Fazendo um recorte e analisando o Jornalismo Esportivo, essa realidade é ainda mais desafiadora. Apesar de hoje ainda não haver um equilíbrio no número de homens e mulheres falando de esportes nos meios de comunicação e ser uma área dominada por eles, é notório que o cenário teve mudanças e é possível ver mais a presença feminina nesse lugar.
Com o crescimento delas na editoria de Esportes, o interesse em motivar mais jovens a exercer a profissão também aumenta. Grandes nomes como Regiani Ritter, Isabela Scalabrini, Renata Fan e Glenda Kozlowski abriram as portas para que hoje possamos ver os programas esportivos sendo compostos pelas mulheres e falando mais sobre a participação delas em várias modalidades esportivas.
O chute inicial
A primeira mulher a trabalhar com esporte no jornalismo que se tem relatos, foi Maria Helena Rangel. Por volta de 1947, Rangel, que cursava jornalismo na Faculdade Cásper Líbero, fez participações na Gazeta Esportiva. Além de jornalista, ela era atleta de arremesso de peso e tinha formação em Educação Física pela Universidade de São Paulo (USP).
Alguns anos antes, porém, a carioca Mary Zilda Sereno já se aventurava no fotojornalismo em São Paulo. Suas primeiras fotos já foram ligadas ao futebol. Depois da Copa do Mundo de 1934, ela vendeu para o jornal O Globo uma foto de uma italiana que vivia no Brasil, comemorando o título de seu país natal, mas ela não foi contratada pelo periódico simplesmente por ser mulher. Sereno continuou tirando fotos de todas as editorias, mas sempre com foco no esporte.
Na televisão, Marilene Dabus se destacou após participar de um programa de conhecimentos gerais sobre o Flamengo na TV Tupi. Após sua participação, a jornalista foi contratada para ser setorista do clube no jornal Última Hora.

Marilene ganhou ampla notoriedade na cobertura jornalística do Flamengo e em meados dos anos 1980, deixou as redações para assumir o cargo de Vice-Presidente de Comunicações do clube. Ela teve grande impacto dentro da equipe da Gávea. Partiu de Marilene a ideia de batizar o Centro de Treinamentos (CT) de ‘Ninho do Urubu’.
Outra pioneira na cobertura esportiva foi a apresentadora Claudete Troiano, conhecida por ser a primeira mulher brasileira a narrar uma partida de futebol. Em entrevista ao programa “Sensacional" da RedeTV, Claudete afirma que o trabalho dela foi muito importante naquela época pois a mulher era colocada como objeto decorativo em programas esportivos. Atualmente, a jornalista apresenta programas de televisão voltados ao público feminino.

Porém, uma das maiores desbravadoras do jornalismo esportivo foi Regiani Ritter. Sua trajetória na editoria teve início nos anos 1980 ainda na Rádio Gazeta, cobrindo folgas de repórteres nas partidas de futebol; com o tempo, Ritter foi pegando gosto pela coisa e se tornou comentarista do programa Mesa Redonda na TV Gazeta.

Uma das marcas de Ritter era não ter receio de entrar nos vestiários após os jogos para conseguir entrevistas com jogadores. Em entrevista ao Uol, ela afirma: "correu jogador para todo lado. Mas, mais para frente, eles passaram a agir normal. Na quarta vez que entrei eles já estavam acostumados comigo".
Graças ao trabalho de Regiani, diversas outras mulheres ingressaram na cobertura de esportes entre os anos 1980 e 1990, como Kitty Balieiro, Simone Mello, Abigail Costa, Elys Marina, Lia Benthien, Marisa de França, Wania Westphal e Isabel Tanese, por exemplo. Tanese, por sua vez, foi a pioneira na direção de um caderno esportivo de um jornal impresso brasileiro e durante anos foi a titular da seção de esportes do Estado de S. Paulo.
Todas essas abriram espaço para Isabela Scalabrini tornar-se a primeira a apresentar o Globo Esporte - renomado programa esportivo da TV Globo. Mesmo com algumas mulheres nas redações, o preconceito ainda era muito grande. Para Isabela, “naquela época, eu não encarei como um obstáculo a ser superado. Eu simplesmente fui em frente. Eu sabia que entendia de futebol e que amava meu trabalho. Acho que essa atitude pode ter despertado a vontade de muitas mulheres fazerem o mesmo.”

Anos depois, em 1997, foi a vez de Luciana Mariano abrir novas portas para novas meninas. Após vencer um concurso que buscava uma voz feminina para as partidas de futebol, promovido pela Rede Bandeirantes, ela foi a primeira mulher narradora da televisão brasileira. Luciana concedeu uma entrevista ao site Notícias da TV e afirma ter sido muito difícil narrar futebol por conta da falta de oportunidades. Além disso, ela conta que não tinha em quem se espelhar.
A última grande conquista das mulheres na cobertura esportiva veio em 2022, com Renata Silveira. A jornalista tornou-se a primeira voz feminina a narrar uma partida de futebol na história da TV Globo. De lá pra cá, ela foi conquistando ainda mais espaço na TV aberta, narrando partidas de grandes clubes da Série A do Campeonato Brasileiro, além de ter sido a primeira mulher a narrar um jogo da seleção brasileira.
Driblando os desafios
Apesar de haver muitas referências na área que abriram muitas portas, os obstáculos ainda são desafiadores para as mulheres no Jornalismo Esportivo.
Renata Mendonça, comentarista de futebol do Grupo Globo e co-fundadora do Dibradoras – veículo de comunicação que destaca o protagonismo das mulheres no esporte –, nos conta que a mulher precisa sempre provar que é capaz de conhecer o assunto, exercer sua função e merecer estar ali. “Costumo dizer que quando você faz uma entrevista de emprego para um cargo numa redação esportiva, se você é um homem, você parte da nota 0 e vai pontuando conforme for agradando nas respostas. Se você é uma mulher, você parte do -5”.
Renata, que também atua há quatro anos como colunista de Esportes na Folha de São Paulo, relata que essa cobrança já fez com que ela duvidasse de si mesma no início da carreira, quando ouviu de um chefe que não confiava nela para cobrir os times e jogos, em razão de ela ser mulher. "Esse é o tipo de coisa que cansa, sempre ter que convencer os outros de que você é capaz de desempenhar seu trabalho”, afirma.
Além de enfrentar a pressão imposta por seus superiores e colegas de equipe, as jornalistas precisam lidar com a opinião dos torcedores e telespectadores. Sobre isso, Isabela Scalabrini observa que ao longo de sua trajetória na editoria de Esportes, ela nunca deixou de fazer alguma reportagem por ser mulher e a Rede Globo a colocou como pioneira para cobrir o futebol, mesmo sendo difícil lidar com os comentários vindos das arquibancadas. Ela diz que além de piadas machistas e xingamentos, a pergunta que mais ouvia era: “você entende de futebol?”.
Scalabrini não sabia muito como o público avaliava seu trabalho, pois na época a internet e as redes sociais ainda não estavam presentes como hoje. “A imprensa escrita registrava que a repórter Isabela Scalabrini, que tinha se destacado nas reportagens em campo, agora, também estava ganhando espaço no estúdio. Além disso, era um reconhecimento da Globo de que meu trabalho estava repercutindo e era bem feito”. Logo depois de sua estreia no Globo Esporte, ela foi escalada para apresentar o Esporte Espetacular, outro programa esportivo da grade, mas com uma duração maior e transmitido para todo o país, aumentando a audiência de Isabela.
Ainda não é o apito final
Isabela Scalabrini conta que fica muito feliz ao ver estudantes e jornalistas mais jovens dizerem que se inspiram nela. Hoje, ela reconhece que abriu caminhos para as mulheres nas coberturas esportivas e enfatiza que naquela época não encarava como um obstáculo a ser superado. Ela também cita que no começo de sua carreira, havia poucas mulheres nesse meio, algumas trabalhavam nos jornais impressos e era raro ver e ouvir uma mulher nos treinos de clubes ou nos estádios. A jornalista termina dizendo que em 1986, ano em que cobriu a Copa do México, era rara a presença feminina entre os jornalistas que cobriam o mundial.
Com o intuito de possibilitar a participação das mulheres em um meio que ainda é tão dominado por homens, cinco mulheres fundaram o Dibradoras, em maio de 2015. A jornalista Renata Mendonça foi uma delas. Apaixonadas por esportes, elas sentiam falta de uma cobertura que incluísse a mulher como personagem principal do esporte em diversas frentes: jornalista, atleta, árbitra, treinadora etc. “No começo, a abordagem era voltada ao futebol feminino. 2015 era ano de Copa do Mundo e não se ouvia falar sobre o Mundial das mulheres na imprensa ou redes sociais. [...] Após o Mundial do Canadá vieram os Jogos Pan Americanos e decidimos ampliar a cobertura sobre a presença feminina e passamos a abordar as outras modalidades também”, conta a comentarista.

Hoje, o projeto também é formado pela publicitária Angélica Souza e pela jornalista Roberta Nina Cardoso, carregando o lema “Lugar de mulher é no esporte!”. A partir dessa iniciativa, elas puderam dar mais atenção para questões importantes como a ausência de rostos femininos na cobertura esportiva, a falta de visibilidade para o futebol feminino e a cobertura objetificada que se fazia de esportes femininos. “Já vemos mulheres narrando e comentando futebol em quase todas as emissoras e também nos canais de streaming, há muito mais transmissões de jogos do futebol feminino, e há um olhar mais adequado para cobrir as atletas sem aquela sexualização que sempre sobressaía. Ainda é preciso avançar muito mais e principalmente abrindo espaço para mulheres negras terem também protagonismo, mas seguimos na luta para mais mudanças”, destaca Renata.
O Dibradoras segue mostrando que as meninas podem praticar e gostar de esportes, bem como exercer uma função relacionada a qualquer modalidade. Para isso, Renata relata que os planos futuros visam garantir mais incentivo e visibilidade. A jornalista aponta que a plataforma está focada na cobertura in loco das Olimpíadas de Paris, trazendo notícias do futebol e de outras modalidades disputadas por mulheres.
Cartão vermelho para o preconceito
Scalabrini destaca que foi e tem sido demorada a aceitação feminina nos comentários e na narração de jogos e aponta a estrutura machista da sociedade como um reflexo do pouco espaço da mulher. “Vocês conhecem alguém que muda de canal quando a narradora é mulher?”, ela questiona. Com isso, Scalabrini traz à tona o fato de que ainda há resistência de alguns homens em relação à participação das mulheres na cobertura de futebol, especialmente nessas funções de destaque.
Renata Mendonça, por sua vez, conta que sua causa de vida é a luta pelo espaço da mulher na área. Ela se orgulha ao dizer que conseguiu juntar em seu trabalho a causa com a paixão por esportes e enfatiza: “meu sonho é poder ver no futuro um mundo onde as meninas sejam tão incentivadas à prática esportiva quanto os meninos são, acho que os benefícios disso seriam imensuráveis”. Ela finaliza dando ênfase à união das mulheres nessa luta e incentiva aquelas que querem seguir seus passos, pois sabe que o caminho é árduo.
É fato que as mulheres estão garantindo seu espaço no Jornalismo Esportivo. Porém, podemos ver que foi algo atrasado e lento. Mas dia a dia essas bravas mulheres vão escrevendo novos capítulos dessa história.
Maria Helena Rangel, Regiani Ritter, Claudete Troiano, Luciana Mariano e tantas outras abriram espaço para que hoje, Natalie Gedra, Gabriela Ribeiro, Estella Gomes, Renata Silveira e outras meninas e mulheres sonhadoras, pudessem ocupar lugares de destaque na TV, rádio, jornais e redes sociais. Que no futuro, mais referências femininas estejam em evidência em diversos âmbitos do esporte.
Com a crescente presença feminina nos veículos de comunicação, a visibilidade das atletas e suas respectivas modalidades tendem a aumentar e consequentemente, despertam o interesse da audiência feminina. Dessa forma, veremos mais jovens querendo seguir carreira tanto praticando esportes, quanto falando deles, além de motivar e abrir mais portas para outras que virão.
Na última quinta-feira (28), uma multidão expressiva tomou as ruas da capital paulista em apoio à descriminalização do aborto. Organizada por grupos de ativistas e apoiadores da causa, a manifestação reuniu pessoas de diferentes idades, gêneros e origens, todas compartilhando o mesmo desejo: garantir o direito à escolha das mulheres sobre seus próprios corpos.
A marcha aconteceu no dia Internacional da luta a favor do aborto nos países latino-americanos e caribenhos, e enfatizou como o procedimento nesses países também faz parte da desigualdade de classes. “As ricas pagam, e as pobres morrem”, diziam as manifestantes. De acordo com dados do Ministério da Saúde, cerca de 1 milhão de abortos induzidos ocorrem todos os anos no Brasil, sendo quase 500 mil procedimentos feitos de forma clandestina. A maioria das mulheres que realizam o aborto em condições precárias são negras e de baixa renda.
Essa “onda verde”, como é chamado o fenômeno de luta a favor da legalização do aborto nos países vizinhos, é responsável por pressionar os poderes políticos e judiciais pelo direito ao acesso e decisão de abortar. Outros países na América do Sul como Uruguai, Argentina, Guiana, Guiana Francesa, Colômbia e Chile já reconhecem o aborto como prática legal. Segundo as palavras de Alberto Fernández, presidente da Argentina, “a legalização do aborto salva a vida de mulheres e preserva suas capacidades reprodutivas, muitas vezes afetadas por esses abortos inseguros.”.


Muitos especialistas que defendem a legalização no Brasil explicam que a mesma deve ser entendida como uma questão de saúde pública, e não moral ou religiosa. “As políticas públicas não podem sofrer influência das ideologias religiosas ou até mesmo morais. As mulheres precisam ter o direito de escolha, precisam ser livres para decidir”, explica Tabata, 29, do movimento Católicas Pelo Direito de Decidir.
A concentração teve início na Avenida Paulista, um dos principais pontos da cidade, e rapidamente se espalhou por ruas adjacentes. Os participantes exibiam cartazes, bandeiras e faixas com mensagens pró-escolha, destacando a importância de garantir o acesso seguro e legal ao aborto. Muitos usavam camisetas e adereços verdes, cor que se tornou símbolo da luta pela legalização em diversos países.

Entre os manifestantes, havia uma ampla diversidade de discursos e argumentos.”Só quem morre no Brasil e no mundo são as mulheres que não podem pagar o aborto seguro. Nenhum lugar onde o abortou deixou de ser crime, aumentaram os números de aborto mas diminuiu os números das mortes. Elas vão continuar abortando, mas a diferença é que a nossa classe não vai morrer”, expôs Fabiana (52), de São José dos Campos.
Martins (16), estudante do Colégio Objetivo em São Paulo, também se mobilizou. “Como homem, reconheço a importância, a gente tem que unir como coletivo para lutar pelos ideais certos”.
A manifestação ocorreu de forma pacífica e as autoridades locais acompanharam o evento para garantir a segurança dos participantes e transeuntes. Estavam presentes até mães e pais com crianças, como no caso de Luana (42), que levou seu filho João (8), “É para eles já começarem a entender a importância de participação em manifestações políticas, a importância do feminismo, dos direitos das mulheres é importante demais” afirmou.


A medida que noite caiu, a multidão se dispersou, mas a mensagem da manifestação ficou clara: a busca pela igualdade de gênero e pelo direito das mulheres se decidirem sobre seus corpos permanece um tema crucial na sociedade brasileira, com esperanças de mudanças futuras na legislação em relação ao aborto.
Chegando a ser considerada um brinquedo obsceno e inapropriado pra crianças em sua primeira versão, no ano de 1959, mas ainda assim se tornando um sucesso que transformou a Mattel a terceira maior empresa de brinquedos do mundo em seu primeiro ano de vendas, a boneca Barbie recebeu ao longo de sua história muitos “títulos”, sempre dividindo opiniões, com as tentativas de definir sua influência nas meninas que tiveram contato com ela na infância.
Essa dualidade é presente desde sua popularização nos anos 60, de um lado com a relutância de alguns pais em deixar as filhas brincarem com a figura de uma “mulher adulta que morava sozinha” e de outro lado sendo anunciada como um incentivo para as meninas cuidarem de sua aparência, o que acabava por reforçar estereótipos de beleza. “A preocupação dos pais vinha justamente por conta desses estereótipos”, diz o pedagogo Marco Antonio Delgado .
Segundo ele, a Barbie representava uma mulher elegante, que está dentro dos padrões de beleza vigentes na sociedade , esquecendo dos valores íntimos de cada um. “Claro que essa realidade não acrescentaria nada para aquela criança que estava brincando de casinha, até porque a Barbie, na verdade, mostra uma executiva, aquela mulher que vai para fora, que trabalha, que está atuando, uma coisa que não acontecia”, acrescenta Delgado.
O pedagogo destaca a diferença entre a figura emancipada representada pela boneca e o imaginário das crianças na época em que foi lançada. “As meninas não brincavam dessa situação, mas sim de uma brincadeira de mãe, do lar, e a Barbie traz uma coisa que naquela época era mais os homens que ocupavam.”
Delgado cita a aparência da Barbie como um de seus aspectos prejudiciais:
”Por causa do estilo da própria boneca, porque ela traz um perfil de uma mocinha, de uma miss com o corpo definido, com uma situação de que seria uma ‘perfeição’, ela mostra uma boneca branca com seu estereótipo de magra, mas não são todas as crianças que têm este perfil. Existem meninas gordas, existem meninas negras, que não atingem aquele estereótipo de beleza e isso pode trazer uma certa depressão para a criança, porque ela foge daquele conceito de perfeição”.
Contudo, mesmo mantendo como sua imagem principal uma boneca branca, magra e loira, a Mattel já apresentou diversas vezes boneca com perfis diferentes, indo das mais atléticas até de diferentes etnias, formatos de corpo e profissões.
Muitas vezes o design da boneca pode ser visto como um retrato da cultura popular de uma época. Um exemplo é a famosa “Malibu Barbie” (1971), que virou um símbolo por aparentar um rosto “sem maquiagem” e ser a primeira Barbie que olhava para frente, uma mudança que, apesar de sutil, trouxe uma imagem mais ativa e menos delicada para a boneca.
Um exemplo mais significativo de mudança foi a primeira Barbie Negra, lançada em 1980. Por mais que já houvessem sido lançadas versões negras de amigas da Barbie, como a Black Francie (1967), haver uma boneca negra denominada como Barbie foi muito mais significativo.


A psicóloga Vanderléa Soares explica a importância da possibilidade de se ver nos brinquedos:
“A identificação com um adulto de referência é parte da constituição de qualquer indivíduo”, diz Soares. “Dentro do lúdico e da fantasia, imaginar-se em outros papéis é criar possibilidades ampliando a visão de si mesmo e do mundo. O processo de formação do eu se dá a partir do outro”, acrescenta a psicóloga.
Porém, mesmo com o aumento da representatividade, existem contrapontos em se tratando da boneca mais famosa do mundo. Até o slogan “você pode ser tudo o que quiser” pode ser prejudicial às crianças.
“Todos nós nos deparamos com limites. Se nos dedicamos a uma atividade ou brincadeira, não podemos praticar outras. Isso é estendido para toda uma vida humana. Existem limites de tempo, lugar, espaço, e do que é possível viver. Se eu escolho ser jornalista, provavelmente não conseguirei na mesma existência ser médica, advogada e psicóloga. Mesmo pensando no sentido de que sempre temos escolhas, ainda assim essas escolhas são limitadas pelo contexto de possibilidades sociais presentes num determinado tempo e momento histórico”, analisa Soares.

Recentemente, a Women, Peace and Security - iniciativa dedicada a promover a igualdade de gênero - elegeu Ruanda como o país com mais representatividade feminina na política, com 55% das cadeiras do parlamento ocupadas por elas. Ruanda também foi eleito como o segundo destino mais seguro para mulheres viajarem sozinhas.
A pequena nação insular da África Oriental, possui 12 milhões de habitantes e uma economia que cresce 7% ao ano desde 2000. O genocídio ocorrido em 1994 afetou profundamente a sociedade local, mas o povo ruandês reagiu à tragédia de forma transformadora: elaborando reformas políticas e sociais, que foram fundamentais para que a nação desfrutasse do atual cenário de igualdade de gênero.
Cem dias de genocídio
Por décadas, Ruanda foi dividida em duas etnias: a minoria Tutsi, composta por uma elite pecuarista tradicional, e a maioria Hutu, historicamente desfavorecida e composta por agricultores. Essa divisão já existia no período pré-colonial, mas foi intensificada pelos colonizadores belgas e alemães, que buscavam facilitar a dominação.
De 7 de abril até de julho de 1994, instaurou-se um período de terror no país africano: Hutus extremistas caçaram os Tutsis por toda Ruanda. Durante cem dias, mais de 800 mil Tutsis e Hutus moderados foram mortos. As vítimas eram frequentemente conhecidas dos assassinos. O facão virou símbolo da barbárie: A ferramenta onipresente na vida dos agricultores converteu-se na arma mais popular entre os criminosos.
Ruanda era um país rural e pré-industrial. No livro “Uma Temporada de Facões”, o jornalista francês Jean Hatzfeld demonstra como os diferentes estágios de desenvolvimento econômico influenciam na forma como os genocídios são executados.
Hatzfeld faz paralelo com os crimes Nazistas, indicando que aspectos das sociedades industriais, como o desenvolvimento tecnológico - na forma de malhas ferroviárias - e a divisão do trabalho foram decisivas na execução do holocausto: um genocídio burocratizado e pensado na lógica da eficiência produtiva.
O complexo e impessoal método de extermínio adotado pelo terceiro Reich, contrasta com a rudimentariedade e ampla participação da população no curso da limpeza étnica em Ruanda.
O renascer das ruandesas
No fim da carnificina, as ruandesas representavam 70% da população. Desde então, elas passaram a ocupar cargos antes exclusivamente destinados aos homens, exercendo um papel-chave na reconstrução do país e de sua sociedade.
A maioria dos assassinos e das vítimas eram homens. Os extremistas foram presos ou fugiram para a República Democrática do Congo, deixando para trás suas terras. Para garantir a própria sobrevivência e a de suas famílias, as mulheres precisaram obter a posse legal das roças de seus maridos ausentes.
Em 1999 foi feita uma reforma legislativa, na qual mulheres garantiram o direito legal de herdar as terras de seus cônjuges. Outros direitos foram assegurados na constituição de 2003: 30% dos cargos políticos passariam a ser exclusivamente femininos; foi instituído a igualdade de gênero na posse das terras, assim como no acesso à educação.
No ano da nova constituição, 48% dos cargos eram ocupados por ruandesas. Em 2008, Ruanda tornou-se a nação com mais mulheres no Parlamento. Hoje elas já ocupam quase 70% dos assentos e mais de 50% dos cargos ministeriais.

O último levantamento sobre igualdade de gênero realizado pelo Fórum Econômico Mundial (2021) considerou quatro aspectos: educação, saúde, política e economia. Ruanda foi apontada como o sexto país com mais igualdade entre os gêneros no mundo, colocando o pequeno país em pé de igualdade com a Finlândia e a Noruega. O Brasil, por sua vez se localiza na 92.ª posição, segundo o Global Gender Gap Report (2021)
Os limites da igualdade
Atualmente, cerca de 88% das mulheres em Ruanda exercem alguma tarefa remunerada, número este superior ao dos homens. Mesmo tendo crescido a participação feminina na política e no mercado de trabalho, a situação doméstica pouco se alterou. O maior desafio tem sido transferir a igualdade conquistada na vida pública para dentro dos lares de Ruanda.
A cientista política ruandesa Justine Uvuza, em seu doutorado, pesquisou a vida de mulheres que ocupam cargos públicos em seu país. Constatando que muitas são obrigadas pelos maridos a realizar trabalhos domésticos, mesmo ocupando posições importantes no Estado. Segundo Uvuza, no senso comum, uma boa ruandesa é patriótica, trabalhadora e obediente ao marido. O movimento feminista costuma ser visto como algo ocidental e "importado" dos Estados Unidos.
A desigualdade social também é um desafio enfrentado pelo governo do presidente Paul Kagame, com o país ocupando o 165º lugar no ranking dos países com maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), conforme o relatório anual do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de 2021.
Mentora de deusas. É assim que a arquiteta e empresária Camila Pastório, de 32 anos, é conhecida entre os mais de 300 mil seguidores de seu Instagram. Camila ficou mais popular entre o público feminino por abordar temas de relacionamentos e feminilidade. Depois de se popularizar nas redes, Camila resolveu dar o próximo passo e começou uma mentoria online. Por cerca de 400 reais, a arquiteta disponibiliza vídeos e e-books que prometem revelar “tudo o que uma mulher feminina precisa saber para ser naturalmente poderosa e conquistar o homem dos sonhos”, como está descrito na página de venda.
“Eu trabalho de duas formas, individualmente e coletivamente”, explica Camila. “Se a aluna optar pelo atendimento individual, eu faço através de uma ligação, escuto a queixa dela e partimos daí. A outra opção é a mais comum, que é a coletiva. Eu já tenho uma plataforma onde a aluna tem acesso aos meus conteúdos separados por tema. Aí ela consegue acessar mais facilmente o que faz mais sentido para o caso dela.” A arquiteta ainda diz que esses temas vão desde dicas para “edificar o lar” até conselhos para deixar o perfil do Instagram mais atraente para os homens.
Quanto à origem do apelido, a empresária diz ter se autodenominado dessa forma. “Quando eu falo o termo deusa, todo mundo leva para esse lado mais espiritual, mas eu acredito que uma deusa seja uma mulher de alto valor, com os princípios firmados na espiritualidade. Eu sou de uma família cristã, e eu tenho os meus princípios firmados… e é isso que eu tento trazer para as minhas alunas também, eu quero que elas sejam realmente deusas, que aflorem seus encantos, e é isso que elas conseguem com o meu método.”
No site da empresária, onde é possível adquirir um dos seus três cursos disponíveis atualmente, existem dezenas de relatos de ex-alunas comprovando a eficácia do método das deusas. Na página principal estão comentários, fotos e até mesmo vídeos dessas consumidoras relatando a sua experiência depois da compra. Com certo destaque, podemos ver o relato (em caps lock e negrito) de uma aluna que foi pedida em namoro apenas três semanas depois de concluir a mentoria. Até mesmo o link da live do Instagram que comprova o momento do pedido está disponível.
Segundo Camila, o motivo de seu sucesso não se dá exclusivamente pela qualidade do curso, mas também pela pós-mentoria, o acompanhamento depois que a aluna adquiriu o material. “Por uma taxa de 30 reais, essa aluna pode também fazer parte de um grupo de WhatsApp que eu mantenho sempre atualizado com novidades exclusivas. Eu criei esse grupo para dar um senso de comunidade, eu quero que a minha aluna se sinta valorizada. No Deusas Online, ela tem isso, ela faz parte de algo maior.”
Camila é apenas uma das milhares de pessoas que passaram a oferecer cursos de mentoria para ganhar a vida. A devastadora maioria desses cursos é comercializada através da Hotmart, uma plataforma brasileira voltada para a venda e distribuição de produtos digitais. Grande parte desses produtos são de caráter “educacional”. Ou seja, são cursos e e-books que buscam ensinar algo, independente se o mentor é especialista no assunto.
O mercado desses produtos digitais para mulheres é, no mínimo, curioso. Em uma busca rápida, é possível encontrar métodos de emagrecimento, aulas de crochê, mentorias bíblicas, guias de relacionamento e até mesmo um curso sobre posições sexuais. O “Como sentar 2.0” é a continuação da bem-sucedida mentoria de Beatriz Rangel, que pode ser encontrada na categoria de desenvolvimento pessoal da plataforma. Na descrição do curso, a mentora promete resultados infalíveis. “Com vocês a versão atualizada e melhorada da tia Bea do curso “Como sentar”! Através dessa experiência eu vou te ensinar a como se sentir confiante para ir por cima na hora do sexo. A sentir prazer, não brigar com seu corpo, a controlar seus pensamentos para aproveitar a experiência e muito mais! Bora tomar coragem pra ser sua melhor versão?”
A facilidade na venda de aulas digitais pode ser perigosa. O “Como manter seu homem na palma da mão”, da pioneira da autoajuda feminina digital, Vanessa de Oliveira, traz discurso um tanto quanto problemático, e o fato do conteúdo não passar por nenhum tipo de aprovação intensifica o risco. A comercialização da imagem e do comportamento feminino torna-se cada vez mais comum.
Em entrevista, uma mulher que preferiu não se identificar relata que desde que entrou nesse mundo de cursos não conseguiu parar. "Percebi que estava ficando viciada em discursos que muitas vezes não passavam de textos prontos para enganar qualquer pessoa. Eu fui enganada. Claro, não são todas as “especialistas” digitais que apostam no sensacionalismo. Mas a padronização da fala e da condução das aulas é sempre muito parecida. O principal motivo de as mulheres assinarem esses pacotes sempre gira em torno do homem. “Aprenda a fazer crochê para deixar a casa mais bonita para seu marido”, “como ser a melhor esposa do mundo”, “20 posições sexuais que deixam qualquer homem louco”, e por aí vai. O que faz refletir, para quem é o curso? Para as mulheres ou para seus companheiros? A quem interessa a venda da feminilidade?
“Fiz mais de 20 cursos de empoderamento feminino, “Como ser a mulher perfeita, “Como mandar bem na cozinha para conquistar os homens” e um que realmente me convenceu a vender imagens sensuais por um preço de banana na plataforma Onlyfans", relata a entrevistada.
Esse é outro problema da banalização de temas no mundo digital, a capacidade de convencer e influenciar pessoas. O Onlyfans é um dos principais sites do gênero na atualidade. Ele indiretamente pode aproximar mulheres, principalmente jovens, da prostituição. “Assinei um curso que prometia trazer qualquer homem que eu quisesse, se eu fosse uma mulher sensual, se tivesse belas fotos nas redes, e então pensei: já que tenho que postar essas fotos, por que não vendê-las?" O relato só comprova a naturalização da venda do corpo feminino, e, desta vez, incentivada por mulheres que são idolatradas por outras que muitas vezes caem em ciladas por conta de títulos chamativos e fragilidades pessoais. Portanto, é importante entender que, apesar da passagem do tempo, a sensualidade feminina continua sendo usada para vender produtos e ideais.