De maneira geral, grandes jornais seguem dois critérios para definir o que é notícia de primeira página: o da relevância e o das épocas do ano. O primeiro é introduzido já nas primeiras aulas de qualquer estudante da área, e depende de variáveis como a importância dos personagens envolvidos, ineditismo, ou tamanho do impacto do fato na vida da população. O segundo critério não necessariamente será manchete sempre, mas guiará as reuniões de pauta em determinados momentos temporais.
Sendo assim, pode-se dizer que a relevância é influenciada pela época. Mas o contrário também é verdadeiro: mesmo em temporadas de chuva, um temporal isolado não é necessariamente importante o suficiente para estar em destaque no jornal das sete. Entretanto, se esse temporal paralisar as principais avenidas de uma metrópole, certamente terá uma cobertura completa.
A história contada hoje não envolve personagens conhecidos; tampouco é inédita, e seu impacto provavelmente não será percebido por boa parte da população. Ela se passa em setembro de 2020, mês tradicionalmente marcado por campanhas sobre saúde mental, num ano marcado por uma pandemia.
Como toda grande crise humanitária, quando o coronavírus explode ao redor do globo, traz como efeito a exposição de feridas abertas na sociedade. E, assim, o tema dos trabalhadores de “linha de frente” – como os entregadores de aplicativos – e seus direitos ganhou destaque nas principais redações jornalísticas: em maio, uma onda de protestos contra as condições precárias de trabalho em empresas do setor – em destaque IFood e Rappi – já ganhava força nas principais capitais brasileiras
Mas questões trabalhistas estão longe de ser uma novidade no Brasil, e seus verdadeiros protagonistas dificilmente serão considerados relevantes por muito tempo. Dessa maneira, pautas como as condições de trabalho nos apps de delivery – que, com a pandemia, se tornaram fundamentais para o funcionamento das grandes cidades – não são mais tão realçadas agora, no segundo semestre do ano.
A problemática que se discutia em maio, porém, continua viva para muitas pessoas. Uma delas é Aline: com 23 anos é mãe, divorciada, mototáxi e entregadora de aplicativos.
Aline mora com sua filha em Campo Largo (SP), na divisa entre Atibaia e Jaribu. Elas vivem a 15 quilômetros de distância do centro de sua cidade, em uma casa recém-construída que a moça mostra com orgulho num pequeno tour em vídeo.
O passeio começa no quarto das duas, marcado pela cor rosa dos brinquedos e da cama da menina de 5 anos (que mais tarde faz uma sorridente aparição). “Só não repara que tá uma bagunça”, diz a mãe. Caminhando por um corredor de paredes ainda não pintadas, a entregadora fala da falta de azulejos – a qual pretende resolver em breve – no banheiro e na cozinha. “Cozinha americana. Eu fiz pequenininha, que eu não gosto de ninguém no espaço.” Ao lado do micro-ondas, repousa o seu capacete de moto.
A sala ainda não tem muitos móveis: por enquanto, ganha destaque no espaço a sua mochila de entregas. Mas Aline, entre muitas falas da filha pequena, conta com empolgação um pouco dos seus planos para o cômodo – tornando difícil não torcer por um futuro onde sua casa e vida sejam menos marcadas por suas condições de trabalho nos aplicativos.
Chegar lá, porém, não está sendo uma tarefa fácil: antes da pandemia, a jovem mãe trabalhava em uma empresa de transportes. Sua rotina era deixar a filha na escola (de período integral) todos os dias e ir trabalhar, encarando os apps apenas como um complemento de renda aos finais de semana. Hoje, não tendo mais o emprego anterior, depende inteiramente de trabalhos como o delivery para sustentar a filha, que não está tendo aulas. “Minha família é da zona leste de São Paulo e eu sou sozinha aqui com a minha pequena, então tá tudo bem difícil.” Aline conta que depende da ajuda de conhecidos para poder trabalhar. “Às oito da manhã deixo ela com uma amiga e vou para o táxi; dou umas escapadinhas durante o dia para visitar e no fim da tarde voltamos juntas para casa.”
O trabalho nos aplicativos parece girar em torno de promoções, que para a entrevistada exigem um deslocamento até a cidade São Paulo. “Às vezes fico aqui, e trabalho o dia todo no táxi, às vezes desço para São Paulo e faço os apps.” Normalmente, isso acontece aos finais de semana, que segundo Aline fazem toda diferença para o entregador. “O aplicativo dá preferência para quem trabalha direto”, conta. “Se você não trabalhar no domingo, principalmente na Rappi, não soma pontuação, e entra na segunda-feira com zero ponto, daí fecham todas as áreas com demanda para você.” Ela compartilha uma frustração recorrente: “Esses dias anunciaram vinte reais a mais por frete. Larguei tudo que estava fazendo e desci para São Paulo, mas quando cheguei lá as áreas estavam fechadas para mim”.
Durante a produção desta matéria, a Rappi Brasil era acusada de calote por um grupo de entregadores. O caso foi divulgado pelo portal “Treta no Trampo”, no Twitter: “Dos dias 04 a 06 de setembro, a @rappibrasil lançou uma promoção: faça 8 entregas e receba R$ 110,00 extra. Geral foi para rua trabalhar, mas poucos dias depois a empresa vem [e] diz que cometeu um erro e não vai pagar a promoção”. Quando procurada para um posicionamento, a empresa não deu retorno.
Notícias como essa mostram que, para entregadores como Aline, a situação de trabalho apresentada em maio continua; a entrevistada comenta: “Apesar de alguns falarem que [a situação] melhorou, eu acho que continua péssima. Muito motoboy na rua, todo mês uma novela para receber”. “A gente ainda precisa fazer a manutenção da moto e pagar gasolina." Apesar de apoiar as manifestações dos entregadores, como mãe, ela evita sair para protestar: “Os meninos sempre discutem esses assuntos, eu tenho medo de ir pela bagunça, mas apoio. É uma causa para todo mundo, se tem greve eu não saio para trabalhar”. Seu medo não parece tão incompreensível ao considerar que, em julho de 2020, um vídeo mostrava policiais militares sufocando um entregador em Pinheiros.
Considerando o período de “Setembro Amarelo”, Aline fala de saúde. Ela comenta sobre preocupações, esgotamento, e acima de tudo uma grande sensação de incerteza: “Estou fazendo algo que odeio, ganhando menos da metade do que eu ganhava, preocupada com a minha filha e na dúvida dela estar sendo bem cuidada ou não, desanimada com a casa que não consigo terminar…”. A entregadora conta ter duras crises de ansiedade. Apesar de tudo, segue otimista: “Estamos na luta, desistir nunca. Tenho fé que ano que vem tudo vai melhorar”.
No plano geral brasileiro, histórias como a de Aline certamente não são inéditas, e passam despercebidas nos algoritmos dos aplicativos ou rapidamente perdem relevância nos grandes jornais. Para muita gente , seu trabalho, considerado na pandemia como “serviço essencial”, dificilmente significará mais do que uma breve interação nas portarias e portões residenciais. E, para o jornalismo brasileiro, talvez funcione como uma tempestade isolada na temporada de chuva: por mais intensa que seja, só será uma notícia quente quando sair do micro e realmente ter impactos visíveis na rotina do cidadão comum.
Em 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) constatou que o Brasil possui 18,6 milhões de pessoas com ansiedade, representando 9,3% da população e sendo o país com maior índice de pessoas ansiosas. Embora a maior causa de afastamento do trabalho ainda seja pelo adoecimento do músculo esquelético, as doenças mentais entram em seguida, ocupando o segundo lugar. Os casos só aumentam ao longo dos anos, sendo talvez resultado das jornadas exaustivas e alto rigor do mercado de trabalho na hora da contratação.
Em 2020, tudo se agravou com a chegada da pandemia de Covid-19 e, junto com ela, a necessidade do isolamento social. Ninguém esperava passar por um distanciamento que durasse tanto tempo e a falta do convívio entre as pessoas gerou avanço nos transtornos mentais.
De acordo com a pesquisa realizada pela Área de Inteligência de Mercado do Grupo Abril, em parceria com a MindMiners, 47% dos entrevistados sentem dificuldade para descansar e 23% não estão mais conseguindo dormir bem. Isso pode ser resultado das diversas preocupações que surgiram com a pandemia, como o medo de contágio de Covid-19 pelos familiares, a angústia com os cortes nas empresas, em razão da crise econômica atual, e o estresse para aqueles que estão cuidando do trabalho dos que foram demitidos no corte de funcionários.
É o que ocorre com Thayna Zattar, engenheira mecânica de 24 anos. Antes da pandemia do novo coronavírus, atuou por seis meses em auditoria. No início do isolamento, foi demitida com a justificativa de que muitos clientes da empresa tinham cancelado os projetos da sua área, portanto não teriam como manter os funcionários. "Devido à perda do emprego, eu percebi que tive um aumento na minha ansiedade, principalmente por conta do atual cenário onde várias pessoas também perderam seus empregos. Não está sendo fácil dormir e relaxar", afirma.
Thayna acredita que a consequência disso é uma concorrência maior no mercado de trabalho, gerando uma disputa acirrada. A exigência do mercado está cada vez maior, mesmo que seja para uma vaga de nível júnior. Um dos pré-requisitos é experiência de dois a três anos e conhecimentos específicos avançados. Não é por acaso que a cada ano surgem 160 milhões de novos casos de doenças relacionadas ao trabalho, conforme dados da Previdência Social relativos a 2017.
Conforme a pesquisa do Grupo Abril, 54% das pessoas estão extremamente preocupadas com a situação atual do avanço da doença e 76% se preocupam com a superlotação dos hospitais. É o caso de Natália Barbosa, advogada de 25 anos, que continuou trabalhando presencialmente, já que sua empresa não aderiu ao isolamento social e não permitiu o home office para os funcionários. Ela acabou pegando Covid-19 e transmitindo para os seus pais, já em idade mais avançada.
"Nesse período, senti novos sintomas, como síndrome do pânico, junto com as crises de ansiedade e episódios depressivos que eu já tinha anteriormente", afirma Natália. Hoje, já curada e com os pais bem, continua trabalhando presencialmente e se cuidando com um psicólogo. De acordo com o Jornal do Campus, na semana de 29 de março a 4 de abril de 2020, as pesquisas no Google por atendimento psicológico aumentaram 88% e para o serviço online, 41%.
O programa Mentalize foi criado pelo Ministério da Saúde com o objetivo de reforçar a necessidade do cuidado com a saúde mental e precaver o avanço de doenças mentais nesse momento delicado que estamos vivendo. O Ministério ofereceu materiais e atividades para reforçar que é necessário dar enfoque para isso e buscar avaliações médicas caso sinta algo diferente em relação à saúde mental.
O canal do Youtube do Ministério transmitiu algumas lives com psicólogos e psiquiatras para falar sobre o assunto. Os grupos de enfoque eram crianças, idosos e trabalhadores. Mas, antes disso, o Ministério fez um questionário online para a população responder, com o objetivo de mediar o avanço da depressão, ansiedade e estresse, para também exercer um programa melhor e mais estruturado para as necessidades dos brasileiros.
Ana Oliveira, professora de 23 anos, é mais uma que percebeu um avanço de exaustão e falta de tempo durante a pandemia. No início de tudo, as quatro escolas em que trabalhava cancelaram seu contrato. Com a necessidade de renda, Ana optou por trabalhar para sua tia, tornando-se babá de uma criança de 5 meses e outra de 7 anos. Ela "se mudou" para a casa deles, evitando pegar transportes públicos.
"Quando aceitei ser babá estava tudo indo bem, mas no decorrer dos dias duas escolas pediram pra eu retornar. Como precisava de dinheiro extra, aceitei." Mas isso começou a consumir grande parte do tempo de Ana. "De segunda a sexta fico na casa das crianças, me restando apenas o fim de semana para preparar e gravar as quatro aulas de inglês. Com tanta coisa acontecendo, deixei de ter um tempo só meu e quando tenho pausas acabo limpando meu quarto", afirma.
Em 2018, o INSS concedeu 8.015 licenças para o tratamento de transtornos mentais e comportamentais adquiridos no ambiente de trabalho. Uma pesquisa feita em 2019 pela Talenses, empresa de recrutamento, relata que 44% dos trabalhadores brasileiros já sofreram de burnout (transtorno depressivo, gerado pelo esgotamento físico e mental).
Para evitar ao máximo o avanço dos transtornos mentais durante a pandemia, a OMS divulgou um guia chamado "Cuidados para saúde mental durante a pandemia". Uma das recomendações é fazer pausas e descansar entre os turnos de trabalho ou até mesmo tirar um momento para relaxar dentro do expediente.
Também não esquecer de prestar atenção na alimentação, já que passamos mais tempo em casa e não recusamos algumas bolachinhas, bolos ou pão, e manter o exercício físico e o contato com a família e amigos da maneira que for possível. E, é claro, evitar o uso de tabaco, álcool ou outras drogas para lidar com o estresse. Elas trazem uma ilusão passageira e, a longo prazo, diminuem o bem-estar físico e mental.
O governo Bolsonaro tem, desde as eleições, a defesa às privatizações como grande modelo econômico para o Brasil. Inclusive com o ministro da Economia, Paulo Guedes, prometendo que ocorrerão pelo menos “três ou quatro grandes privatizações” até o fim de 2020.
Uma delas provavelmente seria a da Eletrobrás, empresa nacional de eletricidade. Porém, é necessária a aprovação do Congresso e Senado, com os quais Bolsonaro não cultiva uma boa relação, tendo discutido por meio da imprensa com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, mais de uma vez. Esse desgaste com a Câmara pode dificultar a evolução dessa proposta. Como mostra publicação do Jota, o apoio ao governo Bolsonaro na Câmara caiu cerca de 10 pontos em relação a 2019. Durante o ano de 2020 esse projeto foi muito discutido, mas, a contragosto da Presidência, no mês de agosto Maia declarou que a privatização da Eletrobrás não iria ocorrer este ano. Outro impeditivo seria a situação de pandemia.
Entretanto, no dia 24/08, a Reuters divulgou que o governo tentava manobrar essa situação, com um acordo para que a tramitação do projeto começasse no Senado em vez da Câmara, o que adiantaria o processo. É importante frisar que o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, é do Democratas, mesmo partido de Rodrigo Maia. Em entrevista dada ao UOL, o senador Eduardo Braga (MDB-AM), que participou de uma reunião no Ministério de Minas e Energia no fim de agosto, disse: "O que estamos propondo é criar um mecanismo que vai ter recursos, que vai ter investimento, vai baixar tarifa... e vai gerar de R$ 15 a R$ 20 bilhões para o Tesouro Nacional". O senador declarou que não acreditava que haveria resistência ao projeto por parte dos senadores.
Entretanto, para surpresa do senador, a movimentação nos bastidores gerou descontentamento entre os parlamentares, de acordo com matéria do Valor Econômico. Existem pontos do texto que ainda desagradam parlamentares.
A perspectiva de privatização da Eletrobrás este ano se torna cada vez mais improvável, ainda mais com a chegada das eleições municipais, que foram adiadas de outubro para novembro. Apesar dos deslizes no meio do caminho, a perspectiva de que a privatização da estatal de energia aconteça em 2021 são bastante reais. O próprio Rodrigo Maia se declarou a favor da efetivação do projeto.
Existem também questões constitucionais e acordos internacionais que complicam o projeto de privatização, envolvendo as usinas termonucleares de Angra dos Reis e a hidrelétrica de Itaipu. Para que fosse possível privatizar a Eletrobrás, o governo já reservou cerca de R$ 4 bilhões para a criação de uma estatal que comandaria as usinas de Angra e Itaipu. Parece contraditório que seja necessária a criação de uma nova estatal para que outra seja privatizada, mas a Constituição brasileira proíbe que energia nuclear seja explorada por empresas privadas. Em relação a Itaipu, o acordo internacional com o Paraguai obriga que seja uma empresa em poder da União a controlar a usina.
Outro ponto dessa proposta é que parte desses R$ 4 bilhões seja usada para a finalização da Usina de Angra 3, cujas obras estão paralisadas desde 2015. Também existe interesse dos Estados Unidos e da China em financiar parte da construção da usina. Russos e franceses também têm interesse em participar do negócio. Pelo alinhamento do governo Bolsonaro aos Estados Unidos e ao presidente Donald Trump, técnicos do Ministério de Minas e Energia procuram colocar entraves para a participação chinesa no empreendimento, de acordo com reportagem da Folha de S. Paulo publicada em 19 de agosto. A expectativa é que o custo de construção de Angra 3 chegue no valor de R$ 17 bilhões. Um fator importante para o financiamento desse projeto é o fato de que as dívidas de Itaipu vencem em 2023, o que também ajudaria a acumular capital para o empreendimento.
Um ponto a ser levado em conta ao discutir a privatização do setor de energia é o fato de vários países pensarem nesse setor como estratégico, garantindo que boa parte do mercado nacional seja abastecido pelas estatais. Entre os países que compõem o Brics, por exemplo, China, Rússia e Índia têm a área de energia com forte presença estatal. Para além desses, França e Coreia do Sul também têm estatais do setor com muita presença no mercado.
O presidente Jair Bolsonaro anunciou na semana passada a decisão de abortar o programa social que vinha sendo anunciado como um substituto do Bolsa Família. Estimulada pelo aumento da popularidade do presidente propiciado pelo pagamento do auxílio emergencial, a decisão de criar um novo programa – batizado de Renda Brasil – foi cancelada por Bolsonaro supostamente por exigir condições consideradas inaceitáveis por ele, como a suspensão de outras políticas voltadas para a população de baixa renda.
O Bolsa Família foi criado em 2003 pelo governo Lula e se tornou uma marca das gestões petistas. Atualmente, 14,2 milhões de famílias são beneficiadas pelo programa, que consiste em uma transferência direta de renda para famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza.
O programa nunca foi unanimidade, mas sempre foi mantido pelas gestões posteriores à do governo Lula. “O Bolsa Família tem a chancela do governo Lula, é um dos carros-chefes dele e uma das razões que fez com que ele se reelegesse e elegesse a Dilma. A oposição sempre falou mal do programa porque precisava fazer uma contraposição ao Lula”, analisa Camila Kimie Ugino, professora do departamento de economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Nenhum candidato tirou uma proposta de transferência de renda de seu programa de governo, pois é visível o seu impacto social.”
Segundo dados de reportagem do Estado de S.Paulo veiculada no dia 22 de agosto, o Renda Brasil estava sendo projetado para atender 8 milhões de pessoas a mais que o Bolsa Família. A intenção do governo era colocar em prática a nova iniciativa no início de 2021, após o fim do auxílio que já foi confirmado até o final do ano pela equipe econômica.
O projeto do ministro da Economia Paulo Guedes, previa uma elevação do corte em relação à renda mensal dos beneficiados: de R$ 89 para R$ 100 por pessoa no caso de famílias em extrema pobreza e de R$ 178 para R$ 250 por pessoa em famílias consideradas pobres. Além disso, o Renda Brasil estabeleceria um bônus para famílias que estivessem com filhos nas escolas ou em cursos profissionalizantes, assim como uma maior renda para mães com filhos recém-nascidos, até os três anos de idade.
A iniciativa do governo Bolsonaro vinha sofrendo retaliações e brigas internas que resultaram em rumores sobre a saída do ministro Paulo Guedes. Durante um evento no dia 26 de agosto, Bolsonaro criticou a sua equipe econômica e suspendeu o Renda Brasil: “Ontem discutimos a possível proposta do Renda Brasil. A proposta, como a equipe econômica apareceu pra mim, não será enviada ao Parlamento. Não posso tirar de pobres para dar a paupérrimos”.
O embate entre Bolsonaro e a equipe econômica teve mais um episódio, que aparentemente encerrou o projeto social antes de seu início. Na última terça-feira, dia 15, o presidente declarou que o Renda Brasil estava cancelado e que manteria o Bolsa Família até o final de seu governo. O chefe do Executivo ameaçou dar um “cartão vermelho” àqueles que defendessem o congelamento do salário mínimo, aposentadorias e o corte de benefícios pagos a idosos e deficientes.
A ira de Jair Bolsonaro teria sido provocada por uma entrevista dada por Waldery Rodrigues, secretário especial da Fazenda do Ministério da Economia. Rodrigues afirmou ao portal G1 que a equipe econômica estudava congelar benefícios previdenciários: ”A desindexação que apoiamos diretamente é a dos benefícios previdenciários para quem ganha um salário mínimo e acima de um salário mínimo, não havendo uma regra simples e direta [de correção]”.
A oposição ao novo programa é explicada pela necessidade de cortes em outros programas sociais, como o abono salarial (um salário mínimo a mais para pessoas que ganham até dois pisos), seguro-defeso (benefício dado a pescadores durante a reprodução dos peixes) e o salário-família (para trabalhadores formais e autônomos que são contribuintes da Previdência Social).
“Paulo Guedes está tendo um choque de realidade”, avalia Ugino. “Guedes é o atual ministro da Economia e está exercendo um papel político, por isso precisa aceitar as vontades do presidente em relação a esse programa mesmo sendo um ultraliberal”, comenta a acadêmica.
A professora acredita que Bolsonaro não deve perder o apoio do mercado financeiro por conta do Renda Brasil: “Para o mercado financeiro, é importante que a economia não tenha uma recessão profunda e a renda dos benefícios sociais retorna para a economia pelo consumo. Por isso, o programa social é benéfico em termos de consumo e funcional para a economia”. “O mercado financeiro está mais preocupado com as queimadas da Amazônia do que com o Renda Brasil”, acrescenta a docente.
O site The Intercept Brasil questionou o Renda Brasil e o aumento da popularidade do presidente Jair Bolsonaro em artigo publicado no dia 30 de agosto: “Quando era deputado, Bolsonaro defendia a extinção do Bolsa Família. Segundo ele, os beneficiários do programa eram “pobres coitados, ignorantes” e “eleitores de cabresto do PT”. Hoje ele disfarça esse mesmo pensamento com um discursinho de pai dos pobres”.
O projeto ficou fora do orçamento do ano que vem. Contudo, a verba destinada ao Bolsa Família foi elevada para R$ 34,8 bilhões em virtude do aumento de famílias que dependem do programa devido à pandemia da Covid-19.
Após as declarações que garantiam o Bolsa Família até o final do governo Bolsonaro, o presidente deu aval para que o senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator do orçamento para 2021 e da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) do Pacto Federativo, viabilize um programa social que tenha a marca da gestão atual.
“O que o presidente quer é que o Congresso resolva de onde vai tirar o dinheiro. Ele não quer ficar com a marca de presidente que tirou beneficio dos pobres”, avaliou Júnia Gama, repórter do jornal O Globo em entrevista ao portal Infomoney.
O maior desafio do governo federal é financiar o novo projeto sem romper as regras estabelecidas pela Emenda Constitucional (EC) 95, que criou um teto para os gastos públicos durante 20 anos. Promulgada pelo governo de Michel Temer, a EC 95 é o grande empecilho da equipe econômica para fechar a conta e mandar o Renda Brasil para o Congresso.
“Não existe financiamento”, afirmou o colunista da Folha de S.Paulo Vinicius Torres Freire ao podcast “Café da Manhã”, também produzido pela Folha. “É possível fazer uma emenda para furar o teto de gastos e fazer o Renda Brasil, mas isso seria visto como uma revolução e o mercado financeiro não reagiria bem com um aumento nas taxas de juros e a recessão seria pior ainda.” Torres Freire também analisou outras alternativas para que o programa seja realizado: “Poderiam estender o período de calamidade para o ano que vem e continuar distribuindo o auxílio emergencial. Seria uma forma de furar o teto, mas não sei se existe fundamento para que isso aconteça”.
Em entrevista ao Estado de S.Paulo, o economista Armínio Fraga declarou ser improvável a duração do teto de gastos pelos próximos seis anos. “Ainda há necessidades prementes ligadas à pandemia e, a médio prazo, de natureza social e ligadas à produtividade do Brasil que demandam algum crescimento do gasto."
Para a maioria das famílias brasileiras, a crise pandêmica levou à diminuição da renda mensal, principalmente para as classes menos favorecidas. Se o dinheiro diminuiu, significa mais dificuldades para pagar as contas, comprar alimentos e sobreviver.
A partir disso, muitas famílias se depararam com a escolha de adquirirem empréstimos com os bancos para não atrasarem suas dívidas e não se complicarem no final do mês. Porém, segundo a Pesquisa Nacional de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), realizada pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), o número de endividados em julho de 2020 foi de 67,4% e de inadimplentes 12%, 3 pontos percentuais a mais que em julho do ano passado, um novo recorde.
As dívidas são de diferentes modalidades, como: cartão de crédito, carnê de loja, cheque especial, empréstimo, cheque pré-datado, prestação de carro, móveis e casa. Em comparação a julho de 2019, houve um aumento 3,3% do total de endividados.
A percentagem de famílias com contas em atraso e dívidas em julho chegou a 26,3%, isto é, 3,6 pontos percentuais a mais em relação a julho do ano passado. Já aquelas que declararam não ter condições de pagar representaram 12% do total em julho, um aumento de 3,6 pontos percentuais em comparação ao mesmo mês do ano anterior. Outra questão é o endividamento desigual entre as famílias de maior e menor renda, principalmente agora na pandemia.
Outra questão é o endividamento desigual entre as famílias de maior e menor renda, principalmente agora na pandemia. Famílias com menos de 10 salários mínimos tiveram seus débitos aumentados para 69% em julho deste ano e em comparação ao ano anterior houve um aumento de 3,6%. Já as que ganham mais de 10 salários tiveram suas dívidas diminuídas para 59,1% em julho, um recuo de 1,6 ponto percentual em relação a julho do ano passado
Já para os inadimplentes com renda baixa que apresentaram a proporção de débitos em atraso de 29,7% em julho desse ano e 2,6 pontos percentuais a menos que a anterior. Já entre os de renda superior, o percentual alcançou 11,2% em julho, com a diferença de 0,6 ponto percentual a menos que ano passado.
Outro fator é o percentual de famílias inadimplentes que disseram não ter ideia de quando pagarão suas contas em atraso. Por exemplo, as famílias com renda de até dez salários que declararam não ter condições de pagar representaram 13,7% em julho, com alta de 2 pontos percentuais referente a julho do ano anterior. Nos de renda maior, o indicador alcançou 4,9% em julho com uma diferença de 1,5 ponto percentual em relação ao mesmo mês do ano passado.
No que se refere à capacidade de pagamento, entre as famílias com débitos, a parcela média da renda comprometida alcançou 30,3% em julho, com redução de 0,4 ponto percentual em relação ao mesmo mês de 2019. Apesar do aumento de endividamento entre as famílias de menor renda, a parcela média voltada ao pagamento de contas e dívidas caiu para 30,6% em julho, 0,2 ponto percentual em relação a junho, diferente das famílias com renda maior, que, mesmo com a diminuição do endividamento, registraram um aumento da parcela média comprometida, para 28,4%, 0,2 ponto percentual e no que se refere ao mês anterior.
Entre as famílias com dívidas em julho de 2020, 21,6% afirmaram que mais da metade da renda está comprometida para tais pagamentos, mesmo percentual registrado em julho do ano anterior. Nas famílias que ganham até dez salários mínimos, a percentagem comprometida caiu para 49,8% em julho, 0,1 em relação ao mês passado. Já para quem tem renda acima de dez salários, aumentou para 52,7% , 0,7 ponto percentual na comparação com junho.
O tempo médio de endividamento das famílias aumentou para 7,4 meses em julho de 2020, sendo que 21,2% se comprometeram com as dívidas por até três meses e 34,5% por mais de um ano. Já o tempo de atraso do pagamento dos débitos das famílias inadimplentes foi de 61 dias em julho desse ano, porém abaixo da média anual de 62,3 dias. O percentual de famílias com atrasos de até 30 dias diminuiu de 24,7% para 23,3%. Aumentou de 34,6% para 36,8% os atrasos entre 30 a 90 dias e reduziu (de 39,3% para 38,3%) os acima de 90 dias.
A dívida mais recorrente e que deixa muitos brasileiros inseguros é no cartão de crédito, pois os juros cobrados em atrasos e parcelamentos são altos e cada vez maiores, chegando até 300% ao ano segundo o G1. O percentual de endividamento por cartão de crédito é de 76,2%, seguido por carnês de loja com 17,6%, e por financiamento de veículos 11,3% e de casa 10,1%. Em destaque está a diminuição das dívidas por cartão de crédito na pandemia, sendo como opções o crédito consignado e pessoal, carnês e financiamentos.
O economista, mestre em economia e professor da FMU Marcos Henrique do Espírito Santo falou sobre a questão do endividamento e da inadimplência das famílias brasileiras. Veja abaixo o depoimento:
“O endividamento e a inadimplência das famílias cresceram. Na verdade, isso é um comportamento que já vem da última década, mas com a crise de 2015 e 2016 o aumento de desemprego piorou ainda mais. Esse movimento tende a piorar, sobretudo com a queda do consumo, tendo em vista que agora, com a pandemia, dificultou ainda mais a questão da retomada do investimento, isto é, sem investimento não tem emprego, não tem consumo, pois as famílias não têm renda. Nesse caso, para que a economia volte a crescer é preciso mudar esse governo, não há outra alternativa.
“O problema é que tem que mudar a política econômica para uma que privilegie o investimento público principalmente, mas sei que essa proposta não sairá desse governo, por isso tem que mudá-lo. O mundo inteiro vai usar uma política fiscal expansionista, portanto, ainda que o Estado tenha gasto muito e continue gastando em função das medidas de contenção da pandemia e auxílio emergencial etc, é preciso gastar mais para retomar a economia e, com isso, ajudar a população a colocar suas contas em dia e consumir.
“Não há problema se a dívida pública do Brasil crescer mais, pois o fato de ter uma dívida emitida em sua própria moeda não o torna um país completamente dependente como era o nosso caso na década de 80, que acarretou uma dívida externa emitida por outra moeda.
“Bom, referente à taxa de juros, elas caíram, principalmente a taxa básica de juros, Selic. Mas isso não quer dizer que as taxas tenham mudado, porque a taxa Selic é referência para outras taxas de juros no Brasil. Embora ela esteja muita baixa, o setor financeiro no país (que empresta dinheiro para os consumidores e empresas) é um setor oligopolizado, ou seja, temos poucos bancos oferecendo crédito para toda a população. Portanto eles têm poder de mercado e controle dos preços, e isso faz com que a taxa de juros não caia. Se a taxa de juros não cair, menos empréstimos terão e mais dificuldades para aqueles que adquiriram pagarem.
“Adicionalmente, como as pessoas estão desempregadas e a inadimplência aumentou, o banco fica ciente do maior risco, ao invés de tomar esse risco e emprestar dinheiro. Essas taxas têm mais dificuldades de cair em função da perspectiva de futuro. Mais uma vez reforço a importância da política econômica, pois, sem a reestruturação e mudança radical dela, não teremos saída.
Maria Jucilene da Silva, de 50 anos, trabalhadora informal, fala sobre as várias dívidas que adquiriu ao longo dos anos para ter uma vida melhor.
“Me descuidei demais, sujei meu nome com cheques e dívidas em cartões de créditos. Hoje, meu score (segundo o site boa vista serviços, significa a pontuação do consumidor para conseguir crédito na praça, tanto por meio de empréstimo, quanto financiamento e carnês). está baixíssimo.
“Penso que nem se eu pagar ele vai voltar a crescer pelo tempo que fiquei sem quitar. O ruim é que eu e minha filha ganhamos pouco, só dá para pagar as contas como água, luz, internet, comprar alimentos, pagar o aluguel e imposto da casa. Enfim, quitar as dívidas vai demorar um tempo. Minha filha está na mesma situação que eu: contraiu dívidas em cartões, empréstimo e cheque especial. Infelizmente ela também não consegue pagar o que deve.
“Essa pandemia veio para atrapalhar nossos planos, pois estou vendendo menos que antes e ela não consegue arrumar um emprego melhor. Para quem ganha pouco, o jeito é sobreviver com o que tem, porque dívidas não temos mais como contrair, claro, ninguém em sã consciência deixaria compramos e pagarmos depois, e cartão de crédito, isso aí já não temos há muito tempo.
“Eu e ela nunca tivemos uma educação financeira, creio que, se tivéssemos tido, não estaríamos tão endividadas. Sábia e feliz é aquela família que poupa e só gasta com o necessário. Infelizmente não fomos assim. Agora eu e ela tentamos gastar o mínimo possível para sobrar um pouco no final do mês, pois nunca se sabe se precisaremos pagar uma consulta ou fazer um exame com urgência ou qualquer outra coisa importante. Confesso que é muito bom ter crédito nos bancos e lojas e poder tirar/comprar o que quiser. Antes tínhamos isso, porém, por falta de planejar e poupar, acabamos cheias de dividas e sem saber quando serão quitadas.
A despeito da visão negativa em relação ao mercado de trabalho e a renda mensal, a CNC afirma que “a queda das taxas de juros e a inflação controlada em níveis historicamente baixos são fatores que podem favorecer o poder de compra dos consumidores. Além disso, os benefícios emergenciais também têm impactado positivamente o consumo, especialmente dos itens considerados essenciais, e auxiliado o pagamento de despesas. Indicadores recentes têm demonstrado sinais de alguma recuperação da economia a partir de maio e junho, mas ainda permanecem incertezas sobre a retomada, uma vez que a proporção de consumidores endividados no País é elevada. Assim, é importante seguir ampliando o acesso ao crédito com custos mais baixos, como também alongar os prazos de pagamento das dívidas, para com isso mitigar o risco do crédito no sistema financeiro”.