O prazer efêmero da compra logo dá lugar a um vazio crescente
por
Giovanna Montanhan
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12/11/2024 - 12h

Por Giovanna Montanhan

 

Abrir o TikTok é como piscar e ver o mundo mudar em uma fração de segundos. Em uma rolagem veloz, surgem truques para uma maquiagem glow, táticas para uma “pele de porcelana”, segredos para esconder as olheiras com batom vermelho e até dicas para um contorno "ideal" feito com utensílios de cozinha. Uma técnica “nunca antes vista” de delineado usando apenas um grampo de cabelo, uma máscara capilar líquida que permanece nos fios por míseros segundos e que “repara até a alma” — tudo parece essencial, urgente. De um lado, surge uma técnica viral que promete lábios mais volumosos usando apenas corretivo e gloss, aplicados estrategicamente para criar a ilusão de lábios carnudos e esculpidos; do outro, alguém massageia o rosto com um Gua Sha, uma técnica tradicional de origem chinesa que utiliza uma pedra para esculpir a face, de quartzo rosa recém-adquirida, prometendo desinchar o rosto em poucos minutos. A tela se enche de novas promessas a cada hora em que o aplicativo é aberto, como o colágeno em pó que, misturado na água, garante uma dose de juventude pelas próximas décadas, ou a aplicação de blush no nariz para dar aquela falsa sensação de que se esteve na praia e se queimado, e até mesmo o sérum coreano feito de mucina de caracol para uma pele supostamente mais firme e hidratada. Cada dica desponta como um raio no feed, iluminando tudo ao seu redor por um instante, apenas para ser engolida pela próxima febre que chega avassaladora, tornando a moda anterior esquecida antes mesmo de ser assimilada.

No território implacável das redes sociais, onde promessas de uma pele impecável e uma beleza reluzente se espalham como um feitiço, mulheres de todas as idades deslizam os dedos na tela em busca de um brilho que pareça emanar de dentro para fora. Cada toque, cada deslizar, aproxima as compradoras de um ideal escorregadio, um reflexo de perfeição, sintetizado na imagem da pele viçosa perfeita — tão brilhante e lisa quanto um donut vitrificado, idealizada pela marca Rhode, da modelo Hailey Bieber.

Mas essa busca pela beleza aparentemente simples não é tão doce como parece. As consumidoras, atraídas pelos vídeos de influenciadoras, são envolvidas por um mercado que promove o “Glazing Milk” e os “Peptides Lip Tints” como a chave para a pele e os lábios dos sonhos. Não se trata apenas de hidratar, de cuidar ou de valorizar o que já existe, mas de transformar, de reconstruir, de alcançar um brilho irreal que reflete expectativas impossíveis. Para muitas, o desejo por essa pele vitrificada é como um chamado, uma chance de fazer parte de um ideal estético que atravessa culturas, idades e contextos, porém inacessível para a maioria.

No Brasil esse sonho assume ares de luxo proibido. Sem distribuição oficial, os produtos da Rhode se transformam em verdadeiros tesouros a serem caçados em mercados paralelos, frequentemente repletos de riscos. Para experimentá-los, os brasileiros precisam superar o desafio da importação, enfrentando preços inflacionados e longas esperas. Quanto mais distante o sonho, mais intensamente ele é desejado. Em um contexto onde a estética perfeita é exaltada acima de tudo, esses itens de design minimalista tornam-se uma espécie de Santo Graal — símbolos de um ideal que poucos conseguem vivenciar diretamente, mas que muitos cobiçam com olhares ávidos.

Não são apenas os hidratantes e lip tints da Rhode que repousam nesse altar de desejo inatingível. O Lip Glow Oil da Dior, envolto em promessas de lábios irresistíveis, reflete um brilho de glamour que atiça os corações, enquanto a Rare Beauty de Selena Gomez, com seus blushes e iluminadores, embriaga o imaginário dos mais jovens. Há algo mágico, quase sedutor, nesses frascos delicados, como se cada camada de produto pudesse transformar a pele em uma tela de sonhos, oferecendo uma beleza que parece brotar sem esforço algum. Cada uma dessas embalagens repousa no nécessaire com uma falsa simplicidade, promovido com tamanha precisão que passa a impressão de que esses pequenos luxos são mais que desejos — são quase como amuletos, indispensáveis no ritual silencioso de buscar, no reflexo, um toque de perfeição que talvez nunca se alcance.

A obsessão pelo "glazed look" transcende o próprio produto. Não se trata de um efeito milagroso na pele ou da suavidade nos lábios; é uma busca por alinhamento com um ideal, uma concepção vendida como pura, mas que, na verdade, carrega o peso do consumo incessante. Influenciadores, com seus vídeos cuidadosamente editados, se tornam os arautos dessa estética quase mítica, revelando apenas fragmentos do que os produtos prometem, sem expor o verdadeiro custo envolvido. Enquanto isso, do outro lado da tela, um exército de seguidores desliza, em busca do próximo vídeo, da nova promessa — na esperança de transformar um sonho distante em uma realidade tangível, ainda que efêmera.

O TikTok, com seu algoritmo hipnotizante, tornou-se uma vitrine onde milhares de consumidoras mergulham em tutoriais e resenhas, investindo tempo e dinheiro na promessa de uma pele reluzente. Entre elas, há quem se pergunte até que ponto esse ritual em frente ao espelho reflete uma busca legítima pela autoestima ou se é apenas mais uma ferramenta do capitalismo que usa o desejo por aceitação e inclusão para alimentar o consumo excessivo.

É como uma trilha de pequenas confissões, uma corrente de desejos transformados em mercadoria. Em cada vídeo, em cada review impulsionado por essas marcas silenciosas, há mulheres que, ao deslizar a tela e ceder ao apelo das tendências, começam a ver suas rotinas, seus sonhos e até seu próprio reflexo se curvarem a um padrão escorregadio e volátil.

Júlia, Helena e Rayssa são alguns exemplos de meninas que compram de acordo com a tendência do momento no TikTok. Cada uma mora em um estado diferente, mas, enquanto falavam, era como se compartilhassem uma mesma inquietação, algo que transcende a distância e parece habitar um espaço comum entre elas. Com apenas 13 anos, Júlia, mais tímida, confessou que, para ela, comprar os produtos da moda trazia uma sensação de pertencimento que era difícil de encontrar em outros lugares. Ao adquirir aquele item desejado, sentia-se mais próxima das meninas que possuíam o mesmo, como se o produto fosse um passaporte invisível para um mundo onde todas compartilham os mesmos desejos e sonhos de consumo. Com um brilho tímido no olhar, contou sobre seu exemplo mais recente: um kit de pinceis da marca Real Techniques — algo que, segundo ela, todas no TikTok pareciam ter e que, de alguma forma, a fazia sentir-se parte de algo maior.

Com 15 anos, Helena, um pouco mais falante, descreveu a experiência de outra forma, embora a sensação de efemeridade fosse a mesma. Para ela, o ato de consumir a aproximava de suas amigas e da comunidade online, mas logo após a compra surgia um vazio incômodo, como se a satisfação fosse rapidamente substituída por uma nova tendência, já à espreita. "É um ciclo sem fim," disse ela, quase resignada, enquanto mencionava sua última aquisição: o pó facial rosa da influenciadora Karen Bachini, um item que ela não parava de ver nos vídeos e que parecia indispensável — até o próximo lançamento roubar a cena.

Com 17 anos, Rayssa, em silêncio até então, finalmente desabafou. Revelou que, todas as vezes que se olhava no espelho, sentia-se como se tentasse capturar o brilho das influenciadoras do TikTok. Mesmo quando conseguia comprar o que tanto desejava, o resultado nunca parecia corresponder ao ideal que via na tela. Em momentos assim, questionava-se se a falha estava nela — como se algo em sua pele, no olhar, ou até em sua própria essência não fosse suficiente para refletir a promessa vendida pelos produtos. Esse sentimento de cobrança, explicou, era quase constante, uma frustração que a fazia sentir-se cada vez mais distante de um ideal inatingível. Sua última compra foi o sérum bronzeador da marca Drunk Elephant, o D-Bronzi Anti-Pollution Sunshine Drops, um item que, como tantos outros, prometia uma transformação que parecia sempre escapar ao seu alcance.

Para elas, o ato de comprar não é apenas um impulso passageiro; traz um alívio momentâneo em uma busca que nunca se completa. Mas logo vem o vazio, uma percepção incômoda de que estão presas a um ritual estranho, onde o consumo é apenas uma dança repetitiva, uma tentativa de tocar algo que escapa. Muitas se encontram no eco numa pergunta inevitável sobre o motivo de não conseguir o mesmo resultado. Como se o erro fosse delas, como se algo na pele, no olhar, ou na própria essência falhasse em alcançar o brilho prometido — um ideal cuidadosamente desenhado para permanecer fora de alcance.

É nesse cenário tentador que se ergue o submundo da Internet, uma espécie de mercado paralelo onde a pressa e o desejo encontram uma nova morada. Para aqueles que não podem ou não querem esperar, marketplaces como a Shopee e a Shein surgem como atalhos — labirintos digitais onde os produtos cobiçados aparecem como ofertas tentadoras, à mercê de vendedores anônimos que se escondem atrás de telas e avatares. Ali, a ansiedade dos consumidores é alimentada com preços reduzidos, porém envoltos em uma névoa de incerteza se o brilho do produto é real, ou apenas uma sombra de autenticidade. Entre o clique e a compra, uma escolha silenciosa é feita — e talvez, para muitos, a necessidade de pertencer ao momento sobrepuje o valor da própria verdade.

Capitalismo

Em uma conversa descontraída o colunista do site Steal the Look, Fábio Monnerat, falou sobre o frenesi que envolve a busca pela beleza idealizada, uma obsessão que, segundo ele, vai além do simples desejo por bons produtos. Ele acha que há uma necessidade de pertencimento, um desejo de aceitação que se esconde por trás de cada nova compra, como se cada aquisição trouxesse consigo um pouco mais de identidade, um passo a mais em direção a um grupo invisível e desejado. Fábio disse enxergar essa ilusão de exclusividade como uma corrente invisível, prendendo o público em um ciclo sem fim, onde o limite entre querer e precisar se desfaz. Nas redes sociais, o ideal de beleza está sempre ali, próximo e sedutor, mas estranhamente fora de alcance, criando um desejo que se mantém sempre vivo. E vai além.

Ele aponta que conter essa maré de consumo desenfreado soa quase como um desafio impossível. A falta de consciência coletiva torna difícil que as pessoas reflitam sobre o impacto de cada compra. Assim, o consumo se transforma em um reflexo do próprio desejo não resolvido, uma repetição constante que nunca traz a satisfação esperada. Para ele, cada nova compra parece inofensiva, mas se transforma em uma onda crescente, que passa despercebida e segue reverberando.

No coração do capitalismo contemporâneo, o TikTok se agiganta, não mais como uma simples distração, mas como um palco onde o desejo se torna espetáculo e o consumo, um ato quase hipnótico. Em cada deslizar de dedo, as consumidoras são lançadas em um torvelinho de tendências, onde as promessas de beleza cintilam como fogos de artifício — intensas, passageiras, inescapáveis. A cada nova febre, o rosto de uma influenciadora parece sussurrar segredos que as espectadoras querem acreditar: uma pele mais luminosa, lábios mais aveludados, o toque de algo quase mágico. Mas é tudo tão fugaz. Produtos que ontem eram o desejo do momento, hoje já perderam o brilho, substituídos por algo "ainda mais revolucionário".

Para essas mulheres, não há descanso. A lógica do hiperconsumo, essa engrenagem que o filósofo Gilles Lipovetsky descreveu, as engole em um ciclo em que o desejo pesa mais que a necessidade, onde o impulso de possuir é atiçado mais pelo medo de perder a novidade do que por uma vontade verdadeira. A cada nova compra, um ritual se repete — uma sensação de satisfação que evapora rápido, cedendo espaço à expectativa do próximo lançamento. E enquanto os frascos se acumulam, um vazio começa a se insinuar, como se, no fundo, soubessem que a próxima tendência também virá, seduzindo-as mais uma vez.

No universo hiperacelerado do TikTok, onde as tendências surgem e desaparecem como reflexos fugidios, as consumidoras são arrastadas para um ciclo quase frenético. Cada novo "must-have" carrega uma data de validade invisível, um convite ao consumo antes que o encanto se esgote. No olho desse furacão está o Carmed, um bálsamo labial produzido pela farmacêutica Cimed, que, embora conhecido por sua hidratação modesta, encanta com suas edições limitadas e colaborações astutas, como a recente parceria com a marca de doces Fini. Versões do bálsamo com sabores de balas de gelatina — banana, dentadura, "Beijos" — evaporaram das prateleiras antes mesmo de alcançarem todas as farmácias, deixando na esteira um rastro de desejo insatisfeito.

Para Helena, que também é uma consumidora voraz de Carmed, a eficácia do produto é apenas um detalhe insignificante. O que realmente importa para Júlia e para quem o consome, é o prazer de possuir um fragmento de algo efêmero, um pedaço da tendência que logo será substituída por outra. Cada lançamento deste produto traz consigo uma promessa de exclusividade, uma sensação de escassez calculada que intensifica o impulso de compra. Nesse jogo de aparências, o Carmed não é apenas um bálsamo; é um lembrete de que, no turbilhão da moda passageira, às vezes o que vale é a experiência fugaz de ser parte de algo que logo deixará de existir.

No emaranhado dos desejos modernos, o consumo de beleza se torna um ritual de encantamento, uma busca ansiosa que reflete mais do que o desejo de uma pele perfeita ou de lábios macios. Fábio Monnerat vê esse cenário com inquietação, especialmente quando o alvo do consumo se desloca para o público infantil. Ele observa, com ceticismo, como produtos de beleza direcionados a crianças e adolescentes, como é o caso do fenômeno do Carmed, onde eles são estrategicamente moldados para enraizar o consumo desde cedo. Com sabores açucarados e colaborações com personagens conhecidos, o Carmed, em suas múltiplas versões, deixa de ser apenas um hidratante labial; ele se torna um emblema de um consumo precoce, uma porta de entrada para um ciclo interminável de desejos e substituições.

Fábio acredita que essa introdução ao consumo desenfreado desde a infância reflete um problema profundo. A indústria da beleza, segundo ele, soube capturar o conceito de autocuidado e transformá-lo em uma sequência constante de compras — não mais um momento pessoal, mas uma dança coreografada pelo mercado. O Carmed e outros produtos semelhantes simbolizam uma sociedade onde o consumo é enaltecido como valor intrínseco, e cada nova edição limitada, cada parceria com um ícone infantil, se torna um capítulo dessa fábula consumista. A ilusão de exclusividade atiça o desejo, e o autocuidado se converte em um ato repetitivo, sem substância.

Enquanto isso, o TikTok acelera essa espiral. Para Júlia, Helena e Rayssa, a plataforma de vídeos é uma vitrine que converte produtos de beleza em pequenos troféus de pertença, um portal onde cada novo sérum, cada nova máscara promete um vislumbre de perfeição. Como no filme  A Substância (2024), onde Elizabeth Sparkle, interpretada por Demi Moore, injeta um líquido espesso e denso na pele na esperança de capturar a juventude que lhe escapa, os jovens de hoje se entregam a promessas tão tentadoras quanto fugazes. A cada nova fórmula, a cada sérum, máscara ou creme milagroso, há uma promessa de transformação que parece deslizar entre os dedos. Eles se lançam nessas poções modernas, cada frasco prometendo que, desta vez, o reflexo no espelho será o que sempre desejaram.

Mas, assim como Elizabeth, que corre atrás de uma ilusão que nunca a satisfaz, esses jovens podem estar caminhando para um abismo de expectativas vazias. A cada compra, um breve relâmpago de satisfação — um brilho que logo se desfaz, um encanto que desaparece com a mesma rapidez com que veio. E então, a necessidade renasce, mais urgente, mais insistente. Em um ciclo que se auto alimenta, o ideal de beleza se mantém distante, quase ao alcance das mãos, mas sempre escorregadio. E nessa busca, a frustração não desaparece; apenas se recalca, pronta para surgir com força renovada a cada nova promessa que o mercado lança na tela.

Fábio acredita veementemente que o verdadeiro papel do TikTok não é conectar, mas vender — impulsionando um consumo desenfreado que atinge até os mais jovens, seduzidos pela promessa de uma juventude prolongada e de uma beleza idealizada.

No fim, a trilha do consumo se revela como uma corrida sem destino, onde o autocuidado se dissolve em promessas e expectativas. Para Fábio, a verdadeira prática de bem-estar foi sequestrada pela lógica de mercado, que transforma cada novo produto em mais um ponto de partida, mais um item na lista de desejos insaciáveis. O autocuidado, nesse cenário, se torna uma pista de corrida onde o consumidor, sempre em busca da última novidade, esquece de parar, de respirar e de redescobrir o que realmente importa. Talvez, sugere ele, o verdadeiro bem-estar exija uma saída dessa trajetória imposta, uma pausa para recobrar o equilíbrio, para lembrar que cuidar de si não precisa ser uma sequência de compras, mas uma escolha pessoal, guiada por um ritmo próprio, alheio às urgências e apelos do mercado. Afinal, os verdadeiros delírios de consumo da Geração Z não estão em cada frasco ou nova tendência, mas na ilusão de que a satisfação virá com o próximo produto.

 

As conexões digitais facilitaram a vida de muitos, mas também abriram brechas inesperadas.
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25/09/2024 - 12h

Por Carolina Rouchou

 

O dia era domingo, o mês era Novembro e o ano, 2022. Em um apartamento antigo no Itaim Bibi, agulhas de tricô descansavam sobre uma cadeira de balanço e o cheiro doce de bolinhos de chuva recém feitos preenchiam o ambiente decorado com toalhinhas de crochê e uma raquete de tênis. Na TV, futebol. No sofá, dona Sylvia. O jogo estava próximo de terminar e, para a alegria da telespectadora, o São Paulo já havia feito três gols contra o Goiás. Aos 45 do segundo tempo, o jogador Juan tomou posse da bola na grande área e se preparava para dar o chute final da partida. O telefone toca. Sylvia o desliga imediatamente, nada poderia distraí-la de um possível quarto gol de seu time. Dito e feito, a bola bate na rede e a torcedora comemora.

O telefone toca mais uma vez. Qualquer pessoa que conheça dona Sylvia sabe que a hora do futebol é sagrada, duas ligações seguidas nesse momento era, portanto, um sinal de emergência. Ela atendeu. Tratava-se de uma ligação de seu banco. Poucos dias antes, sua agência havia sido fechada sem muitas explicações e a conta de Sylvia seria transferida para outra unidade. A atendente informou isso por telefone, mas antes de terminar a ligação deu mais uma informação: o gerente da conta de dona Sylvia estava sendo investigado por lavagem de dinheiro e, por isso, a agência teria sido encerrada.

Pouco tempo depois o telefone volta a tocar, mas dessa vez quem estava do outro lado era a Receita Federal em busca de informações sobre o tal gerente. Pediram algumas informações da senhora de 86 anos: com qual frequência ia ao banco, como era sua relação com o gerente, quanto dinheiro ela tinha na conta, se já havia visto algum movimento suspeito na agência etc. Como cidadã exemplar, Sylvia não poupou detalhes, afinal lugar de bandido é na cadeia. Cooperou com as autoridades como pôde e, mesmo assim, pediu desculpas por não saber de muita coisa.

A ligação terminou com uma ordem: Sylvia deveria transferir parte de seu dinheiro para que a Receita pudesse analisar a origem da quantia. Explicaram que seu gerente usava as contas dos clientes para esconder dinheiro sujo e, por isso, precisavam investigar suas economias. A operação que estavam fazendo era secreta e ainda estava em andamento, portanto ninguém, nem mesmo sua família, poderia saber sobre o ocorrido. Com as autoridades ainda no telefone, Sylvia prontamente fez a transferência e agradeceu.

Segunda-feira quem ligou para a residência são-paulina foi a própria Polícia Federal. Ao atender, Sylvia foi avisada que o dinheiro analisado possuía origem ilegal e, enquanto sua inocência não fosse comprovada, ela corria perigo. O policial pediu o WhatsApp dela para facilitar a comunicação. Não era obrigada a informar seu número pessoal, mas a autoridade avisara-lhe que recusar-se a passar tal informação levantaria suspeita e que “ficaria ruim para o seu lado”.

Os dias passavam e Sylvia mantinha contato com a PF por mensagens de texto. Faziam a ela muitas perguntas, passavam atualizações sobre a investigação e pediam que ela fizesse mais transferências. A octagenária fez tudo para provar sua inocência e ajudar a justiça. O policial quis saber se havia jóias. Dona Sylvia era de uma família tradicional paulistana e se orgulhava das peças que herdara de seus avós. Imediatamente, respondeu que sim. O policial pediu fotos e perguntou se ela tinha nota fiscal dos itens. Com peças que antecediam a mudança do século passado, Sylvia informou que não retinha os comprovantes fiscais (afinal estes sequer existiam na época que as joias foram confeccionadas), mas enviou fotos de todas preciosidades que guardava em seu cofre. A conversa terminou com uma mensagem do policial: “Teremos que ir até sua casa para fiscalizar a legalidade destas peças, por favor me envie seu endereço”.

Entre novembro e dezembro Sylvia transferiu mais de vinte mil reais e recebeu as autoridades em sua residência mais de 5 vezes. Nestas visitas a Receita ou Polícia Federal ia para recolher as jóias e outros itens de valor, tudo para provar a inocência da senhora no mirabolante caso do gerente que lavava dinheiro. A operação se encerrou poucos dias antes do natal, quando Sylvia finalmente ligou para seu filho Rodolpho pedindo ajuda, pois não tinha comida em sua casa e estava sem um tostão no bolso.

A realidade é que nunca houve operação alguma. Quem esteve em contato com dona Sylvia nos últimos dias era uma quadrilha criminosa, especializada em golpes via telefone e internet. A agência da vítima fora de fato fechada, mas por questões internas do banco. O tal gerente era inocente e nunca havia sido investigado pela polícia, foi tudo inventado. As verdadeiras autoridades foram imediatamente acionadas, mas não havia muito que pudessem fazer. A família de Sylvia tomou para si a responsabilidade de auxiliar a matriarca. Sua filha Renata entrou em contato com o banco para pedir o dinheiro de volta, mas não obteve sucesso: como as transferências haviam sido feitas pela dona da conta, o dinheiro só poderia ser devolvido se comprovassem a falcatrua.

Graças a um conhecido que trabalhava no banco, o dinheiro foi recuperado quase seis meses depois, mas o dano já havia sido feito. Desde que sofreu o golpe, dona Sylvia entrou em um estado depressivo e abandonou o estilo de vida ativo que vivia. A vítima conta que se culpa por tudo e que passou a se enxergar como uma idosa incapaz. Seu corpo acompanhou sua mente: de quadras de tênis e academias para visitas constantes a hospitais e uma equipe de cuidadores. A família também atribui a drástica mudança de saúde ao golpe que a mãe e avó sofreu. Até hoje o caso segue sem solução. Não se sabe sequer como os estelionatários conseguiram os dados dela ou do gerente do banco. A única prova do ocorrido são as conversas por WhatsApp, em que o grupo utilizava uma foto do logotipo do banco Bradesco. O número utilizado para se comunicar com a senhora foi denunciado e a família tentou entrar em contato com o WhatsApp, mas a empresa nunca respondeu.

A falta de regulamentação no mundo digital abre espaço para que dados pessoais sejam vendidos e compartilhados entre grupos mal-intencionados. Sem se responsabilizar de maneira alguma, as plataformas on-line aceleraram o crime e não aparentam estar dispostas a lutar contra isso. Mesmo quando notificadas pelas autoridades, as redes sociais se recusam a cumprir com a legislação brasileira. Se dona Sylvia e sua família quiserem descobrir quem estava por trás do golpe, talvez devam esperar até que um deles concorra à Prefeitura paulistana.

Uso ostensivo de telas está transformando a infância
por
Maria Luiza Abreu
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05/11/2024 - 12h

Por Maria Luiza Abreu

Em casa, Arthur se coloca em frente às telas assim que chega da escola.  Apesar da pouca idade, já apresenta sinais físicos do uso excessivo, como a famosa corcunda decorrente da má postura. Filho de millennials, Arthur tem um celular desde os 8 anos, e seu primeiro tablet chegou ainda mais cedo, aos 4 anos de idade. Em casa, a TV da sala é uma smart TV, possibilitando acesso on demand aos principais serviços de streaming, e nela o PlayStation 4, presente de aniversário de 6 anos, fica conectado quase que em tempo integral. A situação é motivo de reclamação da avó materna, de 74 anos, que cuida do garoto enquanto a mãe trabalha, e precisa recorrer à televisão de outro cômodo caso queira assistir novela ou noticiário.

Ele tem 11 anos e é aluno do quinto ano do ensino fundamental. Filho de pais separados e mora com a mãe e a avó em um apartamento de aproximadamente 40 m². Ele é um retrato da atualidade, em que as crianças praticamente já nascem familiarizadas com as telas. No colégio particular em que estuda, segue estritamente as rígidas regras da instituição quanto ao uso do celular. Ele relembra que, na escola pública anterior, o uso do aparelho era comum, a ponto de muitos colegas passarem horas no banheiro com o celular, que era praticamente uma extensão dos alunos. 

Como uma típica criança da geração Alfa, a tecnologia sempre fez parte da vida de Arthur, a ponto de ele não lembrar de seu primeiro contato com ela. No entanto, ele admite que sua vida poderia ser mais saudável sem o celular: Ele mesmo acha que fica muito preso pelas redes, e diz isso após alguns segundos de distração com um vídeo de dois irmãos estrangeiros competindo para ver quem completava primeiro o álbum de figurinhas da Copa, exibido no YouTube, conectado à TV pelo videogame.

O Manual de Orientações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) sugere um limite diário de 2 horas de exposição a telas para crianças de 6 a 10 anos e de 3 a 4 horas para adolescentes de 11 a 18 anos, enfatizando a importância de regras claras para o uso de dispositivos eletrônicos. O documento também alerta para problemas físicos, como má postura e prejuízos à visão. O uso excessivo pode ainda levar a questões psicológicas, como a chamada “distração passiva” — quando os dispositivos digitais são usados para manter as crianças quietas, principalmente em locais públicos — prejudicando o brincar ativo, fundamental para o desenvolvimento infantil.

Para Arthur, o celular transforma a vontade de brincar com amigos em uma busca por distrações eletrônicas, deixando de lado atividades que gostava, como jogar bola, bater figurinhas ou andar de bicicleta. Na sua escola atual, o uso do celular é restrito a atividades educativas, como pesquisas rápidas por imagens no Google e a busca pelo significado de palavras desconhecidas. Durante os intervalos, o celular é proibido. Recentemente, ao ficar sem o aparelho devido a um problema técnico, Arthur notou uma melhora em sua concentração e desempenho nas tarefas de casa. No entanto, ele admitiu ter se sentido “agoniado” por não poder se comunicar com amigos no WhatsApp, especialmente porque, naquele período, estava responsável por organizar o interclasse. Em menos de uma semana, um novo aparelho já havia sido comprado.

Os computadores da sua escola são utilizados somente nas aulas de robótica, para a criação de programas e protótipos. Embora o celular auxilie em pesquisas, Arthur gostaria de poder usá-lo também enquanto aguarda os pais na saída. Em casa, sua mãe estabeleceu um limite de 3 horas diárias de tela, aumentando para 5 horas nos finais de semana. Entretanto, esse limite é raramente seguido, como revela a aba de “bem-estar digital” do aparelho: em uma segunda-feira, o garoto passou 12 horas usando o celular, sendo 6 horas assistindo séries na Netflix e 2 horas no aplicativo de mensagens WhatsApp — que, assim como a maioria das redes sociais, informa como idade mínima permitida 13 anos, mas cuja restrição é facilmente burlada com a alteração da idade.

A mãe do garoto utiliza um aplicativo de monitoramento para controlar os conteúdos acessados. Ela conta que é mais difícil verificar se o limite de uso  está sendo seguido, pois, com a guarda compartilhada, nos fins de semana Arthur fica com o pai e, durante a semana, com a avó, que não tem  um perfil rígido e adota  o estereótipo de “vó que mima”, muitas vezes  contradizendo as orientações passadas pela mãe. Quando as notas caem, o celular é retirado como forma de punição. Arthur entende essa decisão, afirmando que sabe que é para o seu bem, mas não lida bem com a restrição, já que os eletrônicos estão tão inseridos em sua rotina.  Ao acordar, o celular vem antes mesmo do café da manhã, que muitas vezes é substituído por uma partida de Fortnite — jogo de battle royale em que os jogadores são colocados em um mapa e competem entre si — em ligação com os colegas de sala, e frequentemente causa atrasos para descer para o transporte escolar. Na escola, com a companhia dos colegas e a falta da opção digital para se entreter, ele não sente tanta falta do aparelho. No entanto, ao chegar em casa, até o horário de dormir é preenchido com diversas alternativas de entretenimento digital: jogos, aplicativos de streaming, redes sociais de vídeo e outras opções disponíveis no universo das telas.

Um dos principais questionamentos é sobre os efeitos psicológicos e sociais com a crescente presença dos dispositivos digitais. No episódio em que ficou sem acesso devido ao problema técnico, Arthur demonstrou uma certa irritabilidade, semelhante à abstinência, incomum para um menino conhecido por ser tranquilo e carinhoso. É possível que esse fator tenha pressionado os pais a adquirirem um novo celular tão rapidamente. Esses efeitos não são exclusivos de Arthur; na verdade, eles representam um novo problema geracional pelo qual muitas crianças passam, provocando debates e decisões acerca dessa questão.

Recentemente, o Ministério da Educação do Brasil (MEC) divulgou a intenção de propor uma legislação para limitar o uso de celulares em escolas públicas e privadas, medida alinhada com a recomendação da Unesco no Relatório de Monitoramento Global da Educação. A intenção é criar um ambiente de aprendizado menos suscetível às distrações digitais e reforçar a “visão centrada no ser humano”. Para a agência da ONU, a tecnologia digital deve ser usada como um recurso complementar, e não para substituir as interações humanas.

Em fevereiro deste ano, a prefeitura do Rio de Janeiro foi pioneira no banimento do uso de celulares e eletrônicos em escolas públicas municipais, dentro e fora da sala de aula, por meio de um decreto publicado no Diário Oficial. Enquanto medidas de nível nacional ainda não foram implementadas, a discussão sobre o papel das telas na educação está longe de ser resolvida para uma melhor formação de crianças e adolescentes.

Esta análise busca explorar os fatores psicológicos e sociais que impulsionam a decisão de buscar e valorizar bolsas de marca luxuosas, examinando o custo emocional, financeiro e cultural associado a essa escolha
por
Giovanna Montanhan
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17/09/2024 - 12h

Ao entrar em uma pequena loja escondida em uma das muitas galerias do bairro da Liberdade, numa tentativa de escapar do calor escaldante que dominava a cidade de São Paulo e procurar mulheres para entrevistar, fui imediatamente tomada por um cheiro quase sufocante de mofo misturado a um aromatizador de ambientes. Pilhas de bolsas se acumulavam em prateleiras apertadas, criando uma atmosfera opressiva. A vendedora, Márcia, com o rosto perfeitamente maquiado, oferecia sorrisos milimetricamente calculados, afirmando com confiança que todas as peças eram verdadeiras.

Márcia vestia uma camiseta de gola V com o logo da Gucci estampado, daquelas que você reconhece à primeira vista e já sabe que não é original. Combinava a camiseta com uma calça jeans sem marca aparente e um batom vermelho forte, que estava meio borrado para além do contorno labial. Ela me garantiu que a Louis Vuitton que eu examinava era autêntica. “Essa aqui acabou de chegar. Dá pra ver pela costura, e é exatamente como a original", disse ela, apontando para as alças de couro da bolsa, que aparentava estar desgastada, com manchas de dedos bem visíveis.

A loja era apertada, e segundo a vendedora, não ficava vazia por muito tempo. Durante o período em que estive ali, algumas curiosas entraram e passaram alguns minutos manipulando as bolsas. Foi nesse cenário que Vera, uma mulher de 52 anos, examinava cuidadosamente uma bolsa Chanel em meio à desordem. Seus cabelos loiros estavam impecavelmente pintados e penteados, ela vestia um kaftan longo em tons de azul, formando uma espiral que lembrava a estampa característica do designer italiano Emilio Pucci, embora claramente não fosse. Afinal, quem tem condições de comprar uma bolsa autêntica provavelmente poderia adquirir roupas de grife, e não frequentaria lugares como aquela galeria.

Apesar da precisão na imitação da bolsa que estava analisando, Vera parecia indiferente. Para ela, o que realmente importava era a imagem que a peça transmitia. Sem hesitar, enquanto acariciava os detalhes dourados, ela me confidenciou que seu sonho sempre foi possuir uma Chanel, e que o simples fato de ter um exemplar – mesmo que falso – a fazia sentir-se elegante e poderosa. Embora soubesse que a bolsa não era original, o prazer de tê-la em mãos parecia compensar a falta de autenticidade. O preço da original, disse, era exorbitante, e ela não via necessidade de gastar tanto para obter "o mesmo efeito".

Naquela tarde, algumas horas depois, Lúcia, de 42 anos, vestia uma blusa preta larga, calça pantalona da mesma tonalidade e sandálias anabela baixas em tom creme. Ela teclava no celular enquanto observava as prateleiras abarrotadas de bolsas Louis Vuitton, Chanel, Prada, Miu Miu e Hermès. Percebi que ela parecia um pouco receosa de se abrir com uma total desconhecida, então resolvi fingir que também estava interessada em comprar uma bolsa.

Lúcia contou que frequenta aquele lugar há bastante tempo e, para ela, o valor das imitações compensa muito, já que o preço das originais beira o absurdo. Ela ressaltou que as peças nas prateleiras possuem uma aparência tão similar às originais que ninguém percebe a diferença, a menos que a pessoa tenha muito conhecimento ou se aproxime demais. Para Lúcia, as imitações ofereciam uma maneira acessível de expressar seu estilo sem carregar o peso financeiro das grifes. Apesar de não ter uma marca favorita, gostava da sensação de caminhar pelas ruas com uma bolsa que, aos olhos dos outros, era vista como um símbolo de status social.

Naquele espaço abafado, entre as bolsas amontoadas, o burburinho das vozes de outros consumidores ecoava pelas lojas vizinhas que dividiam o mesmo espaço. O que se destacava não era apenas o comércio em si, mas o valor simbólico que aquelas peças carregavam para as mulheres que frequentavam o local com regularidade. Para elas, as bolsas iam muito além de simples acessórios; eram símbolos de status, de pertencimento a um mundo de luxo e exclusividade, mesmo que apenas pela aparência.

A busca por um produto de luxo, ainda que ilusório, era quase tangível. A cada gesto, a cada conversa, ficava claro que as consumidoras estavam menos preocupadas com a autenticidade do item e mais focadas no que ele poderia lhes proporcionar: uma sensação de pertencimento, poder e sucesso. Não se tratava apenas de possuir uma bolsa, mas de construir uma imagem de sofisticação e status. Vera deixou isso claro ao afirmar que ninguém iria parar na rua para questionar se o produto era original ou não. Carregá-lo já era o suficiente para atrair olhares diferentes, conferindo-lhe a distinção que tanto buscava.

Essa busca por símbolos de status se torna ainda mais complexa quando analisada à luz das explicações da psiquiatra Mariana Pampanelli. Para ela, esses itens de luxo – mesmo que falsificados – cumprem diversas funções psicológicas, dependendo do contexto. O anseio por prestígio social, seja para se sobressair aos demais ou para fortalecer a própria autoestima, figura entre os principais impulsionadores. E esse valor, que ela enfatizou, é determinado pelo ambiente cultural em que o indivíduo está inserido. Em alguns círculos, possuir uma bolsa de grife é apenas um reflexo natural da riqueza. Em outros, representa uma tentativa de ascensão, de se destacar do meio social em que vivem.

As redes sociais, claro, ampliam ainda mais essa dinâmica. Mariana afirmou que a comparação constante com os outros, impulsionada pelas redes sociais, intensifica o desejo por determinados itens. Ela acrescentou dizendo que as pessoas buscam estar à altura das imagens que veem na tela, e os itens de luxo são uma forma de alcançar isso. No entanto, ela também alertou para o perigo dessas compras impulsivas, pois quando o desejo por status ultrapassa o planejamento financeiro, o resultado geralmente é o arrependimento, acompanhado de uma sensação de perda de controle sobre a própria vida.

Essa constante exposição à desigualdade social intensifica o desejo de pertencer a uma classe social privilegiada. Para muitas pessoas, adquirir uma falsificação é a única forma de sentir que estão participando dessa narrativa de luxo e exclusividade, ainda que de maneira temporária. A psiquiatra explica que o item falsificado oferece uma ilusão de pertencimento, e mesmo sabendo que não é real, a pessoa se sente parte daquele mundo, ainda que por um momento. Esse sentimento é amplificado pela percepção de injustiça social, levando muitos a crer que, se não podem adquirir o item original, ao menos podem simular essa posse.

O que essas mulheres buscavam nas bolsas falsificadas não era o objeto em si, mas tudo o que ele representava. A sensação de carregar um item de luxo, mesmo que não fosse real, dava a elas a sensação de poder e pertencimento. E, nesse mundo de aparências, isso era o suficiente. A autenticidade do produto tornava-se secundária diante da necessidade de se sentir parte de algo maior, de projetar uma imagem que, na prática, não condizia com suas realidades.

 

O ‘’Grande Irmão’’ do Luxo: Vigilância na Era das Falsificações

No vórtice das redes sociais,  onde cada curtida se transforma em moeda e cada seguidor em um troféu, um perfil no Instagram emergiu como uma caçadora implacável. "The Fake Birkin Slayer" (@thefakebirkinslayer) tornou-se um oráculo em um mundo onde a busca pelo luxo não é apenas desejo, mas flerta com a obsessão. Sua missão principal é desmascarar as falsificações que se infiltram nos feeds dos usuários da rede, compartilhando nos stories o emoji que representa um par de olhos atentos. Não é apenas uma página de denúncias, mas um espelho implacável da ambição humana de conquistar o que está para além do alcance.

No epicentro desse turbilhão de desejos está a Birkin, a intocável criação da grife francesa Hermès. Muito além de ser uma simples bolsa, ela personifica um símbolo de status e poder, desejada tanto por fashionistas quanto por aqueles que almejam ingressar em um mundo que não os acolhe naturalmente, com a mesma intensidade de quem busca água em um deserto árido. Poucos têm o privilégio de atravessar as portas da exclusividade, e menos ainda conseguem segurar uma Birkin autêntica em suas mãos. Ela é a promessa de pertencimento a um círculo fechado, onde o luxo não é apenas um adorno, mas a própria identidade.

Mas como todo objeto de desejo, a Birkin tem seu lado sombrio. Na penumbra das transações secretas e nas esquinas mais discretas da internet, as imitações florescem como ervas daninhas. E "The Fake Birkin Slayer" está presente, assumindo o papel de uma justiceira digital, desmascarando com precisão quase cirúrgica os defeitos nas réplicas exibidas por aqueles que ousam postá-las. Cada nova publicação é uma sentença para quem ousou tentar enganar o olhar observador, uma exposição pública da farsa do luxo.

A Hermès, com sua produção controlada, faz de cada Birkin uma raridade. Não basta ter uma conta bancária cheia. É preciso ter acesso, influência e, sobretudo, paciência. A escassez faz o coração desejar mais, e essa falta é cuidadosamente mantida. A bolsa, que nunca está à espera nas prateleiras das boutiques, carrega consigo o peso de uma conquista — ou, para muitos, de uma frustração constante.

E é nesse limiar entre o desejo e a frustração que a falsificação encontra o terreno fértil. Para alguns, segurar uma imitação é o mais próximo que chegarão de sentir o toque do inalcançável. O brilho falso de uma Birkin não é apenas uma mentira para os outros, mas também uma ilusão auto infligida, uma tentativa desesperada de pertencer a um mundo de aparências que, no fundo, todos sabem ser efêmero. O conforto de segurar uma réplica, mesmo que por breves momentos, oferece um respiro na longa corrida pelo prestígio.

A caçada de "The Fake Birkin Slayer" revela algo maior do que apenas o desejo por autenticidade: escancara a era em que vivemos, onde o valor de um objeto não reside mais no que ele é, mas na história que ele conta. E, no palco das redes sociais, onde cada foto é uma performance encenada e cada postagem um ato de exibição, a autenticidade é a última fronteira. Quem possui o real, exerce o poder, mas, para muitos, sobra apenas a sombra do que poderia ter sido.

A Ética do Consumo e o Futuro do Luxo

Nos bastidores reluzentes do mercado de luxo, onde o brilho das vitrines oculta um submundo nebuloso, as falsificações surgem como sombras inquietantes, desafiando não apenas as marcas, mas também a moralidade de quem as consome. De um lado, há quem veja na compra de uma imitação a chance de tocar, ainda que de forma enganosa, o poder e a exclusividade que as grifes prometem. De outro, há uma realidade mais sombria: o impacto desse comércio clandestino na economia global e a exploração humana que muitas vezes alimenta esse ciclo.

Essas falsificações, frequentemente produzidas em fábricas clandestinas na China, onde a mão de obra escrava opera longe dos holofotes, trazem à tona uma questão ética ainda mais profunda. Ao comprar um produto falsificado, não se adquire apenas uma réplica de luxo; compactua-se, ainda que indiretamente, com a exploração de trabalhadores submetidos a condições desumanas, mal remunerados e forçados a produzir incessantemente para alimentar um mercado que prospera sobre suas costas. Nesse cenário, o glamour associado ao objeto de desejo torna-se, de certa forma, cúmplice de uma cadeia de injustiças.

Nesse contexto, o futuro do luxo parece caminhar sobre um terreno não muito fértil. As grandes etiquetas enfrentam não apenas o desafio de manter sua exclusividade, mas também a ameaça crescente das falsificações, que não só diluem sua imagem, mas também perpetuam a exploração da mão de obra barata. A questão agora não é mais apenas sobre como manter o controle sobre o mercado de luxo, mas sobre o que esse mercado significa num mundo onde o valor de um produto vai além de seu preço — está vinculado à ética de como é feito e por quem.

Enquanto isso, as consumidoras continuam a navegar entre o desejo de possuir o impossível e o dilema moral que surge ao considerar o verdadeiro preço de suas escolhas. A cada compra, consciente ou não, elas caminham por um território onde luxo e exploração se entrelaçam, onde o brilho de uma bolsa Hermès, Chanel ou Louis Vuitton pode estar manchado pelo suor de trabalhadores esquecidos, relegados ao anonimato. E assim, enquanto o mercado de falsificações prospera, o preço a ser pago — tanto financeiramente quanto eticamente — se torna mais difícil de ignorar.

O debate sobre as falsificações não é apenas sobre as réplicas em si, mas sobre o que estamos dispostos a sacrificar em nome do luxo. Não se trata apenas de quem pode ou não comprar o autêntico, mas de quem somos como consumidores, e de como nossas escolhas ressoam em uma cadeia global de produção onde o verdadeiro custo do desejo muitas vezes permanece invisível.

As bolsas de luxo, com todo o seu brilho e exclusividade, são muito mais do que simples acessórios. Elas carregam o peso simbólico de um mundo que valoriza a imagem sobre a substância, o ter sobre o ser. Cada peça é uma promessa de que se pode adentrar em um círculo restrito, onde o prestígio e o poder parecem estar ao alcance de quem as porta. Porém, seja autêntica ou falsificada, a verdade que essas bolsas revelam é a mesma: elas são objetos que tentam preencher um vazio que vai muito além do material.

Para alguns, possuir uma dessas bolsas é uma forma de validar sua personalidade em um mundo onde o sucesso é medido pelo que se exibe. Para outros, a imitação é a única maneira de participar dessa narrativa, ainda que apenas temporariamente. No entanto, seja no couro genuíno ou na réplica meticulosamente elaborada, a busca pelo pertencimento raramente encontra sua satisfação. A bolsa, por mais rara ou desejada que seja, não tem o poder de transformar quem a carrega. O luxo que ela promete é falacioso, efêmero, e deixa para trás apenas o eco de um desejo que nunca se apaga.

E assim, o ciclo continua. O fascínio pelo luxo persiste, alimentado pela fantasia de que, ao segurá-la, se pode finalmente tocar o inatingível. Mas, no fundo, o que as bolsas de luxo realmente oferecem é a mesma ilusão que o próprio mercado capitalista vende: uma busca interminável por algo que nenhum artefato, por mais exclusivo que seja, será capaz de entregar. Afinal, o verdadeiro valor nunca esteve no objeto, mas no fetiche que a mercadoria representa.

 

por
Victória da Silva
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06/06/2024 - 12h

 

Depois de tantas noites calorosas no mês de maio, o presente momento surpreendentemente registrava 17°C e obrigava as pessoas a tirarem seus casacos dos guarda-roupas. “A gente cuida mais dos outros do que da gente” frase dita por Larissa Helly Pinto Ramalho, que se declara manicure, pedicure, designer de unhas e que naquela noite fria atendia mais uma cliente. A fala emitida ecoou, esbravejou e virou escrita.

Nesses momentos, muitos se preocupam com a composição de looks e a paleta de cores que irão utilizar nessa nova temperatura em São Paulo. A vaidade é acompanhada da inquietação de se sentir bem e bonito, além da extrema valorização atribuída à própria aparência. 

Fator não muito importante para a mulher de 36 anos, que recebendo suas clientes na garagem da casa - naquele espaço construía uma esmalteria - não conseguiu tempo para compor o que iria vestir. Estava com um casaco colorido, chinelos, cabelos em um rabo de cavalo e sorria sem parar. O sorriso nesse momento era o acessório que disfarçava o cansaço do dia corrido.

Barulho de motos na rua, conversas sobre a vida e reclamações do tempo que mudou repentinamente ressoavam no espaço ainda em processo de montagem. A simplicidade e autenticidade da manicure se destaca ao ser apreciada minuciosamente. O seu perfil do Instagram havia sido hackeado alguns dias antes e a história é contada de maneira hilária, já que conseguiu retomar com a ajuda de uma vizinha.

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Foto: Victória da Silva

Presente na rotina de tantos paulistas e paulistanos em seus cortes de cabelo, diferentes maquiagens, cores de roupas e estilos variados, a estética e a beleza são áreas que recebem zelo constante, principalmente das mulheres que correspondem a 65% do número de consumidores desse mercado, de acordo com a revista Exame.

Para isso, existem os salões de beleza como o de Larissa que se tivesse as mesmas oportunidades também cuidaria de si. Nesse ponto, o cuidado consigo é privilégio. Faz somente as unhas de outros, às vezes sobra tempo para “passar um brilhinho” nas dela também, mas não vale a pena, o esmalte sai junto do que é tirado das mãos das clientes.

Tantas mulheres gostariam de um momento de cuidado consigo mesmas, mas não detém desse prazer. Contudo, o contraponto feito nesse cenário é justamente o desequilíbrio da pessoa que sempre embeleza não conseguir se embelezar. A injustiça de fazer tanto pelos outros e não olhar para quem está mais perto, ela mesma. A insatisfação de não ter os recursos e oportunidades que outras mulheres têm.

Apesar desse sentimento, Larissa Helly encontrou na profissão a realização da sua independência. A moça casou-se duas vezes. Na primeira dependia de seu marido para todos os gastos e compras, e não possuía uma renda própria, já na segunda (o atual casamento) decidiu nunca mais precisar do dinheiro do companheiro e esforçou-se em construir sua autonomia.

Sua trajetória foi muito mais dolorida do que os ‘bifes’ que, por vezes, arranca. Os primeiros serviços começaram com faxinas em casas de família, depois em empresas e por último em um hospital, no qual só conseguiu trabalhar durante duas semanas, pois sofre de bronquite asmática.

Almejando em seu coração a vontade de embelezar outras pessoas, Larissa decidiu se dedicar a alguns cursos de manicure e se especializar nessa área. Com dois certificados, trabalhou em shoppings já exercendo o sonhado ofício. Passando alguns anos decidiu empreender e criar o seu próprio estúdio.

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Uma pesquisa do SEBRAE-SP (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) comunica que o mercado de beleza tem sido um dos mais lucrativos e atrativos para as empreendedoras. “Tô indo aos poucos, né? Porque muita coisa precisa de dinheiro… pra ter um ambiente melhor, por exemplo, mas eu ‘tô’ conseguindo”, afirma Larissa, pretendendo decorar o salão com o seu jeitinho.

Suas afilhadas foram suas cobaias no começo da carreira. Quando a designer de unhas se depara com elas, brinca: “agora eu tô ‘craque’ no alongamento em… vem fazer vocês aí”. Interrompida por sua vizinha, aquela que ajudou a recuperar seu perfil no Instagram, Larissa ensina a como efetuar a montagem da unha. Talvez com ajuda, ela tenha a chance de desenvolver um autocuidado.

Larissa empenha-se na função para sustentar sua casa e ajudar nas economias. Trabalha para possibilitar uma vida melhor para sua filha Ana Clara de nove anos e seu filho Rafael de dezenove. Possibilidades. Não gosta de sua aparência. Sente vergonha de tirar fotos. Ainda assim, Larissa tem ou precisa ter o direito de se sentir bem consigo. Sonha como qualquer outra.

Seu desejo é cursar podologia, se graduar nesse curso e cuidar cada vez mais dos pés. Seus pés podem andar por lugares mais altos, podem correr velozmente, mas a vida é dura e incapacita diversas vezes. A desigualdade desgasta. Encravada na alma, somente um milagre pode mudar a realidade. 

“Minha ex-chefe ‘tá’ em Nova York, tenho vontade de conhecer lá” informa Larissa sem muita confiança, mas com a aspiração de realizar esse feito. São muitas as possibilidades e a força de vontade é grande. Em um mundo onde não enxergamos as pessoas, só o serviço delas e atribuímos valores utilitários aos indivíduos, a possibilidade de prosseguir com os sonhos segue nesse vão triste e vazio. 

Se fosse possível nomear um esmalte já não seria “Algodão Doce” , “Renda” ou muito menos “Rubi". Seria chamado “Possibilidades”. A manicure segue pintando as unhas, tirando as cutículas, lixando os pés e a possibilidade de mudança é manchada de uma desigualdade que nem a acetona é capaz de limpar.

Mais do que moda, o movimento gera discussões sobre identidade, apropriação cultural e politica.
por
Beatriz Tiemy
Giulia Aguillera
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19/10/2022 - 12h

Seja em bonés, camisetas de time ou chinelos Havaianas, o verde, amarelo e azul estão presentes nos novos produtos da moda nacional e internacional. Nos últimos meses, a bandeira brasileira se espalhou rapidamente pelas redes sociais de influencers fashionistas do mundo todo, principalmente pelo TikTok e Instagram. Às vésperas das eleições e da Copa do Mundo do Qatar, a popularização do símbolo do Brasil restaura um sentimento de identidade que vai muito além da moda.

Mais que uma tendência, o BrasilCore tem uma importância política no ano de 2022. Desde 2014, a bandeira brasileira e o próprio brasão da Confederação Brasileira de Futebol são associadas à direita política no país. O verde, amarelo e azul estamparam campanhas eleitorais e manifestações a favor desse lado, representado principalmente pelo presidente em exercício, Jair Bolsonaro (PL). Um exemplo expressivo do uso das cores com um cunho partidário foi a onda de atos pedindo pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016.

Esse processo de apropriação do símbolo nacional fez com que o grupo que não se identifica com os ideais da direita deixasse de usar roupas com o tema e, mais do que isso, perdesse o sentimento de nacionalismo. Em contrapartida, a estética BrasilCore surge na direção contrária à apropriação, já que propõe o resgate da bandeira como forma de representação do povo brasileiro. Assim, o movimento une moda, política e, ainda, futebol.

Não é possível falar de estética brasileira sem mencionar o futebol, já que, no país, é o esporte mais popular. Por isso, o lançamento das camisas da seleção da Copa do Mundo de 2022 pela Nike é uma forma de consolidar o BrasilCore como tendência nacional e internacional. Em entrevista para a AGEMT, Julia Andreata (20), Analista Júnior que integra a equipe criativa da empresa, conta que a maior dificuldade no processo de criação do novo uniforme foi manter as cores clássicas da camisa brasileira tendo em vista o longo e complexo processo político pelo qual o país está passando.

A moda sempre foi um instrumento de manifestação e, com a chegada da Copa do Mundo e das eleições, a tendência do verde e amarelo se torna mais presente e comentada do que nunca, o que gera grandes reflexões e embates internos por parte da população. É uma perspectiva que estimula, por um lado, o patriotismo de volta, mas, por outro, o medo e a repulsa de usar a camisa verde e amarela com receio de ser associado a partidos e ideologias políticas. Durante anos, o povo brasileiro assistiu essa atitude, fazendo com que muitos abrissem mão de sua bandeira, de suas camisas, das cores que representam a sua nação.

Na tentativa de desmistificar, a Nike, junto a sua equipe criativa, exploraram maneiras de desvincular a política das blusas da seleção e restaurar aquele sentimento de orgulho ao vestir o verde e amarelo.

O caminho que a Nike escolheu seguir foi exaltar aspectos da cultura brasileira. Para isso, escolheu um visual baseado no uniforme usado pelo time na conquista de seu último título, em 2002. Surge então o slogan “Veste a Garra”, estampado por toda a campanha das novas camisetas da próxima Copa, que sugere ao povo brasileiro agora, mais que nunca, é o momento de vestir a camisa e lutar pelo país, assim como os atletas em campo lutam por uma vitória.

Julia ainda retoma que o objetivo principal dos novos designs foi “trazer orgulho de volta para os brasileiros, e fazer eles vestirem a camiseta. Tudo foi pensado nisso, envolver a textura de onça pintada nas mangas e a bandeirinha na gola, símbolos brasileiros. Por isso, todo o marketing teve o bordão ‘Veste a Garra’”.

 

As camisetas de time e a periferia

O esporte sempre foi um dos fatores que influenciam a moda. Dos tênis All Star até a camisa Polo, muitas tendências surgiram por conta das práticas esportivas. No entanto, com o futebol no Brasil, alguns fatores fizeram com que essa influência fosse vista como algo negativo. Apesar de eleito o esporte favorito dos brasileiros, a elite enxergava, até pouco tempo atrás, o futebol como pertencente a uma cultura de massa e tinha uma visão negativa sobre ele.

Desde muito antes da repercussão atual do Brazilian aesthetic nas redes, que trouxe consigo uma nova visão das camisetas como itens fashionistas, elas já eram muito antes reverenciadas e reconhecidas como itens essenciais da moda periférica. O “país do futebol”, assim chamado e reconhecido por sua nação, fez com que as camisetas se tornassem um grande símbolo, que teve um imenso consumo e ênfase nas periferias pelo entorno do cotidiano periférico em que o futebol é um elemento muito forte e presente. Como um exemplo disso, a existência dos campos de futebol nas comunidades em que crianças e adultos de todas as idades frequentam e jogam.

Diante dessa situação, pelas roupas da seleção terem como modelos principais os corpos negros e periféricos, esse movimento foi envolto pelo preconceito e o “mal olhado” sendo associado como estilo de “favelado” ou símbolo de algo desleixado. A problemática da tendência surge neste momento em que passa a ser valorizada apenas quando vestida por um grupo específico, branco e elitista no Brasil e "gringos". Algo que muito antes já fazia parte da moda nacional, identidade cultural e realidade de muitos brasileiros, somente a partir do momento que foi usada por pessoas de outros países e grandes figuras brancas e influentes passa a ser visto como um elemento grandioso de moda.

Com a replicação das tendências do exterior observadas no Brasil e a questão da desvalorização de moda nacional e periférica, Laura Ferrazza, historiadora da moda, diz: “As referências da moda estão globalizadas, porém, é um erro pensar que o Brasil não crie suas próprias tendências internas e mesmo seja capaz de exportar tendências”.

“Acho que a identidade de um povo, como uma nação jovem como a brasileira, está sempre em construção. O brasileiro sempre coloca sua marca, seu jeito próprio ao usar algo externo e é muito criativo e inovador”, completa Laura.

Sobre a repercussão da tendência BrazilCore, diz:  “A moda é um catalisador do espírito do tempo, um espaço para expressar gostos e opiniões.” “Certamente as preferências eleitorais e esportivas acabam aparecendo como tendência em momentos importantes como uma eleição presidencial e uma Copa do Mundo”, diz Laura Ferrazza.


 

Esmaltes, looks e acessórios são elementos visuais que revelam as tendências de consumo da sociedade
por
Ricardo Dias de Oliveira Filho
Beatriz Tiemy Nichioka
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18/10/2022 - 12h

Em 1950, a televisão chegou ao Brasil - o primeiro meio de comunicação a introduzir o audiovisual para os lares brasileiros. Uma de suas principais missões é entreter o público e, assim, surgem as telenovelas.

Com cerca de 15 capítulos, a primeira telenovela brasileira foi exibida pela extinta TV Tupi. Intitulada 'Sua Vida Me Pertence', a produção estreou em 21 de dezembro de 1951 e foi exibida até o dia 15 de fevereiro de 1952.

Além do enredo e das personagens, um elemento que se tornou marcante nas telenovelas é o vestuário. A moda continua, até hoje, impactando os costumes e estilos da sociedade brasileira. Apelidados de closet, perfis nas redes sociais publicam os looks usados pelos artistas - incluindo o valor e o site onde pode ser encontrado para compra. Isso evidencia como a televisão tem reflexo no consumo dos telespectadores.

“A moda está inteiramente ligada a arte e cultura e, o que acontece muito atualmente, é que marcas conceituadas convidam atores que estão atuando em novelas para abrir seus desfiles, gerando uma ligação ainda maior entre a moda e novelas”, contou a modelo brasileira Thais Romão. “Desfilei com vários atores globais, que estavam em alta, e foram convidados a abrir os desfiles da Semana de Moda de São Paulo - inclusive, foram muito aclamados pelo público”, complementou.

Juliana Paes como Maria da Paz em 'A Dona do Pedaço' — Foto: Artur Meninea/Gshow
Juliana Paes como Maria da Paz em 'A Dona do Pedaço' — Foto: Artur Meninea/Gshow

O alcance das telenovelas é exemplificado pela audiência e, principalmente, pelas vitrines dos polos de moda do Brasil. “Um exemplo é a personagem Maria da Paz, da novela ‘A Dona do Pedaço’, exibida em 2019, que vestia peças de roupa da marca Teodoro Salazar. Quando a personagem apareceu vestida com estampas de corrente dourada foi uma explosão. Várias marcas começaram a fazer esse tipo de estampa e o público aderiu a essa moda. Na verdade, se você andar pelo Bom Retiro, que é um dos maiores mercados da moda de São Paulo, verá estampas de corrente dourada espalhadas pelas vitrines até hoje”, disse Valéria Dutra, designer de moda e colorista têxtil.

Mesmo com a ascensão dos serviços de streaming, as telenovelas se consolidaram como plataformas de comunicação cultural. A publicitária e especialista em mercado de moda e consumo, Yasmin Carolino, conta sobre as formas de influência das produções.

“É gerado no telespectador um sentimento que leva à uma busca por pertencimento. Muitas vezes uma personalidade fictícia pode ser o ponto de partida para uma influência de estilo. Aquele que assiste e se identifica, passa, portanto, a querer parecer como tal personagem e isso se reflete, desde o jeito como se veste até ao estilo de vida dessas pessoas. O povo brasileiro é muito rico em diversificação e isso é algo relevante quando questionamos o pertencimento e o papel das influências de mídia sobre esse sentimento, tendo em vista que vivemos em uma sociedade tão desigual”, disse a profissional.

Apesar das mudanças enfrentadas com o surgimento da internet, as novelas são queridas pelo povo brasileiro, haja visto que muitos espectadores ainda ligam a TV para acompanhar as tramas de seus personagens favoritos. “A dona de casa, a mulher que chega do trabalho tarde da noite, estudantes, mães, avós, tias, todas elas assistem novela e se veem em, pelo menos, 1% de alguma personagem da novela. Elas são influenciadas na forma de se vestir, de se maquiar, a forma que arrumam o cabelo, as gírias, as músicas que a personagem gosta, entre outras características”, disse Valéria Dutra.

Essa familiaridade com as produções, além de gerar identificação, faz com que o público enxergue a ficção como uma referência. O telespectador cultiva o desejo de viver como as personagens da história - muitas delas são vistas como símbolo de sucesso e autoconfiança, inclusive pelo figurino -, o que desperta ainda mais a vontade de se assemelhar a elas. "Muitas vezes, uma personalidade fictícia pode ser o ponto de partida para uma influência de estilo. Aquele que assiste e se identifica, passa, portanto, a querer parecer como tal personagem e isso se reflete desde o jeito como se veste indo de encontro ao estilo de vida dessas pessoas", comentou Yasmin.

Um debate recorrente é o fato de que, mesmo com a inovação dos meios de comunicação, modernização do audiovisual e a predominância na utilização dos streamings, as novelas ainda são pioneiras no impacto e influência na moda brasileira.

"Atualmente, uma novela que se passa em horário nobre conta com a atuação de influencers digitais de grande porte. A publicidade entra por esse meio, unindo dois veículos potentes de influência e consumo. E a moda brasileira é impactada diretamente em cima disso. Em um movimento de tendências trickle down, o que surge nas passarelas atinge as ruas. A lógica é a mesma quando substituímos os desfiles pelas novelas. O visual de uma personagem-chave é adotado pelos designers desde as enormes lojas de departamento às marcas de bairro independentes. Todos passam, portanto, a ter acesso ao que ''está na moda'' naquele momento”, ressaltou Yasmin.

Giovanna Antonelli como delegada Helô em 'Travessia' - Foto: Reproducao/ Instagram
Giovanna Antonelli como delegada Helô em 'Travessia' - Foto: Reprodução/Instagram

Um símbolo importante nas tendências criadas nas telas é a atriz Giovanna Antonelli, que interpretou diversos papéis de sucesso e, junto aos seus personagens, ditou diversas tendências usadas ao redor do Brasil. A personagem delegada Helô, da novela 'Salve Jorge', da Rede Globo, tinha como itens marcantes a capa de celular de soco inglês e as roupas estampadas - principalmente com estampas de animal print. O sucesso da personagem foi tanto que, na nova novela das nove da Rede Globo - 'Travessia' -, a personagem retornou com o mesmo estilo memorável.

Além da delegada Helô, a atriz transformou diversos outros acessórios, unhas e looks em tendência. Entre eles podemos citar a capa de coelho, da novela 'Aquele Beijo', o esmalte azul, da novela 'Em Família', as pulseiras de mão, de 'O Clone', etc.

FIGURINOS SÃO MAIS DO QUE APENAS ESTILO

A figurinista da Rede Globo, Gogoia Sampaio, apontou que os figurinos são produzidos com base em estudos aprofundados, no ambiente social e cenográfico. “O figurino é sempre desenvolvido com base em uma sinopse e no perfil dos personagens - o diretor é quem nos dá o direcionamento. A gente localiza onde essa história vai se passar, em que tempo ela vai se passar e qual é o público alvo.

Apesar de ser um elemento visual que provoque a sede de consumo, o figurino é construído com a participação dos atores e atrizes envolvidos, a caracterização, o diretor, o cenário e a iluminação, ou seja, é um elemento narrativo.

“Alguns personagens já têm encomenda. Por exemplo, quando eu fiz a Melina, de ‘Passione’, o autor já escreveu que ela teria essa 'pegada' mais fashion. Nessa mesma novela, a gente tinha a Irene Ravache (Clô Souza e Silva), que era aquela mulher "Rainha do Lixo", e que, inclusive, tinha um apelo popular gigante”, explica a profissional.

 Até o ano de 2020, a Rede Globo tinha uma Central de Atendimento ao Telespectador, apelidada de CAT. Por meio de e-mails e telefone, o público podia tirar dúvidas sobre os produtos usados pelos atores, atrizes, apresentadores e jornalistas da emissora. Com o avanço da tecnologia, a emissora decidiu experimentar novos canais, principalmente, as redes sociais.

“No CAT, muitas vezes, as roupas da Clô eram mais pedidas do que a da Melina e, por isso, eu falo que a personagem faz toda a diferença. As pessoas se identificaram com ela. Depois disso vieram os influencers digitais, que são pessoas com quem você se identifica e compra uma roupa igual a deles pelo fato de se identificar com as suas histórias. Acho que os personagens eram os influencers”, comentou Gogoia Sampaio.

“Quando fiz 'Belíssima', por exemplo, o mínimo do Ibope era próximo aos 50/55 pontos. A internet não tinha toda essa força que tem agora. A visibilidade é diferente, mas eu acredito que elas, ainda assim, tenham grande valor por retratar a vida brasileira, as histórias brasileiras.”
 

Doenças mentais são a principal causa de suícidio: entenda como identificar sinais de quem precisa de ajuda
por
Sônia Xavier
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10/09/2022 - 12h

 

O mês de setembro é marcado pelas campanhas em prevenção ao suicído que, embora aconteçam durante todo ano, se intensificam neste mês em tributo ao dia 10, Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. 

As campanhas tiveram início nos Estados Unidos quando Mike Emme,17, cometeu suicídio em 1944. Mike sofria de sérios problemas psicológicos, mas seus familiares e amigos não perceberam a tempo. 

No dia do velório foi feita uma cesta com muitos cartões decorados com fitas amarelas e dentro deles havia a mensagem “se você precisar, peça ajuda”. Os cartões chegaram realmente nas mãos de pessoas que precisavam de apoio e a partir desta  iniciativa foi dado início a um movimento importante em prevenção ao suicídio. O laço amarelo é usado até hoje como símbolo da campanha. 

 

O laço amarelo é símbolo da campanha contra o suicídio
A cor amarela é usada como símbolo em todas as iniciativas da campanha. Foto: Reprodução/UOL

 

No Brasil a campanha acontece desde 2014, por uma iniciativa da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), em parceria com o Conselho Federal de Medicina (CFM), com o objetivo de prevenir e reduzir os números de suicídio no país. Em 2022 a campanha chega em seu oitavo ano trazendo um novo tema : "A vida é a melhor escolha".

"Precisamos orientar para conscientizar, prevenir e no mês de setembro concentramos os nossos esforços e vamos para a prevenção efetiva do suicídio. A morte por suicídio é uma emergência médica e pode ser evitada através do tratamento adequado do transtorno mental de base", afirma o presidente da ABP, Dr. Antônio Geraldo da Silva. 

Os registros de suicídios no país se aproximam de 14 mil por ano, ou  seja, uma média de 38 pessoas por dia tiram sua própria vida e a maior parte deles está  ligado a transtornos mentais que não foram diagnosticados a tempo ou que são tratados de maneira ineficiente.

Hellen Diana, 20, quase entrou para essa estatística diversas vezes. A primeira delas quando tinha 11 anos de idade e já sofria de depressão. Diana só não virou um número porque em todas as vezes que tentou, foi impedida por alguém, no caso da primeira, pelo seu irmão que na época tinha apenas 10 anos. 

O suicídio é um importante problema de saúde pública, mas, infelizmente, ainda é considerado tabu. O psicoterapeuta Árlon Miqueias aponta alguns sinais em que devemos ficar atentos para, possivelmente, impedir alguém que esteja com pensamentos suicidas "isolamento social, utilização de medicamentos ou drogas, mudança de comportamento, porque ninguém consegue esconder por muito tempo".

Miquéias também salienta a importância de ouvir as pessoas e estar vigilante a potenciais crises “a primeira coisa {a fazer} é ter sentimento de empatia e saber que falta de saúde mental é algo sério. Os próximos passos são não deixar a pessoa só e incentivá-la a buscar ajuda profissional”.

 

Hellen já tentou suicídio diversas vezes
Hellen conta sobre a importância da família no seu tratamento. Foto: Reprodução/ Instagram 

Hoje, a rede de apoio de Hellen conta com, além dos familiares, psicólogo e psiquiatra “Se eu não tivesse minha rede de apoio eu não estaria viva no dia de hoje”, acrescenta. 

Diana conta que a família exerce um papel central no seu tratamento, a preocupação vai além da alimentação, incentivo a práticas de atividades físicas ou com a medicação “ eles se preocupam em relação a tudo, querem me ver sempre bem”. 

Um pouco da história do skate no Brasil e como ele foi arma de resistência no país
por
Gustavo Oliveira de Souza
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28/06/2022 - 12h

O skateboard, uma das modalidades olímpicas e esportes mais praticados no mundo, surgiu nos Estados Unidos por volta dos anos 50 e desde então evolui sua forma de prática até chegar ao Brasil nos anos 70 e se tornar uma das modalidades mais queridas pelos brasileiros. Ele foi inventado como um derivado dos patins e do surfe, já que os primeiros modelos eram de rodas de patins montadas em pranchas de madeiras com os praticantes tentando reproduzir os movimentos do esporte aquático, já que não haviam mais ondas nas praias da Califórnia, local em que o skate apareceu. O esporte começou a ser desassociado do surfe após os jovens descobrirem que era possível praticá-lo em locais de transição como as piscinas, que na época foram esvaziadas devido à grande seca que atingiu todo o estado da Califórnia, e dessa forma surgiu o skate vertical. Ele se tornou uma grande febre pela cultura do “do it yourself” (faça você mesmo), onde se tornou possível construir rampas de madeira em ruas, praças e nos quintais das casas.

 Foto de Bill Eppridge - Life Magazine

Não demorou muito para o Skateboard chegar ao Brasil. No início dos anos 70 ele chegou ao Rio de Janeiro possivelmente trazido por filhos de norte americanos que visitavam o país ou por alguns raros brasileiros que viajavam aos Estados Unidos para surfar, e ele inicia sua trajetória sendo chamado de Surfinho, sendo construído de eixos de patins com rodas de borracha ou ferro pregadas em madeira. Ele se popularizou de maneira rápida no país, com a divulgação sendo feita numa revista voltada para o público jovem que começou em 1972, e em 1976 a primeira pista da América Latina foi inaugurada em Nova Iguaçu no Rio de Janeiro, mas no final da década o skate começou a decair, já que as fabricantes de peças não comercializavam produtos próprios para a modalidade, e os investimentos feitos nos atletas e campeonatos se encerrou, mas os que ainda praticavam o esporte construíam rampas particulares, e dessa forma o cenário continuava vivo, mesmo correndo o risco de desaparecer.

Primeira pista de skate do Brasil: Nova Iguaçu (RJ). Foto: Reprodução/Guia do Estudante

No ano de 1984 a modalidade ressurgiu por iniciativa dos próprios skatistas e a vinda de alguns ídolos internacionais do esporte ajudou ainda mais o trabalho que era feito pelos amantes do esporte, e em 1986 a Associação Brasileira de Skate foi fundada, mas durou apenas dois anos, dando lugar à União Brasileira de Skate, que durou até 2000, e o skate sofre dois duros golpes: O primeiro , com a proibição da prática da modalidade pelo então prefeito da cidade de São Paulo, Jânio Quadros, que inicialmente proibiu que se andasse de skate no Parque do Ibirapuera, mas após uma passeata dos praticantes, ele proíbe o esporte em toda a cidade de São Paulo. O outro revés foi em 1990 com o presidente do Brasil, Fernando Collor, que devido ao chamado “Plano Collor” freou todo o desenvolvimento do skate no Brasil, e diversas empresas relacionadas ao Skateboard faliram da noite para o dia, mas mesmo assim, os skaters não interromperam suas atividades e trabalharam para a consolidação e profissionalização do esporte no Brasil.

Esse período foi sombrio e gerou muitas dúvidas nos praticantes. Por ser um movimento que lutou contra o sistema, o skate foi marginalizado e foi até chamado de “esporte assassino” numa manchete do Jornal Estado de São Paulo, numa clara tentativa de chamar os skatistas de bandidos, mas alguns representantes do Skateboard continuaram com a luta pelo simples direito de se divertir com o esporte. Um dos que participou dos movimentos naquela época, o skatista Marcos Santos, diz que a repressão foi muito grande: “A Guarda Municipal confiscou as rampas e os skates de todo mundo que andava no Ibirapuera. Um dos nossos amigos, o Álvaro, se revoltou e retornou ao local para buscar tudo que havia sido preso, e o prefeito decidiu tornar a proibição uma lei”. Ele conta como foi o dia da marcha organizada contra a proibição: “Tinham umas 200 pessoas. Muitos levaram faixas e megafone para protestar, e a marcha partiu do metrô Paraíso até chegar no Parque Ibirapuera. Eu não estava lá, mas conheço vários que participaram do protesto. O intuito era entregar uma carta pro prefeito com diversas assinaturas, que pediam a revogação da proibição apenas, mas todo mundo foi barrado, por que o parque estava fechado, e isso gerou uma grande revolta”. Marcos está no movimento desde os anos 1980 e vê uma grande evolução: “Hoje está tudo mais fácil para quem quiser andar”. “Tem várias pistas por aí e hoje a gente é bem aceito pela sociedade, mas o trabalho ainda é duro, já que as marcas nacionais ainda não investem tanto nos atletas, por falta de estrutura mesmo.” “O cara que quiser ser profissional tem que ir para os Estados Unidos, por que o mundo todo do skate está reunido lá”.

Protesto dos skatistas em São Paulo, 1988. Foto: Alexandre Tokitaka

O skate brasileiro realmente ainda tem muito a evoluir, mas caminha bem. Alguns dos principais skatistas do ranking da Street League (principal campeonato de skate do mundo, que terá a sua última etapa realizada no Brasil nesse ano) são brasileiros, e o Brasil possui cinco títulos.

“A Justiça é uma noção construída e não colocada de fora para dentro”, aponta mediadora e advogada Carla Zamith ao falar sobre as formas possíveis de fazer justiça.
por
Malu Araújo
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07/06/2022 - 12h

Provavelmente, você já deve ter escutado o bordão “O Brasil prende muito e prende mal” e embora existam hoje mais de 900 mil pessoas encarceradas, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ),  um dos principais ecos da sociedade é a impunidade vivida. Com efeito dessa contradição, surgem as questões: em qual parte então a justiça criminal brasileira está falhando? Será que prender e punir é a única forma de se fazer justiça?

A princípio, o cenário que se evidencia no sistema criminal é de ineficiência e precariedade. De acordo com o conselheiro do CNJ, Mauro Martins, cerca de 45% dos presos estão sem uma condenação definitiva e por isso, cumprem maior tempo de pena necessária, sendo 67% dessa população formada por pessoas negras. Ademais, segundo o Departamento Penitenciário Nacional, das 1.381 unidades prisionais, 997 têm mais de 100% da capacidade ocupada e outras 276 estão com ocupação superior a 200%, ou seja, também existe a superlotação dos presídios. Soma-se a isso a ausência de práticas que busquem estimular o infrator ao desvencilhamento da vida do crime e a sua inserção como cidadão no convívio social. Sob essa perspectiva, percebe-se que o sistema penitenciário atual está mais para um mecanismo de atraso e perpetuação de ciclos na criminalidade, uma vez que punir se torna diferente de responsabilizar e conscientizar o ofensor do crime cometido.  Mas será que existe uma outra forma de se lidar com os conflitos, trazendo reparação para a vítima e diminuição dos apenados em uma lógica cada vez menos coerente?

Uma alternativa em construção

A Justiça Restaurativa surgiu na Nova Zelândia em 1970, tendo como inspiração a forma como os aborígenes Maoris, povos nativos do país, solucionam seus conflitos de litígio. A prática chega ao Brasil na década de noventa e é oficialmente iniciada em 2005, com o projeto "Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro”.  Em entrevista à Agência Maurício Tragtenberg, a cientista social e mestre criminal Raffaela Palloma, formada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, explica que a Justiça Restaurativa não é um conceito fechado, uma vez que é formada por um conjunto de práticas, valores e princípios. “Alguns vão dizer que é um modelo de Justiça, uma forma de responder aos conflitos [...] (sendo) atrelada a possibilidade da gente responsabilizar a pessoa que praticou a conduta criminosa de outra forma, não dando uma resposta punitiva, mas dando uma resposta, digamos, mais positiva”, completa Palloma.

No Brasil a Justiça Restaurativa segue a metodologia do Ciclos Restaurativos, que seria um roda de diálogo com as pessoas envolvidas no conflito, tanto o ofensor, quanto a vítima devem estar ali de forma voluntária. A  partir dessas conversas são feitos pequenos acordos, que buscam reparar os danos causados a vítima. Por consequência, a prática encontra um meio para responsabilizar o infrator, criando um ambiente em que ele encare as consequências do seu crime e perceba sua nocividade.

Processo da metodologia seguida pelos ciclos restaurativos.
        Processo da metodologia seguida nos ciclos restaurativos.

 

Em contraste, a prática dentro do país ganhou tons próprios, a advogada nos conta que no Brasil há uma tendência dos processos de justiça restaurativa serem mais voltados aos ofensores, esse fato decorre também por parte das vítimas possuírem desconhecimento e receio sobre o que é a prática.  Outro ponto observado, é a centralidade do judiciário na condução dos processos, visto que as primeiras experiências surgem em projetos pilotos implementados pelo sistema. Diferentemente, em outros países são organizações não governamentais que cuidam dos casos, recorrendo apenas ao poder judiciário se necessário. Um dos possíveis riscos para Justiça Restaurativa, em decorrência dessa centralidade, é de que seu diferencial seja apagado, podendo ser cooptado e contaminado pela lógica do sistema tradicional. 

A forma de reparação pode ser diferente para cada vítima

  Em relato, a cientista Palloma nos conta sobre uma história muito marcante, em que um adolescente havia matado intencionalmente seu amigo. A família da vítima resolveu tratar o caso pela Justiça Restaurativa, dentro do processo a mãe sempre dizia que sentia muita falta do seu filho. Conforme os ciclos foram feitos, um dos acordos era que o adolescente, amigo do filho dela, iria almoçar com ela todos os sábados, uma vez que ela queria companhia e queria que isso acontecesse.  O desfecho desse caso, assim como outros, podem espantar as pessoas dentro daquilo que se espera acontecer, mas para essa mãe esse acordo trazia em alguma medida reparação a morte do seu filho. "São coisas que a gente não explica, mas que foi importante para ela" afirma Palloma.

Dessa forma, é importante pensar que o conflito muitas vezes não possui uma natureza única, por isso, não respondem a uma mesma resposta. Em entrevista, a mediadora e advogada Carla Maria Zamith, doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, explicou que “a noção de que conflito não é um pensamento linear de causa e efeito", uma vez que não decorre de um único motivo. Quando, por exemplo, há uma “situação de conflito que acontece numa escola, este conflito não está descolado da estrutura da escola e das pessoas que chegam ali [...] o que a prática olha não é qual lei foi infringida, qual a regra que foi infligida, mas qual a necessidade que não está e não foi atendida que deu causa para o surgimento daquela situação” elucida a mediadora. 

Estudantes universitários da UniSecal realizam projeto de extensão da Justiça Restaurativa.
               Estudantes universitários da UniSecal realizam projeto de extensão da Justiça Restaurativa.

A doutora também faz a diferenciação entre mediação e justiça restaurativa, embora ambas possuam o mesmo “princípio do não saber”, a Justiça Restaurativa conta com uma rede de apoio e sustentação de grande porte, enquanto a mediação não demanda desse fator, necessariamente. Uma das experiências trazidas pela mediadora Carla era de uma casal que estava se separando e “estava em um grau de desrespeito e discussões que não conseguiam se falar, tornando a convivência em casa impossível”. A partir disso, foram sendo feitos pequenos acordos entre os dois no processo de mediação, com esse exercício de comunicação, foi possível se transformar esse momento, ao ponto deles conseguirem se escutar novamente.

Em síntese, a Justiça Restaurativa não propõe uma solução única para os problemas da justiça criminal e muito menos diz que ambas não podem caminhar juntas, mas tenta construir a ideia de que o conflito está dentro de um todo e isso não deve ser ignorado. E a partir desse entendimento, traz a reflexão de que o diálogo e a escuta podem ser mais eficientes no processo de responsabilização do infrator e na não perpetuação de novos crimes.