A humanidade conhece o racismo há séculos. Ele se manifesta desde as maiores atrocidades, como a escravidão, até as formas mais imperceptíveis para as pessoas brancas, como um olhar diferente, que é conhecido como racismo estrutural. Um exemplo desse tipo de discriminação pode aparecer até em relação ao modo de se vestir de cada um. Um branco pode sair tranquilamente na rua de camiseta, bermuda e chinelo, mas, caso um negro use esta mesma vestimenta, corre o risco de ser parado pela polícia ou receber olhares de desconfiança, como relata o jornalista Marcus Vinícius Anjos, atualmente repórter da Rede Globo: “no mercado, a gente se dá ao luxo de usar roupas mais simples. Se uma pessoa branca vai vestida assim no mercado, ela é tratada de uma forma, mas as pessoas negra, de outra”.
Outro meio em que o racismo é notável, é no jornalismo, principalmente dentro da televisão. Pesquisas apontam que apenas 10% dos profissionais do Jornalismos televisivo são negros. Marcus diz que trabalhou com poucos jornalistas negros: “Em uma emissora eu era o único negro na redação. Embora a diversidade esteja crescendo e sendo aceita em diversas empresas, não se compara com a grande quantidade de colegas brancos. A impressão que eu tenho é que nós temos avançado, mas de forma muito tímida. De qualquer maneira, é muito bom ver que essa questão esteja mais presente nas pautas dos veículos de comunicação”.
Além do número de negros presentes nessa área ser baixo, estes jornalistas passam por dificuldades. A jornalista Basília Rodrigues tem 13 anos de profissão e atualmente é analista na CNN Brasil. Ela conta que no início da carreira, antes mesmo de fazer televisão, sentiu-se alvo de racismo ao ser convidada para cuidar da filha da pessoa que a chefiava. "Eu não aceitei, afinal de contas meu trabalho era ser jornalista e não babá”. Ao ser questionada sobre qual foi o ato de racismo mais marcante que já sofreu, ela faz uma importante colocação: “Todos são marcantes. Nem todos podem ser ditos”.
Basília conta como é fazer parte desse pequeno grupo de jornalistas e menciona sentimentos que já teve ao longo de sua trajetória: “A definição de repórteres e pautas em uma redação passa por diversos critérios. Às vezes, raciais. É preciso ter muito jogo de cintura. Sentir-me preterida, como deixar de acompanhar algum evento social por decisão da empresa, é um exemplo de racismo, mas eu não saberia, nem gostaria, de apontar muitos detalhes. Observo que todos esses relatos são do início da minha carreira. Não tem relação com o atual lugar onde trabalho”.
É possível conhecer os dois lados da moeda existentes nas vidas de jornalistas negros. Marcus conta que felizmente nunca sofreu racismo no exercício da profissão e se sente privilegiado por isso: “Ao mesmo tempo, não me vejo na condição de naturalizar esse privilégio e poder dizer que é normal, porque não é. Tenho a consciência de que a maioria dos negros não o possuem”.
A ativista e intelectual Lélia Gonzalez fala sobre a apropriação de ser negro: “a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha dentre outras, mas tornar-se negra é uma conquista”. Basilia explica o que Gonzalez quer dizer: “A conscientização de que carregamos responsabilidades coletivas tanto quanto as nossas trajetórias pessoais, vem com o tempo. O "tornar-se negro" ultrapassa a definição do tom da pele. Compreender-se como parte de uma história que antecede as nossas próprias vidas, que vem das condições e posições criadas para o negro na sociedade, depende de um processo de reflexão e de vivências. Para alguns, isso pode ser rápido, em especial quando o negro nasce em uma família com consciência racial; em outros casos, é mais complexo, depende de experiências (ruins ou positivas) que amadureçam a percepção sobre a diferença social entre ser negro ou branco”.
Marcus cita uma experiência pessoal que é um bom exemplo da situação acima: “Desde pequeno, cortei o cabelo bem baixinho, meu pai que ditava o tamanho do corte quando me levava no cabeleireiro. Quando vim da Bahia para São Paulo, eu passei a controlar o tamanho do meu cabelo. Apesar de não ter mudado o corte, passei a cortá-lo mais alto. Se uma pessoa branca pode usar um cabelo do tamanho do meu, porque eu que sou negro não posso? As vezes meu pai me pergunta “você não está com o cabelo muito grande?” e eu respondo “não, está do tamanho que eu quero”. O fato dele estar maior não é uma questão de desleixo, eu que quero ele assim. É uma questão que a gente se poda as vezes. Se o seu cabelo não é liso, é crespo, você se sente obrigado a cortar ele baixinho. Felizmente comigo nunca aconteceu de uma empresa me mandar cortar o cabelo. Sinal de que aos poucos, as coisas estão melhorando”.
Através dos telejornais, é possível notar a grande importância que se dá a notícias vindas do continente europeu e dos Estados Unidos. Já o continente africano tornou-se uma “não notícia” e quando faz parte dos telejornais, é retratado como um lugar pobre, violento e com alto índice de fome. Durante o período de vacinação contra a COVID-19 no mundo, a África foi esquecida. Em uma coletiva de imprensa, o diretor do Centro Africano de Controle e Prevenção de Doenças (África CDC), John Nkengasong alerta que apenas 3,5% da população foi completamente imunizada, segundo dados publicados em 14/09/2021. Enquanto, no mesmo período, 58% da população estadunidense estava completamente vacinada, segundo a publicação digital Our World In Data.
Marcus fala sobre a falta de informação em relação à África e cita um exemplo retirado de um livro jornalístico: “É triste. Tem um exemplo num livro que diz “se um avião cai na Europa ou nos EUA com 20 pessoas, indiscutivelmente isso vai ser pauta no mundo inteiro. Mas se um avião com 300 pessoas cai na África, isso as vezes vira uma nota em algum jornal, dependendo do veículo, se torna apenas uma nota pelada, que não tem nem imagens”. 300 pessoas valem menos do que 20 dependendo de onde elas vivem? Pra mim, isso é questionável demais. No dia a dia, a gente precisa ter esse olhar e cuidado, porque as vezes somos condicionados a isso. Quando eu era mais novo, tinha meu próprio jornal, em que eu era o editor chefe, apresentador e repórter. Já perdi as contas de ver uma notícia e pensar que ninguém se interessaria por ela. A gente precisa do exercício de se perguntar: “porque um avião caiu na África, as pessoas vão se interessar por aquela notícia?”
No artigo “Sete Visões da Crise do Jornalismo Profissional- Tempestade Perfeita”, a jornalista Luciana Barreto cita uma experiência que vivenciou: “recebi um convite para participar de uma celebração com angolanos no Brasil. O representante do consulado veio explicar a alegria de ver um pouco de seu país em algum noticiário, reconhecendo o Brasil como um país extremamente racista. Por último, me fez um pedido que exemplifica quanto estamos distantes de chegar a um jornalismo plural. Com cuidado e um tanto embaraçado me perguntou se nós poderíamos atualizar nossos arquivos porque o país dele não era mais aquele, as ruas estão diferentes, e disse ainda: “Não temos fuscas por lá desde os anos 1980”. Basília diz que esse tipo de tratamento que matérias vindas da África recebem, é preconceituoso: “narrativa dominante de que o negro é sempre marginalizado, periférico, excluído, pobre, necessitado. Infelizmente esse entendimento distorce as diferenças, amplia as desigualdades e reforça o olhar exótico (e equivocado) sobre o negro”.
Diante desses apontamentos, é possível dizer que apesar de jornalistas negros estarem ocupando um pouco mais de espaço no telejornalismo, ainda são poucos os que fazem parte dele. É preciso melhorar, segundo Marcus: “Eu torço para que a gente melhore e para que possamos ver uma redação colorida”. Além de inclusão, é necessário ter igualdade entre negros e brancos, em todos os aspectos.
Para Amailton Azevedo, professor de História da PUC-SP, cantor e compositor independente, sua história com a música começou desde quando era criança, porém só se envolveu com a cena musical na faculdade: “Formei bandas e participei de festivais universitários. Em 2011, fiz um pocket show no festival ‘South by South West’ em Austin, nos EUA. Em 2021 irei lançar o single ‘Ruas Tortas’ como produção independente. Para 2022 está previsto o lançamento do disco ‘Asas Negras’ em parceria com Salomão Salomão.”
Atualmente, com o crescimento dos serviços de streaming, a realidade dos músicos independentes — aqueles sem contrato com gravadoras — mudou radicalmente. Eles mostram que é possível construir uma carreira de sucesso usando apenas as redes sociais e as plataformas como Youtube, Spotify e Apple Music. Para Amailton, a música não é sobre o estrelato, conta com seu álbum 'Mundo Atlântico’ de 2007, disponível no Spotify, onde possui 20 ouvintes mensais. Sobre isso, ele diz: "Hoje é uma questão absolutamente resolvida, pois compreendi que fazer música é diferente do que fazer sucesso. Já almejei o sucesso, hoje almejo continuar no circuito dialogando com meus amigos e amigas envolvidos com a música."
O Spotify escolheu a Top Brasil, sua maior playlist de hits, para celebrar, com música nacional, o “Dia da Consciência Negra”. Durante uma semana, a seleção contou com músicas feitas exclusivamente por artistas negros. Os grandes espaços da música estão cada vez mais sendo reocupados por esses músicos, recebendo, assim, seu reconhecimento. Isso é visível pelos line ups de grandes festivais, que têm tido uma crescente lista de nomes negros nos últimos anos, e a tendência é continuar aumentando, conforme o sucesso é alcançado e reconhecido.
O abismo ainda é evidente, em 2019, no Rock In Rio, dos 92 artistas que performaram, apenas 34 eram negros. No Lollapalooza, de 69, apenas 13. Contudo, tais artistas têm recebido grande destaque, fazendo jus a suas importâncias no cenário mundial. No RIR de 2019, quatro artistas se apresentaram no Palco Mundo, o maior do festival, dentre eles: Drake e Black Eyed Peas. Já no Palco Sunset, foram cinco brasileiros: IZA, Alcione, Elza Soares, Karol Conká e Mano Brown.
Amailton vê a música como um estilo de vida, não como uma carreira. Afirma que suas maiores inspirações para suas composições, são os estilos negros americanos, a Black Music, sendo eles o funk, rap e jazz. Caracterizada por esses estilos, a música brasileira nasceu a partir das danças e musicalidade dos indígenas, dos africanos, franceses e portugueses. Mas com o avanço da indústria cultural nacional, novos estilos e tendências foram ganhando espaço, e consequentemente, essa indústria elege quem recebe a fama ou não.
Com a popularização das redes sociais, os criadores de conteúdo musical criaram tendências e mercados alternativos engajando o próprio público. Com isso, a indústria musical adaptou-se a esse modelo, adotando as redes alternativas de produção e difusão, como os streamings, citados anteriormente, assim, Azevedo conclui: “A relação entre indústria e artista é muito complexa. Não se pode dizer que a Indústria tem o monopólio da criação. A indústria pode esvaziar um produto, mas a capacidade criativa do artista sempre provoca a surpresa e o inusitado, renovando a própria indústria que massifica o produto artístico.”
Não é nova a reivindicação de revisar figuras históricas que ganharam notoriedade e homenagens pelo país. Grandes figuras como Maurício de Nassau, Joaquim Pereira Marinho, Fernão Dias Leme e Conde dos Arcos têm estátuas em sua homenagem e tinham envolvimento com o tráfico negreiro ou com a repressão de escravos.
O professor e historiador Robson Freitas afirma que essas figuras ganharam notoriedade no contexto da Primeira República (1889), quando tentou-se estabelecer uma narrativa da unificação do Brasil através do processo da escravidão, fazendo com que essas figuras fossem enaltecidas e os ancestrais indígenas e africanos que foram violentados no processo fossem apagados da história.
“E isso tudo também conforma com uma visão de mundo extremamente racista, que começou a ser gestada antes mesmo do Brasil escravocrata, mais ou menos ali no começo da Primeira República, que resgata todas essas figuras e o racismo como forma de unificar a sociedade brasileira. Tem elementos que são embranquecedores da população brasileira recebendo destaque”.
No dia 24 de Julho foi incendiada a estátua de Borba Gato na capital de São Paulo. O protesto foi motivado pelo personagem racista e colonizador que foi o bandeirante, já que foi um dos protagonistas nos avanços colonizadores para o interior do país. Nesses avanços, matou ou escravizou cerca de 300 mil índios apenas nas primeiras 3 décadas do século XVII. O movimento negro e indígina hoje afirma que foi um genocídio.
Salvador, o segundo porto que recebeu mais escravos na América, atrás apenas do Rio de Janiero, é palco para estátuas de traficantes de escravos, como a de Joaquim Pereira Marinho. Em 2020, foi encaminhado um projeto de lei para a Assembleia Legislativa de Salvador, com autoria de Hilton Coelho (PSOL), que determinaria a retirada de estátuas, monumentos, placas, ou toda e qualquer outra forma de homenagem ou valorização de figuras históricas que estiveram ligadas ao comércio escravagista com a África. A PL ainda não foi aprovada.
Robson Freitas concorda com a retirada dessas estátuas, afirmando que "elas são figuras que escancaram o nosso passado de violência mesmo, contra negros e indígenas", acreditando que seria incompatível com um projeto de nação que se pretenda respeitar as diferenças, manter essas figuras ocupando locais de homenagem pública.
Segundo Augusto Sousa, estudante da Universidade Federal da Bahia e militante da União da Juventude Rebelião, a demolição das estátuas não é o ponto central "mas sim o que elas representam hoje, uma elite que hoje domina nosso país, que é a responsável pela educação e”, e afirma que é ela que diz o que deve ser contado da história brasileira. Ele acredita que o movimento negro e a esquerda devem se apropriar dessas estátuas para mostrar os erros desse sistema, e lutar para a representação dos verdadeiros heróis da luta do povo negro, citando Zumbi e Dandara dos Palmares.
Há concordâncias e divergências sobre a demolição das estátuas, mas há um pensamento congruente entre historiadores e movimentos militantes é o de que não há mais espaço dentro da sociedade brasileira para transformar personagens envolvidos com o tráfico de escravos e escravocratas em heróis nacionais. Paulo Pachá, professor e historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro fez uma thread no twitter sobre o assunto, acompanhe:
O debate sobre a retirada das estátuas em homenagem a racistas chegou ao Brasil, e isso é uma coisa boa. Se você acha que derrubar (ou remover) uma estátua é "apagar a história", segue o fio e eu vou explicar pq você está errado. ⤵️ pic.twitter.com/FEXxGDDUNM
— Paulo Pachá (@phpacha) June 9, 2020