O quadro de insegurança alimentar já atinge mais da metade dos brasileiros. Os efeitos da instabilidade econômica, agravada pela pandemia de Covid-19, trouxeram consequências sociais que afetam em sua maioria a parcela mais pobre da população, que já sofria com uma crescente tendência de insegurança alimentar.
Em junho de 2020, a Organização das Nações Unidas (ONU) estimava que, até o fim do ano, mais de 130 milhões de pessoas no mundo estariam em situação de insegurança alimentar. Os dados convergiam com os de diversos movimentos sociais que analisavam o Mapa da Fome no Brasil. A convergência motivou o grupo Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia a desenvolver uma pesquisa, em nível nacional, para entender os efeitos da pandemia na alimentação dos lares brasileiros.
A pesquisa revela que mais de 125 milhões de brasileiros estavam ou passaram pelo quadro de insegurança alimentar no último trimestre de 2020. Do grupo de entrevistados, 31,7% estavam em grau de insegurança leve, 12,7% em insegurança moderada e 15% em insegurança grave – o maior dos níveis, quando existe falta de comida.
Os efeitos da má alimentação – ou da falta dela – em um indivíduo são vários. O nutricionista Matheus Silva destaca a deterioração da saúde física causada pela desnutrição. Ela pode ser provocada pela falta de nutrientes decorrente de uma alimentação de baixa qualidade ou de nenhuma alimentação. Matheus afirma que a realidade social, cultural e financeira da população influencia em sua alimentação e que o cenário político e econômico do Brasil colabora para o atual quadro de insegurança alimentar. “A falta de um nutriente na alimentação, seja no desenvolvimento no útero ou no decorrer da vida, pode causar inúmeras doenças, sejam reversíveis ou irreversíveis”, comenta.
Tendo em vista o cenário preocupante, movimentos de trabalhadores organizados agem em combate ao caos instaurado pela instabilidade econômica a partir de campanhas solidárias. As iniciativas tornaram-se um auxílio a inúmeras pessoas que passaram a ocupar o quadro de insegurança alimentar no Brasil.
“Vendo a inércia do Estado e a redução dos auxílios emergenciais, entendemos que era momento de se organizar como uma rede para que, com o apoio da sociedade, pudéssemos atender algumas pessoas que estão em situação de insegurança alimentar. Entendemos que é dever do Estado atender essas pessoas, mas, sabendo que o próprio nega a gravidade da pandemia, tínhamos que nos movimentar”, diz Ana Moraes, militante do coletivo Resistência, corrente interna do PSOL, e da campanha É Tudo Pra Ontem.
A rede de solidariedade surgiu a partir de uma proposta dos coletivos que atualmente compõem a bancada feminista do PSOL em São Paulo e atende as regiões do estado com menos assistência do governo. Lançada em abril de 2021, a É Tudo Pra Ontem já arrecadou mais de 1.600 quilos de alimentos para as comunidades, mas Ana pondera: “A demanda está cada vez maior, estamos recebendo cada dia mais uma nova demanda e, devido à situação do país, as colaborações estão diminuindo”.
O cenário econômico também afetou a demanda de doações da campanha Lute Como Quem Cuida, parceria entre o MST São Paulo (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e o MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro). Edouard Fraipont, fotógrafo e militante do MSTC, conta que a iniciativa tem pouco mais de um ano, iniciada logo no começo da pandemia. Pouco tempo depois, a campanha teve de buscar novas formas de organização para seguir em frente com o avanço da pandemia no estado. “Com a campanha a gente conseguiu ficar seis meses, até que uma hora as doações ficam mais rareadas, rarefeitas, a própria campanha acaba se cansando de certa forma, as pessoas vão doando menos, e a gente tem que se reinventar. Aí a gente inventou o delivery.”
A campanha recentemente se uniu ao movimento dos Entregadores Antifascistas para resistir por um maior período, e tem convidado todo domingo um chef de cozinha para fazer as quentinhas que vão para entrega. O preparo é realizado na cozinha da Ocupação 9 de Julho. “A gente está ampliando esse grupo dos Entregadores Antifascistas junto com os moradores da ocupação que também fazem entrega. Eles estão construindo um jeito coletivo de fazer essas entregas. É uma forma coletiva de pensar, e parte do trabalhador a organização”, diz Fraipont.
Já no sul do país o cenário é um pouco mais reconfortante. Lá, há pouco mais de um ano, o MST Paraná iniciou a campanha Marmitas da Terra e tem se mantido firme na luta pelas famílias que precisam de auxílio, conta Jade Azevedo, jornalista, produtora audiovisual e voluntária na campanha. “Começamos no dia 02 de maio de 2020 com 300 marmitas e na semana seguinte veio a necessidade de aumentar a produção para 700” e continua sobre o decorrer da campanha: “O ano virou e a quantidade de pessoas em situação de rua e em situação de risco alimentar só aumentou e sentimos a necessidade de aumentar também a produção semanal de marmitas. Por isso, em 2021 passamos a entregar 1.100 marmitas por semana. Para que esse número não abaixe, existe toda uma campanha de solidariedade que envolve as famílias do MST, que seguem doando alimentos e seus espaços para plantarmos, instituições, sindicatos, parceiros e pessoas que participam”.
A ação também traz à tona o debate da importância de uma reforma agrária popular e da agroecologia na produção de alimentos sem veneno e sem agressão à terra.
Dezenas de outras campanhas se espalharam pelo país em reação não apenas à pandemia, mas às medidas socioeconômicas adotadas no último ano. Muitas delas são projetadas para continuar em vigor depois deste período, visto que inflação e Covid-19 podem empurrar o Brasil de volta ao Mapa da Fome, posto que o país deixou de ocupar em 2014, mas do qual tem se aproximado cada vez mais nos últimos anos.
Como apoiar as campanhas solidárias
É Tudo Pra Ontem
Financiamento coletivo: vaquinha no Abacashi
Chave PIX: redeetudopraontem@gmail.com
Lute Como Quem Cuida
Quentinhas da semana: link no Iperum
Cozinha da Ocupação 9 de Julho: sacola no PagSeguro
Marmitas da Terra
Associação de Cooperação Agrícola e Reforma Agrária do Paraná (ACAP)
CNPJ: 02.881.494/0001-96Banco do Brasil
Agência: 4500-4
Conta corrente: 108973-0
Banco Itaú
Agência: 3834
Conta Corrente: 25030-4
Chave PIX: acap.pr@gmail.com
Em meio à pandemia da Covid-19, a insegurança alimentar entre os brasileiros impulsionou campanhas de doações de alimentos por ONGs e outras entidades que, em alguns casos, já nasceram nesse cenário.
Segundo estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, realizado em 2.180 domicílios das cinco regiões do país entre 5 e 24 de dezembro de 2020, 116,8 milhões de brasileiros não têm acesso pleno e permanente a alimentos.
Em 55,2% dos domicílios, os habitantes convivem com insegurança alimentar. Um levantamento feito entre novembro e dezembro de 2020, com uma amostra de 2.000 pessoas, pelo Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares na Bioeconomia aponta um número ainda maior: 59,4% dos domicílios entrevistados enfrentavam a insegurança alimentar.
Os números representam um aumento de 54% em relação a 2018, conforme a Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) realizada entre 2017 e 2018.
Criada em 2016, a Liga do Bem executou projetos educacionais, em saúde, empreendedorismo feminino, reformas e construções sustentáveis em instituições e comunidades de Salvador (BA) através de trabalho voluntário. A União Bahia é uma campanha da entidade para combater a fome que atende favelas da região metropolitana da Bahia e do sertão do estado.
Dados da Liga do Bem mostram que mais de 300 toneladas, que somam alimentos, material de limpeza e de higiene pessoal e máscaras, foram doadas, desde a primeira semana de isolamento no Brasil, decretado em 24 de março, até dezembro do ano passado.
O arrecadamento de dinheiro é feito por meio de doadores únicos ou de apadrinhamentos de pessoas físicas ou jurídicas que doam mensalmente. A campanha União Bahia conta com a ajuda de mais de 800 voluntários e a parceria de outras ONGs.
A Ondan (Organização Negra de Alcance Nacional), por outro lado, foi criada em 2020 e tem como foco a população negra e periférica. Segundo uma de suas fundadoras, Jusianne Castilho, “esse período de pandemia exigiu dos movimentos socioculturais uma readaptação. Hoje se tem uma necessidade maior de trabalhar as ações pelas redes sociais”.
Na logística de arrecadação e doação da Ondan, as pessoas que mais precisam de sua ajuda são selecionadas, bem como existem aqueles que procuram a entidade. Isso é feito por meio de cadastros.
Para fazer o cadastro, é preciso fornecer informações como a quantidade de pessoas que vivem na casa, se é uma mãe solo ou se a família tem renda fixa. Esses dados ajudam no momento de priorizar aqueles que mais precisam ser contemplados pelas doações de alimentos, cestas básicas, roupas e produtos de higiene e limpeza. A ONG arrecada tanto doações de produtos, quanto de dinheiro, que é convertido em itens.
Às quartas-feiras, parte dos voluntários da Liga faz as compras em atacadistas, porque, segundo o presidente-fundador da ONG, Nélio Chagas, é financeiramente mais vantajoso montar as cestas básicas do que comprá-las prontas. As compras são retiradas às quintas-feiras e às sextas e, aos sábados, as cestas são montadas. Aos domingos, as entregas são feitas às famílias indicadas no cadastramento realizado pelos líderes das comunidades. A escolha de quem mais precisa da ajuda da entidade é decisão desses líderes.
De acordo com Chagas, existem diferenças entre as necessidades de habitantes de comunidades próximas de cidades grandes e de quem vive nas comunidades do sertão. Ele afirma que a proximidade com centros urbanos permite, com mais facilidade, que pessoas pobres consigam empregos temporários. Já aqueles que moram no sertão, vivem em comunidades isoladas em cidades também isoladas.
Segundo o Siga Brasil, portal de transparência sobre a execução orçamentária, o governo federal gastou mais de R$ 509,1 bilhões em despesas para ações de combate à pandemia no ano passado. Do valor, 57,71% foram destinados para cidadãos com o auxílio emergencial de R$ 600 e, posteriormente R$300, até dezembro de 2020. Para estados e municípios, R$ 63,15 bilhões do montante foram transferidos para ações em meio à pandemia.
O BEm (Benefício Emergencial de Manutenção em Emprego e Renda), criado em 2020, foi relançado neste ano com a assinatura de medidas provisórias pelo presidente Jair Bolsonaro. O programa permite corte de salários e jornadas e, até dezembro do ano passado, custou R$ 32,35 bilhões ao governo. Segundo o IBGE (Instituo Brasileiro de Geografia e Estatística), a taxa de desemprego atingiu 14,2% no trimestre móvel terminado em fevereiro. Em 2020, a média da taxa de desocupação foi de 13,5%, o maior patamar da série histórica da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua, iniciada em 2012.
Para Chagas, o combate à fome também é responsabilidade da sociedade civil. “O governo tem suas responsabilidades, mas a gente acredita que cada um tem que fazer sua parte e sem ficar acusando, apontando dedo”, ele afirma. Por isso, no entendimento do presidente da ONG, o trabalho de entidades como a Liga do Bem pode ter mais eficácia e ser mais ágil do que políticas públicas.
Castilho, porém, argumenta que, no Distrito Federal, a maior parte das pessoas mais vulneráveis são negras e não recebem apoio estatal. Além da fome, famílias negras enfrentam outras dificuldades com a falta de saneamento básico e moradias inadequadas, por exemplo. Ainda que a Ondan tenha um papel importante no combate à desigualdade, seu alcance é restrito. Portanto, “é necessário fomentar políticas emergenciais de enfrentamento à fome”, afirma Jusianne.
Ao contrário da Liga do Bem, com alguns anos a mais de funcionamento, a Ondan enfrenta alguns impasses. Por não ser institucionalizada, não tem acesso a certos recursos e, por não ter CNPJ, “existem doadores e parcerias que a organização não pode alcançar por não preencher os requisitos necessários para a prestação de contas”, de acordo com Castilho.
Há outras diversas entidades que têm trabalhado no combate à fome em diferentes regiões do Brasil. A Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira), por exemplo, dedica-se ao auxílio para comunidades de povos indígenas da região amazônica, enquanto o Movimento Panela Cheia, união de esforços da Cufa (Central Única das Favelas) e da Gerando Falcões, auxilia mais de 5 mil comunidades pelo país. O Qual Máscara, criado inicialmente para informar internautas sobre o uso correto e a escolha de máscaras mais eficazes, também formou uma campanha para arrecadar dinheiro e doar máscaras e cestas básicas. Foram mais de R$ 30 mil em doações, que foram interrompidas por impasses jurídicos.
Doações para a Liga do Bem podem ser feitas só por meio do site da ONG: aligadadobem.org. Para a Ondan, é possível fazer doações contatando a entidade no telefone (61) 98251-6286 ou no e-mail ondaondan365@gmail.com. Outras formas de arrecadar dinheiro, como rifas solidárias, também são feitas pela Ondan.
As projeções para a economia mundial estão melhorando. Ao menos é o que diz o relatório Perspectivas da Economia Mundial (World Economic Outlook, em inglês) publicado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) no mês de abril. O organismo financeiro prevê 4,6% de crescimento para a América Latina em 2021, o que melhora em 0,5 ponto percentual a última estimativa para a região, publicada em janeiro.
A atualização e o otimismo decorrem principalmente da evolução da vacinação em massa. Outros fatores englobam a adaptação de parte da população ao trabalho à distância e o forte apoio fiscal das principais potências econômicas mundiais, sobretudo os Estados Unidos. A recuperação econômica da América Latina, no entanto, será “leve e em velocidades diferentes”, conforme o relatório do FMI, que alerta para o “potencial de danos econômicos persistentes” e para a “eficácia com que políticas econômicas implementadas sob incerteza podem limitar os danos dessa crise sem precedentes".
No Webinar “Perspectivas para a economia brasileira (2021-2022)”, realizado pela Fundação Getúlio Vargas em 6 de abril, o professor de economia Mauro Rochlin comentou sobre os fatores que estimularam uma melhoria nas projeções econômicas: “O mundo vai andar muito mais rápido do que se esperava há pouco tempo atrás. Houve uma mudança significativa nas previsões de crescimento econômico para o mundo todo, com as principais condicionantes sendo a evolução da imunização, a reabertura do setor de serviços e a retomada do emprego. São fatores que dependem uns dos outros para moldar qualquer tipo de previsão”.
Com diversos países registrando altos índices de óbitos per capita decorrentes de Covid-19, a América Latina teve retração econômica de 7% em 2020. Foi o maior recuo entre as regiões do mundo e mais do que o dobro da média global de 3,3% - variação que já significou a pior recessão em tempos de paz desde a crise de 1929. A economista-chefe do FMI, Gita Gopinath, ressalta na introdução do relatório que “o colapso poderia ter sido ao menos três vezes maior, não fossem as rápidas respostas governamentais”.
O emprego formal e a renda proveniente do trabalho tiveram queda acentuada. Os setores mais afetados pela pandemia, tais como hotéis, restaurantes, serviços pessoais e estabelecimentos comerciais, absorveram uma parcela desproporcional da perda de empregos, assim como as famílias de baixa renda. A renda mais baixa, por sua vez, contribuiu para a insegurança alimentar, impulsionada pela inflação dos preços em alguns países. O resultado é a reversão nos avanços na redução da pobreza. As economias caribenhas, dependentes do turismo, estão entre as mais afetadas.
O FMI estima que cerca de 95 milhões de pessoas entraram na faixa da pobreza extrema em 2020, sendo 19 milhões na América Latina. Já a desigualdade, medida pelo coeficiente de Gini, cresceu 5% em comparação ao cenário pré-pandemia na região. Especialistas do organismo também alertam para um problema pouco comentado, destacando que a crise sanitária “deixará danos duradouros no capital humano devido ao fechamento das escolas, que foi mais prolongado do que em outras regiões do mundo”.
A expectativa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) global é de 6%, 1,4 ponto percentual acima da América Latina e 2,3 pontos percentuais superior à do Brasil, que registrou no ano passado uma retração de 4,1%, a terceira maior desde 1901. Segundo país com mais mortes por Covid-19 no mundo, o Brasil vem tendo a recuperação retardada pelo atraso no programa de vacinação e a gestão conturbada da crise sanitária, agora no foco de uma Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado. Em 2021, mais uma vez, o país deve ficar abaixo da média de crescimento mundial e da região.
Para além de 2021, o FMI alerta que as perspectivas a longo prazo seguirão dependendo do rumo que a pandemia tomar em cada região, destacando que a vacinação lenta aumenta o risco de agravamento de novos focos do vírus, além de promover aumento da desigualdade entre os países ricos e pobres.
No caso da América Latina, especificamente, com exceção de Chile, Costa Rica e México, os países ainda não garantiram vacinas suficientes para cobrir todas as respectivas populações, apesar dos apelos da Organização Mundial da Saúde (OMS) para uma melhor distribuição dos imunizantes pelo planeta. México (5%), Argentina (5,8%) e Chile (6,2%) estão na frente do Brasil na corrida de crescimento econômico para o ano, segundo o relatório do organismo. O FMI destacou o Chile como “um dos programas de vacinação mais avançados do mundo”, para justificar a previsão de recuperação a curto prazo.
Em termos de renda per capita, o retorno aos níveis pré-pandemia na região está previsto apenas para 2024, o que culminará na perda acumulada de 30% em relação à projeção anterior à crise. “As pessoas e as economias ainda precisam de uma dose de reforço a curto prazo para sair da crise da Covid-19, enquanto o agravamento de fragilidades estruturais subjacentes impõe desafios a longo prazo”, destaca um grupo de especialistas do FMI. O Brasil deve recuperar o nível de seu PIB de 2019 apenas em 2022.
O órgão ainda recomenda que os governantes tenham prudência ao decidirem os próximos passos, visando amenizar os efeitos da crise e alcançar as previsões positivas futuras, destacando: prioridade aos gastos com saúde, fortalecimento de políticas de proteção social, facilitação de falências e investimento em educação.
Ela se arrumou como de costume. Vestiu uma roupa bonita e passou maquiagem. Dessa vez, para esconder a tristeza. Não adiantou. Professora de educação infantil, Vivian Medeiros Campos percorreu os trinta minutos da sua casa ao trabalho com lágrimas no rosto. Era terça-feira, quatro de maio de 2021, o seu último dia na Escola Piccolino, localizada no Alto de Pinheiros, zona oeste da cidade de São Paulo. Chegou às 9h e bateu o ponto às 13h. A jornada caiu pela metade, assim como o salário. Os cortes não evitaram a demissão. “Nós tínhamos berçário com 18 bebês, agora com a pandemia nós não tínhamos nenhum.” Vivian era coordenadora do berçário e sabia que o rompimento era inevitável.
Cerca de 300 mil professores da educação básica de colégios privados já foram demitidos durante a pandemia, segundo estimativa da Fenep (Federação Nacional de Escolas Particulares). Os dados se referem aos docentes que atendem crianças de até 5 anos de idade. Sem a obrigatoriedade do ingresso escolar antes dos 4 anos – conforme a legislação –, os impactos são sentidos no cancelamento das matrículas e na demissão de professores. A educação infantil tem concentrado mais de 70% dos desligamentos de profissionais na rede particular, que procuram novas fontes de renda.
Silvia Maria perdeu o emprego numa creche pouco antes de a pandemia ter início. Pedagoga, ela sobrevive com a média de R$ 500 por mês com a revenda de cosméticos e utensílios para casa. São 4 milhões de pessoas nessa atividade, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Vendas Diretas (Abevd). Os revendedores usam como alternativa para complementar a renda. Para Silvia não está sendo um complemento, pois ainda não conseguiu recolocação no mercado. “Já entreguei vários currículos, por e-mail e pessoalmente. Eles sempre falam que não dá por causa da pandemia”, diz.
A lona estendida na frente da casa faz sombra numa grande mesa sustentada por tijolos. Em cima da mesa, vários livros de estudo. Nas cadeiras, nenhum aluno. É nesse ambiente improvisado no bairro 17 de março, em Aracaju (Sergipe), que o professor Luiz Carlos Nascimento dava aulas de reforço escolar e tirava um extra. Com a pandemia, a atividade parou. Não só o reforço em sua casa, como o emprego no colégio particular. Luiz está entre os 14,4 milhões de desempregados no Brasil, conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No trimestre encerrado em fevereiro, o desemprego ficou em 14,4%, a maior taxa registrada desde o começo da pesquisa.
“Professor é a única identidade que encontro em todos lugares que eu vou.” Filho mais velho entre cinco irmãos, Luiz é o único com ensino superior. Desde cedo, ele sabe da importância dos estudos na sua vida e tenta ajudar as crianças do seu bairro com um projeto social de contação de histórias e o reforço com um valor simbólico de R$ 30 por aluno. Sem essas atividades, ele vende geladinhos por R$ 1 cada. No mês que dá uma venda boa, ele tira R$ 100, que se somam ao auxílio de R$ 150 do Bolsa Família, que permite nada mais que o básico nesse contexto pandêmico
Quando questionado sobre o motivo de continuar na profissão mesmo com as dificuldades, Luiz faz questão de responder. “A gente tenta fugir do ócio do ofício, mas ensinar não é para qualquer um. Ensinar é um dom. Já tentei ‘n’ outras coisas, mas no meu coração sempre diz o seguinte: você precisa ensinar. É a sua arte.”
Logo após o primeiro caso de contaminação pela Covid-19 no Brasil, assistimos uma ampliação do desemprego e do desalento da população, sobretudo os mais jovens. Não basta apenas lutar para não ser contaminado pelo vírus, na maior crise sanitária que já enfrentamos. A luta diária no meio da pandemia é a luta da sobrevivência, manter o emprego e a renda para passar por essa turbulência.
Para os jovens o desafio é ainda maior. Como se colocar no mercado de trabalho estagnado, com trabalhadores qualificados e experientes perdendo os seus postos de trabalho e, para sobreviver, aceitando salários menores em uma nova colocação. É neste contexto que os mais novos estão disputando uma vaga de trabalho. Antes, o fato de ter pouca ou nenhuma experiência era um facilitador para conseguir um emprego com salário mais baixo, agora concorre com pessoas experientes pelos poucos empregos mal remunerados que existem. O Nube (Núcleo Brasileiro de Estágios) informa que de cada dez novos profissionais formados em 2019 e 2020, metade deles estão sem trabalho, ou seja, com uma taxa de desemprego muito maior que a média do país, que gira em torno de 14,2 %, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
A pesquisa, realizada pelo Nube, mostra que dos jovens formados que conseguiram emprego neste período de pandemia, apenas 20% estão exercendo atividades correlatas ao que estudaram na universidade. Para a recém-formada em Publicidade e Propaganda, Grazielly Irene da Conceição Cunha, que cansou de procurar emprego em sua área e neste momento trabalha na empresa da família em atividades administrativas e paralelamente faz cursos de EAD (Ensino à distância), o curso visa prepará-la para quando o mercado aquecer novamente.
Para Mariana Nobrega, formada em Engenharia de Produção, "o mercado está exigindo muita experiência em diversas áreas do conhecimento, dificultando a entrada dos inexperientes no mundo do trabalho. Quando resolveu estudar engenharia, não imaginava que iria encontrar tantas dificuldades para se inserir na profissão, pois as atividades em que o engenheiro de produção pode atuar são amplas, mas, devido à crise econômica e as incertezas relativas à pandemia deram uma travada no mercado de trabalho. Hoje, ela tem realizado trabalhos informais e está se preparando, inclusive para mudar de área, fazendo um novo curso.