
“Eu sou uma catadora de reciclagem. Não é porque eu ando toda suja no meu trabalho, que eu sou uma pessoa drogada... Quando uma pessoa tem caráter, não importa o trabalho que ela está fazendo, ela pode não prestar andando toda engravatada, como pode ter caráter andando suja.” Essas palavras são de Cacilda Souza, que mora em Ourinhos (SP), tem 41 anos e trabalha desde criança como catadora de reciclagem.
Cacilda aprendeu a ser catadora com seu padrasto, que a levava ainda menina para ajudá-lo nas ruas. Quando já era adolescente, começou a trabalhar de forma fixa em um lixão. No local, ela permaneceu até 2011, quando a lei aprovada no governo Lula previa o fim dos lixões por questões sanitárias.
Depois disso, aos 33 anos, Cacilda entrou em uma cooperativa, mas a experiência acabou frustrada por desentendimentos com uma família de cooperados. Voltou então a trabalhar nas ruas, desta vez com a própria carroça.
Cacilda ficou conhecida no Facebook como Rainha da Sucata, após começar a postar fotos e vídeos do seu trabalho. Neles, ela discutia a forma como a população julgava os catadores e desprezava sua importância. Apesar de parecer uma história de novela, o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) estima que existem 800 mil catadores no país, dos quais 70% mulheres.
Cacilda diz que consegue pouco dinheiro com a venda do material coletado, mas afirma que essa renda tem sido suficiente para se manter. Ela tem quatro filhos e hoje só a mais nova depende dela. Cacilda se divorciou do pai das crianças quando elas ainda eram pequenas, mas ele sempre ajudou e se mantém presente. “Eu trazia tudo do lixo mesmo, roupa e calçado eu nunca precisei comprar”, conta Cacilda. Ela ressalta que também ajudou outras famílias com objetos que achou no lixo.
Cacilda diz que a vida dela melhorou muito depois que conheceu o movimento Pimp My Carroça, projeto social e cultural que visa tirar os catadores da invisibilidade. Outro achado foi o aplicativo Cataki, que conecta moradores com catadores próximos a sua região. Cacilda afirma que não dava conta da demanda que vinha através do aplicativo, principalmente por precisar puxar sua carroça por toda a cidade.
Como ficou conhecida, Cacilda ganhou uma caminhonete de um programa de televisão, o que ampliou suas possibilidades de trabalho. Atualmente, ela faz o curso de tecnólogo ambiental em uma faculdade. A vontade de estudar já era antiga e levou a catadora a recolher inúmeros livros que encontrou no lixo.
Cacilda conta que nesse período de quarentena determinado pelo coronavírus está vivendo com o dinheiro do Bolsa Família e não está trabalhando pela preocupação com a segurança e pelo fato de o depósito que compra seu material estar fechado. A situação, segundo ela, é muito complicada, pois alguns catadores não puderam parar de trabalhar.
Na tentativa de ajudar, Cacilda está fazendo alguns vídeos conscientizando as pessoas da importância de separar os reciclados em casa, para diminuir os riscos de contágio para os catadores. Além do coronavírus, esses trabalhadores já são expostos a outras bactérias por muitas vezes precisarem separar o lixo comum do reciclado.
Para ajudar os catadores nesse período de quarentena, o movimento Pimp My Carroça e o aplicativo Cataki se uniram em um financiamento coletivo. A campanha usa uma frase de impacto: “Os que não sofrerem com o corona vão sofrer de fome”. O objetivo é garantir uma renda mínima a todos os catadores autônomos cadastrados no Cataki. A meta é obter R$ 500 mil . Até agora, foram arrecadados quase R$ 320 mil.
O MNCR também lançou uma campanha de doações para os catadores. Os recursos serão utilizados na distribuição de cartões de vale-alimentação com R$ 200 para as famílias que estão sendo selecionadas pelo comitê nacional da campanha. Qualquer pessoa física ou jurídica pode fazer uma doação, por depósito em conta ou também pelo PagSeguro.
Na outra ponta, estão os depósitos de materiais que compram desses carroceiros. Eles também têm sofrido com a pandemia. Primeiro, por não saberem ao certo se são ou não um serviço essencial. Quando continuam abertos, ficam expostos não apenas ao vírus, mas também à fiscalização, que pode lacrar o estabelecimento. Se decidem interromper as atividades, acabam sem renda nenhuma.
O Instituto Nacional das Empresas de Sucata de Ferro e Aço (Inesfa) e o Sindicato das Empresas de Sucata de Ferro e Aço (Sindnesfa) declararam por meio de uma carta aberta, no final de março, que os serviços do comércio atacadista de resíduos de sucatas metálicas deveriam ser considerados essenciais, já que a reciclagem tem um impacto direto na saúde pública.
As instituições também fizeram campanhas e manuais de como esses locais poderiam funcionar de forma segura. Mas a realidade, na prática, é bem diferente. Com apenas uma parte do portão aberto, Pedro Vasques mantém o seu depósito de sucata operando na zona leste de São Paulo.
Nos primeiros dias da quarentena, o depósito de Pedro ficou fechado. Ele permaneceu em casa, principalmente ao ser advertido pelos filhos de que, aos 76 anos, faz parte do grupo de risco.
Mas, por ter um funcionário registrado e precisar pagar todas as contas, resolveu reabrir. Pedro está usando máscara e tomando cuidados redobrados com a higiene. Mesmo com o depósito funcionando, ele diz que os negócios estão parados: quase não compra nem vende. O seu filho César Vasques também tem um depósito de reciclados. O estabelecimento ficou fechado por quase três meses. Reabriu no começo de junho, quando o prefeito Bruno Covas (PSDB) flexibilizou as regras para o comércio.
César lembra que alguns anos atrás o mercado de recicláveis estava em alta e propiciava um bom rendimento. Com a crise dos últimos anos, já havia acontecido uma queda, que se intensificou ainda mais com a chegada do coronavírus.
Quando o depósito ficou fechado, César se manteve com a venda de materiais que já tinha comprado antes. O dinheiro que conseguiu foi para as contas básicas. Algumas ficaram atrasadas, como o aluguel de seu depósito, para o qual está tentando uma negociação que lhe permita pagar os meses atrasados.
Enquanto as principais redes de varejo sentem o impacto econômico causado pela pandemia do coronavírus, o “home fitness”, como é conhecido o segmento de equipamentos de ginástica para serem usados em casa, vive uma ascensão desde o início do confinamento.
Lojas como Polishop, Magazine Luiza, Americanas e Netshoes apontam crescimento de cerca de 200% nesse segmento desde meados de março, quando o governo de São Paulo recomendou o fechamento das academias e dos parques públicos.
Mario Sergio Andrade, sócio-fundador da assessoria esportiva Run&Fun, treina hoje 1.500 atletas, entre corredores e ciclistas. Com o fechamento dos parques públicos, a programação de treinos sofreu alterações.
Agora, os treinos são programados para ser feitos em casa com o auxílio de equipamentos. Cerca de 80% dos alunos de Mario Sergio alugaram esteiras e bicicletas, ou preferiram comprar rolos de bicicleta que simulam o treino de ciclismo. Para Andrade, o mercado brasileiro vem acompanhando esse movimento que já acontece nos Estados Unidos e agora é tendência nos demais países.
Em uma entrevista para o R7, o CEO da Polishop, João Appolinário, afirmou ser um fenômeno pelo qual o mundo todo está passando. “Quase que triplicamos o número de entregas. Tivemos que mexer e readequar a logística para isso”, disse.
Em 2018, de acordo com a Associação Brasileira de Academias (Acad), funcionavam cerca de 36.585 academias de ginástica pelo Brasil, com mais de 10 milhões de alunos. O Brasil é o segundo país com maior concentração desse tipo de estabelecimento, ficando atrás somente dos Estados Unidos.

Aula de ioga em grupo dentro da academia
A indústria de atividades físicas movimenta R$ 2,1 bilhões no Brasil, a maior receita da América Latina e a terceira das Américas. O setor mostra dados significativos tanto no estado quanto no município de São Paulo, onde o número de academias cresceu, respectivamente, 21,6% e 17,7% em 2018.
Para quem possui uma vida ativa e gosta de frequentar academia, os produtos de treino em casa têm sido um atrativo para tentar manter o mínimo da rotina e o bem-estar durante o isolamento. A vantagem é não precisar de muito espaço para conseguir realizar os exercícios, ideal para quem mora em apartamento.
A procura por esteiras, produto que custa a partir de R$ 3 mil, aumentou. Mas os elásticos, colchonetes, cordas e acessórios no geral são os que têm maior demanda. Além de não ocuparem muito espaço, costumam ser mais baratos, ficando entre R$ 30 e R$ 50.
O crescimento de vendas no e-commerce dessa categoria é o que tem ajudado a minimizar o impacto do fechamento das lojas físicas por conta da quarentena. Cada vez mais as pessoas buscam se modernizar, e hoje quem está mantendo essas redes na ativa é o setor tecnológico. Elásticos e faixas tiveram um crescimento de cerca de 2.700%; cordas de 2.100% e tapetes e halteres, de 2.000%, segundo a Netshoes e a Magazine Luiza.
As empresas se sentiram inclusive motivadas a fazer promoções e oferecer frete grátis para produtos dessa linha. Appolinário afirmou ainda que esse não é o momento para ser oportunista, afinal as pessoas estão comprando por uma necessidade. “Achamos que como medida seria interessante fazer algo que fizesse mais sentido agora”, disse.
Antes da Covid-19, 50% dos atletas da Run&Fun treinavam em academias e os outros 50% só treinavam no parque e ao ar livre. Com o atual cenário, não foram só os atletas que tiveram que se adaptar. Algumas marcas, como a Peloton, começaram a vender bicicletas e esteiras conectadas com treinadores. Já a Swift, plataforma americana, possibilita que através de rolos inteligentes você se conecte e consiga pedalar com outras pessoas do mundo, além de simular um percurso de ciclismo ou de corrida.
O aumento do home office durante esse período também teve um impacto. A maioria das pessoas teve um aumento da produtividade. Além da otimização do tempo, está acontecendo uma mudança na maneira como as pessoas lidam com o tempo. Mais do que nunca, o treino à distância tem mostrado seus benefícios. Além de criar conexões entre o treinador e vários atletas, o uso da tecnologia é favorável pois mostra os resultados dos treinamentos de forma precisa, através de todos os dados que o equipamento entrega.
Nascida em 2016 do desejo de três amigos de montar uma startup, a empresa brasileira Ribon teve um crescimento de cerca de 4 mil usuários semanais em seu aplicativo desde que a pandemia do coronavírus começou a afetar o país.
Inspirada na iniciativa americana Tab for a Cause, o aplicativo Ribon converte o dinheiro da publicidade em “Ribons” – dinheiro virtual – dando autonomia aos seus usuários para doarem a causas disponíveis no aplicativo, das quais grande parte está ligada a ONGs que combatem a extrema pobreza.
Em entrevista à Agemt, o diretor de design e um dos fundadores da empresa, João Moraes, conta que a Ribon tem cerca de 40 mil usuários mensais, e que acredita que houve um crescimento no uso do aplicativo devido ao momento delicado que vivemos, fator que aumenta a vontade das pessoas de querer ajudar.
No entanto, Moraes afirma que considera a empresa pequena ainda, e que os maiores desafios no momento são melhorar a experiência do usuário no aplicativo e conseguir fechar contratos com mais empresas. Quanto a esse último desafio, o coronavírus tem sido um obstáculo. “Apesar das pessoas estarem mais dispostas a fazer doações, as empresas estão mais conservadoras. Ninguém quer investir”, diz o executivo.
Atualmente, a Ribon tem projetos apoiados por grandes marcas como Rock in Rio, Visa, Malwee e Tetra Pak, o que, na visão de Moraes, aumenta a confiança dos usuários no aplicativo, que arrecada quantias maiores graças ao interesse dessas grandes empresas.
De acordo com o diretor, a Ribon não arrecada recursos somente através da publicidade. É graças a projetos fechados com empresas e grandes doadores que a startup consegue aumentar o valor inicial destinado a alguma causa, viabilizando assim um impacto social que pode ser 50% maior ao que ocorreria se as doações não passassem pela plataforma.
Um exemplo disso foi o projeto realizado com a Tetra Pak neste ano, que tinha interesse em ajudar a ONG Pimp My Carroça, ligada a catadores de material reciclável autônomos do Brasil. Com a causa no aplicativo, o valor final destinado a essa ONG acabará sendo maior do que o pretendido pela Tetra Pak, uma vez que qualquer usuário do aplicativo também pode fazer doações a essa causa, seja através dos Ribons vindos da publicidade ou da compra dessa moeda virtual.
A aquisição de Ribons pode ser feita tanto de maneira avulsa quanto por assinaturas mensais, cujo valor varia conforme o pacote. Segundo Moraes, no entanto, menos de 5% dos usuários optam pela assinatura, o que ele não considera um problema, pois o mais importante é que exista engajamento de quem usa a plataforma. “O propósito do aplicativo é ser uma nova forma de doar, acessível para todos que tenham interesse em ajudar.”
De acordo com Moraes, a empresa tem registrado um crescimento estável, mas ainda insuficiente para permitir o retorno dos investimentos. Por se considerar em um estágio de amadurecimento, a Ribon, por enquanto, limita a divulgação ao boca a boca dos usuários, que falam do aplicativo para amigos e familiares.

Além de afetar diretamente a saúde pública e diversos setores da economia, a pandemia do novo coronavírus provocou graves consequências para a educação, impactando não só o calendário das aulas, como também o desempenho de alunos e professores.
Em todo o mundo, 188 países fecharam as instituições educacionais, deixando sem aulas 99,4% dos estudantes do planeta – ou 1,7 bilhão de alunos. Para que o ano letivo não fosse perdido, as escolas e universidades foram forçadas a adotar rapidamente as ferramentas tecnológicas disponíveis, criando conteúdo remoto para os estudantes.
Na América Latina, países como o Uruguai, o Peru e o Chile tomaram medidas efetivas para o avanço da educação virtual. Com a distribuição de equipamentos e medidas para mitigação dos efeitos iniciais da crise, esses países conseguiram orientar professores e alunos para essa nova realidade.
No Brasil, o processo ainda está acontecendo. Em março, o presidente Jair Bolsonaro publicou uma medida provisória que dispensa as instituições de ensino a cumprirem o mínimo de 200 dias letivos exigidos por lei, desde que mantidas as 800 horas mínimas de aula.
Mas o desafio de uma educação de qualidade no país vem muito antes da pandemia. A precarização da educação tem estado em pauta nos últimos anos na sociedade brasileira. Com a ausência de políticas públicas, além da glorificação da educação privada, nos últimos quatro anos o Brasil reduziu em 56% os investimentos públicos no setor.
"Investimento em educação é estratégico. Nenhum país do mundo mudou sua trajetória de crescimento ao longo dos anos sem investir em educação, ciência e tecnologia”, diz Priscilla de Albuquerque Tavares, professora de economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV-EESP) e pesquisadora na área de economia da educação.
Segundo Priscilla, o investimento público em educação não deve se preocupar apenas em aumentar o volume de recursos e colocar mais pessoas no sistema educacional, mas também em ampliar vagas em áreas mais produtivas e, principalmente, zelar pela qualidade do aprendizado.
A economista destaca os baixos resultados no Brasil nos rankings de avaliações internacionais, como os do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), que analisam o desempenho escolar de alunos de 15 anos.
Entre os 79 países analisados na edição mais recente, o país ocupa quase o final da tabela, atingindo entre o 58º e o 60º lugar em leitura, o 66º e o 68º em ciências e o 72º e o 74º em matemática, de acordo com a margem de erro. “Há muitas razões que explicam a baixa qualidade, desde o investimento e os desafios de gestão até a formação e valorização do professor”, afirma Priscilla.
Enquanto as escolas privadas estão rapidamente se adaptando às novas tecnologias, para os 38,7 milhões de estudantes da rede de ensino público, essa não é uma realidade. As escolas não têm estrutura para dar a assistência necessária, que inclui alimentação, auxílio de dúvidas, aulas preparatórias para o vestibular e suporte para alunos com deficiência.
Para a pesquisadora, o ensino remoto é mais que um desafio no Brasil. “As condições de acesso às aulas remotas e mesmo as condições e ambiente do domicílio são variáveis muito relevantes para determinar se os estudantes conseguirão acompanhar as aulas e aprender efetivamente.”

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - Tecnologia da Informação e Comunicação (Pnad Contínua TIC) de 2018 mostrou que uma em cada quatro pessoas no Brasil não tem acesso à internet, o equivalente a 46 milhões de brasileiros.
Segundo o levantamento feito pelo coletivo Intervozes, analisando as políticas de ensino à distância implantadas durante a pandemia em 26 estados brasileiros, apenas 15% das secretarias de educação não se baseiam em tecnologias digitais.
Durante o isolamento, apenas 30% das secretarias entregaram materiais impressos e menos de 10% fizeram acordos com as operadoras de telefonia para garantir internet gratuita aos estudantes.
A professora da FGV lembra ainda que a rotina dos estudantes varia de acordo com cada situação. “Muitos residem em domicílios pobres e não possuem estrutura para estudar em casa, como um local calmo e silencioso, precisam ajudar nas tarefas domésticas e cuidados com outros moradores.”
O Enem e o ensino superior
Apesar de a desigualdade nos vestibulares sempre ter existido, agora a situação se complica ainda mais com as inseguranças que o país enfrenta por causa da Covid-19.
Depois de diversos desentendimentos, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2020, que tem como objetivo democratizar o sistema de educação nacional, sofreu adiamento por um período entre 30 e 60 dias.
"Infelizmente, isso não será suficiente", comenta Priscilla, acrescentando que "em algum momento o exame precisa acontecer, já que é a principal porta de entrada para o ensino superior".
Enquanto o futuro daqueles que sonham com o ensino superior ainda é incerto, quem já vive esse sonho está lidando com os obstáculos. Levantamento feito pelo Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp), junto a cerca de 200 instituições, mostra que a inadimplência cresceu 71,1% na primeira quinzena de abril, em relação ao mesmo período do ano passado.
“A prioridade dos governos no contexto da pandemia é reduzir os seus danos sobre a educação, evitando a evasão”, afirma a economista. “Será importante um esforço para evitar que os jovens mais pobres não evadam do sistema.”
A falta de equipamentos médico-hospitalares para o enfrentamento da pandemia alterou a dinâmica da indústria em todo o planeta. No Brasil, não foi diferente. Indústrias tiveram que mudar a produção habitual – automóveis, roupas, cosméticos etc. – para ajudar no combate ao coronavírus. A fabricação de respiradores, máscaras, álcool em gel tornou-se primordial.
A indústria automobilística tem sido uma das protagonistas no processo de reconversão produtiva, também chamado de reconversão industrial. Segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), os produtos médicos começaram a ser produzidos pelas montadoras desde a chegada do vírus no país.
O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioecônomicos (Dieese), no relatório “Reconversão industrial em tempos de Covid-19: o papel dos governos para salvar vidas”, publicado em 13 de maio, destacou a importância da flexibilização produtiva.
De acordo com o Dieese, a reconversão industrial precisa ser rápida para o combate à Covid-19, a partir da adaptação das unidades produtivas de forma emergencial “para a produção de bens ou equipamentos de primeira necessidade temporariamente escassos”.
Para isso, os ministérios da Economia e da Saúde, em parceria com empresas privadas, desenvolveram o projeto “Mais Manutenção de Respiradores”. A iniciativa foi o ponto de partida para a manutenção de 3,7 milhões de respiradores que estavam paralisados. Destes, 1.100 já foram consertados e reinseridos nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) dos estados mais atingidos, segundo o portal G1.
Em São Paulo, Scania, Toyota, Honda e General Motors começaram a consertar respiradores e ventiladores pulmonares danificados ou sem uso. A Peugeot, no Rio de Janeiro, está utilizando impressoras 3D para produzir protetores faciais.
A Ford, no polo de Camaçari (BA), tem produzido máscaras de proteção individual. Já a Mercedes-Benz, em conjunto com o Instituto Mauá de Tecnologia e a Universidade de São Paulo, tem atuado no desenvolvimento de um protótipo de respirador de baixo custo a partir de insumos automotivos. A montadora Volkswagen, em parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), também tem feito o reparo de equipamentos respiratórios.

A iniciativa para atender à demanda emergencial por equipamentos médicos está voltada para resultados a curto prazo, de acordo com Roberto Marx, professor do Departamento de Engenharia da Produção da Poli-USP. “Para uma montadora, isso não vai fazer muito sentido a longo prazo”, afirma.
Para ele, “é possível que a produção local de produtos do setor médico, na prevenção de doenças, especialmente da Covid-19, vire uma parte mais importante do que é hoje na produção industrial brasileira, mas não necessariamente pelas montadoras”.
A emergência da produção é pontual, segundo Roberto. “O momento é de ajudar no tratamento e combate à pandemia, e, nesse sentido, a indústria automobilística pode ter alguma contribuição, mas não é uma contribuição decisiva.”
Uma nova cadeia produtiva precisaria ser criada para que a manutenção de respiradores continue fazendo parte dos negócios das montadoras no pós-pandemia, diz o especialista. Esta atividade, em sua visão, só será possível se houver a criação de “uma outra operação industrial separada da fabricação de automóveis”.
Exemplos internacionais
As medidas para a adoção da reconversão industrial no Brasil seguem exemplos internacionais. Reino Unido, Japão, Alemanha, França e Estados Unidos são alguns dos países que adotaram a estratégia para o enfrentamento da Covid-19, na tentativa de suprir a demanda por respiradores, ventiladores pulmonares e EPIs.
O presidente dos EUA, Donald Trump, usou a Lei de Proteção de Defesa, criada em 1950, para determinar a produção de respiradores pela General Motors (GM), por exemplo. No Reino Unido, o primeiro-ministro, Boris Johnson. pediu a paralisação da produção de carros pelas montadoras, dentre elas a Jaguar Land Rover.
Para o professor Roberto Marx, o país onde está a matriz destas montadoras é essencial para que ocorra a mudança produtiva. “No caso dos Estados Unidos ou da França, onde tem montadoras americanas e francesas (respectivamente), o governo tem mais disponibilidade para atuar”, pontua.
Consequências pós-Covid
A reconversão produtiva tem sido uma saída para a continuidade das atividades da indústria, que vem diminuído gradativamente sua participação na economia brasileira. “Isso é um cenário que já vem acontecendo há muitos anos, em diferentes governos e, agora com a pandemia, pode se aprofundar fortemente”, afirma Roberto.

A tentativa de suprir a demanda atual de produtos para hospitais pode alterar a dinâmica da produção a médio e longo prazos, segundo o relatório do Dieese. A reindustrialização e a diminuição da “dependência de equipamentos e insumos importados, garantindo maior equilíbrio na balança comercial do setor”, são as possíveis consequências da pandemia para a indústria nacional.
Roberto também observa a possibilidade de aumento da demanda por produtos nacionalizados em alguns setores industriais, com a desvalorização do real em relação à moeda americana. “Toda vez que o dólar sobe muito, tem mais incentivo para a produção local e é um espaço que pode ser ocupado pela indústria que sobreviver no Brasil, no pós-Covid”, afirma.
Para que isto ocorra, Roberto acrescenta que “não adianta uma empresa ou um setor demandar de produtos produzidos no Brasil, que antes eram importados, se não tem uma cadeia de produção adequada e um produto interessante, que seja viável do ponto de vista de custo e de satisfação do cliente”.
O Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), na Carta número 995, destaca a necessidade de políticas públicas para evitar os riscos de superprodução ou desperdício futuro. “Os governos podem fornecer previsibilidade aos pedidos e garantias de que itens eventualmente produzidos em excesso farão parte dos estoques nacionais”, afirma a entidade.