A individualização política das mulheres e a realidade feminina no Brasil
por
Leticia Falaschi
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14/04/2025 - 12h

Ainda nos últimos meses de 2024, uma trend tomou conta das redes sociais como o TikTok e o Instagram. As tradwifes (abreviação que vem do termo em inglês Traditional Wifes, ou esposas tradicionais, no português) ganhou espaço entre as recomendações de algoritmos ressaltando o estilo de vida conservador exibido por essas influenciadoras. Até hoje hashtags e vídeos têm milhares de curtidas: suas rotinas romantizadas preparando a comida e cuidando dos filhos, claro, que com as roupas e maquiagem sempre intactas geram numerosos comentários de mulheres desabafando como essa seria a vida dos sonhos. O que vem preocupando estudiosos da sociedade é a permanência insistente desse movimento como objeto de desejo e a relação que ele estabelece o como momento político vivido. O que significa tantas mulheres querendo abdicar de suas vidas profissionais e externas ao lar?

Primeiramente, é necessário entender que o papel da mulher e as relações de gênero sempre foram uma questão para todas as sociedades. Durante a história, principalmente ocidental e em países colonizados, as mulheres se viram na posição de adaptar-se e lutar por espaços, mas os processos históricos não são lineares, e não esbanjam progresso durante o percurso. Em entrevista à AGEMT, Maria Eduarda Araújo Guimarães, doutora em Ciências Sociais pela UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), conta sobre os passos analisados na percepção social do feminino.

"Essa argumentação da naturalização do papel de gênero é muito fortalecida. Essa ideia de que o papel da mulher é estar ao lado do homem contribuindo, mesmo que não seja por vias econômicas e políticas, sempre esteve presente na luta das mulheres, nunca foram superadas”, afirma Maria Eduarda. 

Ilustração mulher "tradwife"
 foto divulgação: flickr/SportSuburban

Muitas das mulheres que desejam esse estilo de vida carregam um cansaço, mesmo que inconsciente. Ainda hoje, a maioria das figuras femininas ainda estão responsabilizadas pela dupla jornada: o trabalho externo, que requer o deslocamento, e os trabalhos domésticos. São muitas horas e preocupações a mais do que boa parte dos homens. Maria Eduarda comenta sobre essa relação: “Você pode até ter uma relação equalitária entre um homem e uma mulher, os dois chegam do trabalho e nenhum vai lavar a louça, mas a mulher vai ficar com peso na consciência... no fundinho de seu ser vai ter um fundo de culpa”.

A entrevistada aponta, especialmente para o cenário brasileiro, o fator do desprezo do trabalho manual, devido as raízes coloniais: “o fato de que nós fomos o país que mais teve escravizados e que mais demorou para libertá-los, traz uma visão muito negativa para o trabalho doméstico. O Brasil não se fundou numa ética do trabalho. A gente desvaloriza o trabalho manual, a pessoa que o faz é desqualificada, mesmo que seja para nós”, ressalta.

Da inferiorização, involuntária e imperceptível, nasce essa angústia, esse fardo. E então, uma boia furada no meio do oceano parece ser uma solução. É necessário compreender que, quando falamos de configurações tradicionais de família, há uma hierarquia que não envolve somente as pessoas que a compõem. Boa parte das influenciadoras que postam esse tipo de conteúdo ficam apenas com o papel de supervisora: ela cuidará dos filhos enquanto uma outra mulher (paga pelo homem provedor financeiro) que fará o trabalho pesado. Em solo brasileiro, questão fica ainda mais profunda: a quantidade de homens que ganhem o suficiente para prover uma família nesses parâmetros é ainda mais difícil. "É um fenômeno branco, pelo menos no Brasil”, diz a entrevistada.

É quase inevitável não relacionar a “volta” triunfal dos moldes tradicionais de família com as ondas conservadoras e de extrema direita que vemos acompanhando. Apesar dos progressos coletados desde as revoluções culturais dos anos 1960 não foram absolutas. Uma possível atribuição para o sucesso das tradwifes é a necessidade de encaixar-se num nicho, num estilo de vida, demanda gerada pela sociedade extremamente on-line. Num mundo onde se pode ser tantas coisas, surge a insegurança na autonomia, muitas vezes calcada nas realidades femininas no mercado de trabalho: “Toda essa dificuldade que as mulheres enfrentam, fazer uma faculdade, mestrado, doutorado e mesmo assim isso não vai significar uma autonomia financeira. É um caminho mais fácil, ilusório, de as mulheres se sentirem protegidas, amparadas... essa ilusão, ao olhar para os EUA, programas de televisão, acabam gerando uma tentativa de mimetização sem levar em conta as com as diferenças das matrizes culturais”, analisa Maria Eduarda.

É curioso analisar como as ondas conservadoras se apropriam das redes sociais com tanta eficácia. Uma onda de mulheres votadas a abdicar de suas vidas profissionais e políticas é minimamente vantajoso aos que vem pregando esse movimento, há muito tempo, antes do TikTok. “sempre vai existir esse jogo de questionar o papel da mulher na sociedade... o que muda é a nomenclatura, é uma repaginação das redes sociais... O que elas trazem nesse discurso de diferente é que elas não estão ali por falta de escolha... e aí a questão de submissão é parcialmente maquiada”, explica Maria Eduarda. “Isso é um discurso para as redes sociais, nenhuma dessas mulheres vai mostrar que apanhou do marido porque ela não fez o que era esperado dela, ela vai expor o que é positivo dessa questão”.

É a figura do homem que está no controle da vida de todos, a mulher somente terá essa vida provida enquanto ele permitir. É ele quem terá maior poder para violentá-la psicologicamente, fisicamente e patrimonialmente. “Quem tem o poder econômico sempre tem o poder... é muito interessante essa volta conservadora, essa ideia de que a mulher é inimiga: nunca criticando a abolição do divórcio, que é criticada na bíblia, e a volta do adultério com crime... é questionável o ‘cara’ conservador que anda com a bíblia debaixo do braço, mas já está na quarta esposa”.

Documentário I’m Not a Robot instiga o telespectador a refletir sobre a evolução das máquinas
por
Vítor Nhoatto
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08/04/2025 - 12h

Não sou um robô, uma etapa de checagem comum ao navegar na internet e uma sentença obviamente verdadeira, ou talvez não. O curta-metragem de co-produção holandesa e belga de mesmo nome, problematiza o chamado teste Captcha, quando a protagonista Lara (Ellen Parren, produtora musical, entra em uma crise existencial ao não conseguir provar sua humanidade.

Logo de cara o enredo de Victoria Warmerdam, também diretora da obra,  pode parecer apenas cômico, e a interpretação de Parren colabora para essa atmosfera. Os diálogos curtos e a indignação diante de uma suposta certeza de Lara prendem a atenção do telespectador ao fazer com que haja identificação com a situação. Provavelmente todos nós já erramos um destes testes simples em algum momento.

A história com pouco mais de 20 minutos continua com a indicação que a personagem tem a chance de ser 87% um robô, segundo um quiz online, e a essência incômoda da ficção científica começa a reluzir. Conversas entre humano e máquina existem há cerca de 60 anos, com a criação do chatbot Eliza, e com o avançar dos anos é cada vez mais comum, de fato.

Seja aquele número para marcar consultas ou o serviço de atendimento ao cliente das operadoras, a Inteligência Artificial rodeia as esferas da vida cotidiana e vem evoluindo rapidamente. Tome como exemplo o robô humanoide que já foi capa de revista e é considerada cidadã saudita, Sophia, da Hanson Robotics desenvolvido em 2015. Ou ainda os influencers virtuais com milhões de seguidores do Instagram hoje como a carismática Lu da empresa de varejo brasileira, Magazine Luiza.

Robô Sophia
Sophia foi inclusive ao Talk Show do apresentador norte-americano Jimmy Fallon - Foto: Hanson Robotics / Divulgação

Parece que a barreira entre o físico e digital, natural e artificial vem sendo quebrada, como aborda a obra de Margareth Boarini, “Dos humanos aos humanos digitais e os não humanos”, lançada em julho do ano passado pela editora Estação das Letras e Cores. O primeiro livro da doutora em tecnologias da inteligência e mestre em comunicação se aprofunda nesses casos de coexistência entre robôs e pessoas, porém, até onde se sabe as diferenças entre máquinas e humanos são perceptíveis, ainda. 

Mas como uma boa teoria de ficção científica, o documentário explora justamente um possível futuro da humanidade, em que máquinas e humanos serão indistinguíveis, A saga de Lara por respostas acaba com a revelação de que Daniël (Henry van Loon), marido da personagem, a encomendou sob medida há alguns anos, como se faz com uma roupa hoje.

Suas memórias, sentimentos e até mesmo relações com outras pessoas, ou robôs, são todas fabricadas, como uma versão muito mais avançada do robô Sophia. A comédia permeia a narrativa um tanto quanto impensável aos olhos de hoje, mas curiosa. A seriedade da executiva da empresa que fabricou Lara, Pam (Thekla Reuten) cria uma atmosfera cômica ao assunto, completada pela tranquilidade que Daniël fala sobre sua “aquisição”.

Parren entrega uma atuação que transborda indignação, e o trabalho cinematográfico é inteligente, com cortes que acompanham a visão de Lara. Sobre o ambiente que o filme se passa, todas as gravações foram no CBR Building em Bruxelas, e a ambientação feita com cores vibrantes e apenas carros de época no estacionamento propõe um contraste entre antigo e moderno, frio e robótico, quente e humano. 

O desfecho se dá com o desejo da protagonista de ser dona do próprio destino, relegando o fato de não poder morrer antes de seu “dono”. Isso pode ser visto talvez como uma negação em aceitar a única coisa que a diferencia de um humano, ou como uma mensagem da autora da obra sobre uma rebelião das máquinas.

Fato é que Lara se joga do topo do prédio, em um take muito inteligente por parte da direção ao filmar de cima, e que apesar de pesado e grotesco consegue ser engraçado e não desagradável aos olhos. Tal qual uma morte comum, há muito sangue saindo do corpo, as necessidades fisiológicas também são como de humanos, mas após alguns instantes a robô volta à vida.

Lara e Daniel em um Volkswagen Fusca azul
Com cinematografia cativante e enredo inesperado, é um Sci-Fi cômico e dramático - Foto: Indie Shorts Mag / Reprodução

Incômodo e perspicaz são boas palavras para definir a quinta produção de Warmerdam, que a fez faturar uma série de prêmios internacionais incluindo o Oscar de Melhor Curta-metragem deste ano. Sua produção também se destaca por ser carbono neutro, com o plantio de uma agrofloresta na Holanda para compensar as emissões de gás carbônico (CO2) da obra.

I’m Not a Robot está disponível de forma gratuita no YouTube desde o dia 15 de novembro de 2025 no canal The New Yorker, com legendas apenas em inglês ou holandês. Mesmo com essa barreira linguística, o choque final é inevitável, e a reflexão provavelmente também, se o seu cérebro não estiver se perguntando se você pode ser também um robô.

Como o consumo consciente cresceu e se popularizou na sociedade atual
por
Vítor Nhoatto
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27/03/2025 - 12h

Sejam em grandes franquias ou em uma pequena porta em um bairro residencial, os brechós ganham cada vez mais consumidores. As principais razões para isso, preços baixos, maior variedade de peças e personalidade. Mas o efeito ambiental das roupas de segunda mão também é um diferencial e necessidade em tempos de mudanças climáticas, além do seu impacto social.

Ao contrário do que pode parecer pela ascensão recente da atividade, a venda de roupas e artigos usados remete ao século XIX na Europa, onde as chamadas ‘Second Hand Stores’, produtos em geral, e ‘Vintage Clothes Stores', especializadas em peças de época eram comuns. As roupas novas eram feitas a mão, resultando em preços altos e limitando o consumo recorrente as classes mais altas. Diante disso, uma saída eram as peças usadas, com preços menores mas de alta qualidade.

No Brasil, o primeiro do ramo documentado data do mesmo período no Rio de Janeiro, chamado de Casa de Belchior. A loja do viajante francês vendia uma série de itens usados e deu origem ao termo ‘brechó’ inclusive. A contração das palavras ao longo dos anos para facilitar o entendimento e a popularização do local originou o termo brasileiro. 

Ao decorrer dos anos, a atividade cresceu e passou a abarcar outros grupos sociais também, destacando as histórias e individualidade das roupas de segunda mão. Em entrevista à AGEMT, Camila Guerreiro, dona há três anos do brechó Dona Clô, destaca os principais motivos apontados por seus clientes: “As pessoas buscam peças diferenciadas, de boas marcas e por um preço bom”.  

Foi justamente nos últimos anos que o ramo realmente atingiu destaque no país. Segundo relatório de 2021 do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), entre 2010 e 2015 o número de brechós cresceu 210% no Brasil. Além disso, durante a pandemia de COVID-19, de 2020 para 2021, o crescimento foi de 50%. Hoje, o país conta com aproximadamente 118.778 brechós ativos, ainda de acordo com o Sebrae, e as expectativas são de mais crescimento.

Segundo a empresa britânica de consultoria, Global Data, o ramo irá ultrapassar, em 2029, em valor o fast fashion, a indústria da moda tradicional baseada em coleções e produção em massa. Foi a partir dos anos 1970 que a busca por produzir roupas em grande quantidade por um baixo custo tomou forma nos EUA, e hoje marcas como Shein, ZARA e C&A dominam o setor da moda. 

Apesar da popularização do setor, um cenário de consumismo e poluição ambiental massiva se configurou. O setor têxtil fica atrás apenas da indústria petrolífera no quesito poluição ambiental segundo dados do relatório de 2022 da Global Fashion Agenda, destacando a importância de repensar a forma como se consome roupa. 

“Isso deve motivar as pessoas a procurar um brechó, não só pelo preço e por ser uma peça exclusiva, mas por essa sustentabilidade. Não se deveria pensar primeiro em comprar em uma loja tradicional uma peça que todos terão igual e que em meses você não usará mais", afirma Camila.

O comportamento volátil da ‘moda rápida' resulta em um desperdício cada vez maior de recursos naturais, e a consequente poluição pela produção desenfreada e descarte prematuro das peças. A Ellen MacArthur Foundation, criada em 2010 para acelerar a adoção de uma economia circular, estima que 60% das peças sejam descartadas ainda no primeiro ano de uso, e que 85% delas nem sejam recicladas.

Ivone Aparecida, dona do brechó ‘O Legado da Vó’, especializado em roupas de época há 20 anos, destaca a lógica instaurada pela indústria hoje. “Tecidos que antigamente levavam três ou quatro meses para serem lançados, hoje em poucos dias chegam às lojas, e são quase descartáveis, não são pensados para serem lavados e durar”.

Nesse sentido, os brechós são uma alternativa sustentável, uma vez que peças que seriam descartadas ainda em condições de uso, ganham nova vida, um incentivo para a mudança de pensamento em relação ao vestuário. Esse prolongamento da vida útil das peças resulta na diminuição da degradação ambiental, ocasionando para o armário de um consumidor de brechó uma pegada de carbono mais baixa.

Além disso, um dinheiro que seria gasto com essas grandes multinacionais poluentes passa a circular nos bairros, impulsionando a economia de base. Segundo o Sebrae, 78% dos negócios do ramo são MEI (Microempreendedor Individual), e 21% micro ou pequenas empresas, culminando no impacto econômico da atividade para o comércio local. Há geração de empregos, desenvolvimento econômico das regiões da cidade e diminuição da necessidade de deslocamento da população para áreas centrais.

Toda a sociedade sente o impacto da atividade, que carrega em si a proposta de uma outra relação com as roupas que se usa. “O brechó é moda sustentável, você ressignifica as peças e pode usar até passar de geração para geração, uma roupa que tem história por trás ”, finaliza Ivone.

Brechó O Legado da Vó
Cada vez mais brechós tomam conta das cidades, e praticamente tudo pode ser encontrado - Foto: Vítor Nhoatto

 

O prazer efêmero da compra logo dá lugar a um vazio crescente
por
Giovanna Montanhan
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12/11/2024 - 12h

Por Giovanna Montanhan

 

Abrir o TikTok é como piscar e ver o mundo mudar em uma fração de segundos. Em uma rolagem veloz, surgem truques para uma maquiagem glow, táticas para uma “pele de porcelana”, segredos para esconder as olheiras com batom vermelho e até dicas para um contorno "ideal" feito com utensílios de cozinha. Uma técnica “nunca antes vista” de delineado usando apenas um grampo de cabelo, uma máscara capilar líquida que permanece nos fios por míseros segundos e que “repara até a alma” — tudo parece essencial, urgente. De um lado, surge uma técnica viral que promete lábios mais volumosos usando apenas corretivo e gloss, aplicados estrategicamente para criar a ilusão de lábios carnudos e esculpidos; do outro, alguém massageia o rosto com um Gua Sha, uma técnica tradicional de origem chinesa que utiliza uma pedra para esculpir a face, de quartzo rosa recém-adquirida, prometendo desinchar o rosto em poucos minutos. A tela se enche de novas promessas a cada hora em que o aplicativo é aberto, como o colágeno em pó que, misturado na água, garante uma dose de juventude pelas próximas décadas, ou a aplicação de blush no nariz para dar aquela falsa sensação de que se esteve na praia e se queimado, e até mesmo o sérum coreano feito de mucina de caracol para uma pele supostamente mais firme e hidratada. Cada dica desponta como um raio no feed, iluminando tudo ao seu redor por um instante, apenas para ser engolida pela próxima febre que chega avassaladora, tornando a moda anterior esquecida antes mesmo de ser assimilada.

No território implacável das redes sociais, onde promessas de uma pele impecável e uma beleza reluzente se espalham como um feitiço, mulheres de todas as idades deslizam os dedos na tela em busca de um brilho que pareça emanar de dentro para fora. Cada toque, cada deslizar, aproxima as compradoras de um ideal escorregadio, um reflexo de perfeição, sintetizado na imagem da pele viçosa perfeita — tão brilhante e lisa quanto um donut vitrificado, idealizada pela marca Rhode, da modelo Hailey Bieber.

Mas essa busca pela beleza aparentemente simples não é tão doce como parece. As consumidoras, atraídas pelos vídeos de influenciadoras, são envolvidas por um mercado que promove o “Glazing Milk” e os “Peptides Lip Tints” como a chave para a pele e os lábios dos sonhos. Não se trata apenas de hidratar, de cuidar ou de valorizar o que já existe, mas de transformar, de reconstruir, de alcançar um brilho irreal que reflete expectativas impossíveis. Para muitas, o desejo por essa pele vitrificada é como um chamado, uma chance de fazer parte de um ideal estético que atravessa culturas, idades e contextos, porém inacessível para a maioria.

No Brasil esse sonho assume ares de luxo proibido. Sem distribuição oficial, os produtos da Rhode se transformam em verdadeiros tesouros a serem caçados em mercados paralelos, frequentemente repletos de riscos. Para experimentá-los, os brasileiros precisam superar o desafio da importação, enfrentando preços inflacionados e longas esperas. Quanto mais distante o sonho, mais intensamente ele é desejado. Em um contexto onde a estética perfeita é exaltada acima de tudo, esses itens de design minimalista tornam-se uma espécie de Santo Graal — símbolos de um ideal que poucos conseguem vivenciar diretamente, mas que muitos cobiçam com olhares ávidos.

Não são apenas os hidratantes e lip tints da Rhode que repousam nesse altar de desejo inatingível. O Lip Glow Oil da Dior, envolto em promessas de lábios irresistíveis, reflete um brilho de glamour que atiça os corações, enquanto a Rare Beauty de Selena Gomez, com seus blushes e iluminadores, embriaga o imaginário dos mais jovens. Há algo mágico, quase sedutor, nesses frascos delicados, como se cada camada de produto pudesse transformar a pele em uma tela de sonhos, oferecendo uma beleza que parece brotar sem esforço algum. Cada uma dessas embalagens repousa no nécessaire com uma falsa simplicidade, promovido com tamanha precisão que passa a impressão de que esses pequenos luxos são mais que desejos — são quase como amuletos, indispensáveis no ritual silencioso de buscar, no reflexo, um toque de perfeição que talvez nunca se alcance.

A obsessão pelo "glazed look" transcende o próprio produto. Não se trata de um efeito milagroso na pele ou da suavidade nos lábios; é uma busca por alinhamento com um ideal, uma concepção vendida como pura, mas que, na verdade, carrega o peso do consumo incessante. Influenciadores, com seus vídeos cuidadosamente editados, se tornam os arautos dessa estética quase mítica, revelando apenas fragmentos do que os produtos prometem, sem expor o verdadeiro custo envolvido. Enquanto isso, do outro lado da tela, um exército de seguidores desliza, em busca do próximo vídeo, da nova promessa — na esperança de transformar um sonho distante em uma realidade tangível, ainda que efêmera.

O TikTok, com seu algoritmo hipnotizante, tornou-se uma vitrine onde milhares de consumidoras mergulham em tutoriais e resenhas, investindo tempo e dinheiro na promessa de uma pele reluzente. Entre elas, há quem se pergunte até que ponto esse ritual em frente ao espelho reflete uma busca legítima pela autoestima ou se é apenas mais uma ferramenta do capitalismo que usa o desejo por aceitação e inclusão para alimentar o consumo excessivo.

É como uma trilha de pequenas confissões, uma corrente de desejos transformados em mercadoria. Em cada vídeo, em cada review impulsionado por essas marcas silenciosas, há mulheres que, ao deslizar a tela e ceder ao apelo das tendências, começam a ver suas rotinas, seus sonhos e até seu próprio reflexo se curvarem a um padrão escorregadio e volátil.

Júlia, Helena e Rayssa são alguns exemplos de meninas que compram de acordo com a tendência do momento no TikTok. Cada uma mora em um estado diferente, mas, enquanto falavam, era como se compartilhassem uma mesma inquietação, algo que transcende a distância e parece habitar um espaço comum entre elas. Com apenas 13 anos, Júlia, mais tímida, confessou que, para ela, comprar os produtos da moda trazia uma sensação de pertencimento que era difícil de encontrar em outros lugares. Ao adquirir aquele item desejado, sentia-se mais próxima das meninas que possuíam o mesmo, como se o produto fosse um passaporte invisível para um mundo onde todas compartilham os mesmos desejos e sonhos de consumo. Com um brilho tímido no olhar, contou sobre seu exemplo mais recente: um kit de pinceis da marca Real Techniques — algo que, segundo ela, todas no TikTok pareciam ter e que, de alguma forma, a fazia sentir-se parte de algo maior.

Com 15 anos, Helena, um pouco mais falante, descreveu a experiência de outra forma, embora a sensação de efemeridade fosse a mesma. Para ela, o ato de consumir a aproximava de suas amigas e da comunidade online, mas logo após a compra surgia um vazio incômodo, como se a satisfação fosse rapidamente substituída por uma nova tendência, já à espreita. "É um ciclo sem fim," disse ela, quase resignada, enquanto mencionava sua última aquisição: o pó facial rosa da influenciadora Karen Bachini, um item que ela não parava de ver nos vídeos e que parecia indispensável — até o próximo lançamento roubar a cena.

Com 17 anos, Rayssa, em silêncio até então, finalmente desabafou. Revelou que, todas as vezes que se olhava no espelho, sentia-se como se tentasse capturar o brilho das influenciadoras do TikTok. Mesmo quando conseguia comprar o que tanto desejava, o resultado nunca parecia corresponder ao ideal que via na tela. Em momentos assim, questionava-se se a falha estava nela — como se algo em sua pele, no olhar, ou até em sua própria essência não fosse suficiente para refletir a promessa vendida pelos produtos. Esse sentimento de cobrança, explicou, era quase constante, uma frustração que a fazia sentir-se cada vez mais distante de um ideal inatingível. Sua última compra foi o sérum bronzeador da marca Drunk Elephant, o D-Bronzi Anti-Pollution Sunshine Drops, um item que, como tantos outros, prometia uma transformação que parecia sempre escapar ao seu alcance.

Para elas, o ato de comprar não é apenas um impulso passageiro; traz um alívio momentâneo em uma busca que nunca se completa. Mas logo vem o vazio, uma percepção incômoda de que estão presas a um ritual estranho, onde o consumo é apenas uma dança repetitiva, uma tentativa de tocar algo que escapa. Muitas se encontram no eco numa pergunta inevitável sobre o motivo de não conseguir o mesmo resultado. Como se o erro fosse delas, como se algo na pele, no olhar, ou na própria essência falhasse em alcançar o brilho prometido — um ideal cuidadosamente desenhado para permanecer fora de alcance.

É nesse cenário tentador que se ergue o submundo da Internet, uma espécie de mercado paralelo onde a pressa e o desejo encontram uma nova morada. Para aqueles que não podem ou não querem esperar, marketplaces como a Shopee e a Shein surgem como atalhos — labirintos digitais onde os produtos cobiçados aparecem como ofertas tentadoras, à mercê de vendedores anônimos que se escondem atrás de telas e avatares. Ali, a ansiedade dos consumidores é alimentada com preços reduzidos, porém envoltos em uma névoa de incerteza se o brilho do produto é real, ou apenas uma sombra de autenticidade. Entre o clique e a compra, uma escolha silenciosa é feita — e talvez, para muitos, a necessidade de pertencer ao momento sobrepuje o valor da própria verdade.

Capitalismo

Em uma conversa descontraída o colunista do site Steal the Look, Fábio Monnerat, falou sobre o frenesi que envolve a busca pela beleza idealizada, uma obsessão que, segundo ele, vai além do simples desejo por bons produtos. Ele acha que há uma necessidade de pertencimento, um desejo de aceitação que se esconde por trás de cada nova compra, como se cada aquisição trouxesse consigo um pouco mais de identidade, um passo a mais em direção a um grupo invisível e desejado. Fábio disse enxergar essa ilusão de exclusividade como uma corrente invisível, prendendo o público em um ciclo sem fim, onde o limite entre querer e precisar se desfaz. Nas redes sociais, o ideal de beleza está sempre ali, próximo e sedutor, mas estranhamente fora de alcance, criando um desejo que se mantém sempre vivo. E vai além.

Ele aponta que conter essa maré de consumo desenfreado soa quase como um desafio impossível. A falta de consciência coletiva torna difícil que as pessoas reflitam sobre o impacto de cada compra. Assim, o consumo se transforma em um reflexo do próprio desejo não resolvido, uma repetição constante que nunca traz a satisfação esperada. Para ele, cada nova compra parece inofensiva, mas se transforma em uma onda crescente, que passa despercebida e segue reverberando.

No coração do capitalismo contemporâneo, o TikTok se agiganta, não mais como uma simples distração, mas como um palco onde o desejo se torna espetáculo e o consumo, um ato quase hipnótico. Em cada deslizar de dedo, as consumidoras são lançadas em um torvelinho de tendências, onde as promessas de beleza cintilam como fogos de artifício — intensas, passageiras, inescapáveis. A cada nova febre, o rosto de uma influenciadora parece sussurrar segredos que as espectadoras querem acreditar: uma pele mais luminosa, lábios mais aveludados, o toque de algo quase mágico. Mas é tudo tão fugaz. Produtos que ontem eram o desejo do momento, hoje já perderam o brilho, substituídos por algo "ainda mais revolucionário".

Para essas mulheres, não há descanso. A lógica do hiperconsumo, essa engrenagem que o filósofo Gilles Lipovetsky descreveu, as engole em um ciclo em que o desejo pesa mais que a necessidade, onde o impulso de possuir é atiçado mais pelo medo de perder a novidade do que por uma vontade verdadeira. A cada nova compra, um ritual se repete — uma sensação de satisfação que evapora rápido, cedendo espaço à expectativa do próximo lançamento. E enquanto os frascos se acumulam, um vazio começa a se insinuar, como se, no fundo, soubessem que a próxima tendência também virá, seduzindo-as mais uma vez.

No universo hiperacelerado do TikTok, onde as tendências surgem e desaparecem como reflexos fugidios, as consumidoras são arrastadas para um ciclo quase frenético. Cada novo "must-have" carrega uma data de validade invisível, um convite ao consumo antes que o encanto se esgote. No olho desse furacão está o Carmed, um bálsamo labial produzido pela farmacêutica Cimed, que, embora conhecido por sua hidratação modesta, encanta com suas edições limitadas e colaborações astutas, como a recente parceria com a marca de doces Fini. Versões do bálsamo com sabores de balas de gelatina — banana, dentadura, "Beijos" — evaporaram das prateleiras antes mesmo de alcançarem todas as farmácias, deixando na esteira um rastro de desejo insatisfeito.

Para Helena, que também é uma consumidora voraz de Carmed, a eficácia do produto é apenas um detalhe insignificante. O que realmente importa para Júlia e para quem o consome, é o prazer de possuir um fragmento de algo efêmero, um pedaço da tendência que logo será substituída por outra. Cada lançamento deste produto traz consigo uma promessa de exclusividade, uma sensação de escassez calculada que intensifica o impulso de compra. Nesse jogo de aparências, o Carmed não é apenas um bálsamo; é um lembrete de que, no turbilhão da moda passageira, às vezes o que vale é a experiência fugaz de ser parte de algo que logo deixará de existir.

No emaranhado dos desejos modernos, o consumo de beleza se torna um ritual de encantamento, uma busca ansiosa que reflete mais do que o desejo de uma pele perfeita ou de lábios macios. Fábio Monnerat vê esse cenário com inquietação, especialmente quando o alvo do consumo se desloca para o público infantil. Ele observa, com ceticismo, como produtos de beleza direcionados a crianças e adolescentes, como é o caso do fenômeno do Carmed, onde eles são estrategicamente moldados para enraizar o consumo desde cedo. Com sabores açucarados e colaborações com personagens conhecidos, o Carmed, em suas múltiplas versões, deixa de ser apenas um hidratante labial; ele se torna um emblema de um consumo precoce, uma porta de entrada para um ciclo interminável de desejos e substituições.

Fábio acredita que essa introdução ao consumo desenfreado desde a infância reflete um problema profundo. A indústria da beleza, segundo ele, soube capturar o conceito de autocuidado e transformá-lo em uma sequência constante de compras — não mais um momento pessoal, mas uma dança coreografada pelo mercado. O Carmed e outros produtos semelhantes simbolizam uma sociedade onde o consumo é enaltecido como valor intrínseco, e cada nova edição limitada, cada parceria com um ícone infantil, se torna um capítulo dessa fábula consumista. A ilusão de exclusividade atiça o desejo, e o autocuidado se converte em um ato repetitivo, sem substância.

Enquanto isso, o TikTok acelera essa espiral. Para Júlia, Helena e Rayssa, a plataforma de vídeos é uma vitrine que converte produtos de beleza em pequenos troféus de pertença, um portal onde cada novo sérum, cada nova máscara promete um vislumbre de perfeição. Como no filme  A Substância (2024), onde Elizabeth Sparkle, interpretada por Demi Moore, injeta um líquido espesso e denso na pele na esperança de capturar a juventude que lhe escapa, os jovens de hoje se entregam a promessas tão tentadoras quanto fugazes. A cada nova fórmula, a cada sérum, máscara ou creme milagroso, há uma promessa de transformação que parece deslizar entre os dedos. Eles se lançam nessas poções modernas, cada frasco prometendo que, desta vez, o reflexo no espelho será o que sempre desejaram.

Mas, assim como Elizabeth, que corre atrás de uma ilusão que nunca a satisfaz, esses jovens podem estar caminhando para um abismo de expectativas vazias. A cada compra, um breve relâmpago de satisfação — um brilho que logo se desfaz, um encanto que desaparece com a mesma rapidez com que veio. E então, a necessidade renasce, mais urgente, mais insistente. Em um ciclo que se auto alimenta, o ideal de beleza se mantém distante, quase ao alcance das mãos, mas sempre escorregadio. E nessa busca, a frustração não desaparece; apenas se recalca, pronta para surgir com força renovada a cada nova promessa que o mercado lança na tela.

Fábio acredita veementemente que o verdadeiro papel do TikTok não é conectar, mas vender — impulsionando um consumo desenfreado que atinge até os mais jovens, seduzidos pela promessa de uma juventude prolongada e de uma beleza idealizada.

No fim, a trilha do consumo se revela como uma corrida sem destino, onde o autocuidado se dissolve em promessas e expectativas. Para Fábio, a verdadeira prática de bem-estar foi sequestrada pela lógica de mercado, que transforma cada novo produto em mais um ponto de partida, mais um item na lista de desejos insaciáveis. O autocuidado, nesse cenário, se torna uma pista de corrida onde o consumidor, sempre em busca da última novidade, esquece de parar, de respirar e de redescobrir o que realmente importa. Talvez, sugere ele, o verdadeiro bem-estar exija uma saída dessa trajetória imposta, uma pausa para recobrar o equilíbrio, para lembrar que cuidar de si não precisa ser uma sequência de compras, mas uma escolha pessoal, guiada por um ritmo próprio, alheio às urgências e apelos do mercado. Afinal, os verdadeiros delírios de consumo da Geração Z não estão em cada frasco ou nova tendência, mas na ilusão de que a satisfação virá com o próximo produto.

 

As conexões digitais facilitaram a vida de muitos, mas também abriram brechas inesperadas.
por |
25/09/2024 - 12h

Por Carolina Rouchou

 

O dia era domingo, o mês era Novembro e o ano, 2022. Em um apartamento antigo no Itaim Bibi, agulhas de tricô descansavam sobre uma cadeira de balanço e o cheiro doce de bolinhos de chuva recém feitos preenchiam o ambiente decorado com toalhinhas de crochê e uma raquete de tênis. Na TV, futebol. No sofá, dona Sylvia. O jogo estava próximo de terminar e, para a alegria da telespectadora, o São Paulo já havia feito três gols contra o Goiás. Aos 45 do segundo tempo, o jogador Juan tomou posse da bola na grande área e se preparava para dar o chute final da partida. O telefone toca. Sylvia o desliga imediatamente, nada poderia distraí-la de um possível quarto gol de seu time. Dito e feito, a bola bate na rede e a torcedora comemora.

O telefone toca mais uma vez. Qualquer pessoa que conheça dona Sylvia sabe que a hora do futebol é sagrada, duas ligações seguidas nesse momento era, portanto, um sinal de emergência. Ela atendeu. Tratava-se de uma ligação de seu banco. Poucos dias antes, sua agência havia sido fechada sem muitas explicações e a conta de Sylvia seria transferida para outra unidade. A atendente informou isso por telefone, mas antes de terminar a ligação deu mais uma informação: o gerente da conta de dona Sylvia estava sendo investigado por lavagem de dinheiro e, por isso, a agência teria sido encerrada.

Pouco tempo depois o telefone volta a tocar, mas dessa vez quem estava do outro lado era a Receita Federal em busca de informações sobre o tal gerente. Pediram algumas informações da senhora de 86 anos: com qual frequência ia ao banco, como era sua relação com o gerente, quanto dinheiro ela tinha na conta, se já havia visto algum movimento suspeito na agência etc. Como cidadã exemplar, Sylvia não poupou detalhes, afinal lugar de bandido é na cadeia. Cooperou com as autoridades como pôde e, mesmo assim, pediu desculpas por não saber de muita coisa.

A ligação terminou com uma ordem: Sylvia deveria transferir parte de seu dinheiro para que a Receita pudesse analisar a origem da quantia. Explicaram que seu gerente usava as contas dos clientes para esconder dinheiro sujo e, por isso, precisavam investigar suas economias. A operação que estavam fazendo era secreta e ainda estava em andamento, portanto ninguém, nem mesmo sua família, poderia saber sobre o ocorrido. Com as autoridades ainda no telefone, Sylvia prontamente fez a transferência e agradeceu.

Segunda-feira quem ligou para a residência são-paulina foi a própria Polícia Federal. Ao atender, Sylvia foi avisada que o dinheiro analisado possuía origem ilegal e, enquanto sua inocência não fosse comprovada, ela corria perigo. O policial pediu o WhatsApp dela para facilitar a comunicação. Não era obrigada a informar seu número pessoal, mas a autoridade avisara-lhe que recusar-se a passar tal informação levantaria suspeita e que “ficaria ruim para o seu lado”.

Os dias passavam e Sylvia mantinha contato com a PF por mensagens de texto. Faziam a ela muitas perguntas, passavam atualizações sobre a investigação e pediam que ela fizesse mais transferências. A octagenária fez tudo para provar sua inocência e ajudar a justiça. O policial quis saber se havia jóias. Dona Sylvia era de uma família tradicional paulistana e se orgulhava das peças que herdara de seus avós. Imediatamente, respondeu que sim. O policial pediu fotos e perguntou se ela tinha nota fiscal dos itens. Com peças que antecediam a mudança do século passado, Sylvia informou que não retinha os comprovantes fiscais (afinal estes sequer existiam na época que as joias foram confeccionadas), mas enviou fotos de todas preciosidades que guardava em seu cofre. A conversa terminou com uma mensagem do policial: “Teremos que ir até sua casa para fiscalizar a legalidade destas peças, por favor me envie seu endereço”.

Entre novembro e dezembro Sylvia transferiu mais de vinte mil reais e recebeu as autoridades em sua residência mais de 5 vezes. Nestas visitas a Receita ou Polícia Federal ia para recolher as jóias e outros itens de valor, tudo para provar a inocência da senhora no mirabolante caso do gerente que lavava dinheiro. A operação se encerrou poucos dias antes do natal, quando Sylvia finalmente ligou para seu filho Rodolpho pedindo ajuda, pois não tinha comida em sua casa e estava sem um tostão no bolso.

A realidade é que nunca houve operação alguma. Quem esteve em contato com dona Sylvia nos últimos dias era uma quadrilha criminosa, especializada em golpes via telefone e internet. A agência da vítima fora de fato fechada, mas por questões internas do banco. O tal gerente era inocente e nunca havia sido investigado pela polícia, foi tudo inventado. As verdadeiras autoridades foram imediatamente acionadas, mas não havia muito que pudessem fazer. A família de Sylvia tomou para si a responsabilidade de auxiliar a matriarca. Sua filha Renata entrou em contato com o banco para pedir o dinheiro de volta, mas não obteve sucesso: como as transferências haviam sido feitas pela dona da conta, o dinheiro só poderia ser devolvido se comprovassem a falcatrua.

Graças a um conhecido que trabalhava no banco, o dinheiro foi recuperado quase seis meses depois, mas o dano já havia sido feito. Desde que sofreu o golpe, dona Sylvia entrou em um estado depressivo e abandonou o estilo de vida ativo que vivia. A vítima conta que se culpa por tudo e que passou a se enxergar como uma idosa incapaz. Seu corpo acompanhou sua mente: de quadras de tênis e academias para visitas constantes a hospitais e uma equipe de cuidadores. A família também atribui a drástica mudança de saúde ao golpe que a mãe e avó sofreu. Até hoje o caso segue sem solução. Não se sabe sequer como os estelionatários conseguiram os dados dela ou do gerente do banco. A única prova do ocorrido são as conversas por WhatsApp, em que o grupo utilizava uma foto do logotipo do banco Bradesco. O número utilizado para se comunicar com a senhora foi denunciado e a família tentou entrar em contato com o WhatsApp, mas a empresa nunca respondeu.

A falta de regulamentação no mundo digital abre espaço para que dados pessoais sejam vendidos e compartilhados entre grupos mal-intencionados. Sem se responsabilizar de maneira alguma, as plataformas on-line aceleraram o crime e não aparentam estar dispostas a lutar contra isso. Mesmo quando notificadas pelas autoridades, as redes sociais se recusam a cumprir com a legislação brasileira. Se dona Sylvia e sua família quiserem descobrir quem estava por trás do golpe, talvez devam esperar até que um deles concorra à Prefeitura paulistana.

Projetos se organizam para combater a pobreza menstrual em vários pontos do Estado de São Paulo
por
Marcela Rocha
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30/03/2023 - 12h

Perder dias de trabalho, contrair doenças, sentir vergonha do funcionamento do próprio corpo e se isolar durante o período menstrual por péssimas condições de higiene são alguns dos problemas causados pela pobreza menstrual.  As características acima ocorrem com mulheres em situação de vulnerabilidade social. O tema da pobreza menstrual tem ganhado repercussão desde outubro de 2021, quando Jair Bolsonaro vetou a distribuição de absorventes íntimos e outros itens de higiene que seriam direcionados para estudantes de baixa renda matriculadas na rede pública de ensino, mulheres em situação de rua ou em vulnerabilidade social, mulheres egressas e mulheres internadas participantes de programas de medidas socioeducativas. 

O financiamento dessas ações viria do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Fundo Penitenciário Nacional, para o caso de mulheres egressas do sistema penitenciário. O veto e a omissão do Governo atrasaram o combate à pobreza menstrual e forçaram que movimentos envolvidos com as lutas das mulheres tomassem providências para tentar amenizar os danos. Absorventes sempre foram objetos que refletem as diferenças de classe entre as mulheres. O absorvente higiênico feito de algodão e plástico como conhecemos hoje surgiu no país apenas em 1930. Até aquele momento as mulheres usavam pedaços de pano reutilizáveis. Os panos eram lavados, secos e guardados para serem usados novamente no próximo período menstrual. 

Hoje é sabido que a prática não é indicada, pois, os panos abafam a umidade do canal vaginal e potencializam a possibilidade de contrair doenças infecciosas. A inserção de tecidos não esterilizados com os devidos procedimentos assépticos pode causar a mudança do pH vaginal e a proliferação de bactérias. Mesmo quando chegaram ao Brasil, os absorventes higiênicos industrializados não eram acessíveis a todas as mulheres por conta de seu alto preço. Os preços altos permanecem até hoje. O conceito “taxa rosa” foi recentemente criado por economistas para explicar que produtos para meninas e mulheres custam até 7% mais caros. 

O preço exorbitante de produtos ditos femininos combinado com o preconceito de gênero provoca a diferença salarial entre homens em mulheres, resultando em uma sociedade extremamente desigual que condiciona mulheres, sobretudo as de baixa renda, a uma vida indigna, em que um salário pouco paga as contas essenciais, e pouco ou nada sobra para gastos com itens de higiene, como é o caso dos absorventes. 

A situação se agrava quando falamos, por exemplo, de mulheres egressas do sistema penitenciário. O coletivo Por Nós atua em várias cidades do Estado de São Paulo no combate à pobreza menstrual, e foi idealizado por um grupo de mulheres ainda em cumprimento de pena. Atualmente quem direciona as ações são Mary e Iyá Batia Jello, Helen Baum e Débora Antunes. Após o cumprimento da pena a qual foram condicionadas, algumas mulheres voltaram a conversar fora dos muros de concreto que as aprisionavam e perceberam que tinham as mesmas mágoas: a falta de apoio do Estado e das famílias. 

Em prisões masculinas, em dia de visita, a fila é enorme no entorno das penitenciárias. No caso de prisões femininas, o que se observa é o abandono. Essa dupla penalização entre meio afetivo de rede de apoio e o cumprimento da pena, tornam a estadia dessas mulheres uma verdadeira tortura. Elas têm apenas elas mesmas e as colegas que fazem no sistema prisional. As mulheres que compõe e auxiliam o projeto viram no coletivo o apoio que precisavam de si próprias e de seus familiares para conseguir dar o primeiro passo ao processo de ressocialização e retomada da vida pós sistema carcerário. 

Débora Antunes, membro do grupo e atuante na direção do Por Nós, é uma sobrevivente do cárcere. Há 9 anos em liberdade, é mãe de 5 filhos, avó de 4 netas, trabalha como diarista e é formada em educação social pela Falcons University, a universidade da ONG Gerando Falcões, que realiza a capacitação e formação profissional dos alunos em 6 meses buscando realizar o combate à pobreza nas periferias do país. Débora também participa do CUFA (Central Única das Favelas) no complexo Jd. João XXIII, na Zona Oeste da capital, além de integrar o projeto religioso GT Missões com ações principalmente na "Cracolândia". 

De acordo com Débora, o movimento surgiu através da experiência desumana que todas elas compartilharam enquanto estavam em cárcere, como a falta de acesso a produtos de higiene menstrual: “recebíamos um pacote de absorvente por mês, de péssima qualidade e insuficientes para aquelas que tinham fluxo mais intenso. O coletivo hoje busca fortalecer as mulheres egressas e suas famílias, oferecendo informações e organizando ações nas datas das ‘saidinhas’ em algumas unidades penitenciárias do Estado de SP, marcando presença em importantes pautas para a população carcerária”, conta. 

Parafraseando Iyá Batia, outra fundadora, Débora diz que “a menstruação na cadeia mostra como a mulher na prisão é desvalorizada e empobrecida” O coletivo Por Nós hoje conta com 20 participantes atuantes independentes, se mantendo através de doações de absorventes higiênicos, coletores menstruais e doações de valores para compra de itens de higiene menstrual. A principal forma de contato com o movimento para doar e se voluntariar, é através do perfil no Instagram @nos_por_nos. O simples ato de fornecer absorventes higiênicos traz às mulheres egressas o fortalecimento da autoestima e autoconfiança, devolvendo a essas mulheres excluídas a condição humana da vaidade.

Beneficiárias posam em evento de entrega de coletores menstruais em parceria com a LBV. Foram doados 200 coletores. Foto: coletivo Por Nós.
Beneficiárias do projeto posam em evento de entrega de coletores menstruais em parceria com a Legião da Boa Vontade (LBV). Foram doados 200 coletores. Foto: coletivo Por Nós. 

 

A menstruação faz parte do funcionamento saudável do corpo feminino, mas as condições econômicas, culturais e sociais fazem do período menstrual um tabu, um assunto a ser evitado e digno de vergonha. O documentário Absorvendo o Tabu retrata como o constrangimento por menstruar afeta as mulheres indianas de um pequeno povoado. Indicado ao Oscar 2019, o filme demonstra para nós mulheres brasileiras as semelhanças entre as culturas brasileira e indiana. Em ambos em países a presença da pobreza menstrual dificulta a rotina de mulheres, as fazem perder dias de aula e de trabalho, faz com que sejam vistas como sujas e impróprias por menstruar, e são excluídas de atividades durante a menstruação. 

O grande acontecimento do filme ocorre quando uma máquina de produção de absorventes acessíveis foi instalada, transformando a vida das mulheres envolvidas com o projeto. Mais de 40% mulheres indianas não tem acesso a absorventes higiênicos e assim como no Brasil a utilização de panos e outros objetos improvisados ainda é uma realidade. 

Na cidade de São Carlos no interior do Estado de São Paulo, um grupo de combate à pobreza menstrual surgiu quando um coletivo de estudantes da Universidade Federal de São Carlos percebeu a carência de projetos de distribuição de absorventes para mulheres em vulnerabilidade social na cidade. Mariela Salvini, de 25 anos, hoje linguista formada pela UFSCar conta que quando ingressou no projeto Unidas pelas Mulheres com suas colegas tinha pouco conhecimento sobre pobreza menstrual e sobre como executar as ações, mas que concordou em participar por vontade de ajudar mulheres a ter um período menstrual digno e a passar mais informações sobre a saúde da mulher. 

Recebimento de absorventes higiênicos para distribuição. Foto: Unidas pelas Mulheres SC.
Recebimento de absorventes higiênicos para distribuição. Foto: Unidas pelas Mulheres SC. 

 

O projeto é custeado a partir de doações presenciais de absorventes, por PIX, doação de dinheiro e transferência bancária, e já utilizaram também das plataformas de financiamento coletivo Vakinha e Benfeitoria. O Unidas pelas Mulheres aceita também aliados para participar das ações e de projetos de arrecadação de valores. Para entrar em contato com o projeto basta acessar a página oficial no Instagram @unidaspelasmulheres.sc e se informar que deseja doar ou se voluntariar para a causa. 

A sanção da Lei 17.525/2022 está em execução pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP) para implementação do programa Dignidade Íntima, que prevê a distribuição de absorventes e outros itens de higiene menstrual para meninas matriculadas nas escolas da rede estadual de ensino, inclusive Etecs e Fatecs. 

A medida merece ser comemorada, pois significa uma tentativa de política pública de proporcionar as alunas melhores condições menstruais. Apesar disso, ainda não é o suficiente para erradicar a pobreza menstrual, pois não abrange meninas que não estão matriculadas em escolas estaduais de São Paulo e exclui outras pessoas que menstruam e que se encontram em situação de vulnerabilidade social. 

É preciso continuar lutando para que todas as pessoas que menstruam tenham acesso não apenas à absorventes, mas a todos os itens de higiene menstrual como coletores, calcinhas absorventes, absorventes internos, lenços umedecidos e o que mais for necessário. É preciso lutar contra a desinformação e mistificação da menstruação para que nossas mulheres, meninas e pessoas que menstruam não sintam nojo ou vergonha em realizar o único sangramento que não vem de uma violência contra o corpo: a menstruação.

O uso de tablets e smartphones tem papel fundamental na fixação de informações
por
Lucca Andreoli
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24/11/2022 - 12h

Por Lucca Andreoli

Um menino alegre, brincalhão e esperto. Heitor é pequeno. Muito menor que a maior parte dos meninos na sua idade. Tem cinco anos agora, mas por seu tamanho, seria facilmente confundido com alguém de dois ou três anos de idade. Essa é uma característica que sua síndrome apresenta. Ele tem Cri-Du-Chat, o que explica sua dificuldade de falar e seus movimentos destoantes.

Uma das preocupações que acometeram sua família a seu respeito, em especial sua mãe, Lilian, é o aprendizado que ele deveria receber, e quais tratamentos se mostrariam eficazes e importantes para uma melhor adaptação de seu filho na sociedade. Felizmente, hoje sabe-se muito mais, e pode-se tratar muito melhor pessoas com tal síndrome. Entre seus aliados nessa luta, a tecnologia é um de seus mais valiosos. Como fora dito anteriormente, tem dificuldade na fala, mas não pense que não sabe se comunicar e que não entende as coisas a seu redor. Desde muito cedo, demonstra ter uma memória magnífica, e isso se deve em grande parte pela presença dessa tecnologia. 

O uso de tablets e smartphones tem papel fundamental na fixação de informações e na complementação da dinâmica e da mecânica. Para sua comunicação, são fundamentais, visto que as imagens e as cores têm o grande poder de mantê-lo focado enquanto aprende, algo que é difícil de realizar sem a presença das telas. 

Assistir animações infantis e vídeos na Internet, é um hábito que sempre teve. Antes, quando queria assistir algo, costumava pedir que alguém colocasse para ele. Não precisava ser alguém conhecido, qualquer um que estivesse próximo e pudesse ajudar era bem-vindo. Surpreendentemente, hoje raramente pede ajuda para isso. Descobriu a senha do celular de sua mãe e costumeiramente o pega escondido para assistir o que deseja. Não sabe ler ou escrever ainda, mas isso não o impede de chegar aonde quer.
 
Jogos também são grande estímulo para ele. Como são em sua grande maioria, jogos que exigem atividade motora, são bastante benéficos para ele, e divertidos também, visto que sempre se diverte com eles. Para quem tem essa síndrome, o tratamento é individualizado, variando de paciente para paciente. No caso do Heitor, ou “pequeno príncipe” como é chamado por sua semelhança com o personagem, foi necessário passar por fisioterapia. Esse processo contou com a presença de diversos aparelhos técnicos, que, por mais que não gostasse na época, hoje com o resultado, pode ser visto grande avanço e melhora em praticamente todos os aspectos. 

A primeira edição do festival preenche o Allianz Parque e junta público diversificado com bandas de rock de diferentes gerações.
por
Luana Barros Galeno
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15/11/2022 - 12h
Banda Fresno abre GP Week
Banda Fresno abre GP Week

Neste sábado (12), ocorreu a primeira edição do festival de música GP WEEK, na cidade de São Paulo. Com shows de Fresno, The Band Camino, Hot Chip, Twenty One Pilots e The Killers.
Em referência ao ‘Grande Prêmio’ de Fórmula 1, o evento trouxe bandas que caminham entre sub estilos do rock e atraíram públicos de todas as idades. Com performance eletrizante de Twenty One Pilots e The Killers, a GP Week conquista espaço no grande calendário de festivais da cidade.

Fresno, a única banda brasileira a participar, abriu a sequências de shows às 14 horas e trouxe aos palcos o emo, juntando clássicos com novidades para conquistar a plateia que timidamente começava a preencher o Allianz Parque. Lucas Silveira, vocalista, finalizou a participação do grupo questionando o fato de ser apenas uma banda com canções em português, mas instigou os ouvintes a valorizarem o som nacional com uma versão de Eva, originalmente da Banda Eva, que foi cantada por todos ali presente. 

The Band Camino canta pela primeira vez em solo brasileiro.
The Band Camino canta pela primeira vez em solo brasileiro.

As homenagens ao Brasil não acabaram por aí, pois The Band Camino não poupou palavras para descrever a emoção de, pela primeira vez, tocarem no Brasil - e na América Latina. Pela formação recente, a presença de um público significativo em outro território pareceu surpreender os musicistas, pois não deixavam de agradecer recorrentemente a presença de todos. Aproveitando a oportunidade, convidaram ao palco Mateus Asato, guitarrista brasileiro, famoso internacionalmente por ter tocado com Bruno Mars e Jessie J. Vestidos com a camisa do Palmeiras, a banda encerrou sua participação com uma energia contagiosa. 

A banda The Hot Chip, criou um clima ainda mais animado para as bandas mais esperadas da noite, Twenty One Pilots e The Killers. O primeiro transformou o estádio às 19:00, o uníssono dos ouvintes era eletrizante e a entrega do duo incomparável. Com momentos surpreendentes, como a escalada da torre de apoio pelo Tyler Joseph e a bateria em cima da plateia por Josh Dun, a banda cria mais um show inesquecível em solo brasileiro. A interação com o público foi fundamental para que pudessem ser considerados os protagonistas da festa, sendo ovacionados ao finalizarem com “Heathens”.

O atestado da união de gerações ficou ainda mais claro com o show de The Killers, que encerraram a noite. O Allianz, que à tarde encontrava um público mais jovem, encarava durante o show espectadores maduros, mas com a vitalidade de Brandon Flowers, vocalista da banda. Com as letras na ponta da língua, os 50 mil presentes, entregaram todos os hits da banda de forma excepcional, demonstrando que a pergunta de Brandon “vocês esqueceram da gente?” era apenas ironia. Porém, um destes fãs foi convidado ao palco para tocar “For Reasons Unknown” e o fez perfeitamente em meio a aplausos e gritos. A GP Week conquista através das atrações e do público, o espaço necessário para se consagrar como mais um festival paulista no calendário nacional. 

Twenty One Pilots ganha protagonismo no festival
Twenty One Pilots ganha protagonismo no festival

 

Mais do que moda, o movimento gera discussões sobre identidade, apropriação cultural e politica.
por
Beatriz Tiemy
Giulia Aguillera
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19/10/2022 - 12h

Seja em bonés, camisetas de time ou chinelos Havaianas, o verde, amarelo e azul estão presentes nos novos produtos da moda nacional e internacional. Nos últimos meses, a bandeira brasileira se espalhou rapidamente pelas redes sociais de influencers fashionistas do mundo todo, principalmente pelo TikTok e Instagram. Às vésperas das eleições e da Copa do Mundo do Qatar, a popularização do símbolo do Brasil restaura um sentimento de identidade que vai muito além da moda.

Mais que uma tendência, o BrasilCore tem uma importância política no ano de 2022. Desde 2014, a bandeira brasileira e o próprio brasão da Confederação Brasileira de Futebol são associadas à direita política no país. O verde, amarelo e azul estamparam campanhas eleitorais e manifestações a favor desse lado, representado principalmente pelo presidente em exercício, Jair Bolsonaro (PL). Um exemplo expressivo do uso das cores com um cunho partidário foi a onda de atos pedindo pelo impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), em 2016.

Esse processo de apropriação do símbolo nacional fez com que o grupo que não se identifica com os ideais da direita deixasse de usar roupas com o tema e, mais do que isso, perdesse o sentimento de nacionalismo. Em contrapartida, a estética BrasilCore surge na direção contrária à apropriação, já que propõe o resgate da bandeira como forma de representação do povo brasileiro. Assim, o movimento une moda, política e, ainda, futebol.

Não é possível falar de estética brasileira sem mencionar o futebol, já que, no país, é o esporte mais popular. Por isso, o lançamento das camisas da seleção da Copa do Mundo de 2022 pela Nike é uma forma de consolidar o BrasilCore como tendência nacional e internacional. Em entrevista para a AGEMT, Julia Andreata (20), Analista Júnior que integra a equipe criativa da empresa, conta que a maior dificuldade no processo de criação do novo uniforme foi manter as cores clássicas da camisa brasileira tendo em vista o longo e complexo processo político pelo qual o país está passando.

A moda sempre foi um instrumento de manifestação e, com a chegada da Copa do Mundo e das eleições, a tendência do verde e amarelo se torna mais presente e comentada do que nunca, o que gera grandes reflexões e embates internos por parte da população. É uma perspectiva que estimula, por um lado, o patriotismo de volta, mas, por outro, o medo e a repulsa de usar a camisa verde e amarela com receio de ser associado a partidos e ideologias políticas. Durante anos, o povo brasileiro assistiu essa atitude, fazendo com que muitos abrissem mão de sua bandeira, de suas camisas, das cores que representam a sua nação.

Na tentativa de desmistificar, a Nike, junto a sua equipe criativa, exploraram maneiras de desvincular a política das blusas da seleção e restaurar aquele sentimento de orgulho ao vestir o verde e amarelo.

O caminho que a Nike escolheu seguir foi exaltar aspectos da cultura brasileira. Para isso, escolheu um visual baseado no uniforme usado pelo time na conquista de seu último título, em 2002. Surge então o slogan “Veste a Garra”, estampado por toda a campanha das novas camisetas da próxima Copa, que sugere ao povo brasileiro agora, mais que nunca, é o momento de vestir a camisa e lutar pelo país, assim como os atletas em campo lutam por uma vitória.

Julia ainda retoma que o objetivo principal dos novos designs foi “trazer orgulho de volta para os brasileiros, e fazer eles vestirem a camiseta. Tudo foi pensado nisso, envolver a textura de onça pintada nas mangas e a bandeirinha na gola, símbolos brasileiros. Por isso, todo o marketing teve o bordão ‘Veste a Garra’”.

 

As camisetas de time e a periferia

O esporte sempre foi um dos fatores que influenciam a moda. Dos tênis All Star até a camisa Polo, muitas tendências surgiram por conta das práticas esportivas. No entanto, com o futebol no Brasil, alguns fatores fizeram com que essa influência fosse vista como algo negativo. Apesar de eleito o esporte favorito dos brasileiros, a elite enxergava, até pouco tempo atrás, o futebol como pertencente a uma cultura de massa e tinha uma visão negativa sobre ele.

Desde muito antes da repercussão atual do Brazilian aesthetic nas redes, que trouxe consigo uma nova visão das camisetas como itens fashionistas, elas já eram muito antes reverenciadas e reconhecidas como itens essenciais da moda periférica. O “país do futebol”, assim chamado e reconhecido por sua nação, fez com que as camisetas se tornassem um grande símbolo, que teve um imenso consumo e ênfase nas periferias pelo entorno do cotidiano periférico em que o futebol é um elemento muito forte e presente. Como um exemplo disso, a existência dos campos de futebol nas comunidades em que crianças e adultos de todas as idades frequentam e jogam.

Diante dessa situação, pelas roupas da seleção terem como modelos principais os corpos negros e periféricos, esse movimento foi envolto pelo preconceito e o “mal olhado” sendo associado como estilo de “favelado” ou símbolo de algo desleixado. A problemática da tendência surge neste momento em que passa a ser valorizada apenas quando vestida por um grupo específico, branco e elitista no Brasil e "gringos". Algo que muito antes já fazia parte da moda nacional, identidade cultural e realidade de muitos brasileiros, somente a partir do momento que foi usada por pessoas de outros países e grandes figuras brancas e influentes passa a ser visto como um elemento grandioso de moda.

Com a replicação das tendências do exterior observadas no Brasil e a questão da desvalorização de moda nacional e periférica, Laura Ferrazza, historiadora da moda, diz: “As referências da moda estão globalizadas, porém, é um erro pensar que o Brasil não crie suas próprias tendências internas e mesmo seja capaz de exportar tendências”.

“Acho que a identidade de um povo, como uma nação jovem como a brasileira, está sempre em construção. O brasileiro sempre coloca sua marca, seu jeito próprio ao usar algo externo e é muito criativo e inovador”, completa Laura.

Sobre a repercussão da tendência BrazilCore, diz:  “A moda é um catalisador do espírito do tempo, um espaço para expressar gostos e opiniões.” “Certamente as preferências eleitorais e esportivas acabam aparecendo como tendência em momentos importantes como uma eleição presidencial e uma Copa do Mundo”, diz Laura Ferrazza.


 

Esmaltes, looks e acessórios são elementos visuais que revelam as tendências de consumo da sociedade
por
Ricardo Dias de Oliveira Filho
Beatriz Tiemy Nichioka
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18/10/2022 - 12h

Em 1950, a televisão chegou ao Brasil - o primeiro meio de comunicação a introduzir o audiovisual para os lares brasileiros. Uma de suas principais missões é entreter o público e, assim, surgem as telenovelas.

Com cerca de 15 capítulos, a primeira telenovela brasileira foi exibida pela extinta TV Tupi. Intitulada 'Sua Vida Me Pertence', a produção estreou em 21 de dezembro de 1951 e foi exibida até o dia 15 de fevereiro de 1952.

Além do enredo e das personagens, um elemento que se tornou marcante nas telenovelas é o vestuário. A moda continua, até hoje, impactando os costumes e estilos da sociedade brasileira. Apelidados de closet, perfis nas redes sociais publicam os looks usados pelos artistas - incluindo o valor e o site onde pode ser encontrado para compra. Isso evidencia como a televisão tem reflexo no consumo dos telespectadores.

“A moda está inteiramente ligada a arte e cultura e, o que acontece muito atualmente, é que marcas conceituadas convidam atores que estão atuando em novelas para abrir seus desfiles, gerando uma ligação ainda maior entre a moda e novelas”, contou a modelo brasileira Thais Romão. “Desfilei com vários atores globais, que estavam em alta, e foram convidados a abrir os desfiles da Semana de Moda de São Paulo - inclusive, foram muito aclamados pelo público”, complementou.

Juliana Paes como Maria da Paz em 'A Dona do Pedaço' — Foto: Artur Meninea/Gshow
Juliana Paes como Maria da Paz em 'A Dona do Pedaço' — Foto: Artur Meninea/Gshow

O alcance das telenovelas é exemplificado pela audiência e, principalmente, pelas vitrines dos polos de moda do Brasil. “Um exemplo é a personagem Maria da Paz, da novela ‘A Dona do Pedaço’, exibida em 2019, que vestia peças de roupa da marca Teodoro Salazar. Quando a personagem apareceu vestida com estampas de corrente dourada foi uma explosão. Várias marcas começaram a fazer esse tipo de estampa e o público aderiu a essa moda. Na verdade, se você andar pelo Bom Retiro, que é um dos maiores mercados da moda de São Paulo, verá estampas de corrente dourada espalhadas pelas vitrines até hoje”, disse Valéria Dutra, designer de moda e colorista têxtil.

Mesmo com a ascensão dos serviços de streaming, as telenovelas se consolidaram como plataformas de comunicação cultural. A publicitária e especialista em mercado de moda e consumo, Yasmin Carolino, conta sobre as formas de influência das produções.

“É gerado no telespectador um sentimento que leva à uma busca por pertencimento. Muitas vezes uma personalidade fictícia pode ser o ponto de partida para uma influência de estilo. Aquele que assiste e se identifica, passa, portanto, a querer parecer como tal personagem e isso se reflete, desde o jeito como se veste até ao estilo de vida dessas pessoas. O povo brasileiro é muito rico em diversificação e isso é algo relevante quando questionamos o pertencimento e o papel das influências de mídia sobre esse sentimento, tendo em vista que vivemos em uma sociedade tão desigual”, disse a profissional.

Apesar das mudanças enfrentadas com o surgimento da internet, as novelas são queridas pelo povo brasileiro, haja visto que muitos espectadores ainda ligam a TV para acompanhar as tramas de seus personagens favoritos. “A dona de casa, a mulher que chega do trabalho tarde da noite, estudantes, mães, avós, tias, todas elas assistem novela e se veem em, pelo menos, 1% de alguma personagem da novela. Elas são influenciadas na forma de se vestir, de se maquiar, a forma que arrumam o cabelo, as gírias, as músicas que a personagem gosta, entre outras características”, disse Valéria Dutra.

Essa familiaridade com as produções, além de gerar identificação, faz com que o público enxergue a ficção como uma referência. O telespectador cultiva o desejo de viver como as personagens da história - muitas delas são vistas como símbolo de sucesso e autoconfiança, inclusive pelo figurino -, o que desperta ainda mais a vontade de se assemelhar a elas. "Muitas vezes, uma personalidade fictícia pode ser o ponto de partida para uma influência de estilo. Aquele que assiste e se identifica, passa, portanto, a querer parecer como tal personagem e isso se reflete desde o jeito como se veste indo de encontro ao estilo de vida dessas pessoas", comentou Yasmin.

Um debate recorrente é o fato de que, mesmo com a inovação dos meios de comunicação, modernização do audiovisual e a predominância na utilização dos streamings, as novelas ainda são pioneiras no impacto e influência na moda brasileira.

"Atualmente, uma novela que se passa em horário nobre conta com a atuação de influencers digitais de grande porte. A publicidade entra por esse meio, unindo dois veículos potentes de influência e consumo. E a moda brasileira é impactada diretamente em cima disso. Em um movimento de tendências trickle down, o que surge nas passarelas atinge as ruas. A lógica é a mesma quando substituímos os desfiles pelas novelas. O visual de uma personagem-chave é adotado pelos designers desde as enormes lojas de departamento às marcas de bairro independentes. Todos passam, portanto, a ter acesso ao que ''está na moda'' naquele momento”, ressaltou Yasmin.

Giovanna Antonelli como delegada Helô em 'Travessia' - Foto: Reproducao/ Instagram
Giovanna Antonelli como delegada Helô em 'Travessia' - Foto: Reprodução/Instagram

Um símbolo importante nas tendências criadas nas telas é a atriz Giovanna Antonelli, que interpretou diversos papéis de sucesso e, junto aos seus personagens, ditou diversas tendências usadas ao redor do Brasil. A personagem delegada Helô, da novela 'Salve Jorge', da Rede Globo, tinha como itens marcantes a capa de celular de soco inglês e as roupas estampadas - principalmente com estampas de animal print. O sucesso da personagem foi tanto que, na nova novela das nove da Rede Globo - 'Travessia' -, a personagem retornou com o mesmo estilo memorável.

Além da delegada Helô, a atriz transformou diversos outros acessórios, unhas e looks em tendência. Entre eles podemos citar a capa de coelho, da novela 'Aquele Beijo', o esmalte azul, da novela 'Em Família', as pulseiras de mão, de 'O Clone', etc.

FIGURINOS SÃO MAIS DO QUE APENAS ESTILO

A figurinista da Rede Globo, Gogoia Sampaio, apontou que os figurinos são produzidos com base em estudos aprofundados, no ambiente social e cenográfico. “O figurino é sempre desenvolvido com base em uma sinopse e no perfil dos personagens - o diretor é quem nos dá o direcionamento. A gente localiza onde essa história vai se passar, em que tempo ela vai se passar e qual é o público alvo.

Apesar de ser um elemento visual que provoque a sede de consumo, o figurino é construído com a participação dos atores e atrizes envolvidos, a caracterização, o diretor, o cenário e a iluminação, ou seja, é um elemento narrativo.

“Alguns personagens já têm encomenda. Por exemplo, quando eu fiz a Melina, de ‘Passione’, o autor já escreveu que ela teria essa 'pegada' mais fashion. Nessa mesma novela, a gente tinha a Irene Ravache (Clô Souza e Silva), que era aquela mulher "Rainha do Lixo", e que, inclusive, tinha um apelo popular gigante”, explica a profissional.

 Até o ano de 2020, a Rede Globo tinha uma Central de Atendimento ao Telespectador, apelidada de CAT. Por meio de e-mails e telefone, o público podia tirar dúvidas sobre os produtos usados pelos atores, atrizes, apresentadores e jornalistas da emissora. Com o avanço da tecnologia, a emissora decidiu experimentar novos canais, principalmente, as redes sociais.

“No CAT, muitas vezes, as roupas da Clô eram mais pedidas do que a da Melina e, por isso, eu falo que a personagem faz toda a diferença. As pessoas se identificaram com ela. Depois disso vieram os influencers digitais, que são pessoas com quem você se identifica e compra uma roupa igual a deles pelo fato de se identificar com as suas histórias. Acho que os personagens eram os influencers”, comentou Gogoia Sampaio.

“Quando fiz 'Belíssima', por exemplo, o mínimo do Ibope era próximo aos 50/55 pontos. A internet não tinha toda essa força que tem agora. A visibilidade é diferente, mas eu acredito que elas, ainda assim, tenham grande valor por retratar a vida brasileira, as histórias brasileiras.”