Desigualdade, corrupção e desemprego juvenil deflagram uma revolta que expõe a fragilidade econômica profundamente enraizada.
por
Pedro Bairon
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14/11/2025 - 12h

Por Pedro Bairon

 

Na primeira semana de setembro de 2025, as ruas de Kathmandu foram tomadas por uma onda de protestos liderados pela chamada Geração Z, quando milhares de jovens se reuniram para denunciar a corrupção, o nepotismo e a desigualdade que dominam a vida pública do Nepal. O estopim foi a proibição de 26 plataformas de redes sociais incluindo Facebook, Instagram, X e YouTube, decretada pelo governo, uma medida que ativistas viram como um ataque à liberdade de expressão, Raj Rana, um nepalês que participou das recentes manifestações reafirma tal posição.

Os protestos rapidamente escalaram: confrontos com a polícia resultaram em uso ostensivos de bombas de gás lacrimogêneo, balas de borracha e munição real, segundo Rana. No dia 9 de setembro, o primeiro-ministro KP Sharma Oli renunciou, pressionado pela magnitude da insatisfação dos jovens, porém, não se limitou ao veto digital. Por trás da indignação estava uma reclamação mais profunda: a escassez de empregos dignos, a persistência de elites privilegiadas (os chamados “nepo kids”) e a sensação de que, apesar de tanto crescimento econômico reportado, o Estado falhou em converter recursos em oportunidades para a maioria da população. De fato, segundo o Banco Mundial, mais de 80% da força de trabalho nepalesa está na informalidade, um número clássico de economias frágeis. O economista Karki Lama aponta que as remessas enviadas por nepaleses que trabalham no exterior (equivalentes a mais de um terço do PIB, segundo Fundo Monetário Internacional, FMI) sustentam o país, mas não geram empregos de qualidade e mantêm muitos jovens reféns de oportunidades materiais mínimas.

Esses protestos, segundo analistas, não são apenas uma manifestação política: são um grito de alerta sobre a saúde estrutural da economia nepalesa. A relação entre a frustração juvenil e as debilidades econômicas torna-se evidente à medida que se examina o modelo de desenvolvimento vigente no país. A economia nepalesa há muito tempo depende fortemente das remessas de migrantes para manter sua liquidez externa e financiar o consumo interno. Para Lama, entretanto, essa dependência representa um fracasso de capacidade produtiva nacional, não há trabalho suficiente internamente, e a migração torna-se quase inevitável. Mas a crise das ruas tem um custo direto para a economia. Um relatório recente do Banco Mundial alerta que a turbulência política pode reduzir fortemente o crescimento econômico em 2025-26: a previsão foi ajustada para 2,1%, com possibilidade de contração se a instabilidade persistir. O documento prevê ainda uma queda nas chegadas de turistas, um golpe duplo para o Nepal, que depende fortemente do turismo para gerar divisas e emprego formal. A erosão da confiança dos investidores já se tornou palpável. A Federação da Indústria do Nepal (FNCCI), por exemplo, emitiu um apelo para que o novo governo garanta segurança e estabilidade para os negócios, destacando que o setor privado é vital para a recuperação. Segundo esse mesmo apelo, as perdas com os danos materiais causados pelos protestos já afetam indústrias, propriedades e a cadeia de valor do turismo, hotéis, guias, transportes, tudo foi afetado.

Além disso, a insatisfação juvenil encontra respaldo em dados econômicos estruturais que expõem fragilidades profundas. O Nepal registra uma das maiores taxas de desemprego entre jovens na região: cerca de 20 %, segundo o mais recente relatório do IBGE Países. A falta de emprego qualificado, o baixo investimento em infraestrutura produtiva e a fraca diversificação industrial criam uma economia incapaz de absorver seu capital humano mais o peso das remessas, embora vital, é paradoxal: elas sustentam a economia, mas corroem o potencial de desenvolvimento autônomo. Conforme observa a New Humanitarian, muitos jovens veem sua saída como única rota possível, enquanto outros permanecem para protestar contra um sistema que lhes fecha portas. A migração, nesse contexto, deixa cicatrizes na cena política, no tecido social e nas finanças públicas.

O choque dos protestos também traz riscos no balanço externo. A volatilidade gerada pelas manifestações mobiliza redes de capital para fora do país, deixando o Nepal vulnerável a choques cambiais e restringindo sua capacidade de investir em longo prazo. A perda de turistas, a recomposição mais lenta de reservas cambiais e a alta cautela dos investidores estrangeiros são efeitos colaterais duradouros desse momento de ruptura. Do ponto de vista fiscal, a crise exige que o governo interino encontre um delicado equilíbrio. Por um lado, há pressão para responder às demandas dos jovens por mais transparência, combate à corrupção e reforma política. Por outro, há necessidade urgente de restaurar a confiança dos mercados, garantir fluxo de investimentos e sustentar a receita pública. Se o Estado optar por cortes agressivos para manter a disciplina fiscal, pode abrir mão de sua capacidade de gerar empregos, exatamente aquilo que a Geração Z exige. Por outro lado, expandir gastos sem controle também pode agravar vulnerabilidades já existentes. A situação contemporânea do Nepal também reflete um dilema geopolítico. Localizado entre Índia e China, o país sempre foi estratégico para ambos. A instabilidade recente pode frear projetos bilaterais de infraestrutura e perturbar o plano de desenvolvimento sustentável que muitos observadores internacionais defendiam para a nação. Além disso, a falta de boas políticas industriais internas limita sua capacidade de atrair investimento direto que não dependa exclusivamente de remessas ou do turismo.

Embora a revolta da Geração Z tenha derrubado um governo, ela colocou a economia nepalesa sob os holofotes: o modelo baseado em remessas e fluxo turístico é funcional, mas frágil. A instabilidade desencadeada pelos protestos expôs o dilema clássico de economias dependentes: crescer, mas sem construir uma base real de produção, oportunidades e institucionalidade. Se o novo governo quiser responder ao grito dos jovens, terá de investir não apenas na reconstrução política, mas sobretudo na transformação econômica: criando empregos, promovendo reformas estruturais e reduzindo a dependência de fatores que escapam ao controle interno. Sem isso, o Nepal pode voltar a caminhar, mas continuará sobre uma ponte frágil, com vento forte acima e abismo profundo abaixo.

Videogames se aproximam de artigos de luxo devido aos elevados custos
por
Lucca Cantarim dos Santos
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07/11/2025 - 12h

Por Lucca Cantarim

 

Quem acompanha o cenário dos videogames vem se surpreendendo com a alta nos preços dos jogos nestes últimos meses. Com valores que vão desde R$ 249,95, valor do jogo “Hundred Line – Last line of defense”, lançado em abril de 2025, até R$ 499,99, preço do jogo Mario Kart World, que chegou às lojas em junho do mesmo ano. Esses preços têm dificultado cada vez mais o acesso dos fãs aos jogos que desejam, uma vez que acaba sendo inviável para muitos precisar gastar tanto dinheiro sempre que querem jogar um jogo novo. A estudante de sistemas de computação Gabrielle Rodrigues afirma sempre se arrepender de pagar caro em um jogo no dia do lançamento e acabar ficando sem dinheiro para comprar uma roupa ou até mesmo uma passagem do Rio de Janeiro até São Paulo para visitar seus entes queridos. Já o estudante Gabriel Merino alega sentir cada vez mais que não consegue comprar jogos no lançamento, precisando esperar diversos meses até uma baixa no preço ou promoção para finalmente ter acesso ao produto.

Fazer um jogo é um processo extremamente caro, e para a desenvolvedora independente “Dumativa”, responsável por jogos brasileiros como “Enigma do Medo” e “Lenda do Herói”, esse é o principal motivo para o aumento no custo do produto final. Já para Juno Cecílio, CEO da “Gixer Entertainment”, outra desenvolvedora independente, criadora do projeto “Changer Seven”, que se encontra em desenvolvimento atualmente, existe um fator ainda mais sensível.

 

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"Changer Seven", jogo de Juno Cecílio                                                 Foto:Divulgação/Gixer

 

Juno defende que existe uma estratégia de mercado mais agressiva por parte das empresas, que almejam maximizar sua receita em cima de um público fiel e cada vez mais disposto a pagar por franquias conhecidas. O grande problema, é que não existe um teto que defina até onde uma corporação queira ganhar, o que acaba sucateando o setor. O desenvolvedor faz um comparativo com outros setores no Brasil, como o de faculdades, que são compradas, demitem o corpo docente e substituem-no por profissionais mais baratos e revendem para o próximo, que fará o mesmo. Esse caso pode se observar na faculdade Anhembi Morumbi, que sofreu demissões e perdas massivas na grade horária após ser comprada pelo grupo Ânima Educação em 2021, como afirma uma matéria publicada na UOL em 2023.

Mas ele também aponta para outro fator, que também é abordado pela Dumativa, a falta de regionalização do preço. Quando um jogo chega no Brasil apenas convertido pela taxa do dólar, sem considerar a realidade do poder de compra local, ele acaba se tornando um produto quase que de luxo, e é nessas situações que observamos preços como os R$ 500,00 de Mario Kart World. A maioria dos jogos independentes já consideram fatores regionais quando lançam seus produtos em outros países, mas as produções de empresas grandes, como Nintendo, Ubisoft e Activision não, o que agrava uma ideia de “ganância” por parte dessas empresas.

Oferecer preços acessíveis ao consumidor é importante por inúmeros fatores, e um deles é justamente oferecer a experiência de jogo para um público mais amplo. Para muitos fãs de videogames, é extremamente doloroso, apesar de não chegar a um estágio extremo, ser privado de jogar algum jogo que goste devido ao seu custo elevado.

Gabrielle, por exemplo, diz que se sentiria mal caso fosse impedida de comprar um lançamento que estivesse com vontade de jogar. Ela alega que tem vontade de jogar o “Persona 3 Reload” a cerca de um ano, mas até hoje não o fez devido ao alto custo do jogo. Ela conta que até pensou em piratear a mídia apenas para consumo, e pagar por ela quando tivesse a oportunidade – igual já fez com outras franquias – mas que os sistemas que as empresas andam colocando em seus produtos, dificultam muito a pirataria. Gabriel Merino passa por uma situação similar, ficaria chateado caso não conseguisse comprar um jogo devido ao preço, mas também não compraria um jogo à preços exorbitantes mesmo se tivesse as condições para isso.

Lançar os jogos à preços acessíveis é essencial para que essas pessoas consigam consumir a mídia que desejam sem precisar se arriscar na pirataria ou pagar valores elevados. Além disso, é essencial para a criação de um consumo saudável. Nas palavras de Juno, quando um jogo lança à um preço compatível com a realidade do brasileiro, ele vende mais e ajuda a fortalecer o mercado e a comunidade local, e a trazer mais espaço para as empresas no País. Um exemplo foi o “Hollow Knight: Silksong”, lançado pela Team Cherry em setembro desse ano. O preço de R$ 60,00 cobrado pela mídia fez com que ela vendesse muitas unidades em um único dia – culminando na queda dos servidores da plataforma de compras Steam.

As empresas e publicadoras são as primeiras que podem participar na criação de um preço mais acessível e justo para o bolso da população. Grandes empresas e distribuidoras (Nintendo, Ubisoft, Microsoft) podem ajudar aprimorando a regionalização de preços, levando em conta o poder de compra de cada país; aprimorar a educação e formação de talentos, o que em longo prazo reduz o custo de produção global; oferecer programas de incentivo e parcerias com estúdios locais, o que acaba por gerar mais empregos, e visibilidade.

Quanto às empresas independentes, não se pode transferir as mesmas responsabilidades, uma vez que estas não tem o mesmo poder financeiro que as “gigantes do setor”. No entanto, elas podem e devem estabelecer métodos de acessibilidade nos preços de seus jogos, e algumas já tomam as providências, apesar de este ser um dos maiores desafios para essas instituições.

A Dumativa têm feito uso dos sistemas de financiamento coletivo em seus lançamentos, isso ajuda as empresas a terem uma base financeira mais sólida antes mesmo do lançamento, além de estabelecer uma relação saudável com empresa e consumidor, a partir do sistema de recompensas e conteúdo adicional dependendo de quanto cada pessoa optou por investir no jogo, além do próprio produto completo após o lançamento.

Já Juno, da Gixer, amplia ainda mais sua visão, para ele, jogos independentes não precisam competir com os grandes lançamentos em preço, na realidade, esses lançamentos têm de entregar valor percebido, autenticidade e qualidade dentro de seu escopo. Além disso, ele acredita que uma das melhores formas de equilibrar as contas sem depender do preço cheio é a diversificação de fontes de receita, e podem fazer isso por meio do lançamento de edições digitais com bônus, participação em festivais e até mesmo outros tipos de produto, como colecionáveis, histórias em quadrinho e até trilhas sonoras.

Outra ajuda também pode vir das próprias lojas, plataformas como a Steam se destacam quando o assunto é tornar seus preços mais acessíveis. Além da abundância de promoções, principalmente em datas comemorativas, que podem levar um preço de R$ 200,00 a R$ 40,00, a plataforma criou um sistema de famílias, que permite que um grupo de pessoas compartilhem a mesma biblioteca, podendo jogar jogos que pertencem à conta de terceiros (desde que inseridos na mesma família, cujo limite de pessoas é seis).

 

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Logo da loja digital Steam                                                                           Foto: Divulgação/Steam

 

Para Gabrielle Rodrigues e Gabriel Merino, que participam da mesma família alegam o quão benéfico isso é para eles, ambos afirmam como conseguiram ter mais acesso à jogos que não conseguiriam ter de outra forma, além da possibilidade de repartir os custos com os membros do grupo. Gabrielle afirma que financeiramente a família Steam é algo divino.

 

Movimento nas lojas aumentam conforme as épocas temáticas do ano vão chegando
por
Nathalia de Moura
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24/10/2025 - 12h

Por Nathalia de Moura

 

Entre o vai e vem e o sobe e desce das pessoas, a 25 de Março é o centro das vendas, principalmente em épocas como Carnaval, Natal e Halloween. Cores, brilhos, formas, luzes, ocupam as fachadas das lojas fazendo cada cliente lembrar que as bruxas chegam em 31 de outubro, o Papai Noel dará o ar da graça em 25 de dezembro e o Carnaval em breve tomará conta das ruas do País. 

A correria para atender o cliente que precisa de uma abóbora laranja e gigante, a atenção para cortar o tecido para a roupa do velhinho do Polo Norte ou até mesmo separar as lantejoulas para a confecção da fantasia faz parte do dia a dia das vendedoras do centro de São Paulo. Marlene tem 53 anos e veio atrás dos sonhos na capital paulista aos 16. Hoje fala com muito carinho no orgulho em fazer parte desses momentos. Com um sorriso, mas a voz embargada e os olhos marejados, relembra a dificuldade de se iniciar nesse mundo dos produtos de aviamentos e sazonais. Sempre sonhou em ter o que possui hoje, e mesmo com tantos patrões desacreditando de seu potencial, conseguiu ir atrás daquilo que a motivava: a arte do artesanato.

Os produtos chegam na loja e dali, são transformados em grandes realizações. Ela conta que nada é mais gratificante do que poder ajudar alguém que nem sabia o que estava procurando e encontra ali no seu estabelecimento. Na correria dos dias, as horas passam, a agitação aumenta, o fluxo cresce. Cada cliente fica um tempo observando aquele ambiente repleto de oportunidades. Oportunidade de fazer algo diferente do ano anterior, a chance de colocar uma cor diferente na decoração, de enfeitar a casa com pisca-pisca ou até fazer a festa temática do dia das bruxas que não aconteceu antes.

Na salinha apertada, rodeada de papelada importante e também do quadro estampando a foto da sua família, Marlene contava que proporcionar produtos de qualidade aos clientes a transforma. Pode ser que o Papai Noel não seja vendido hoje, que a abóbora gigante ainda passe despercebida ou o letreiro de “Feliz Natal” não seja usado, mas ela segue acreditando que cada fio, botão ou glitter pode ser utilizado em outros momentos justamente para não ser desperdiçado.

Ao andar pelas lojas, percebemos os olhares atentos nas promoções, o barulho dos comentários ao ver uma peça exposta ou as perguntas em relação aos preços. Para lá ou para cá, a multidão toma conta dos ambientes. Mesmo antes dos dias de comemoração, as pessoas fazem questão de irem em busca do que procuram o quanto antes. Mas sempre tem os que preferem comprar aos 45 minutos do segundo tempo. Na pressa para conseguir atender todos os clientes, Elen, funcionária que enfrenta todas as épocas corridas de venda do ano, fala que em alguns momentos, não consegue dar a atenção que as pessoas merecem. Seu olhar acompanhava a chegada e a saída dos clientes na loja. A atenção é máxima em um lugar que a exige a todo tempo.

No meio das linhas, botões e tecidos, a cearense de sotaque presente e forte expressa que nem imagina as diversas possibilidades que podem sair dali na sacola de cada pessoa. Uma linha pode se tornar mais de uma peça no Carnaval do Sambódromo do Anhembi ou nos bloquinhos pela cidade. E quando ela pensa nisso, os olhos até brilham em saber que, de alguma forma, fez parte daquilo.

A oferta e a demanda não param, assim como a agitação que só o ambiente da mais conhecida rua de comércio paulistana é capaz de proporcionar. Pelas ruas da 25 de março andam jovens, idosos, mulheres e homens carregando pequenas sacolas ou grandes volumes de mercadorias. De um lado o consumidor, do outro o vendedor. Ambos sabem que precisam um do outro, principalmente nessas épocas agitadas do comércio. Para Marlene, inspirar pessoas com seu empreendimento é motivo de orgulho. Em meio aos elogios que sua loja recebe, ela sempre sai com o sentimento de missão cumprida ao ver seus clientes com as sacolas recheadas de produtos que farão a diferença em épocas que se tornam especiais nas particularidades de cada um.

Lugares que focavam em atividades de lazer e contemplação da natureza estão sendo transformados em shoppings a céu aberto
por
Victória da Silva
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31/10/2025 - 12h

Por Victória da Silva

 

Na Zona Sul da capital paulista, o Parque Ibirapuera é bastante frequentado por pessoas que não se restringem a residentes da cidade. Miriam Santos, sorridente e carismática, frequenta regularmente o local em períodos de descanso e, acompanhada por Andre Bressa, sente as mudanças causadas pela iniciativa privada que invade o espaço público e o torna um tanto quanto diferente do habitual. Miriam trabalhou durante 48 anos na mesma empresa e agora, aposentada, encontra no parque um refúgio no meio da selva de pedra, diz que o lugar já não é mais para todos os tipos de pessoas. Atualmente, com a grande quantidade de carrinhos de sorvetes sofisticados e o aumento do preço de lanches, ela mostra a mochila que Andre carrega com bolsas térmicas cheias de garrafas de água e alimentos para quando necessário. Bressa, que é pintor e trabalha em feiras livres, demonstra certa curiosidade sobre a quantidade de propagandas e publicidades que estão sendo distribuídas por todo o parque após a concessão. Ele atenta para um anúncio da tinta Suvinil, algo nunca visto antes em anos de visita ao local.

O Parque Ibirapuera não foi privatizado, já que sua propriedade continua sendo do município, mas foi concedido à iniciativa privada em 2020 para a concessionária Urbia, que vai comandá-lo durante os próximos 30 anos. Não só o Ibirapuera, mas os parques Villa-Lobos e Cândido Portinari também estão sob concessão, lidando com as mudanças. Há também projetos de concessão para outras regiões, principalmente na Zona Leste, no Parque Ecológico do Tietê, Parque Vila Jacuí e Parque Maria Cristina Hellmeister de Abreu.

No Parque da Água Branca, localizado em Perdizes, Andre relembra o episódio em que a concessionária, Reserva Novos Parques Urbanos S.A, instalou um showroom de carros da Peugeot que foi desmontado após ser considerado ilegal e gerar vários protestos. O pintor destaca como os espaços estão sendo utilizados para promover eventos de nichos mais elitizados e o quão evidente isso se tornou após o controle da e empresas. Além disso, ele observa que as lojas e restaurantes distribuídos, além dos eventos, shows e festivais realizados são majoritariamente frequentados por pessoas brancas, repercutindo uma desigualdade racial dentro dos parques que anteriormente não eram exclusivos de determinada raça ou classe.

Outros visitantes como Beatriz e sua mãe Alessandra, que costumam andar de bicicleta pela pista do local, se depararam com o alto preço de produtos simples, como a água. A garota relata que o preço da garrafa é o que mais a incomoda e sua mãe complementa contando que todos os produtos ficaram caros, incluindo os alugueis das bicicletas em que 1 hora com o veículo custa 18 reais.

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Concedido à iniciativa privada em outubro de 2020, Ibirapuera enfrenta alta no preço de produtos e instalação de unidades comerciais. Foto: Victória da Silva

Em maio deste ano, o Ministério Público de São Paulo abriu um inquérito para investigar a Prefeitura e a concessionária Urbia por uso e segregação de espaços públicos para fins particulares. Na época, o promotor Silvio Marques manifestou sua indignação contando que a empresa estava transformando o Ibirapuera em um “verdadeiro shopping center”. Também segundo o inquérito do MP, a Urbia promove um "loteamento" com a instalação de lojas, construção de grandes edifícios, comércio de bens e serviços e o uso remunerado de diversos espaços, com redução do espaço livre para uso gratuito da população. A investigação revela a crescente tensão entre o discurso de modernização via parcerias público-privadas.

Os radialistas, Viviane e Everton, que semanalmente vão ao parque para praticar exercícios e corrida, relembram a instalação da Casa Centauro que foi retirada após as muitas denúncias. Diferentemente, o casal não vê problemas nas mudanças que a concessionária promove e afirma que não sentiu tantas diferenças. No entanto, o mau planejamento dos serviços é um fator levantado pelos dois. Ele afirma que os espaços livres estão sempre lotados, dividindo-se entre pessoas que vão para passear e outras que praticam algum esporte. Apesar de admirada com a quantidade de novos serviços e possibilidades dentro do parque, a mulher faz uma dura crítica à falta de segurança, já que, para ela, a concessionária deveria investir em questões como essa.

Para além dos fatores levantados, taxas para corredores e para assessorias esportivas também são alvos de revolta. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) autorizou, em julho deste ano, a aplicação de tarifas pensando no uso do espaço do parque para atividades esportivas. Mais do que discutir contratos e taxas, está em jogo o compromisso de preservar os espaços públicos como lugares de encontro, lazer e diversidade, e não como territórios delimitados pelo poder de consumo. A garantia que espaços públicos não se convertam em mercados restritos permanece aos órgãos municipais e a população que frequenta os ambientes precisa lidar com a frequente disputa que acontece desde 2024.

Gratuidade do transporte público no Brasil é possível, e joga luz nos gastos das famílias com a locomoção e exclusão social
por
Vítor Nhoatto
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24/10/2025 - 12h

Por Vítor Nhoatto

 

É de manhã, por volta das sete, e o começo do dia para milhões de brasileiros em um ponto lotado. As dezenas de pessoas tentando se colocar fora do sol escaldante da cidade, com rostos franzidos e olhos apertados toda vez que um ônibus passa, torcendo para que seja o seu. E decepcionadamente dispostos, pagam por algo que deveria ser universal, e poderia, mas é na verdade um peso desproporcional e impede o acesso a outros direitos.

Mas nos últimos meses uma luz no fim do túnel, ou melhor, um letreiro iluminado no ônibus com o destino desejado voltou a ser discutido. A chamada Tarifa Zero do transporte público no País está em análise pelo Governo Federal, e o presidente Lula solicitou estudos para a viabilidade do projeto, que envolve questões políticas e relativa falta de esperança pelo povo.

O público no meio da avenida é desse jeito, já apático diante do barulho do motor diesel e dos corpos todos em contato na condução do dia a dia. Para Josefa Sueli, só Sueli pede ela, e cerca de 10 milhões de pessoas só na capital paulista segundo a SPTrans, é exatamente nesse cenário que o ir e vir acontece. Trabalhadora doméstica há mais de 30 anos e pernambucana arretada, conta que pelo menos quatro vezes por semana desembolsa R$5,80 no ônibus da EMTU azul e vermelho até a estação em Osasco ou a Lapa aqui na capital, e mais R$5,20 no trem ou R$5,00 no ônibus agora da SPTrans. Fato é que como milhões de outros brasileiros, o gasto só na ida passa dos dez reais, e o tempo nessa brincadeira urbana não é menor que duas horas. 

Pessoas com mochila nas costas que atrapalham a passagem, condução que não chega no intervalo que era para chegar. Olhos nervosos mirando o relógio na tela do celular que seguram com uma mão, enquanto a outra suada se segura nas próprias pessoas ao redor… não há espaço para encontrar as barras de suporte. E lá se foram as duas horas. Sueli chega então na casa do dia perto das nove da manhã, e com R$11 a menos na conta. Entre vassouradas e esfregadas, continua comentando sobre episódios que só o transporte coletivo pode proporcionar. Mas depois de uma janela que não pôde abrir, uma encarada de lá e um empurrão de cá, a constatação que mesmo assim ainda gasta um absurdo só para chegar até os lugares, em vida e dinheiro.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), o gasto com transporte das famílias só não é maior que habitação e alimentação, sugando até 20% do salário por mês. No caso da Sueli, que perde a mesma quantia na volta, lá se foram pelo menos R$350 no mês, só indo e vindo do trabalho quatro dias na semana.

Recentemente tendo passado por uma suspeita de câncer de intestino, ela conta feliz que não tem a doença, e todo final de semana sai para comemorar a vida. Às vezes com o filho, que mora na zona leste de São Paulo, há mais de duas horas de distância, outras com a irmã e com as amigas em algum bar, se ela não conseguiu um ingresso para um show de algum cantor sertanejo que tanto gosta.  E tudo isso ela faz de ônibus e metrô na maioria das vezes, salva as pouquíssimas vezes que sobra algo para o Uber, mas enfim, também meio de locomoção. Fazendo então seus “passeios” obrigatórios no transporte ultrapassarem o gasto de 400 reais. 

Não precisava nem ser totalmente de graça aos olhos dela, que já viveram muitas histórias, e suas mãos calejadas que agarram as barras no ônibus e metrô tanto quanto o esfregão. Ela suspira enquanto levanta o seu óculos e indaga que algumas patroas ajudam com a condução, mas é um dinheiro que podia gastar com tantas outras coisas. 

Comprar um saco de arroz e feijão a mais, uma guloseima para a companheira de quatro patas, Bela, uma ida na Villa Country ou no Centro de Tradições Nordestinas (CTN). Uma quantia que faria a economia girar. Segundo estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV), nas cidades com gratuidade universal, o número de empregos aumentou 3,2% e o de empresas 7,5%, sem falar da redução em 4,2% das emissões de poluentes pela diminuição de carros. 

Mas ela ainda se lembra da parte da sua família que vive em Pernambuco e dos conhecidos de lá. Cada real a mais faz a diferença para quem não tem o que ela tem. Um litro de leite, uma ida no posto que não pode fazer por causa da passagem, destaca.

Uma realidade para milhões de brasileiros que têm os seus direitos básicos negados também pelo transporte, um outro direito que consta na Constituição de 1988. O artigo 5º prevê direito à livre locomoção, e o artigo 6º o direito ao transporte, mas que são segregados e traduzidos como ferramenta de desigualdade social na prática.

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Transporte público é o meio de acessar os outros direitos além de simples meio de locomoção  - Foto: Vítor Nhoatto

De olhos na cidade

De volta ao ônibus, agora à tarde, mesmo que de pé ou sentado, é engraçado ver a vida passando pela janela. Os olhos dos CLTs, dos estudantes, dos trabalhadores informais como a Sueli olham para a cidade lotada de trânsito… quando não estão cochilando de cansaço com a cabeça encostada tremendo no vidro. Sobre essa questão, o mestre em economia pela universidade de São Paulo (USP), e mais que isso, militante da área, Antônio Carlos de Moraes destaca como isso é enorme e importante. Não se trata apenas de algo eleitoreiro e de apelo popular, destaca ele, mas algo que realmente muda a vida das pessoas. 

O modelo atual do transporte se baseia no ganho por passageiro, então quanto mais cheia for a linha, quanto mais empurrões e reclamações a Sueli tiver para contar na ida e vinda do trabalho, dentista, mercado, médico, bar, mais rentável ela se torna. Nisso tudo o número de carros aumenta para quem pode, tal qual o de acidentes, congestionamento e poluição, além das pessoas que deixam de acessar lugares pelo preço cada vez mais alto das tarifas. 

Com um sistema público nacional de transporte coletivo a história seria muito diferente, como enfatiza Antonio, lembrando de suas vivências e não de números que só interessam a economistas. Ele destaca que todos arcam com os prejuízos da troca do ônibus pelo carro, mas são os mais pobres que pagam o preço na pele, com cada vez menos para gastos básicos como alimentação, e abrindo mão de ir e vir compulsoriamente pelo orçamento que não fecha. 

Falando em sistema, tramita na Câmara o Marco Legal do Transporte Público, que visa estabelecer diretrizes nacionais sobre a contratação de empresas, regras, fiscalização e fontes de financiamento. Isso pode aumentar ainda mais a quantidade de cidades que adotam a Tarifa Zero de algum jeito, hoje o Brasil é o país com o maior número do mundo, com 170 municípios. E mais que isso, ele pressiona e possibilita a reparação histórica que seria um Sistema Único de Saúde (SUS) do transporte público. Poder ir e vir seria garantido, mais pessoas iriam à escola, ao médico, ao museu, ao mercado… e prefeririam o coletivo ao individual. 

Porém, quem iria então pagar a conta? Essa é a principal pergunta de Roseli Rodrigues, passageira de ônibus não por opção. Com um semblante preocupado, atrasada para o trabalho na Avenida Doutor Arnaldo enquanto espera no ponto da Rua Guaicurus, reclama do preço da gratuidade lembrando que de domingo, quando é de graça, o ônibus nunca chega.  Passando a mão pelo rosto em sinal de aflição e cinco reais no bolso ardendo para sair dali quando o número certo aparecer no letreiro no horizonte, destaca que é contra a gratuidade se a qualidade piorar. 

Mas em seguida, lembra que seria ótimo poder ir ao mercado com 200 reais a mais, valor que gasta em média por mês, já que prefere não ter 6% descontado do seu salário com Vale-Transporte (VT). Nos domingos, Roseli destaca ainda, que sempre que pode opta pelo carro de aplicativo devido a demora do ônibus e a lotação do metrô. 

Em exclusividade à CNN Brasil, segundo o presidente da Confederação Nacional do Transporte (CNT), Vander Costa, o custo anual da gratuidade universal de ônibus, trem e metrô custaria R$90 bilhões. Quantia, no entanto, que como destaca Antonio, pode se tornar realidade sem colocar as contas públicas em risco. Ele destaca que a solução não é tirar de outras áreas essenciais nem criar impostos novos para o povo, mas sim, por exemplo, tributar super ricos. Uma decisão política que precisa ser bancada além de calculada para dar certo. 

No caso das empresas, ele lembra como elas se beneficiam diretamente das obras de infraestrutura voltadas ao transporte, apontando para os prédios em construção ao redor com destaque para o outdoor que grita “more perto da futura linha-6 laranja do metrô”. É mais que justo que elas contribuam para o transporte, portanto, sem falar da diminuição do trânsito e melhora no rendimento dos funcionários, defende.  Além disso, o ônibus que não chega aos domingos para levar Roseli, ou a lotação de todo dia que pega na Guaicurus, e que faz jus a esse apelido, deixaria de ser o modelo de negócios praticado. Com a criação de regras e diretrizes tal qual o Marco Legal propõe, e a Frente Parlamentar - Tarifa Zero, as empresas em acordo iriam receber verba independente da quantidade de passageiros pagantes. Assim, não sendo benéficas economicamente a superlotação e qualidade ruim.

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Os públicos no ônibus são diversos, mas a necessidade de se locomover é universal - Foto: Vítor Nhoatto

E agora já está quase escuro lá no céu, e o fluxo de volta para casa começou. A fila no ponto de Roseli está dando a volta no quarteirão, tão longa quanto essa discussão. Segundo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a pasta quer apresentar os estudos de viabilidade ainda em 2025, mas os embates políticos e ideológicos são tão intensos quanto os pisões e esbarradas no corredor cansado do transporte coletivo. 

Avisos dizem, “cuidado degrau” no ônibus, e “atenção com o vão” nos trilhos, mas o verdadeiro foco deve ser nas ações políticas das próximas estações dessa história. Inegável programa de redistribuição de renda, esses 90 bilhões são um investimento e devolução de direitos a milhões de brasileiros, desde que passem a ser vistos assim. Mas enfim, até lá a vida não para, e agora tenho que ir que esse é o meu ônibus. 

Economia brasileira deve crescer 3,7%, abaixo da expansão média de 4,6% esperada para América Latina
por
Beatriz Lauerti
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25/05/2021 - 12h

Após uma forte recessão em 2020, as perspectivas para a economia mundial são mais otimistas neste ano.  O Fundo Monetário Internacional (FMI) projeta alta de 6% para o Produto Interno Bruto (PIB) do planeta. No ano passado, o indicador caiu 3,3%. Entre as razões para a melhoria está o avanço da vacinação contra a Covid-19, embora desigual entre os países.

Para 2022, o FMI prevê uma evolução de 4,4%. Com a recuperação, o comércio de bens e serviços no mundo vai se expandir em 8,4% em 2021 e 6,5% no próximo ano. Entre os países que cresceram em 2020, a China terá um PIB 8,4% maior em 2021.

Em relação à zona do euro, onde a campanha de vacinação está atrasada, o órgão calcula que o crescimento  será de 4,4% neste ano e avalia que a retomada foi prejudicada pela necessidade de adoção de medidas restritivas em diversos locais para frear a disseminação do coronavírus. Para o Japão, o fundo estima uma elevação de 3,3% em 2021.

Brasil

O FMI prevê um crescimento de 3,7% para o Brasil, mas destaca que as projeções dependem da evolução da crise de saúde. Analistas financeiros consultados pelo Banco Central acreditam que o PIB brasileiro aumente em 3,4%. A projeção para o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) sobre a inflação em 2021 é de 3,32%, abaixo da meta prevista, que é que é de 3,50%.

Ano passado, a economia brasileira sofreu uma contração de 4,1%, uma queda expressiva porém  menos intensa que a esperada no início da pandemia. De acordo com o FMI, no segundo semestre de 2020, o Brasil foi beneficiado pela recuperação do setor manufatureiro.

O auxílio emergencial fornecido pelo governo ajudou a manter a atividade econômica  até certo ponto, mas, quando o pagamento da assistência foi suspenso, houve um impacto na produção e no consumo.

O alto índice de desemprego e falências de empresas durante a pandemia, as demissões de ministros da Saúde, os problemas logísticos que impedem um maior avanço no programa de vacinação da população, resultaram em mais de 450 mil vidas perdidas no Brasil, aumento da instabilidade política e desgaste da imagem do presidente Jair Bolsonaro, além de diminuir os investimentos externos no país. Todas essas questões agravam o cenário de crise econômica, sanitária e política atravessado nacionalmente.

Para a economista e colunista da Uol, Yolanda Fordelone, a combinação de diversos fatores dita o ritmo de recuperação de cada lugar. “O primeiro ponto é por quanto tempo o país terá de conviver com a contenção da Covid-19. Países que estão em patamares mais avançados de vacinação e que respeitaram o isolamento social tendem a encurtar o tempo de convívio com a doença em seu estágio mais grave. Além disso, o tamanho de apoio público no combate à crise também é relevante. O auxílio foi diferente em cada território e, assim, veremos retomadas em ritmos distintos. Por fim, a recuperação é influenciada pela capacidade de gestão pública de problemas sociais que surgiram, como a fome e o desemprego. Do ponto de vista político, nós brasileiros vivemos um período conturbado e com gestores despreparados para lidar com todas as questões”, argumenta.

Na visão de Yolanda, a economia brasileira está  estagnada e, como se não bastasse, ameaçada pela inflação.  “No Brasil, já temos visto um aumento da taxa de juros para tentar conter a inflação. O cenário é de mais altas da taxa básica (Selic) e uma aceleração da alta dos preços, muito por conta de itens básicos como alimentos. A pressão de baixa oferta de produtos devido às paradas da economia em conjunto com o aumento de demanda após a reabertura de alguns países tem influenciado esta alta. Caminhamos para uma situação de estagflação: crescimento estagnado acompanhado de inflação”, explica.

A especialista prevê um processo lento de recuperação.  “ Acredito que a crise terá um impacto na economia por alguns anos. Não é possível dizer que teremos uma volta à normalidade, pois muitos hábitos irão se alterar, como ambientes de trabalho, presença mais forte do e-commerce, aceleração de uso de tecnologias de ensino à distância e deslocamentos populacionais para fora das grandes cidades. Tudo isso impacta no nosso dia a dia e, portanto, na economia”, destaca.

A recuperação será desigual ao redor do mundo

Segundo o professor de relações internacionais da PUC-SP Bruno Huberman, “o desempenho das economias industrializadas e desenvolvidas, que têm capacidade tecnológica para produzir seus próprios imunizantes e equipamentos de proteção individual, e instituem políticas eficientes de combate à Covid-19, como China, outras economias da região asiática, além da Austrália e Nova Zelândia, será melhor e essas nações têm mais condições de sair de maneira mais rápida da crise”. 

O professor afirma que países desenvolvidos, como Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido e França, apesar de terem sido bastante impactados pelo vírus, fazem altos investimentos no combate à pandemia e podem se restabelecer em menor tempo”.

Para Huberman, se recuperarão mais facilmente e obterão um crescimento acelerado em 2021 “as nações que conseguem combater de formas mais eficientes o vírus e têm uma capacidade industrial produtiva voltada para o investimento em tecnologias para essa luta e para manter a roda a partir do próprio desenvolvimento nacional”. De acordo com Bruno, isso ocorre em um contexto de crise do mercado internacional, no qual há uma escassez de vários produtos devido à interrupção que o comércio tem sofrido pelo impedimento de tráfegos entre os países. Ele diz que as perspectivas positivas não valem para o Brasil, pois “não há uma capacidade produtiva instalada e nem combate ao vírus”.

“A pandemia revelou que as políticas de austeridade fiscal e desajuste do investimento do Estado em bem-estar social, como educação, saúde, industrialização, tecnologia, ciência, são altamente maléficas para a população. Países com maior intervenção do Estado na sociedade conseguiram um melhor enfrentamento do vírus e uma recuperação mais rápida. Um exemplo são os Estados Unidos, com o modelo de retomada econômica do presidente Joe Biden, com o anúncio de diversas obras de infraestrutura para absorver o capital e a mão de obra excedentes, gerando empregos”, reflete Huberman.

A previsão do FMI para a economia americana neste segundo ano de pandemia é de alta de 6,4%. A agilidade da vacinação e o pacote fiscal implementados pelo governo Biden promovem uma aceleração da retomada no país.

Segundo Huberman,  é possível observar uma transformação no modelo de desenvolvimento econômico dominante no mundo.  “Nas últimas décadas a gente viu a recuperação de um neoliberalismo ortodoxo fundado na política de austeridade fiscal e no ajuste fiscal, no enxugamento das atuações sociais do Estado, com o fortalecimento das atuações securitárias como a consolidação de forças militares. A principal consequência da crise atual para várias nações será a maior valorização do bem-estar social pelo controle do Estado nesse sentido, para garantir a sobrevivência da população, porque se todos morrem não há economia.”

 “Muitos têm discutido o fim do neoliberalismo mas vejo mais uma transformação dessa vertente, com maior intervenção estatal. A lógica de austeridade fiscal máxima para o mercado ser o protagonista do desenvolvimento nacional vai perder a relevância. A elaboração da vacina da AstraZeneca, por exemplo, ocorreu com a maior parte de investimentos feitos com capital do governo britânico, não privado. O neoliberalismo radical, que é aprofundado no Brasil por Bolsonaro, está chegando ao fim, e o modelo passará a ser mais heterodoxo, daqui por diante, com as pessoas valorizando mais o bem-estar social e obrigando os governantes a valorizarem isso também”, avalia.

América Latina 

Quanto à América Latina, de acordo com o relatório “Perspectivas da Economia Mundial”, o FMI espera um crescimento de 4,6% em 2021, o que equivale a menos que a média global, que é de 6%.

O FMI aguarda um crescimento de 5% para o México em 2021 e de 3% em 2022, e o Chile, Argentina, Peru e Colômbia devem ter uma expansão de 6,2%, 5,8%, 8,5% e 5,1%, respectivamente, neste ano.

A organização destaca que as nações que não garantiram vacinas suficientes para suas populações sofreram com mais prejuízos econômicos e os países que dependem do turismo terão uma redução de 1,5 ponto percentual no crescimento, que será de aproximadamente 2,4% em 2021.

Foto Ilustrativa: Freepik

 

 

Saúde, educação, ciência e tecnologia perdem bilhões em relação ao ano passado; teto de gastos é uma das razões para cortes
por
Julia Machado Costa
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25/05/2021 - 12h

Após um atraso de 110 dias e impasses com o Congresso, o Orçamento Federal de 2021 foi sancionado no limite do prazo pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) com vetos e contingenciamentos nas pastas da Saúde, Educação, Ciência e Tecnologia – centrais para o combate à pandemia da Covid-19 no Brasil.

Para contornar o chamado “Orçamento inexequível” aprovado pela Câmara dos Deputados e o Senado Federal no fim de março, o presidente vetou R$ 10,5 bilhões nas emendas do relator, R$ 1,4 bilhão em emendas de comissão do Poder Legislativo e outros R$ 7,9 bilhões em gastos discricionários do Poder Executivo, além de bloquear R$ 9 bilhões em despesas previstas para este ano em vários órgãos federais. Com estes cortes, o governo abriu um espaço de R$ 28,8 bilhões no Orçamento.

De acordo com professora de economia da PUC-SP e especialista no setor de saúde Maria Cristina Sanches Amorim, os cortes se devem a dois grandes motivos. O primeiro deles é Lei do Teto de Gastos, aprovada em 2014 a partir da Emenda Constitucional 95 e conhecida pela oposição como "PEC da Morte". A proposição estabelece limites para os gastos governamentais por 20 anos, independentemente das necessidades da população. “Se rompido o teto, o Executivo estará mais vulnerável ao poder do Legislativo; se obedece à Lei, não consegue recurso para suas medidas, descontentando eleitores.”

O outro motivo é a composição política do Legislativo. “Expressando o poder de determinadas facções sociais, (o Legislativo) privilegia a redução de gastos, um suposto equilíbrio fiscal, em detrimento do bem-estar social”, aponta.

O texto original aprovado pelo Congresso subestimava os chamados gastos obrigatórios, como previdência e aposentadoria, mas ampliava o montante para as emendas, verbas para obras e programas escolhidos pelos parlamentares. Apesar dos vetos do presidente, parte da emenda foi mantida para agradar a base aliada.

Em meio à segunda onda da Covid-19 no país e alertas de uma terceira onda, a verba destinada à pasta da Saúde sofreu um corte de R$ 2,2 bilhões em relação ao Orçamento de 2020, primeiro ano da crise sanitária, totalizando o montante de R$ 125,7 bilhões. Na Fiocruz, empresa que produz a vacina Oxford/AstraZeneca no Brasil, três programas de pesquisa, desenvolvimento tecnológico e inovação sofreram redução de 10 milhões. 

Estes cortes afetam ações de enfrentamento à pandemia e o projeto de custeio para assistência hospitalar e ambulatorial, já que os governos estaduais e municipais dependem de repasses do Ministério da Saúde para a aquisição de equipamentos e insumos para o fortalecimento da estrutura do SUS.

Para Amorim, ​a EC 95/2014 é o pano de fundo responsável pela redução dos investimentos no SUS. “Jamais se imaginou que justamente a instância constitucionalmente responsável pelo combate à pandemia escolhesse, deliberadamente, aumentar o contágio até atingir a imunidade de rebanho. Jamais houve compromisso do Executivo com a vacinação e adesão das pessoas ao distanciamento social. Ao contrário, gastou dinheiro com o "kit cloroquina" e incentivou aglomerações.”

A economista afirma que o governo agiu deliberadamente para ampliar o contágio usando a teoria de que esta era a forma mais rápida de imunizar a população e retomar as atividades econômicas. “Além da falha ética, errou tecnicamente, a pandemia não cede e a crise econômica há de se arrastar até o final de 2022”, diz.

Enviado por Bolsonaro ao Congresso, o Projeto de Lei Nacional (PLN 28/2020) apresentava verba para o Ministério da Saúde ainda inferior ao período pré-pandemia, R$ 119,1 bilhões.

No Ministério da Educação, R$ 1,2 bilhão foi vetado em despesas, distribuídas entre programas de universidades e institutos federais. Nos bloqueios, este foi o Ministério mais atingido, com R$ 2,7 bilhões em gastos suspensos. 

Da pasta de Ciência e Tecnologia, o presidente Jair Bolsonaro cortou do Orçamento um total de R$ 372 milhões. Outros R$ 272 milhões foram bloqueados. Por conta do teto de gastos, os valores bloqueados só serão liberados se houver dinheiro para o pagamento ao longo do ano.

Enquanto recursos de combate à pandemia foram drenados do Orçamento, o montante previsto para as Forças Armadas foi inflado. Dos R$ 37,6 bilhões reservados para o Orçamento Fiscal e da Seguridade Social, o Ministério da Defesa ficará com R$ 8,8 bilhões – 22% do total. O texto também manteve o reajuste salarial de militares, com um impacto estimado de R$ 7,1 bilhões.

Conforme Amorim, esses cortes são responsáveis pelo agravamento das desigualdades sociais e do recuo na materialização da cidadania. Neste cenário, o país não possui perspectiva de crescimento. “O PIB brasileiro caiu 4,1% em 2020, comparativamente a 2019. Essa queda é uma monstruosidade. Ainda que o PIB cresça, segundo estimativa, 3% em 2021, será apenas efeito estatístico, pois o total de riqueza produzido ainda estará abaixo do valor de 2014”, explica.

O projeto que deveria ter sido votado em dezembro de 2020 corresponde ao maior período em 15 anos que o país ficou sem um Orçamento. De acordo com a economista, o atraso se deve à ​incapacidade de negociação entre o Executivo e o Legislativo. “Não há de fato unidade política, mas interesses específicos de parlamentares, que são negociados caso a caso”, afirma.

 

Crise econômica e avanço da pandemia exigem medidas governamentais mais enérgicas para conter aumento da fome e da pobreza
por
Camilo Mota
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25/05/2021 - 12h
A Fome Voltou
A Fome Voltou. Lambe lambe em muro na Avenida Paulista, altura da rua Haddock Lobo. São Paulo, SP. 16 de abril de 2021. Foto: Roberto Parizotti/FotosPublicas.

O governo Bolsonaro foi eleito com um programa baseado na figura do economista Paulo Guedes e no discurso de enxugamento do Estado. Grandes expectativas se formaram na esperança da recuperação econômica. Entretanto, a pandemia caiu como uma pedra e muitas promessas de campanha, inclusive favoráveis ao mercado, sequer saíram do papel – nenhuma privatização até hoje se concretizou.

Desde o primeiro ano de mandato, o presidente insiste na tecla de que o governo não tem recursos. Em janeiro de 2021, mesmo após mais de 7 milhões de infecções e 197 mil óbitos pela Covid-19, Bolsonaro disse: “Chefe, o Brasil está quebrado. Eu não consigo fazer nada”. Mas, para o economista e professor da FMU Marcos Henrique do Espírito Santo não é bem assim. “O Estado insiste na tese de que está sem dinheiro, o que é completamente falso. “O Estado tem capacidade de emitir moeda.”

A emissão tem limitações macroeconômicas, porém o cenário é tão crítico que, para o professor da FMU, justificaria uma ação como essa. “Não dá para emitir dinheiro a qualquer momento, mas em momentos como o que a gente vive, com uma economia completamente estagnada, seria ideal para fazer isso. Literalmente expandir a dívida pública para ter recursos e gastar enquanto o setor privado não está gastando, aponta o economista.

O auxílio emergencial foi uma conquista para mais de 66 milhões de pessoas após a chegada da Covid-19. O valor proposto pelo governo, de R$ 200 mensais, foi fixado em R$ 600 somente após pressão da oposição. Medida possível graças ao ‘orçamento de guerra’ aprovado pelos congressistas, que abriu uma exceção para o governo gastar além do teto. 

Os sucessivos erros e atrasos no enfrentamento à Covid-19 e a piora da situação social do país exigiram a continuidade do benefício, dessa vez nos valores de R$150 e R$ 375,00 definidos pela Câmara dos Deputados sob liderança de Arthur Lira (PP-AL), alinhado ao Planalto. Os novos valores resultarão em um gasto de R$ 44 bilhões, inferior aos cerca de R$ 295 bilhões dispendidos em 2020, de acordo com dados do TCU.

Para Camila Ugino, professora de ciências econômicas da PUC-SP, a nova versão do então chamado ‘corona voucher’ é simplesmente insuficiente. “A proposta do auxílio emergencial que a gente tem não condiz com a nossa realidade social, muito menos fiscal.”

O orçamento de 2021 foi sancionado no dia 23 de abril com cortes em áreas fundamentais, como educação (27%) e meio ambiente (24%). Menos de um mês depois, o jornal O Estado de São Paulo divulgou uma série de reportagens denunciando o esquema que destinou R$ 3 bilhões a parlamentares via emendas de relator, instrumento no qual relatores do projeto de lei orçamentária introduzem alterações, geralmente de caráter técnico. Porém, as reportagens demonstraram uma quebra das leis de impessoalidade, isonomia e transparência, e isso aconteceu às vésperas da eleição dos presidentes da Câmara e do Senado. As alterações feitas pela relatoria teriam beneficiado individualmente parlamentares, inclusive os da oposição.

Simultaneamente, no dia 13 de maio, uma portaria foi assinada pela Secretaria de Gestão e Desempenho do Ministério da Economia, permitindo o aumento, para além dos limites constitucionais, do salário de militares e reservistas e beneficiando, inclusive, o presidente e o vice-presidente da República. O aumento, de quase 70%, teve como justificativa a necessidade de “adequar o cálculo do teto remuneratório constitucional aos entendimentos do STF e TCU”. A medida custará R$ 66 milhões.

Ainda de acordo com o professor da FMU, a lógica neoliberal, do enxugamento do Estado e redução de recursos para áreas sociais, é totalmente insustentável. “A ideia de que o orçamento é mínimo parte do suposto neoliberal de que esse orçamento é limitado. O orçamento é uma peça de disputa política. Se a gente gastar pouco com a eliminação da pobreza é porque a gente escolheu politicamente isso.”

Vários países têm adotado medidas de resgate econômico e subsídio – em alguns casos antes mesmo da pandemia, para enfrentar o aumento das desigualdades. “O neoliberalismo está morto do ponto de vista teórico. Do ponto de vista da teoria econômica, ele não responde mais às exigências de um mundo novo, de alta tecnologia, do padrão 4.0”, afirma Marcos Henrique. Para o economista, o maior exemplo da presença do Estado como catalisador de avanço econômico é a China. Na visão de Marcos, o gigante asiático está “engolindo todo mundo”, e os Estados Unidos “sacaram” isso. “A China está se tornando gigante com metas de longo prazo, induzindo o empresariado, e os EUA vão fazer a mesma coisa. Eles fizeram isso no New Deal, eles fizeram isso após a Segunda Guerra Mundial, acrescenta.

No país norte-americano, o governo Biden sancionou, em três meses à frente da Casa Branca, dois pacotes que somam US$ 4,15 trilhões – equivalentes a R$ 20,7 trilhões – para o enfrentamento à pandemia. O primeiro é um conjunto de recursos (US$ 1,9 tri) destinados às famílias mais pobres, incluindo extensão de seguro-desemprego e subsídio para planos de saúde. Entre as medidas, estão repasses aos estados e pagamento direto de US$ 1.400 à maioria dos americanos. O segundo pacote é um plano de investimentos em infraestrutura com fornecimento de internet nas áreas rurais do país, renovação de estradas e incentivo a pesquisa e desenvolvimento em energias limpas – financiado com o aumento do imposto corporativo.

Mas, no Brasil, a crença num modelo ultrapassado ainda é um entrave ao desenvolvimento. “Os meios mais eficientes para sair dessa cr0069se é romper essa lógica. Tem que romper com o discurso da Faria Lima, é preciso tirar o monopólio econômico. O Estado é um agente indutor fundamental. Ninguém se desenvolveu e se tornou gigante sem o Estado, aponta o economista.

Na avaliação de Marcos Henrique, é preciso que haja um governo forte e que não esteja refém da burguesia brasileira, que, segundo ele, vive há 40 anos da exportação para ganhar dinheiro no mercado financeiro. Enquanto o governo precisa conter as despesas previstas, maiores que a receita, o Congresso, hoje com maior força, também exige sua fatia. “Se eu vou aumentar a despesa com os parlamentares, eu tenho que diminuir gastos com investimento e políticas sociais para poder fechar o orçamento com déficit pequeno, eu tenho que diminuir dos investimentos com gastos sociais”, afirma o economista Claudemir Galvani, professor de teoria econômica da PUC-SP. 

“A dívida tem o limite que passa pelo Congresso. Na verdade, o governo (brasileiro) está muito preso ao Congresso, por isso é importante o governo ser forte. Hoje o presidente não tem nem partido”, afirma Galvani. Outro erro é o teto de gastos, estabelecido pela Emenda Constitucional 95, encaminhada pelo governo Michel Temer e promulgada pelo Senado em 15 de dezembro de 2016, que congela gastos públicos por 20 anos.

De acordo com Marcos Henrique, limitar o gasto público e colocar essa regra na Constituição foi uma violência, uma estratégia irracional do neoliberalismo, que posiciona a economia acima da política. E, assim, nenhum governo poderá alterar essa lógica mesmo que tenha sido eleito com projetos de aumento do gasto do Estado para a ampliação do desenvolvimento.

Para os economistas entrevistados, o caminho para sair da crise é ter uma responsabilidade fiscal sustentável, uma reforma tributária justa e que adote a progressividade – os impostos incidem proporcionalmente à renda do cidadão –, e uma reforma administrativa que reduza os gastos com o funcionalismo público, além de investimentos em educação, saúde e ciência. As urnas têm papel fundamental nisso.

Crédito da foto: A Fome Voltou. Lambe lambe em muro na Avenida Paulista, altura da rua Haddock Lobo. São Paulo, SP. 16 de abril de 2021. Foto: Roberto Parizotti/FotosPublicas. Disponível em: https://fotospublicas.com/a-fome-voltou-lambe-lambe-em-muro-na-avenida-paulista/

Mais de metade dos brasileiros sofrem de insegurança alimentar; movimentos de trabalhadores reagem
por
Daniela Oliveira
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25/05/2021 - 12h

O quadro de insegurança alimentar já atinge mais da metade dos brasileiros. Os efeitos da instabilidade econômica, agravada pela pandemia de Covid-19, trouxeram consequências sociais que afetam em sua maioria a parcela mais pobre da população, que já sofria com uma crescente tendência de insegurança alimentar.

Em junho de 2020, a Organização das Nações Unidas (ONU) estimava  que, até o fim do ano, mais de 130 milhões de pessoas no mundo estariam em situação de insegurança alimentar. Os dados convergiam com os de diversos movimentos sociais que analisavam o Mapa da Fome no Brasil. A convergência motivou o grupo Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia a desenvolver uma pesquisa, em nível nacional, para entender os efeitos da pandemia na alimentação dos lares brasileiros.

A pesquisa revela que mais de 125 milhões de brasileiros estavam ou passaram pelo quadro de insegurança alimentar no último trimestre de 2020. Do grupo de entrevistados, 31,7% estavam em grau de insegurança leve, 12,7% em insegurança moderada e 15% em insegurança grave o maior dos níveis, quando existe falta de comida.

Os efeitos da má alimentação ou da falta dela em um indivíduo são vários. O nutricionista Matheus Silva destaca a deterioração da saúde física causada pela desnutrição. Ela pode ser provocada pela falta de nutrientes decorrente de uma alimentação de baixa qualidade ou de nenhuma alimentação. Matheus afirma que a realidade social, cultural e financeira da população influencia em sua alimentação e que o cenário político e econômico do Brasil colabora para o atual quadro de insegurança alimentar. “A falta de um nutriente na alimentação, seja no desenvolvimento no útero ou no decorrer da vida, pode causar inúmeras doenças, sejam reversíveis ou irreversíveis”, comenta.

Tendo em vista o cenário preocupante, movimentos de trabalhadores organizados agem em combate ao caos instaurado pela instabilidade econômica a partir de campanhas solidárias. As iniciativas tornaram-se um auxílio a inúmeras pessoas que passaram a ocupar o quadro de insegurança alimentar no Brasil.

“Vendo a inércia do Estado e a redução dos auxílios emergenciais, entendemos que era momento de se organizar como uma rede para que, com o apoio da sociedade, pudéssemos atender algumas pessoas que estão em situação de insegurança alimentar. Entendemos que é dever do Estado atender essas pessoas, mas, sabendo que o próprio nega a gravidade da pandemia, tínhamos que nos movimentar”, diz Ana Moraes, militante do coletivo Resistência, corrente interna do PSOL, e da campanha É Tudo Pra Ontem.

A rede de solidariedade surgiu a partir de uma proposta dos coletivos que atualmente compõem a bancada feminista do PSOL em São Paulo e atende as regiões do estado com menos assistência do governo. Lançada em abril de 2021, a É Tudo Pra Ontem já arrecadou mais de 1.600 quilos de alimentos para as comunidades, mas Ana pondera: “A demanda está cada vez maior, estamos recebendo cada dia mais uma nova demanda e, devido à situação do país, as colaborações estão diminuindo”.

Militantes da campanha É Tudo Pra Ontem com camisetas da campanha e punhos levantados em sinal de resistência.
Ação da rede de solidariedade É Tudo Pra Ontem. Foto: Divulgação/É Tudo Pra Ontem.

 

O cenário econômico também afetou a demanda de doações da campanha Lute Como Quem Cuida, parceria entre o MST São Paulo (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e o MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro). Edouard Fraipont, fotógrafo e militante do MSTC, conta que a iniciativa tem pouco mais de um ano, iniciada logo no começo da pandemia. Pouco tempo depois, a campanha teve de buscar novas formas de organização para seguir em frente com o avanço da pandemia no estado. “Com a campanha a gente conseguiu ficar seis meses, até que uma hora as doações ficam mais rareadas, rarefeitas, a própria campanha acaba se cansando de certa forma, as pessoas vão doando menos, e a gente tem que se reinventar. Aí a gente inventou o delivery.

A campanha recentemente se uniu ao movimento dos Entregadores Antifascistas para resistir por um maior período, e tem convidado todo domingo um chef de cozinha para fazer as quentinhas que vão para entrega. O preparo é realizado na cozinha da Ocupação 9 de Julho. “A gente está ampliando esse grupo dos Entregadores Antifascistas junto com os moradores da ocupação que também fazem entrega. Eles estão construindo um jeito coletivo de fazer essas entregas. É uma forma coletiva de pensar, e parte do trabalhador a organização”, diz Fraipont.

Na cozinha da ocupação 9 de julho, militantes da campanha Lute Como Quem Cuida posam com os punhos pra cima, em sinal de resistência. Atrás dos mesmos, existem duas bandeiras, sendo uma do Movimento Sem-Teto do Centro e outra do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra.
Domingo de campanha na cozinha da Ocupação 9 de Julho. Foto: Divulgação/Lute Como Quem Cuida.

 

Já no sul do país o cenário é um pouco mais reconfortante. Lá, há pouco mais de um ano, o MST Paraná iniciou a campanha Marmitas da Terra e tem se mantido firme na luta pelas famílias que precisam de auxílio, conta Jade Azevedo, jornalista, produtora audiovisual e voluntária na campanha. “Começamos no dia 02 de maio de 2020 com 300 marmitas e na semana seguinte veio a necessidade de aumentar a produção para 700 e continua sobre o decorrer da campanha: “O ano virou e a quantidade de pessoas em situação de rua e em situação de risco alimentar só aumentou e sentimos a necessidade de aumentar também a produção semanal de marmitas. Por isso, em 2021 passamos a entregar 1.100 marmitas por semana. Para que esse número não abaixe, existe toda uma campanha de solidariedade que envolve as famílias do MST, que seguem doando alimentos e seus espaços para plantarmos, instituições, sindicatos, parceiros e pessoas que participam”.

A ação também traz à tona o debate da importância de uma reforma agrária popular e da agroecologia na produção de alimentos sem veneno e sem agressão à terra.

Dezenas de outras campanhas se espalharam pelo país em reação não apenas à pandemia, mas às medidas socioeconômicas adotadas no último ano. Muitas delas são projetadas para continuar em vigor depois deste período, visto que inflação e Covid-19 podem empurrar o Brasil de volta ao Mapa da Fome, posto que o país deixou de ocupar em 2014, mas do qual tem se aproximado cada vez mais nos últimos anos. 

Um boné do MST, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em meio a verduras.
Foto: Leonardo Henrique/Comunicação Marmitas da Terra MST-PR

 


 

Como apoiar as campanhas solidárias

É Tudo Pra Ontem

Financiamento coletivo: vaquinha no Abacashi

Chave PIX: redeetudopraontem@gmail.com

 

Lute Como Quem Cuida

Quentinhas da semana: link no Iperum

Cozinha da Ocupação 9 de Julho: sacola no PagSeguro

 

Marmitas da Terra

Associação de Cooperação Agrícola e Reforma Agrária do Paraná (ACAP)
CNPJ: 02.881.494/0001-96

Banco do Brasil

Agência: 4500-4

Conta corrente: 108973-0

Banco Itaú

Agência: 3834

Conta Corrente: 25030-4

Chave PIX: acap.pr@gmail.com

 

Dados apontam que mais de 116 milhões de brasileiros enfrentam insegurança alimentar
por
Heloísa Lisboa
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24/05/2021 - 12h

Em meio à pandemia da Covid-19, a insegurança alimentar entre os brasileiros impulsionou campanhas de doações de alimentos por ONGs e outras entidades que, em alguns casos, já nasceram nesse cenário.

Segundo estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, realizado em 2.180 domicílios das cinco regiões do país entre 5 e 24 de dezembro de 2020, 116,8 milhões de brasileiros não têm acesso pleno e permanente a alimentos.

Em 55,2% dos domicílios, os habitantes convivem com insegurança alimentar. Um levantamento feito entre novembro e dezembro de 2020, com uma amostra de 2.000 pessoas, pelo Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia aponta um número ainda maior: 59,4% dos domicílios entrevistados enfrentavam a insegurança alimentar.

Os números representam um aumento de 54% em relação a 2018, conforme a Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) realizada entre 2017 e 2018.

Pessoas procuram emprego no centro de São Paulo. Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Pessoas procuram emprego no centro de São Paulo. Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Criada em 2016, a Liga do Bem executou projetos educacionais, em saúde, empreendedorismo feminino, reformas e construções sustentáveis em instituições e comunidades de Salvador (BA) através de trabalho voluntário. A União Bahia é uma campanha da entidade para combater a fome que atende favelas da região metropolitana da Bahia e do sertão do estado.

Dados da Liga do Bem mostram que mais de 300 toneladas, que somam alimentos, material de limpeza e de higiene pessoal e máscaras, foram doadas, desde a primeira semana de isolamento no Brasil, decretado em 24 de março, até dezembro do ano passado.

O arrecadamento de dinheiro é feito por meio de doadores únicos ou de apadrinhamentos de pessoas físicas ou jurídicas que doam mensalmente. A campanha União Bahia conta com a ajuda de mais de 800 voluntários e a parceria de outras ONGs.

A Ondan (Organização Negra de Alcance Nacional), por outro lado, foi criada em 2020 e tem como foco a população negra e periférica. Segundo uma de suas fundadoras, Jusianne Castilho, “esse período de pandemia exigiu dos movimentos socioculturais uma readaptação. Hoje se tem uma necessidade maior de trabalhar as ações pelas redes sociais”.

Na logística de arrecadação e doação da Ondan, as pessoas que mais precisam de sua ajuda são selecionadas, bem como existem aqueles que procuram a entidade. Isso é feito por meio de cadastros.

Para fazer o cadastro, é preciso fornecer informações como a quantidade de pessoas que vivem na casa, se é uma mãe solo ou se a família tem renda fixa. Esses dados ajudam no momento de priorizar aqueles que mais precisam ser contemplados pelas doações de alimentos, cestas básicas, roupas e produtos de higiene e limpeza. A ONG arrecada tanto doações de produtos, quanto de dinheiro, que é convertido em itens.

Às quartas-feiras, parte dos voluntários da Liga faz as compras em atacadistas, porque, segundo o presidente-fundador da ONG, Nélio Chagas, é financeiramente mais vantajoso montar as cestas básicas do que comprá-las prontas. As compras são retiradas às quintas-feiras e às sextas e, aos sábados, as cestas são montadas. Aos domingos, as entregas são feitas às famílias indicadas no cadastramento realizado pelos líderes das comunidades. A escolha de quem mais precisa da ajuda da entidade é decisão desses líderes.

De acordo com Chagas, existem diferenças entre as necessidades de habitantes de comunidades próximas de cidades grandes e de quem vive nas comunidades do sertão. Ele afirma que a proximidade com centros urbanos permite, com mais facilidade, que pessoas pobres consigam empregos temporários. Já aqueles que moram no sertão, vivem em comunidades isoladas em cidades também isoladas.

Segundo o Siga Brasil, portal de transparência sobre a execução orçamentária, o governo federal gastou mais de R$ 509,1 bilhões em despesas para ações de combate à pandemia no ano passado. Do valor, 57,71% foram destinados para cidadãos com o auxílio emergencial de R$ 600 e, posteriormente R$300, até dezembro de 2020. Para estados e municípios, R$ 63,15 bilhões do montante foram transferidos para ações em meio à pandemia.

O BEm (Benefício Emergencial de Manutenção em Emprego e Renda), criado em 2020, foi relançado neste ano com a assinatura de medidas provisórias pelo presidente Jair Bolsonaro. O programa permite corte de salários e jornadas e, até dezembro do ano passado, custou R$ 32,35 bilhões ao governo. Segundo o IBGE (Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística), a taxa de desemprego atingiu 14,2% no trimestre móvel terminado em fevereiro. Em 2020, a média da taxa de desocupação foi de 13,5%, o maior patamar da série histórica da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, iniciada em 2012.

Para Chagas, o combate à fome também é responsabilidade da sociedade civil. “O governo tem suas responsabilidades, mas a gente acredita que cada um tem que fazer sua parte e sem ficar acusando, apontando dedo”, ele afirma. Por isso, no entendimento do presidente da ONG, o trabalho de entidades como a Liga do Bem pode ter mais eficácia e ser mais ágil do que políticas públicas.

Castilho, porém, argumenta que, no Distrito Federal, a maior parte das pessoas mais vulneráveis são negras e não recebem apoio estatal. Além da fome, famílias negras enfrentam outras dificuldades com a falta de saneamento básico e moradias inadequadas, por exemplo. Ainda que a Ondan tenha um papel importante no combate à desigualdade, seu alcance é restrito. Portanto, “é necessário fomentar políticas emergenciais de enfrentamento à fome”, afirma Jusianne.

Ao contrário da Liga do Bem, com alguns anos a mais de funcionamento, a Ondan enfrenta alguns impasses. Por não ser institucionalizada, não tem acesso a certos recursos e,  por não ter CNPJ, “existem doadores e parcerias que a organização não pode alcançar por não preencher os requisitos necessários para a prestação de contas”, de acordo com Castilho.

Há outras diversas entidades que têm trabalhado no combate à fome em diferentes regiões do Brasil. A Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), por exemplo, dedica-se ao auxílio para comunidades de povos indígenas da região amazônica, enquanto o Movimento Panela Cheia, união de esforços da Cufa (Central Única das Favelas) e da Gerando Falcões, auxilia mais de 5 mil comunidades pelo país. O Qual Máscara, criado inicialmente para informar internautas sobre o uso correto e a escolha de máscaras mais eficazes, também formou uma campanha para arrecadar dinheiro e doar máscaras e cestas básicas. Foram mais de R$ 30 mil em doações, que foram interrompidas por impasses jurídicos.

Doações para a Liga do Bem podem ser feitas só por meio do site da ONG: aligadadobem.org. Para a Ondan, é possível fazer doações contatando a entidade no telefone (61) 98251-6286 ou no e-mail ondaondan365@gmail.com. Outras formas de arrecadar dinheiro, como rifas solidárias, também são feitas pela Ondan.