaz contra o vírus HIV, disponível no Sistema Único de Saúde para qualquer pessoa sexualmente ativa, maior de 15 anos de idade. Na prática, o remédio é amplamente divulgado entre homens, especialmente da comunidade LGBTQIA+, enquanto as mulheres ficam excluídas dessa prevenção. 

Segundo dados do Ministério da Saúde publicados no Boletim Epidemiológico sobre HIV em 2023, 35% dos brasileiros que continham o vírus do HIV eram mulheres, representando cerca de um terço dos novos casos no Brasil todos os anos. Além disso, 80% dos casos de infecção por HIV entre mulheres se deu em relações heterossexuais, evidenciando uma vulnerabilidade específica. 

A PrEP é uma ferramenta promissora para elas, que podem usar o remédio para prevenir a infecção pelo HIV. Tanto as solteiras quanto as que estão em um relacionamento mas não sabem do histórico de testagem para infecções sexualmente transmissíveis do parceiro ou parceira correm o risco de infecção quando fazem sexo sem camisinha. 

Porém, neste ano, somente 8,8% dos usuários de PrEP foram mulheres cisgênero e 3,2% mulheres trans. A infectologista Camila Bicalho explica: “As mulheres não têm informação ou conhecimento sobre a prevenção, que pode ser utilizada por elas”. 

“Por muito tempo, a utilização do preservativo como único método de evitar casos de HIV era a única saída. Hoje, a prevenção passa por várias medidas, uma delas é a PrEP. Se utilizada corretamente reduz o risco de contrair o HIV por meio de relação sexual em até 90%, e por meio de compartilhamento de drogas injetáveis em até 70%.Quando pensamos em saúde pública, o impacto da PrEP é a diminuição de novos casos de HIV”, segundo doutora Camila. 

O QUE É PrEP? 

A Profilaxia Pré-Exposição prevê o uso de um comprimido usado antes da relação sexual que impede que o HIV se multiplique no organismo. O comprimido combina dois medicamentos (tenofovir e entricitabina) que bloqueiam alguns “caminhos” que o vírus usa para infectar o organismo. Assim, mesmo que a pessoa entre em contato, a infecção não se instala. A utilização pode ser diária ou sob demanda (somente quando a pessoa tiver uma possível exposição de risco ao vírus). 

É recomendado o uso da prevenção para pessoas que estão em um relacionamento sexual com um parceiro ou parceira que vive com HIV, não use preservativos regularmente, tem um ou mais parceiros sexuais com status de HIV desconhecido, estão envolvidos em um trabalho sexual comercial, teve uma doença sexualmente transmissível bacteriana recente ou usou drogas injetáveis ​​nos últimos seis meses. 

Mulheres cisgênero, pessoas trans ou não binárias designadas como sexo feminino ao nascer,  e qualquer pessoa em uso de hormônio a base de estradiol, que queiram fazer o uso de PrEP oral diária, devem tomar o medicamento por pelo menos 7 (sete) dias para atingir níveis de proteção ideais. 

A PrEP sob demanda deve ser utilizada com a tomada de 2 comprimidos de 2 a 24 horas antes da relação sexual,  +1 comprimido 24 horas após a dose inicial de dois comprimidos +1 comprimido 24 horas após a segunda dose. 

É possível pegar o medicamento em serviços de saúde do SUS, como UBSs, bem como em farmácias da rede privada com receita médica. Em São Paulo, pode usar o aplicativo e-saúdeSP para encontrar a PrEP ou pegar em máquinas de distribuição nas estações de metrô. 

O ESTIGMA 

Apesar da relevância preventiva, muitas mulheres não aderem ao medicamento ou nem sabem o que é. A doutora Camila explica que, até a revisão de 2022, a PrEP foi direcionada sobretudo a “populações vulneráveis”, o que na prática priorizou homens que fazem sexo com homens e travestis/trans. “As mulheres, até 2022, não eram consideradas como população vulnerável para uso de PrEP”, diz a médica.

Ainda assim, segundo a doutora, a histórica sub-representação das mulheres em pesquisas sobre a PrEP pode ter sido um dos fatores que contribuíram para a baixa adesão: “Algumas hipóteses foram levantadas, como, por exemplo, o fato de as mulheres cisgênero não terem sido incluídas nos primeiros estudos de avaliação da PrEP, inclusive com retratação de alguns laboratórios que se comprometeram a incluir mulheres cisgênero nas próximas avaliações.”

Ensaios clínicos como o VOICE e o Fem-PrEP mostraram resultados positivos pouco expressivos em mulheres. Isso ocorreu principalmente pelo uso inconsistente da medicação e a falta de campanhas voltadas ao público feminino. Mais do que limitar conclusões científicas, essa realidade contribuiu para alimentar a ideia equivocada de que a PrEP “não era para mulheres”, quando o que faltava era suporte à adesão e estratégias de comunicação adequadas. 

Mas, ainda segundo a infectologista Camila, ainda há muitas outras possibilidades para a baixa adesão das mulheres “como o fato delas se sentirem seguras em uma relação heterossexual e abandonarem a utilização do preservativo, sem buscar outra forma de prevenir as infecções pelo HIV”. “Além disso, os serviços ginecológicos, onde as mulheres frequentam anualmente para fazer o papanicolau e também a mamografia, não discutem com essas mulheres a possibilidade da PrEP.”, acrescenta ela. Os profissionais de saúde, quando não são devidamente treinados, deixam de mencionar a opção ou o fazem de forma estigmatizante, afastando as pacientes.

Para Myrt Cruz, professora e doutora em Ciências Sociais da PUC SP, essa falta de conhecimento sobre a prevenção tem a ver com uma barreira social: “Não é uma decisão deliberada de uma mulher não acessar a sua própria saúde, aos recursos disponíveis para a sua própria saúde; mas há um julgamento moral, há um machismo estrutural que impede e dificulta que ela acesse esses recursos.”

A professora explica que “o machismo estrutural faz com que essa mulher, muitas vezes, confie cegamente nesse parceiro com quem se relaciona, sem ter uma visão crítica de que esse parceiro pode estar tendo relacionamentos sexuais com outras pessoas. Essa é uma ideia muito estigmatizada e complicada, que foi, durante décadas, dissuadida pela mídia. Então, há um desconhecimento, uma ignorância em torno do que se trata e a necessidade de desconstruir esse estigma”.

Em contextos de violência de gênero, dependência econômica ou restrição de autonomia, a capacidade de negociar o uso do preservativo é limitada, e o acesso a alternativas como a PrEP fica ainda mais comprometido. Desigualdades de renda, baixa educação em saúde sexual e reprodutiva também influenciam negativamente a busca e a permanência no uso da medicação.

Assim, barreiras sociais e culturais limitam o acesso das mulheres ao diagnóstico e tratamento precoce do HIV. A ausência de campanhas voltadas ao público feminino reforça a falta de informação, enquanto o estigma em torno do uso, frequentemente associado à promiscuidade ou a práticas sexuais consideradas de risco, acaba gerando receio e vergonha.

“Há necessidade de que as universidades, centros de pesquisa, centros comunitários se apropriem desse discurso, do conhecimento e trabalhem de um jeito que chegue até essa mulher, de forma clara, objetiva, que atinja elas”, declara Myrt. 

A PrEP é uma ferramenta poderosa, mas que só cumprirá seu papel se estiver acessível a todas as pessoas que dela necessitam, especialmente aquelas que historicamente foram invisibilizadas. Incluir as mulheres é uma questão de justiça social e de saúde pública. O combate ao HIV precisa ser coletivo e livre de preconceitos. E isso começa com o reconhecimento de que a prevenção também é e deve ser para elas. 

 

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Tema em alta atravessa diferentes núcleos sociais como trabalho, práticas esportivas e afazeres domésticos
por
Fernando Amaral
Guilbert Inácio
João Paulo Moura
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06/10/2025 - 12h

O alvorecer do dia começa a despontar no horizonte, e milhares de meninos e meninas acordam para assumir responsabilidades que deveriam ser exclusivas do mundo adulto. Nas cidades, oferecem balas nos semáforos; no campo, ajudam na colheita; em lares da periferia, cuidam dos irmãos menores. Esse dia a dia revela mais do que trabalho precoce, é a adultização forçada. 

De acordo com relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), 138 milhões de crianças se encontravam em situação de trabalho infantil em 2024. Dentre elas, 61% dos casos estavam no setor agrícola, e 54 milhões ocupavam cargos de perigo à integridade do menor. 

No Brasil, os dados também são alarmantes. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) do IBGE, em 2023 havia 1,6 milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos nessa situação. O número, embora menor do que há vinte anos, ainda apresenta uma dura realidade: 4,2% de toda uma geração que deveria estar apenas estudando, brincando e crescendo sem pressa. Entre eles, 586 mil enfrentam tarefas que colocam sua saúde em risco. 

As desigualdades regionais dão forma ao problema. No Nordeste, 506 mil meninos e meninas ajudam a sustentar suas famílias, seja na roça, seja em atividades informais nas cidades. No Sudeste, os semáforos e camelódromos mostram outra face do mesmo drama. Já no Norte, quase 7% das crianças dessa faixa etária trabalham. A cor da pele também pesa, crianças pretas e pardas, que já são maioria entre os mais jovens, representam 65% de quem trabalha antes da hora. 

A rotina é pesada. Mais de um quinto dos que estão no trabalho infantil enfrentam 40 horas ou mais de serviço por semana, jornada igual à de um adulto. Para os de 16 e 17 anos, quase um terço já vive essa realidade. A escola é um dos pontos mais afetados, enquanto quase todas as crianças brasileiras estão matriculadas, apenas 88% das que trabalham conseguem permanecer estudando. As outras veem a sala de aula ser substituída pelo balcão, pelo campo, pela rua. 

O prejuízo não é só educacional, a infância roubada também deixa marcas emocionais. Muitos aprendem cedo a conviver com a preocupação da falta de comida, com o medo do desemprego dos pais ou com a responsabilidade de cuidar dos irmãos. A pressa em amadurecer elimina o espaço do lúdico, das brincadeiras que ensinam a sonhar. 

Mesmo com a proibição legal para menores de 16 anos, com exceção aos aprendizes a partir de 14, a regra é constantemente rompida. Nas comunidades mais pobres, a urgência da sobrevivência transforma a contribuição das crianças em algo naturalizado, quase obrigatório. Assim, ser criança acaba parecendo um privilégio distante. Cada hora de trabalho antecipado é também uma hora a menos de estudo, de descanso, de prática esportiva, de futuro. 

Responsabilidades no esporte 

Esse cenário também afeta o desempenho esportivo de jovens atletas, que precisam tomar decisões e assumir responsabilidade muito cedo, sendo, em alguns casos, os principais provedores de fonte de renda das famílias. 

A fotografia mostra o atleta Cristian, sentado em um banco de reserva, olhando fixamente em direção à câmera. A foto está em preto e branco
Atualmente, Cristian atua no Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa (COTP) / Foto: R7fotografo

Em entrevista a AGEMT, conhecemos Cristian Alves Oliveira, um dos atletas que viveu essa realidade. Hoje em São Paulo, o jovem de 18 anos é originário de Belford Roxo na Baixada Fluminense (RJ) e veio sozinho para a capital paulista por causa de uma oportunidade que surgiu no começo do ano de 2025.  

Cristian chegou a São Paulo para ser o goleiro do Real Cubatense de São Bernardo dos Campos na Taça São Paulo, campeonato amador organizado pela Federação Alternativa de Desporto.  

"Eu só ia disputar esse campeonato e voltar para o Rio, mas, ao decorrer dessa competição, outras oportunidades surgiram: morar aqui e defender o clube que estou hoje. Essa chance surgiu em um momento que eu estava pensado em parar de jogar bola. Então quando recebi essa oportunidade de poder vir para São Paulo e jogar, eu agarrei como se fosse a esperança do meu futuro." Destaca o atleta. 

Presente desde sua infância, o futebol se tornou um objetivo na vida de Cristian quando tinha 15 anos. Em 2022, ele decidiu que queria viver disso, mas não conseguia focar totalmente no esporte, pois tinha que estudar e trabalhar. O goleiro lembra que arrumou seu primeiro emprego com 14 anos, em um Sacolão, para poder ajudar sua família.

"Comecei a trabalhar cedo para poder ajudar em casa e para ter minhas coisas. Eu tinha que dividir o tempo para treinar, trabalhar e estudar. Era uma rotina muito cansativa que eu tinha no Rio e, às vezes, tinha que sacrificar alguma dessas coisas porque atrapalhava um pouco no meu rendimento esportivo, mas eu não podia deixar de trabalhar e ajudar em casa."  

Três anos depois, o atleta está se dedicando só ao futebol. Ele conta que a vida na capital paulista é muito diferente de Belford Roxo, porém ele segue atrás de seu objetivo porque a família depende dele. “É uma rotina muito cansativa, mas é a oportunidade que eu pedia a Deus e ele está me proporcionando. Cheguei em São Paulo em 4 de janeiro e vim sozinho, um grande desafio para mim. Conviver longe da família não é fácil, tem que saber lidar com as emoções, saudades etc., mas sempre tento manter contato com eles porque assim ameniza um pouco as saudades.” 

A história de Cristian mostra um cenário recorrente em nosso país, pois, embora tenhamos diretrizes que regulam a prática esportiva de crianças e jovens como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/2023), outros mecanismos sociais inviabilizam a prática esportiva plena. 

Isso leva muitos, ainda novos, a abandonarem seus sonhos. Como exemplo, uma reportagem feita pela Folha de São Paulo em 2024 analisou a trajetória dos atletas que jogaram a Copa São Paulo de Futebol Junior, a copinha, em 2010. Segundo os dados obtidos, 36,9% dos atletas desistiram de tentar a carreira no esporte. 

Esses dados em um dos campeonatos mais importantes de formação de futebolistas são preocupantes. Vale destacar que o futebol é o esporte mais popular no país, ou seja, os dados em outras modalidades, como as olímpicas, devem ser mais críticos. 

O país até tem o programa Bolsa Atleta, que entrou em vigor em 2025 com o objetivo de patrocinar individualmente atletas e para-atletas de alto rendimento em competições nacionais e internacionais de sua modalidade. Contudo a maioria dos esportivas enfrentam inúmeras barreiras socioeconômicas até conseguirem chegar de fato nessas competições de alto rendimento, em que poderão vislumbrar um futuro mais otimista. 

Trabalho doméstico 

Entre as várias faces da adultização forçada, uma das mais silenciosas é a realidade de crianças que assumem tarefas domésticas para que seus pais ou responsáveis possam trabalhar fora. Longe de ser apenas uma “ajuda”, essa dinâmica transfere a elas responsabilidades que ultrapassam os limites da infância, comprometendo seu desenvolvimento emocional, social e até escolar. 

Catia Silene, psicóloga infantil, explica que, ao assumir papéis que não condizem com sua idade, essas crianças podem carregar marcas profundas para a vida adulta. “As crianças sobrecarregadas, com muitas responsabilidades inadequadas para sua idade, podem desenvolver ansiedade, estresse e um sentimento constante de pressão”, afirma.

Segundo ela, isso ocorre porque muitas vezes o esforço não é reconhecido, o que gera “baixa autoestima e a sensação de que nunca são boas o suficiente... é uma independência colocada em um lugar que não é dela”. 

A imagem, em preto e branco, mostra uma menina de costas olhando para uma pia.
Criança realizando tarefa domésticas / Fonte: Gênero e Número 

Em 2023, segundo a PNAD, da população estimada de 38,3 milhões de crianças e adolescentes, 52,6% (cerca de 20,1 milhões) realizavam afazeres domésticos e/ou tarefas de cuidado, sendo 69% de classes baixas e 57% meninas. Em famílias numerosas ou sem condições financeiras de contratar alguém para cuidar dos mais novos, é comum que o filho ou a filha mais velha seja encarregado dessa função. 

A psicóloga alerta que esse modelo pode desorganizar a noção de autoridade dentro do lar. “Às vezes os pais dizem: ‘cuida do seu irmão porque você é mais velho’. Mas esse jovem não tem maturidade para ocupar esse lugar e acaba recorrendo a formas punitivas ou ameaçadoras. Isso confunde quem é cuidado... quando isso se perde dentro da família, a confusão se projeta para a vida em sociedade” explica. 

Esse cenário, além de prejudicar a relação entre irmãos, pode gerar dificuldades sociais futuras. Uma criança que cresce sem referências claras de autoridade tende a apresentar comportamentos desafiadores e resistência a regras, tanto na escola quanto em outros ambientes. Apesar de, em alguns casos, ‘despertar’ um senso precoce de responsabilidade, a adultização no espaço doméstico tira da criança oportunidades essenciais de brincar, conviver com os demais jovens e aprender pela sua própria experiência pessoal. 

O debate sobre adultização infantil revela que, por trás da ideia de “ajuda em casa” ou de “responsabilidade precoce”, existe uma prática que limita direitos e impõe às crianças papéis que não deveriam assumir. Longe de ser um sinal de maturidade, trata-se de um processo que compromete a infância e pode deixar marcas para a vida adulta. 

Mais do que enxergar “pequenos adultos”, é preciso compreender também que se trata de um fenômeno ocasionado por desigualdades de gênero, classe e raça, do qual sobrecarregam as crianças. Encarar essa realidade como uma violação de direitos é um passo essencial para que a infância deixe de ser vista como apenas uma passagem para a vida adulta, mas sim como uma iniciação no mundo, com práticas de aprendizado, inocência e, além de tudo, protegidas. 

Associação Paulista de Apoio ao Transplante (APAT) alia acolhimento e ajuda financeira para pacientes na fila de espera
por
Khadijah Calil
Lais Romagnoli
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04/09/2025 - 12h

Diagnosticada inicialmente com fibrose hepática, que evoluiu para uma cirrose sem causa definida, Andréa Teixeira Soares aguardou oito anos por um transplante de fígado. Nesse período, perdeu três gestações e viu a incerteza se tornar rotina. Hoje, ela é coordenadora da Associação Paulista de Apoio ao Transplante (APAT) e ajuda outros que passam pela mesma experiência da espera por um órgão.


O Brasil é referência mundial em transplantes públicos: mais de 30 mil procedimentos foram realizados em 2024, segundo dados do Ministério da Saúde. Porém, no mesmo ano,  78 mil pessoas ainda permaneciam na fila de espera sem tempo estimado, com a procura maior por rins, córneas e fígado.


A situação de Andréa, que hoje atua na tesouraria da APAT, faz parte dessa estatística que aponta que a espera por um órgão compatível e a falta de acolhimento nesse período geram um novo obstáculo para quem precisa da cirurgia.

Andréa Teixeira Soares, coordenadora da APAT.
Andréa hoje atua na tesouraria da APAT. Foto: Khadijah Calil


Após passar pela operação e por um processo delicado de recuperação, Andréa foi convidada para atuar como voluntária na APAT, na casa que hoje é localizada no Cambuci, em São Paulo. “Eu sabia o que significava estar naquela fila e eu queria ajudar. A vida é uma troca, ninguém vive sozinho”, diz a coordenadora, à AGEMT.

Criada há 20 anos por médicos clínicos e cirurgiões da clínica Hepato, a APAT atende pacientes de outros estados que não conseguem permanecer em São Paulo durante o tratamento pré e pós-transplante e auxilia financeiramente e socialmente na permanência na capital durante esse período. Todo o trabalho realizado pela associação é mantido através de doadores, voluntários, ex-pacientes, médicos e entidades sociais.

Desde sua fundação em 2004, a instituição já realizou mais de 10,5 mil atendimentos e mantém uma casa de apoio que oferece estadia, alimentação, orientação psicológica, nutricional e acompanhamento médico para pacientes e acompanhantes vindos de diversos lugares do País.

Os pacientes chegam encaminhados por equipes médicas de diferentes estados quando estão próximos de receber um órgão e chegam junto a um acompanhante, para a internação, administração de medicamentos e cuidados individuais. Sem comprometer a autonomia dos transplantados, a associação enfatiza que o processo não termina na cirurgia e que cada órgão exige um protocolo de recuperação individual.

 Todo o trabalho realizado pela associação é mantido através de doadores, voluntários, ex-pacientes, médicos e entidades sociais.
Além do acolhimento social, a APAT atua no campo científico. Foto: Lais Romagnoli

Entre os que encontraram acolhimento na instituição está André, transplantado há 19 anos e diabético. Ele perdeu a visão, mas afirma ter ganhado uma nova percepção sobre a vida ao morar temporariamente no lar de apoio: “Eu agradeço pela oportunidade de poder viver bem, de ter esse suporte. Hoje eu não enxergo mais, mas posso ver além do que meus olhos me mostram. Sinto o carinho e esforço de todos aqui.”

Casos como o dele, que passou por um transplante duplo (rim e fígado), não são incomuns, mas aumentam o tempo de espera, já que o órgão precisa vir de um “doador falecido” – que tenha morrido de AVC, morte encefálica ou com morte causada por parada cardiorrespiratória, também de acordo com o Ministério da Saúde.

Além do acolhimento social, a APAT atua no campo científico. Médicos da clínica Hepato participam de pesquisas nacionais e internacionais, estágios no exterior e projetos de formação de equipes transplantadoras. A instituição também lidera o “Transplantes sem Fronteiras”, que apoia a criação de novos centros e casas de apoio inspirados nesse modelo.

“Nosso objetivo é impedir que pacientes abandonem o tratamento por falta de recursos. Muitas vezes, o transplante é a única chance de um recomeço”, afirma Andréa.

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Psiquiatras estão preocupados com jovens que fazem uso excessivo de vídeos curtos.
por
Martim Tarifa
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20/05/2025 - 12h

Segundo a psiquiatra Luciana Bagatella, estímulos gerados pelos vídeos liberam uma carga esgotadora de dopamina no cérebro. Uma carga tão grande acaba causando colapso nesse sistema, que agora exigirá estímulos mais intensos para alcançar o bem-estar, que antes era alcançado com estímulos muitos menores. “Assim, tarefas como trabalhar, estudar e praticar atividades físicas, ficam mais difíceis de serem desempenhadas”, afirmou Luciana.  

A Dra. alerta que os jovens podem ser os principais afetados, pois seu cérebro ainda está em desenvolvimento e eles são os principais usuários de redes sociais. Segundo ela, os vídeos têm impacto direto na saúde mental desses jovens: “Podem desenvolver transtornos psiquiátricos, tais como transtornos ansiosos, transtornos de humor, dependências, dentre outros.”  

Jovens entretidas por seus smartphones. Foto: Reprodução
Jovens entretidas por seus smartphones. Foto: Reprodução

O jovem de 17 anos Téo Lima desinstalou as redes sociais por conta dos vídeos curtos. Ele se deu conta que estava viciado e que o tempo que passava vendo vídeos curtos poderia ser mais aproveitado fazendo atividades mais úteis na opinião dele. Apesar de não se sentir afetado mentalmente, ele ouviu profissionais falando disso e desinstalou para se prevenir, porque não achava que aquele conteúdo contribuía em algo para sua vida. “Eu não queria ser afetado por esses vídeos, então desinstalei de forma preventiva”, disse ele.  

Sem mais vídeos curtos, Téo percebe que sente mais vontade de realizar outras atividades e aproveita mais seu dia. “Comecei a ler jornais, assistir programas de TV e ler mais livros do que eu lia antes.” No caso desse jovem, a informação foi fundamental para que ele percebesse como sua saúde mental estava vulnerável e decidisse parar de consumir esse tipo de conteúdo. 

Mas infelizmente, Téo é um caso raro, já que 41% dos usuários do TikTok no Brasil têm entre 16 e 24 anos.  Segundo o DataReportal o Brasil tem mais de 98 milhões de usuários ativos no TikTok, o que significaria mais de 40 milhões de jovens ativos no aplicativo.  

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Os funcionários do metrô e CPTM serão os próximos a entrarem na fila da vacinação, que terá início no dia 11 de maio, já aqueles que trabalham nos ônibus continuam sem previsão para tomar a vacina, embora a notícia seja boa para alguns, não é para outros
por
Julio Cesar Ferreira e Helena Monteleone Sereza
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06/05/2021 - 12h

Os funcionários da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Os metrôs, ônibus e trens não pararam desde o início da pandemia, o que expõe a necessidade da categoria de motoristas, condutores, cobradores e outros funcionários do transporte público se vacinarem com prioridade. Embora os motoristas de ônibus ainda não tenham entrado na fila, os funcionários do metrô e CPTM, conseguiram. 

Serão vacinadas 9.500 pessoas, incluindo todos os operadores de trens, independentemente da idade, e demais funcionários da operação, que lidam diretamente com o público, acima dos 47 anos. Entram ainda, os trabalhadores da operação das linhas 4-amarela e 5-lilás, que são privatizadas.

Em vídeo, Alexandre Baldy, secretário dos Transportes Metropolitanos do Estado de São Paulo, divulga que “estaremos vacinando trabalhadores das operações, aqueles que estão nas estações como operador, aqueles que estão como segurança e aqueles que estão para a limpeza, a higienização de todas as superfícies das pessoas que tocam a todo momento. Exclusivamente os que estão em contato com milhões de pessoas a cada dia estão sendo vacinados pelo Governo de São Paulo”.

A AGEMT conversou com o Altino Prazeres Jr, coordenador do Sindicato dos Metroviários de São Paulo e militante do PSTU. Perguntamos qual a visão dele sobre a vacinação para a categoria. Para ele, “O setor de transporte deveria ter sido incluído logo depois dos idosos e setores de saúde já que são grandes transmissores''. Ele acrescenta criticando a situação atual. 

“Se o governo bolsonaro tivesse comprado as vacinas antes, e não fizesse campanha contra elas no seu início. E também, os próprios laboratórios, se não tivessem fazendo leilão da vacina, mas quebrassem a patente, a vacinação ocorreria de forma mais abrangente em todo o mundo."

Em sua opinião, “a velocidade da imunização está muito atrasada, descaso de todas as esferas governamentais”. Altino ressalta ainda que, “A ganância das grandes empresas e milionários está impedindo a sociedade de colocar um fim na pandemia. A falta de esforço está sendo o maior obstáculo para a imunização mais rápida e trazer ajuda para o maior número de pessoas possíveis”, conclui.  

altino
Altino Prazeres, coordenador do Sindicato dos Metroviários e militante do PSTU. (Foto/Acervo Pessoal)

 

O Metrô já soma 22 mortes entre seus funcionários, além de cerca de 1.500 contaminados, segundo contagem do sindicato dos Metroviários, que convocou uma “greve sanitária”.

Prazeres traz também que, “Por mais que todos os trabalhadores sejam imunizados, ainda há o risco de serem infectados por diferentes mutações do vírus". O coordenador relata que tem ansiedade, pois  gostaria que "ele e os colegas fossem vacinados mais rápidos”. 

O relatório da Administração do Metrô divulgado, mostra que embora a pandemia tenha tirado passageiros nos primeiros meses da chegada do vírus ao Brasil, foram feitas quase 3 bilhões de viagens nos transportes públicos que passam pela capital, entre metrô (764 milhões), CPTM (505 milhões) e ônibus municipais (1,6 bilhão).

Prazeres ainda expõe, que a notícia deixou o sindicato contente, porém, frustrados por garantir a vacina apenas para os funcionários com idade a partir de 47 anos e o Governo do Estado de São Paulo não deu explicações ou informações para o sindicato, os trabalhadores e para os funcionários da área de segurança. “Há um desejo, mas ainda uma insatisfação, pois grande parte da categoria não vai ser vacinada no momento”. 

Na pandemia, o metrô do Estado teve um prejuízo de cerca de R$1,7 bilhões devido à queda do número de passageiros, acarretando diminuições de vagões e trens em circulação pela capital. As linhas 1 – azul e 3 – vermelha sofreram uma retirada de 17% comparado com anos anteriores, enquanto a linha 2 – verde foi a mais atingida, com menos 29% de viagens diárias. 

 

Novos produtos de pele com preço reduzido trazem dúvidas sobre a segurança e eficiência.
por
Beatriz Aguiar, Gabriella Lopes e Sara de Oliveira
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23/06/2021 - 12h

Por Gabriella Lopes, Beatriz Aguiar e Sara de Oliveira

 

 

*Narração pela entrevistadora Sara de Oliveira 

 

Dermatite, oleosa e acneica. Essas são as características das peles das jornalistas que vos escrevem. Mergulhadas em um mar de produtos estéticos, uma tábua aparece boiando no horizonte: produtos de beleza brasileiros - parece que estamos salvas. A curiosidade para entender melhor as marcas que estão bombando no Instagram entre as influenciadores digitais e suas seguidoras falou mais alto. Barato e bom é o que o marketing anuncia sobre elas, mas será que é isso mesmo?

A nova moda entre as blogueiras e influenciadores digitais é fazer publicidade para as marcas estéticas nacionais. Quando bem sucedidas ou seja, quando possuem milhões de seguidores acabam criando sua própria marca. Isso vai desde maquiagem, roupa, calçado e produtos estéticos. 

Rafaela Tomaz (@rafatomaaz) de 19 anos é uma influenciadora jovem no mercado, com 1.362 seguidores e crescendo rápido. Seu sonho é viver como influencer. Atualmente, cursa biomedicina porque tem conexão com a questão estética. No entanto, Rafaela conta que não criaria sua própria marca se dependesse de fornecedores e tecnologia brasileira. “Eu não gosto muito de produtos do Brasil, porque, infelizmente, eu não me dei bem com os produtos nacionais. Se eu morasse fora, talvez, eu pensaria, porque eu gosto muito das tecnologias coreanas e japonesas”, comenta. E Rafaela está certa.

O Brasil está bem atrás no quesito pele e beleza, enquanto os produtos asiáticos infiltram o País e tomam o mercado. Em entrevista ao Correio Braziliense, Heloisa Yonekura, diretora técnica, pesquisadora e química da empresa Yokata! Mahy Skincare (empresa que produz produtos asiáticos para o Brasil), explica que o diferencial está na personalização. No Brasil classificamos as peles como oleosa e seca, mas existe uma infinidade de tipos de peles e, consequentemente, diferentes agentes químicos que podem ajudá-las. Esse é o “quê” do produto asiático; você encontrará uma variedade de opções, cada uma com sua função, podendo personalizar sua skincare a fim de atingir todos os objetivos. 

Isso mostra que esse mercado ainda tem muito a crescer no Brasil e é ele que as influenciadoras estão tentando preencher. Seja criando sua própria marca ou incentivando por meio de publicidade o seu uso. A própria Rafaela está surfando aos poucos nessa onda. Depois de algumas experiências ruins, ela conta que gosta muito da "Creamy", uma marca brasileira criada por Luiz Romancini, médico dermatologista. Segundo a marca, Romancini é quem cria as fórmulas dos produtos.   

São marcas como a Creamy que estão crescendo. Por um lado, isso é positivo. Os preços são acessíveis, o que torna a rotina de cuidados possível para diferentes tipos de consumidores. Ao mesmo tempo, essa onda não é o mar de rosas que imaginamos. Além de correr os riscos de passar na pele um produto novo, com pouca confiabilidade dentro do  mercado, também somos extremamente afetadas pelas propagandas exageradas feitas pelas próprias influenciadoras.

A médica Mônica Ramos de Freitas, da rede de clínicas ""Meu Dermato", frisa a importância de sempre consultarmos uma dermatologista antes de testarmos qualquer produto, seja ele indicado por uma influenciadora ou não. “Quando se fala de skincare, vemos muito conteúdo nas redes sociais sendo disseminado por influencers, gerando expectativas em quem está do outro lado da tela. Consequentemente, acaba-se criando um desejo de compra dos produtos, que muitas vezes não terão o mesmo efeito nesse público, afinal cada pele é única”. 

As influencers são fundamentais nas propagandas em geral, com os produtos de cuidados da pele ainda mais. O skincare (termo em inglês para “cuidados com a pele”) é a febre do momento.  Tornou-se uma questão de autoestima que mexe com todas as idades, desde a adolescente que começa com seus problemas com espinha e pele oleosa, até a pessoa com mais idade com medo de envelhecer. Reconhecendo o poder de criação de opinião que as influencers têm, a Beyoung chamou diversas blogueiras e atrizes para fazer a propaganda de seu booster que promete retardar o envelhecimento.

O produto foi um sucesso, em partes, pelos reviews das influenciadoras das redes sociais, levando diversas pessoas às compras. Porém, a opinião de muitos clientes não foi positiva. O produto prometia um efeito permanente quando, na verdade, era temporário, o que levou a diminuição das vendas. Logo, dá para perceber que as influencers foram fundamentais no primeiro período, mas o produto tem que se consolidar sozinho. Foi isso que a digital influencer Anna Carolina Neves (@anacaroll_ ),19, disse. 

Com mais 83 mil seguidores, Carol não pensa em viver somente como influencer como Rafaela. Ela pensa em seguir na carreira de Administração, graduação que está cursando. Mesmo o crescimento das redes sendo totalmente inesperado, ela não mudou os planos de ter uma carreira, pois acredita que é bem arriscado trabalhar apenas com isso e o mercado digital é complicado.

Carol é influencer de diversos produtos e não conhece tanto sobre skincare. Está sempre fazendo fotos e campanhas de roupas. Na sua vida particular, porém, segue a tendência de cuidados e montou uma rotina com uma dermatologista. As únicas alterações que fez por conta própria foram para marcas que não testam em animais.  E mesmo sendo uma influencer, ela também é influenciada pelas opiniões de colegas e amigas. “A maioria dos produtos que compro foram indicações de amigas.  Mas, passo no dermatologista regularmente para saber se o produto é realmente bom para o meu tipo de pele. Ou também se percebo que não fazem resultados na minha pele, eu deixo de usar imediatamente”.

Independente do tamanho, tanto Rafaela quanto Anna acreditam que o produto deve ser bom para fechar a parceria. Inclusive testariam antes de usar e deixariam claro que não é porque não funcionou com elas que teriam resultados positivos com outras pessoas, mas que vale arriscar. Mas, como elas disseram, o produto deve ser bom. Aquele booster da "Beyoung" era bom? Talvez, mas o que mais incomodou as influenciadas é que, na época, a formulação do produto não era disponibilizada pela marca. 

A rotulagem no Brasil é um problema. Não é levada a sério nem mesmo nos alimentos, segundo Cíntia Rosa Pereira de Lima, professora da USP de Ribeirão Preto e doutora em Direito Civil. “O ideal é que a rotulagem já tenha todas informações essenciais sobre o produto, mas existe o problema de limite físico. Certas embalagens são menores e não comportam as informações, mas é claro que o tem a opção do papel dentro da embalagem igual aos remédios. Porém, se mesmo assim não couber, o certo é colocar os componentes principais, visando a transparência prevista no direito do consumidor”.

As influenciadoras afirmam visitar um profissional qualificado constantemente, ainda que algumas façam personalizações por conta própria. Num País onde sete em cada dez brasileiros dependem do SUS, segundo dados do IBGE de 2019, sistema sucateado pelo governo, conseguir uma consulta pode ser uma batalha que muitos não estão dispostos a enfrentar. Muitas delas mostram suas rotinas como parte de atrair seguidores e ganhar dinheiro, já que marcas pagam para serem anunciadas nas redes sociais delas. Tais rotinas, em sua maioria cheia de produtos e regras, não são a solução universal. Para bons resultados, primeiro deve-se conhecer seu tipo de pele, segundo a médica. E depois lembrar dos passos básicos: limpeza, hidratação e proteção solar. “Não adianta ter o melhor produto em mãos se ele não for o ideal para você. Muitas pessoas que sofrem com acne sabem que tem que usar produto antiacne, mas não lembram de usar creme hidratante. O básico é: um produto bom para limpeza de pele; um para tratar aquilo que incomoda, como acne, manchas, linhas de expressão, etc.; e, não menos importante, o filtro solar para proteger”. 

Julia Petit, fundadora da Sallve, marca de cuidados faciais também com forte presença nas redes sociais, afirmou em uma entrevista ao Universa do Uol que "ter pele boa é ser o novo magra". Os padrões sociais costumam mudar de tempos em tempos, criando e/ou reciclando velhas pressões, pois, como coloca Naomi Wolf em “O Mito da Beleza”, mulheres “naturais” são automaticamente rotuladas de feias e obrigadas, pela vergonha, a aceitarem uma identidade física, produzidas. O crescimento do autocuidado durante a pandemia foi uma das soluções encontradas para resistir às novas dificuldades. Porém, é importante e saudável reconhecer quando é uma imposição social ou uma simples vontade própria para não cair em mais um buraco negro de consumo e infelicidade.





 

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Descaso com prevenção, diagnóstico e tratamento de ISTs, como HIV/Aids e sífilis, é criticado por profissionais da área
por
Emilly Dulce
|
03/06/2021 - 12h

Por Emilly Dulce

Piatã Pataxó é um dos cerca de 900 mil indígenas do País. Registrado como Carlos José Silva Conceição, ele prefere ser chamado pelo nome indígena. Há mais de quatro anos, Piatã trabalha como agente indígena de saúde (AIS) na aldeia Gurita, onde mora há mais de 13 anos. Localizada no município de Prado (BA), a comunidade tem sentido na pele o desmonte da Saúde promovido desde o governo de Michel Temer (MDB) e há mais de dois anos com Jair Bolsonaro (sem partido) à frente da Presidência, conforme conta Piatã.

Pai de quatro filhos, ele se preocupa com o futuro. Desamparo, abandono e descaso são algumas das expressões que Pataxó utiliza para descrever a situação das comunidades em que atua. Só para conseguir um atendimento no polo base de saúde -- situado em um município vizinho, Itamaraju --, os indígenas precisam rodar 58 quilômetros de estrada de terra e, além disso, correr o risco de não encontrar um profissional sequer. 

Embora seja considerada um dos grupos prioritários no Ministério da Saúde, a população indígena enfrenta dificuldades de acesso à prevenção, ao diagnóstico e ao tratamento do HIV/Aids e de outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs). A concentração de esforços institucionais direcionados às populações mais vulneráveis é fundamental para as estratégias de combate às epidemias. Mas, não é o que vem acontecendo.

Pataxó conta que os governos anteriores abriam as portas. Eles sentavam, dialogavam e, pouco a pouco, alguma coisa chegava às comunidades. "Eu fico olhando nas reportagens diárias para ver o que de bom virá para nós, mas a gente só vê notícia ruim: que vai cortar isso e aquilo. Eles estão esquecendo que o ser humano é tão caro. Nós, indígenas, somos seres humanos e precisamos viver. Para isso, nós precisamos da saúde, da educação... a gente não quer riqueza”, avalia. 

O caráter de população prioritária se deve às particularidades de modo de vida e dinâmicas sociais de cada etnia e comunidade, como questões culturais, logísticas e geográficas, por exemplo. No Brasil, existem em torno de 305 etnias que falam ao menos 274 línguas próprias, como informa o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Para reforçar a importância dos cuidados com as ISTs, algumas campanhas colorem a circulação de informações, como é o caso do Julho Amarelo e do Dezembro Vermelho, meses dedicados à conscientização sobre hepatites virais e aids, respectivamente. Os povos das florestas, no entanto, sofrem para usufruir dos serviços de saúde básicos com a frequência necessária.

Para jogar luz nos mais de 521 anos de luta e resistência indígena estão ocorrendo, desde abril, uma série de articulações em prol de estratégias e visibilidade às reivindicações dessa população. Alvos de constantes violências que ceifam vidas e territórios tradicionais, os povos originários ainda batalham pela demarcação de suas terras, pela garantia de direitos básicos e pela preservação de tradições ancestrais.

“Na nossa região são mais de três mil indígenas. Mas, o município vira as costas para nós, inclusive eles falam que na região de Prado não tem índio, e nós estamos aqui. Nós somos o quê? Para eles, nós somos fantasmas então?”, protesta Piatã.

Indígenas da aldeia Gurita, localizada no município de Prado (BA)
Indígenas da aldeia Gurita, localizada no município de Prado (BA)/ Foto: Piatã Pataxó.

Nos 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) faltam médicos e outros profissionais de saúde, insumos, salários, transporte e combustível, por exemplo. Subordinadas diretamente ao Ministério da Saúde, especificamente à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), as unidades são distribuídas estrategicamente tendo como base a ocupação geográfica das comunidades indígenas -- e não necessariamente por estados.

A aldeia Gurita, por exemplo, faz parte do DSEI da Bahia. Com sede na capital Salvador, a unidade fica há mais de 700 quilômetros de Prado e abrange outros 22 municípios com cerca de 77 comunidades indígenas. Piatã conta que as caminhonetes usadas para o deslocamento da população estão encostadas na garagem por falta de combustível e contrato com motoristas. 

Em ocorrências de saúde mais graves, o agente tira dinheiro do próprio bolso para salvar a vida dos parentes. Ele chega a gastar, por exemplo, R$300 para encaminhar uma pessoa de táxi até o hospital mais próximo. “A gente tem o conhecimento das ervas medicinais: elas que têm nos ajudado. Deus nos abençoou com esse conhecimento e a gente se vira com as ervas. Porque, do contrário, ia morrer muito índio aqui”. 

O Ministério da Saúde registrou 1.235 casos de aids na população brasileira que se autodeclarou indígena em 2019. O número corresponde ao último levantamento divulgado no Boletim Epidemiológico de HIV/Aids. No entanto, estima-se uma grande subnotificação nos números devido à dificuldade de acessar os povos de áreas mais isoladas. 

Nestes territórios longínquos, a incidência de ISTs é consideravelmente menor ou praticamente nula -- o que, por sua vez, não acontece com comunidades em centros urbanos e/ou aldeias que vivenciam o contato com não-indígenas. 

Gráfico com dados sobre HIV/Aids em populações indígenas

"Nós sabemos que o homem branco não entende nosso modo de ser. Para ele, um pedaço de terra não se distingue de outro, pois é um estranho que vem de noite e rouba da terra tudo de que precisa. Trata sua mãe, a terra, e seu irmão, o céu, como coisas a serem compradas ou roubadas, como se fossem peles de carneiro ou brilhantes contas sem valor. Seu apetite vai exaurir a terra, deixando atrás de si só desertos”, escreveu o cacique Seattle em 1855 na “Carta da Terra”. 

Portanto, mais do que chegar às comunidades indígenas, os profissionais de saúde precisam ter em mente que o paradigma biomédico não impera sobre as medicinas da floresta e as faculdades da pajelança. Para os indígenas, as doenças do corpo têm, muitas vezes, um sentido espiritual. Portanto, além da própria questão linguística, um dos maiores desafios é conhecer, respeitar e, até mesmo, incorporar os métodos de cura ancestrais -- que passam essencialmente pela sabedoria xamânica. 

                                                                       

O que fica evidente é que a narrativa ensinada nas escolas de modo folclórico, lembrada apenas em 19 de abril (considerado como Dia do Índio) e contada a partir de 1500, com a invasão dos portugueses às suas terras, não contempla a constituição étnica, histórica e cultural da população nativa. No lugar de resolver esta questão, as instituições perpetuam estereótipos obsoletos e a ideia equivocada de um Brasil homogêneo, que desvaloriza a existência de sangue indígena no País.

Neste sentido, o Ministério da Saúde passou a utilizar, nas campanhas, imagens que representavam a aids como figuras míticas de desordem e ameaça do cosmos. Elaboração de materiais educativos em línguas indígenas, capacitação dos agentes de saúde e participação ativa das lideranças tradicionais também chegaram a ser implementadas, como conta Adele Benzaken, médica sanitarista e autora da primeira cartilha brasileira sobre ISTs.

Uma das especialistas mais respeitadas na área, Benzaken conta com mais de 40 anos de experiência em prevenção do vírus da imunodeficiência humana. Ex-diretora do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das ISTs, do HIV/Aids e das Hepatites Virais (DIAHV), a médica foi exonerada do cargo em 10 de janeiro de 2019, onde atuava desde 2016. 

A demissão ocorreu uma semana após o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta afirmar, em entrevista à Folha de S. Paulo, que o governo Bolsonaro iria estimular a prevenção à aids “sem ofender às famílias”. Em pleno século 21, a doença infecto-contagiosa ainda é demarcada por desinformação, estigma e discriminação. 

Nas últimas duas décadas, o Brasil chegou a ser reconhecido como referência mundial na prevenção e assistência ao HIV na rede pública de Saúde. No entanto, o departamento de combate às ISTs não é mais o mesmo. Por meio de um decreto presidencial, em maio de 2019, o governo Bolsonaro modificou a estrutura do setor criado em 1986 -- que passou a se chamar Departamento de Doenças de Condições Crônicas e ISTs. 

Além da extinção do termo “aids”, na nova disposição, o departamento também passou a tratar de doenças que não são transmitidas sexualmente, como hanseníase e tuberculose. A medida é preconceituosa e reacionária, segundo Benzaken, que também é diretora médica da Aids Healthcare Foundation -- considerada a maior organização na luta contra o HIV/Aids do planeta.

“Nós encontramos muito mais sífilis do que HIV. Mas, onde tem muita IST você vê logo depois muito HIV, porque a forma de transmissibilidade é a mesma. E daí porque estão no mesmo departamento. O mesmo não acontece com as outras doenças que colocaram. [Elas] Não têm nada a ver com essa questão comportamental que leva à vulnerabilidade maior para as infecções de transmissão sexual”, ressalta Benzaken.

A existência de uma IST aumenta a probabilidade de se adquirir outra, como mostra um estudo da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (RS). Conforme a pesquisa, as ISTs “aumentam a chance, em pelo menos dez vezes, de contaminação pelo HIV”. 

Na avaliação da médica, uma população prioritária -- como é o caso dos povos indígenas --, sem a assistência necessária, pode se enquadrar rapidamente em uma população-chave. Gays e outros homens que fazem sexo com homens (HSH), pessoas transexuais e usuários de álcool e drogas são alguns dos segmentos que integram as populações-chave. Tais grupos apresentam prevalência do HIV superior à média nacional (0,5%). Nas comunidades indígenas, a proporção é de 0,4% no todo da população brasileira, segundo dados do governo.

Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde informou que “para orientar as populações indígenas que vivem em aldeias sobre prevenção do HIV/Aids e das ISTs, os DSEIs realizam ações de promoção da saúde, como prática de sexo seguro e distribuição de insumos de prevenção, como preservativos”.

Segundo o órgão, as informações contidas no Boletim visam contribuir para o controle do HIV/Aids “no sentido de fornecer subsídios à tomada de decisões nos níveis federal, estadual e municipal”. Fatores internos de algumas comunidades como o uso de álcool e outras drogas e restrições culturais ao uso de preservativo também se somam às particularidades de contágio.

Outros fatores ainda contribuem para o contexto que leva à vulnerabilidade da população indígena ao HIV/Aids: exploração dos recursos naturais pelo capital financeiro, ocupação ilegal de terras indígenas, evangelização forçada nas aldeias, o próprio estigma da aids, entre outros.

Gráfico sobre populações vulneráveis ao HIV/Aids

A discussão é essencial para entender os mecanismos de dominação sobre vida cotidiana, imaginário e memória dos povos da floresta. O fenômeno de controle é sustentado por paradigmas científicos, teológicos, morais e raciais, que dão resguardo para que instituições burocráticas e administrativas, como o Estado, ditem regras sobre os corpos indígenas.

Os nativos, por sua vez, não ocupam o lugar de subserviência em meio às opressões, como conta Piatã. “A gente passa por essas dificuldades tremendas e, muitas vezes, chega a um ponto de perder a cabeça: queimar ou prender caminhonete dentro da aldeia... porque não é o certo, a gente sabe que está trazendo um problema para nós mesmos. Mas, às vezes, nós temos que fazer para que o povo possa enxergar e questionar: 'poxa, o que está acontecendo com aqueles índios que estão fazendo isso lá?'”.

A falta de visibilidade e empatia leva os indígenas a se mobilizarem em prol de políticas públicas que garantam seus direitos básicos -- o que tem se tornado mais espinhoso a cada ano que se passa: com cortes na Saúde e Educação, fomentados, por exemplo, pela Emenda Constitucional 95, assinada em 2016.

A adoção de medidas de austeridade lança à margem segmentos sociais que já são vulneráveis, como os indígenas. Embora esteja nos planos da Organização Mundial da Saúde (OMS) conter o HIV/Aids e a Hepatite C até 2030, o congelamento dos investimentos em Saúde Pública vai na contramão desta meta.

Por isto, os problemas relatados por Piatã não são singulares, sobretudo após o fim do convênio entre Brasil e Cuba no Mais Médicos, programa criado em 2013 pelo governo da então presidenta Dilma Rousseff (PT). Os contratos dos cubanos eram intermediados pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).

Em novembro de 2018, antes mesmo de Bolsonaro assumir a presidência, o governo da Ilha rompeu o contrato com o programa, após declarações do então candidato eleito que, segundo o Ministério da Saúde Pública da República de Cuba, foram “ameaçadoras e depreciativas”. Ainda durante a campanha, o capitão reformado disse que pretendia expulsar os médicos cubanos do Brasil. 

Com o questionamento da preparação e capacidade dos estrangeiros, Bolsonaro desassistiu áreas pobres e longínquas do Brasil, como as comunidades indígenas -- vagas anteriormente abandonadas por profissionais brasileiros ou de outras nacionalidades. Por meio do programa, mais de 700 municípios tiveram um médico pela primeira vez na história.

MEDICINA: FORMAÇÃO CURRICULAR DEFICIENTE 

“No período do Mais Médicos foi a primeira vez que, como amazonense com 40 anos de formada, eu vi a presença do médico nas equipes de saúde em todos os DSEIs. A questão do acesso, da cultura e da credibilidade desse cuidado não-indígena, para eles, é bastante tênue. O que complica, no caso, a assistência às pessoas indígenas vivendo com HIV”, destaca Benzaken. 

A formação atual dos profissionais de saúde não dá conta de pensar as particularidades e necessidades da população indígena. Esta situação é preocupante, visto que a Saúde é o principal contato dos povos tradicionais com as políticas públicas brasileiras. O apontamento é do médico Luiz Otávio de Araújo Bastos, especialista em Medicina de Família e Comunidade. 

Dedicado à saúde indígena desde 2015, Bastos atuou no Mais Médicos como supervisor dos cubanos em comunidades dos estados de Amazonas e Roraima. Com a saída dos profissionais, ele passou a trabalhar como médico no distrito indígena Yanomami e Ye´kwana. A equipe da qual faz parte conta com outros profissionais de saúde, como enfermeiros e técnicos de enfermagem. 

Para Bastos, é importante ser cuidadoso quanto à cultura dos povos indígenas, já que a medicina interfere diretamente no modo de vida deles. “Existem profissionais com a ideia de que estão ali para poder salvar a vida dos indígenas e dar remédios para problemas de saúde, mas não pensam que, com isto, podem causar danos para eles também”.

Ao longo dos anos de graduação e especialização na medicina, Bastos não estudou sobre saúde indígena em nenhuma das grades curriculares. Segundo ele, é mais do que urgente repensar a formação médica e dos profissionais de saúde. “Não dá para reproduzir as coisas do hospital nesses distritos, e eu arriscaria também dizer que não só no hospital: não dá para reproduzir muitas das formalidades. A ideia de um posto de saúde na cidade não é a mesma coisa que um posto de saúde dentro de uma aldeia isolada na Amazônia”.

                                                                    

"PROGRAMA MAIS MÉDICOS" : UM BREVE ALENTO

A Terra Yanomami é uma das maiores reservas indígenas do Brasil, localizada perto da fronteira com a Venezuela. O território foi homologado em 1992 e cobre mais de 96 mil quilômetros quadrados de floresta tropical. Em meio à Floresta Amazônica, sem centros urbanos ou assentamentos rurais por perto, a locomoção se torna um dos maiores desafios: dias de barco, semanas de caminhada ou horas de avião. 

Por conta da logística, poucos são os médicos que permanecem nas comunidades, principalmente quando se trata de brasileiros formados no Brasil. “A saída dos cubanos foi muito grave. A gente tinha, na época, 14 médicos cubanos em um distrito que nunca teve dois médicos fixos em área”, conta Bastos.

“Éramos sete médicos brasileiros formados no Brasil e, em menos de seis meses, três foram embora, o que reflete mais ou menos o que o Ministério vinha publicando de dados sobre a desistência de brasileiros formados no Brasil no programa: uma média de 40%”, completa o médico.

Terra Indígena Yanomami.
Território Yanomami/ Foto: Leonardo Prado/PG/Fotos Públicas.

Na Terra Indígena Yanomami não há registro de casos de HIV/Aids, o que não se aplica, no entanto, à sífilis e outras ISTs. Apesar do pouco contato dessa população com a cidade, para Bastos, é possível que exista uma subnotificação nos números. Vale ressaltar que as ISTs são de difícil detecção, uma vez que poucos são os sintomas visíveis e a maioria delas é assintomática. 

Logo, a educação preventiva para os indígenas deve levar em conta as questões linguísticas, culturais e geográficas de cada povo. Testes rápidos de ISTs, cartilhas e campanhas informativas em dialetos indígenas são algumas iniciativas importantes que, infelizmente, vêm sendo negligenciadas. 

“Como todo projeto neoliberal, a grande perspectiva é destruir uma política pública, minguá-la aos poucos. Eu acho que este é o caminho que o atual governo tem pensado de desenvolvimento econômico -- e claro que a saúde indígena é um empecilho para esses projetos”, critica Bastos.

Falar de saúde indígena atravessa, essencialmente, a necessidade da demarcação de terras, já que muitas populações sofrem com a exploração por parte do agronegócio, da mineração e da especulação imobiliária, inclusive na Terra Yanomami.

“O presidente, antes de ser eleito, anunciou interesse em mineração no território Yanomami, que é uma região muito rica em ouro e alguns outros minerais. O garimpo hoje, na Terra Indígena Yanomami, é ilegal mas ativo, e eu arriscaria dizer até com o aval de algumas instituições governamentais”, salienta Bastos.

Conforme a Constituição de 1988, os territórios indígenas deveriam ser demarcados pelo governo federal em até cinco anos. Não foi o que aconteceu. Atualmente, a modalidade de demarcação representa apenas 13,75% do território brasileiro. 

De acordo com dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), existem 680 processos demarcatórios, dentre os quais 443 se tratam de áreas homologadas/regularizadas e 237 estão em estudo para aprovação como terra tradicional. 

Protesto indígena em Brasília (DF).
Foto: Roque de Sá/Agência Senado.

Benzaken ainda destaca a atual pandemia da Covid-19 como mais um dos agravantes do quadro. Segundo a médica, “é necessário assegurar a manutenção dos serviços de testagem e tratamento para o HIV, as ISTs e hepatites virais; tratar as políticas de saúde sexual, reprodutiva e materno-infantil como essenciais, respeitando as particularidades sociodemográficas e vulnerabilidades de gênero, sobretudo em relação às mulheres e meninas”.

Além disso, a Faculdade Imperial de Londres estima para os próximos cinco anos um aumento de 10% nas mortes relacionadas à aids em todo o mundo. Com a pandemia de Covid-19 -- sem prazo para término --, o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids) já projeta 230 mil novos casos de HIV e um adicional de 140 mil óbitos relacionados à aids.

Tendo em vista a vulnerabilidade das pessoas que vivem com HIV, o Ministério da Saúde decidiu priorizar também este grupo na vacinação contra o novo coronavírus, conforme nota publicada no último dia 29 de março. Desta forma, indígenas que vivem com HIV/Aids enfrentam barreiras em dobro para se manterem vivos.

“A gente vê os comentários que índio quer celular, televisão, carro... eu não quero nada disto. Eu quero saúde, quero viver dentro da minha comunidade alegre, plantar e viver das minhas ervas. Eu quero ter meu direito reconhecido como dono da terra, da nossa terra. Meu povo quer viver e quer paz”, finaliza Piatã.

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Uma análise sobre o estado de saúde física, mental e emocional dos membros da linha de frente
por
Enzo Cury e João Victor Capricho
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22/06/2021 - 12h

Por Enzo Cury e João Victor Capricho

Acordar, tomar café, se preparar para o trabalho, pegar um ônibus lotado, chegar ao hospital, vestir o EPI, atender um mar de gente, e até perder algumas...
Adentrando a UTI e sentindo o frio advindo do ar-condicionado, que permeia o ambiente, ela entende que está na hora de dar início aos trabalhos na linha de frente.

Essa é a rotina de Maria fisioterapeuta pós-graduada e membro ativo da linha de frente em dois hospitais diferentes na grande São Paulo.
Não é novidade para ninguém que o Brasil vive uma das maiores crises sanitárias, senão a maior de sua história. O país chegou à inimaginável marca de mais de 3000 mortes em um dia, além de ser um dos recordistas no número geral de óbitos, com mais de 300.000 famílias destruídas em pouco mais de 1 ano.

Além da Covid, diversas pessoas, que sofrem de diferentes enfermidades, estão falecendo na fila de vários hospitais ao redor do Brasil. A Covid não é único mal que assola nosso país ultimamente, mas, como é possível observar, não há prioridade para o tratamento de outras doenças, e nós até nos esquecemos que outros tipos de problemas existem.

Com a má atuação do governo, a ausência de infraestrutura e logística no manejo da crise, toda a carga acaba se concentrando nas áreas que mais se expõem, na tentativa desenfreada de parar o avanço da doença no Brasil. E, como já é sabido por todos, os profissionais de saúde têm sido os que sofrem a maior parte deste impacto.

Carregar nos ombros o peso de milhares de vidas, não é apenas cansativo para o corpo. Muito além disso, a estafa física e mental, que está acometendo os profissionais de saúde, tem se tornado um problema grave dentro do meio. As sequelas, advindas da rotina ultra estressante, podem ser de grande impacto em sua vida, podendo ser até irreversíveis...

E a exaustão não afeta o profissional apenas durante o plantão. A situação que médicos, enfermeiras, anestesistas e outros diversos membros da área passam, todos os dias, possui reflexos severos em todos os âmbitos de sua vida.

Somando ao cansaço, como se isso já não fosse o suficiente, todos aqueles que agora estão na linha de frente do enfrentamento a Covid, sabem que estão expostos. Isso os obriga a tomar certas medidas de precaução, como o distanciamento dos entes queridos, por exemplo.

Em conversa com Maria, foi possível entender um pouco de como é a rotina de um membro da área da saúde neste momento.

“Eu faço tudo sozinha. Eu como sozinha, tomo café sozinha e me mantenho afastada. Eu falo com meus familiares, mas, por exemplo; no aniversário da minha mãe fiquei muito triste por não poder abraçá-la, eu evito ficar próxima e falo com eles à distância. Faço minha rotina separada, minha roupa é separada e acabo ficando mais no meu quarto” - relata nossa entrevistada.

Maria de Jesus é apenas um exemplo dos milhares de profissionais de saúde e membros da comunidade científica que tem se entregado de corpo e alma, na tentativa de amenizar a situação atual.

imagem aproximada de um profissional de saúde colocando luvas

A situação dos hospitais durante a Pandemia

Como já é de ciência geral, com o agravamento da pandemia no Brasil e a ausência de infraestrutura hospitalar adequada, que supra as demandas por equipamentos, como leitos, tubos, tanques de oxigênio, entre outros, controlar o vírus está cada vez mais difícil. 

A situação encontrada nas Unidades de Terapia Intensiva, de acordo com diversos relatos, assemelha-se a um cenário de guerra.  O panorama se dá por, no mínimo, caótico, e reflete o quão grave é a situação pela qual nosso país está passando.

Para maior entendimento, a ocupação de leitos no estado de São Paulo já passa dos 92%. Com isso, não é de se surpreender que o sistema de saúde do estado entre em colapso, de acordo com as projeções atuais, que se referem ao avanço da pandemia no país. 

Entretanto, a Covid-19 não é a única enfermidade que acomete a população. No cenário atual, pacientes com outras comorbidades padecem no aguardo de leitos e na expectativa de internação. 

bebê dentro de incubadora

A saúde mental dos trabalhadores da saúde
Ao mesmo tempo que muitos possuem o privilégio de poder ficar em casa, esta não é a realidade dos trabalhadores da saúde. Muito pelo contrário, os profissionais da linha de frente reforçam a necessidade de, se possível, ficar em casa neste momento, mas,em contrapartida, são obrigados a sair todos os dias para exercer a profissão.

Porém, neste caso, o ambiente hospitalar não é mais o cerne da questão. Por incrível que pareça, ambientes que também podem afetar, e muito, o bem-estar de um profissional de saúde, podem ser suas próprias casas, grupos de amigos, etc…

Soa improvável, mas este tipo de distanciamento tem se mostrado comum. De acordo com uma nota, que foi emitida pela Secretaria de Saúde do Distrito Federal, em Março de 2020, um dos principais fatores de risco relacionado ao sofrimento psíquico dos profissionais de saúde, é a estigmatização por trabalhar com pacientes infectados pela COVID-19. Por necessitarem de medidas de biossegurança muito estritas, os profissionais acabam sendo vistos como “ameaças”, ou até como um possível vetor, e acabam sendo hostilizados e até evitados pelos familiares e amigos, afirma a cartilha.

Além disso, por conta da exposição, é necessário que aqueles na linha de frente, se possível, se distanciam daqueles com quem convivem. E é justamente nesse momento que surge a solidão. Ela não está diretamente relacionada ao estranhamento por parte do círculo social em que a pessoa vive, mas é agravada por ele.

Neste momento, existe uma somatória de fatores que afetam a psique de alguém: a estafa emocional e física, a responsabilidade, o excesso de trabalho tido como em vão e, como estopim, a completa ausência de um outro, para com quem essa pessoa possa desabafar e liberar um pouco a carga emocional.

Com o agravamento da situação da pandemia em nosso país, esta situação tende a piorar, e o ciclo acaba por se tornar vicioso. Com isso, não será impressionante que diversas pessoas abram mão de seu ofício, justamente por não aguentarem mais e não verem uma saída ou um fim para esta situação.

enfermeira uniformizada sentada ao chão e olhando para cima dentro de corredor hospitalar

Como a saúde física é impactada
Para além do risco de contaminação, a saúde física dos profissionais de saúde também corre sério risco em meio à pandemia. Além do estresse e esgotamento mental, que são os principais aspectos que entram em voga quando se trata da saúde de um profissional da área, também é preciso pensar na qualidade de vida e na rotina daqueles na linha de frente.

Não é novidade, que os problemas que afetam o psicológico podem ter efeitos preocupantes no corpo físico, mas também é preciso ponderar os reflexos que o dia-a-dia traz: aparato que limita a movimentação, excesso de trabalho, má alimentação, privação de sono e entre outros. São situações recorrentes, pelas quais todo profissional de saúde tem passado. Maria de Jesus relata:

“Até que minha saúde física anda bem, mas me sinto muito mais cansada mentalmente. Além disso, é normal nós (trabalhadores da saúde) ficarmos fatigados. Eu perdi peso, pois a rotina é muito corrida. Uma amiga minha está até com problema no estômago por conta da dificuldade de se alimentar devido a correria. Eu tenho sorte de minha mãe me ajudar nessa questão. Também tem os que apresentam enxaqueca constante, ou seja, todos os sinais do cansaço, e isso é normal entre os colegas. Parece que nossa atividade cansa duas vezes mais do que deveria por conta da situação.” - relata a fisioterapeuta.

O emocional dos membros da linha de frente
Saúde emocional e saúde mental são costumeiramente confundidas e tidas como a mesma coisa por muitos, e apesar de apresentarem algumas semelhanças, não são exatamente a mesma coisa.

Ao passo que a saúde mental está relacionada com o lado racional, nossa saúde emocional está ligada aos sentimentos e emoções. Porém, ambas possuem o mesmo efeito: a forma com a qual nos relacionamos com o ambiente a nossa volta.

De acordo com o professor, hipnólogo e clínico, Alessandro Baitelo, "O que diferencia entre a saúde emocional e saúde mental são alguns elementos sutis, como por exemplo a forma como cada uma pode ser vista. A saúde emocional é mais fácil de ser percebida por outras pessoas, uma vez que se trata diretamente da forma como se lida com outros indivíduos.

Já a saúde mental é um pouco mais complexa, pois uma vez que envolve questões químicas cerebrais, pode ser mais difícil perceber sinais de que o indivíduo não está com a saúde plena. Portanto, ambas estão ligadas à relação de um determinado sujeito com os indivíduos e com os ambientes com os quais este se relaciona, mas os impactos que ambas as áreas possuem nesse sujeito, são diferentes".

De acordo com as informações apresentadas, já é de se esperar que os profissionais de saúde apresentem mudanças drásticas em seu comportamento daqui para frente, principalmente com o aumento significativo dos casos, que ocorreu em questão de meses.


Maria, a fisioterapeuta que nos contou um pouco sobre sua situação como profissional de saúde, afirma: “As minhas relações foram muito afetadas por conta da minha rotina. Na pandemia nós não temos contato com as pessoas e a minha rotina faz com que eu não consiga ter tempo para responder mensagens, por isso acabei me afastando de alguns amigos. Nem todo mundo entende que você tem trabalhado muito e não tem tempo para conversar.

Eu só vejo as pessoas do meu trabalho e a minha família, porque eu evito ao máximo sair e ter contato com outro alguém.”
Além disso, a ausência de um momento para se distrair e relaxar, também tem grande impacto em nosso comportamento, tendo em vista que não existe mais a “válvula de escape” para a rotina estressante. Nossa entrevistada, por exemplo, afirma que já não dispõe mais de tanto tempo livre em sua rotina, mas, quando o tem, usa apenas para dormir e se recuperar de mais um dia no qual mais algumas vidas foram perdidas.
O relato de Maria não se deve apenas a sua responsabilidade como profissional, mas, também se dá pelo emocional abalado devido a sua rotina.

 

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Episódio retrata as experiências e opiniões de pessoas sobre a pandemia
por
Marcelo Moreira, Maria Luiza Oliveira, Pedro Alcântara, Renan Mello
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16/04/2021 - 12h

No primeiro episódio do PODPUC, fizemos um recorte dos pontos que mais se destacam nesse momento de pandemia no Estado de São Paulo. Com as opiniões de professores, enfermeiro e uma pessoa que já contraiu o vírus

Trazendo diferentes visões sobre o assunto, foi produzido pelos alunos da PUC-SP: Marcelo Moreira, Maria Luiza Oliveira, Pedro Alcantara e Renan Mello.

Confira o episódio do PODPUC, disponível no Spotify: https://open.spotify.com/episode/1452CV5i9267CmSTU4IR7f?si=qWS6dS6-RdiuJbgvHnQmew&nd=1

 

Os trilhos da Covid-19 em São Paulo

 

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