Por Inara Novaes e Guilherme Dias
Às 4h20min da manhã, o sol sequer deu os seus primeiros sinais e os trabalhadores e trabalhadoras da zona oeste de São Paulo já travam a sua primeira batalha diária, disputando um assento entre a avalanche de pessoas que embarca no trem. Minutos depois, aqueles que permanecem em pé, buscam nas paredes uma última oportunidade de se escorar durante a longa e exaustiva viagem. Com o passar das estações, os vagões vão se enchendo de melancolia.
Junto dos passageiros, outros personagens passam a preencher os vagões do trem. Ao fundo, algumas vozes um pouco mais exaltadas começam a ecoar de uma extremidade a outra, anunciando a chegada dos marreteiros. Suas falas irrompem o silêncio e calam os avisos que difamam e criminalizam sua existência. Sempre atentos a qualquer movimentação suspeita, eles dão início às vendas.
Distante da definição encontrada no dicionário de Oxford Language, em que marreteiros são aqueles que marretam brocas para abrir câmaras de mina em pedreiras. Em São Paulo, marreteiros são os ambulantes que procuram nos trens e estações de metrô uma fonte de subsistência. Uma, dentre essas centenas de pessoas, é a jovem Luana Cherry, de 24 anos, que trabalha na linha oito (diamante), cruzando a cidade, de Osasco, até a Julio Prestes, no centro de São Paulo.
A vida de marreteira de Luana começou ainda na infância. Com dez anos ela já circulava de estação em estação, vendendo doces e salgadinhos, para ajudar a família. Desde então, pouco mais de uma década se passou, a jovem já trabalhou "registrada em carteira", mas apenas para serviços temporários - sempre que o contrato encerrava, era para os trens que ela retornava - o seu último emprego, entretanto, foi em 2018, pouco antes de engravidar e tornar-se mãe do Guilherme Ricardo, que nasceu em meio à pandemia e acaba de completar um aninho.
Anteriormente, a jovem acordava às 6h00min, às 8h00min já embarcava no primeiro trem e o dia só terminava por volta das 21h00min, com a sacola de doces e salgadinhos completamente vazia; mas, hoje, tudo tornou-se mais difícil, os vagões estão sempre escoltados e Luana se viu obrigada a decorar o horário de almoço e a troca de plantão dos guardas, às 19 horas, para conseguir trabalhar.
Então, todos os dias, ela acorda, toma café da manhã e às 11h40min espera uma oportunidade de pegar o primeiro trem livre de escolta; às 14h00min, a tranquilidade se encerra e os seguranças retornam do almoço e é somente no intervalo entre às 19h00min e às 20h00min, que ela encontra outro trem sossegado para trabalhar. É assim desde o início da pandemia: são raros os dias que se encerram de sacola vazia.
Luana, como todos os marreteiros, precisa se desdobrar para não cruzar o caminho dos seguranças, mas quando o assunto são os passageiros, ela enfrenta alguns desafios específicos por ser mulher: muitos a julgam, a xingam e se atrevem a assediá-la e tocá-la sem permissão, acham que o seu corpo é tão público quanto o chão do transporte que pisam. Ela diz que no começo, quando era apenas uma garota de dez anos, era muito difícil, pois não sabia lidar muito bem com isso, mas com o passar dos anos foi apenas se adaptando.
A poucos quilômetros de Luana, no município de Jandira, mora o marreteiro Diogo Marciano, de 26 anos. Ele começou a trabalhar no trem a convite de um amigo, porque estava desempregado, e desde então já se passaram três anos. Sua rotina começa às 5h00min da manhã e só termina às 18h00min, para, no fim do mês, trabalhando 12h00min todos os dias, conseguir faturar pouco mais de um salário mínimo com a venda de aparelhos eletrônicos nas estações de metrô.
Embora Diogo diga que é tímido e não sabe se expressar muito bem, quando é perguntado sobre o relacionamento com os seguranças contratados pela CPTM, ele não exita em dizer que essa é definitivamente uma das maiores dificuldades em ser marreteiro: lidar com a hostilidade dos "guardinhas" que, muitas vezes, oprimem e, não satisfeitos, ainda agridem os ambulantes. Na memória, ele resgata uma violência que sofreu anos atrás, quando foi surpreendido por seguranças à paisana.
Já sofri várias opressões e vivenciei muitos colegas sofrendo opressão. Na maioria das vezes acontece assim, porque eles são pagos para isso, para fazer a fiscalização da estação, tal, e também está na lei que não pode vender nos trens e estações. Então, eles [os guardas] precisam pegar no flagrante, ou seja, se ele pegou a pessoa ali vendendo, ele vai fazer o trabalho ali, naquele momento.
Mas, às vezes, a maioria leva para o pessoal, por exemplo, eu moro em Jandira, eu pego a passagem de Jandira com minha mercadoria guardada na bolsa, de imediato eu não vou trabalhar, vou ver como que está o movimento, eu posso entrar no trem e não trabalhar, fica de canto, de boa; porém, como os guardas conhecem a gente e a gente conhece eles, eles não dão tempo nem da gente começar a trabalhar. Isso não é flagra, eu vejo isso como pessoal. Só de olhar para a pessoa, ele assume que aquela pessoa é marreteira. Muitos não aguentam isso. Esse tipo de trabalho é errado, o trabalho deles é pegar em flagrante, mas quanto mais se discute, mais se cobra, mas oprimido nós somos.
Comigo, aconteceu quando eu estava trabalhando e, até aí tudo bem, os guardas correram atrás de mim e eu consegui escapar, corri para a linha e acabei fugindo. Nesse dia, eu perdi minha maquininha e eles pegaram minha maquininha e mandaram eu ir buscar, porém eu não podia buscar para não perder minha mercadoria. Então, deixei minha maquininha para lá. Eu cometi o erro de xingar eles e quando eu estava fora da estação tinham dois guardas à paisana, fora do posto deles, eles me pegaram a força e me levaram de volta para a estação e lá dentro, foi na estação Presidente Altino, eles me levaram para o pátio e me bateram e eu não pude fazer nada.
Imagem de capa: Governo do estado de São Paulo
Edição: Inara

Por Inara Novaes e Guilherme Dias
Especialistas estimam que a cada pessoa que morre, no mínimo, outras seis, vivem intensamente a dor do luto: são amigos próximos e familiares que são atingidos de raspão pelo vírus, mas estilhaçados por inteiro no peito. Em Santa Catarina, por exemplo, uma dona de casa aposentada perdeu uma de suas filhas mais novas e, antes mesmo que a ferida cicatrizasse, ela se viu enterrando o marido e outros quatro filhos num intervalo de apenas 39 dias. No Ceará, o drama se repete e um estudante de direito perde seis familiares em pouco mais de um mês. Primeiro, a avó materna; depois, o tio avô; e em sequência, um primo e três tias - as duas últimas na mesma madrugada.
Por mais dolorosas que sejam, não é difícil encontrar histórias parecidas com essas em meio ao mar de gente que ocupou as ruas, praças e avenidas do país, nos últimos meses, para manifestar contra o Governo Bolsonaro. Na Avenida Paulista, em São Paulo, por exemplo, 750 mil pessoas reuniram-se no dia 19 de junho. Eram mães, esposas e filhos que perderam entes queridos para uma doença cuja vacina já existe, mas foi recusada diversas vezes pelo presidente.
Uma pesquisa apresentada recentemente por Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Brasil, na CPI da Covid-19, aponta que somente no primeiro ano de pandemia, 120 mil vidas poderiam ter sido poupadas se políticas públicas adequadas fossem adotadas. Na mesma ocasião, o epidemiologista Pedro Hallal, que lidera um estudo da Universidade Federal de Pelotas, mencionou que 400 mil mortes poderiam ter sido evitadas se medidas mais rígidas fossem implementadas pelas autoridades brasileiras que, em vez disso, preferiram encarar a pandemia com desprezo e negação.
Hoje, o Brasil tornou-se o segundo país com mais casos e mortes por Covid-19, atrás somente dos Estados Unidos. Por isso, manifestantes se articularam para ir às ruas no dia 29 de maio e 19 de junho, reivindicando o impeachment de Bolsonaro, na esperança de que sua queda interrompa a espiral de mortes que cresce a cada dia mais. Confira a seguir, o depoimento de alguns deles.
"Quero que Bolsonaro caia, Mourão também, esse governo, seus ministros e aliados"
Everson Verdião
"Vou tentar responder rápido sem elaborar demais. Embora seja difícil, são muitas questões diretas e indiretas que estamos refletindo desde a campanha do atual presidente, que, vale dizer, sempre fui oposição; pelo fato desse homem não me representar nem de longe, nem quem me cerca e muito menos nossos desejos de mundo. É preciso reafirmar que existe sim uma necropolítica nos governando para o caos total, pautado no capitalismo violento e contra a vida de tudo que não se enquadre na cerquinha cristã, moralista, falsa, burguesa, branca, machista.
Vou às manifestações por ser pobre, por ser negro, por ser artista, por acreditar no caminho de transição socialista-comunista, por acreditar na vida, no amor, na arte, no prazer, todo poder ao povo. Por acreditar que a micro política em casa, família, amigues, tem muito poder mas também tem limite, é preciso se organizar e não se calar em situações de violência, as manifestações instigadas pela esquerda radical no país tem uma potência incrível do coletivo ficar mais forte e consciente.
É muito triste o que estamos vivendo, não dá mesmo pra ficar "de boas", estamos em guerra, parece até dramático falar isso mas se analisar bem sempre estivemos, mas essa batalha de agora nos destrói demais, nos faz voltar no tempo de um jeito muito negativo. É preciso lutar sim, entendendo e respeitando os cuidados com a saúde de cada um também, quem não vai pra rua pode sim movimentar outros espaços, inclusive virtuais.
Eu sou de Olinda, já participei de algumas manifestações em Pernambuco, no Rio de Janeiro e agora em São Paulo. Posso dizer que a sensação mais forte em mim é a de coletividade, de vibrar junto por o que acreditamos, de realinhar esses desejos e, também, de soltar alguns gritos de angústia, faz bem, é terapêutico depois de absorver tanta coisa desse governo ir pra rua e soltar é o mínimo! O último, 19J foi a coisa mais forte dos últimos anos, de vibração coletiva e mês que vem tem mais.
Estamos cada vez mais nos organizando e eu desejo cada vez mais a descriminalização ideológica do comunismo, mais pessoas se informando e se identificando enquanto socialista e buscando compreender o que deseja uma sociedade com princípios comunistas, sabendo que o Brasil é um país diferente de outros e que podemos sim construir esse lugar que dizem utópico, mas sim, é utopia mesmo que precisamos.
Quero que Bolsonaro caia, Mourão também, esse governo, seus ministros e aliados. Quero que isso aconteça antes da eleição 2022. Bolsonaro na cadeia".

"Estar nas manifestações e ver que existem pessoas procurando pela mesma mudança que eu, me dá uma pitada de esperança".
Gabryelle Pereira
"A minha maior motivação para ir às manifestações é sentir que eu tô fazendo alguma coisa para que a situação mude. Eu fico muito desanimada quando vejo a conjuntura que a gente vive e como tem tanta gente morrendo, seja por essa doença ou por outras coisas, e as pessoas que são responsáveis por isso não são responsabilizadas, sabe? Então, o que me motiva é essa sensação de poder fazer alguma coisa, de pelo menos estar lá, gritando, abrindo os pulmões por justiça.
No meio da pandemia é complicado. Realmente dá medo, mas eu acredito muito que pode acontecer uma mudança a partir daí, pode ser que ela seja rápida, pode ser que demore um tempo; mas, para mim, é muito importante ter esse espaço para expor minha indignação e eu me sinto muito contemplada - não sei se é muito bem essa palavra - mas estar presente nesses atos faz com que eu sinta que estou fazendo alguma coisa. Eu sei que a política vai muito além de manifestações, há todo um trabalho de base que precisa ser desenvolvido, mas estar lá nas manifestações e ver que existem pessoas procurando pela mesma mudança que eu, me dá uma pitada de esperança, eu me sinto mais animada. Sinto uma certa perspectiva de futuro, sabe? As coisas podem ser melhores e nada está tão perdido.
Para mim, pelo menos, o que é mais palpável através dos protestos é essa questão de abrir os olhos das pessoas. Talvez não tenha o resultado efetivo que a gente busca, que é a queda do governo, mas eu acho que se a gente conseguir mobilizar as pessoas e conseguir fazer com que o proletariado, a galera pobre de periferia entenda que a opinião dela, o voto dela é importante, acho que isso já vai mudar bastante o cenário pensando nas eleições do ano que vem. É isso mais que eu espero, muito mais do que a queda do Bolsonaro e de todo governo, é mais esse trabalho de base mesmo. Que exista uma mobilização popular, nas ruas ou não, mas que possa fazer com que as pessoas tenham um olhar mais crítico sobre a política e entendam que ela não se faz só de quatro em quatro anos".

"As manifestações de rua têm o poder de elevar a voz do povo"
Ana Carolina Migliora
"Eu sou militante organizada, o que me ajuda a ter uma noção maior do que a gente tá vivendo. Muitas pessoas têm medo de ir às ruas, por conta do vírus e isso é muito válido, mas no momento eu vou às ruas (vacinada da primeira dose), porque entendo que o governo é mais perigoso para nossa população do que o próprio vírus.
Como sou grupo de risco alto por conta de uma questão de doença crônica, só fui a ato depois de vacinada, então o primeiro (desde o início da pandemia) foi o do dia 19 de junho, mas eu vejo que as manifestações de rua têm o poder de elevar a voz do povo e o que eu realmente espero que através das ruas se concretize a queda do governo Bolsonaro".

A crise sanitária provocada pela pandemia de Covid-19 vem se alastrando pelo Brasil desde março de 2020 - mês em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou a doença como uma pandemia. Desde então o país passa por um acúmulo de problemáticas que - ainda que já existissem - se agravaram com a doença. O desemprego, o aumento de preço de alimentos básicos, o número alarmante de óbitos - que já passam dos 500 mil -, o descaso do Estado em relação a compra de vacinas e a posição negacionista do Presidente da República levam ao alto índice de rejeição que o governo federal vem enfrentando. Segundo pesquisa do Datafolha feita em março de 2021, 54% reprovam as decisões de Bolsonaro - especialmente no que concerne à pandemia -, um recorde desde o início de sua gestão em janeiro de 2019.
Em meio a este cenário, protestos vêm sendo convocados em diversas cidades do Brasil, a fim de pontuar o descontentamento popular em relação à Bolsonaro e sua negligência em adotar medidas efetivas para impedir o agravamento da crise sanitária, além de turbinar a Comissão Parlamentar de Inquérito - a “CPI da Covid” - que tramita no Senado com o objetivo de avaliar se houve falhas do governo federal no enfrentamento da pandemia. O primeiro grande protesto convocado este ano contra Jair Bolsonaro ocorreu no dia 29 de maio (sábado), em 27 capitais brasileiras.
Em São Paulo a concentração partiu da Avenida Paulista, próximo ao MASP, e contou com 80 mil pessoas - segundo organizadores. Muitas críticas foram levantadas a respeito das manifestações, uma vez que poderiam ir contra os protocolos de distanciamento social que visam diminuir o contágio - e consequentemente o número de casos e óbitos. Por essa razão, organizações como CUT (Central Única de Trabalhadores) e MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Teto) - notoriamente de oposição a Bolsonaro - não convocaram institucionalmente seus membros, ainda que não os impeçam de ir.
No entanto, importante ressaltar que a manifestação do 29M teve ampla aderência de máscaras eficazes, como a PFF2, KN95 e a 3M, também haviam muitos manifestantes com faceshield - poucas eram as pessoas vistas sem qualquer tipo de proteção. A manifestação na capital paulista durou mais de quatro horas e atravessou toda a Paulista e a Consolação, se dispersando apenas na Praça Roosevelt - localizada na região central.
O protagonismo das manifestações são de entidades de esquerda que pretendem construir uma frente de oposição forte contra o negacionismo de Jair Bolsonaro. Partidos como PT (Partido dos Trabalhadores), PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), PCdoB (Partido Comunista do Brasil), PCB (Partido Comunista Brasileiro), PCO (Partido da Causa Operária), entre outros, ocuparam a Avenida Paulista em peso, convocando seus militantes às ruas. Segundo Rafael Pluciennik (20), estudante de psicologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro da União da Juventude Comunista (UJC) - uma das organizações do PCB - que esteve presente na manifestação do dia 29 de maio, o atual cenário obriga a população a ir às ruas. “Ir em uma manifestação no meio de uma pandemia não é algo que queremos, não é o que a gente faz por prazer, mas é uma necessidade que se impõe” - afirma ele.
Segundo ainda Rafael, as manifestações são imprescindíveis para que a população demonstre sua insatisfação com a negligência do Estado que vem matando milhares de brasileiros. “O impacto da manifestação tem caminhado nesse sentido, de pressionar o governo Bolsonaro, de mudar a correlação de força nas ruas, a gente retomando as ruas a gente consegue demonstrar mais força, a gente consegue se impor e fazer com que de alguma forma isso seja ouvido” - explica ele. Já a estudante Isabela Claro (20), que cursa direito na PUC-SP e é participante do coletivo anticapitalista de juventude Afronte - que teve seu próprio bloco nas manifestações do 29M - preferiu não comparecer presencialmente ao protesto: “Por não ter minha família completamente vacinada, e por um receio de contaminação, optei por, pessoalmente, não comparecer às manifestações” - aponta ela.
Apesar de sua escolha pessoal, Isabela apoia veemente a causa que leva mais de 80 mil brasileiros às ruas: “Enquanto cidadã brasileira que sofre e assiste os horrores dos efeitos da política genocida imposta pelo governo de Jair Bolsonaro, (…) é necessário, mais do que nunca, a tomada das ruas pelo povo em nome do FORA BOLSONARO! É não somente legítimo, como urgente, nesse sentido, a realização de atos organizados, como os do 29M”, afirma.
Apesar da diminuição da população carcerária durante a pandemia, o Brasil se manteve no ranking de países que mais prendem no mundo. Considerando o número absoluto, nosso país ocupa a 3ª posição atrás apenas de China e Estados Unidos. Com a superlotação das prisões, as facções criminosas se apoderaram da organização dos presídios e disputam as cárceres brasileiras, que enfrentam enormes problemas de gestão.
Um dos principais problemas do sistema penitenciário brasileiro é a superlotação. Com a quarta maior população carcerária do mundo, o Brasil possui, segundo o Ministério da Justiça, 622 mil detentos, mas apenas 371 mil vagas. E a cada mês, penitenciárias de todo o país recebem 3 mil novos presos. Desde 2000, a população carcerária praticamente dobrou de tamanho. Uma possível solução para esse problema estaria na combinação de penas alternativas e julgamentos mais rápidos. Atualmente, três em cada dez presos brasileiros esperam ser julgados pelos crimes que cometeram atrás das grades. As penitenciárias acabaram se tornando lugares para estocar gente, verdadeiros armazéns humanos, e que não promovem a reinserção social.
Na Suécia, 80% dos prisioneiros são condenados com menos de um ano de prisão. Juízes também vêm dando penas menores especialmente para crimes relacionados a drogas. O mesmo ocorre na Noruega, onde a condenação máxima, com raras exceções, como genocídio ou crimes de guerra, é de 21 anos. No país, a cada cinco anos são feitas avaliações sobre o comportamento do preso e o potencial de sua reabilitação, podendo fazer com que sua pena seja suavizada. Mas se as autoridades perceberem que um preso não está se recuperando, ele pode permanecer na prisão perpetuamente.
A reincidência, ou seja, voltar a praticar o crime, é um problema global e umas das principais razões para prisões tão cheias. No Brasil, essa questão tem dimensões enormes, e segundo estatísticas, 70% dos que deixam a prisão acabam cometendo crimes novamente. Segundo especialistas, uma solução para este problema passa pelo tratamento recebido pelos detentos. Medidas socioeducativas dentro das prisões são indispensáveis para reintegrá-los à sociedade, e em nosso país isso não é feito.
Um estudo realizado pelo Departamento de Justiça dos Estados em 2007 mostrou que um encarceramento mais rígido aumenta as chances de um ex-detento voltar a cometer crimes. Enquanto isso, prisões que incorporam programas comportamentais baseados na aprendizagem social são mais efetivas para evitar que ex-detentos voltem para as grades. A Noruega, por exemplo, segue o modelo chamado de "justiça restaurativa", em oposição à concepção tradicional da justiça criminal - a justiça punitiva, que vigora no Brasil. Esse sistema propõe reparar os danos causados pelo crime em vez de apenas punir pessoas. O foco está em reabilitar os prisioneiros. A prisão de segurança máxima de Halde, na Noruega, é exemplo em todo o mundo. Ali, não há grades nas janelas, as cozinhas são equipadas com objetos pontiagudos, e guardas e prisioneiros mantêm uma relação de convivência saudável. As celas possuem TV, geladeira, e banheiro privativo. Chamada de a penitenciária mais "humanizada do mundo", Halden realiza programas educativos como marcenaria, oficinas de montagem e até um estúdio para gravação musical. Os prisioneiros também realizam aulas esportivas. Iniciativas parecidas também existem na Alemanha e na Holanda, onde em muitas prisões detentos não são tratados de forma insignificante, mas sim forçados a trabalhar e a estudar.
Outro fator que contribui bastante para a superlotação e má gestão do sistema carcerário é a saúde precária dentro das prisões. Estudos mostram que presos brasileiros têm 30 vezes mais chances de contrair tuberculose e quase dez vezes mais chances de serem infectados por HIV (vírus que causa a AIDS) do que o restante da população. Além disso, estão mais vulneráveis à dependência de álcool e drogas. Na Suécia, o país realiza programas de 12 etapas para tratar presos com algum tipo de vício, o que, segundo especialistas, está na raiz de muitos crimes. Segundo o The Guardian, desde 2004, a população prisional da Suécia vem caindo e algumas prisões tiveram de ser fechadas por falta de presos. No Brasil, tanto prisões geridas pelo poder público quanto pelo capital privado enfrentam problemas como superlotação, condições insalubres e rebeliões. Se conseguirmos reduzir a população carcerária, economizamos milhões por ano em recursos públicos, mas isso ainda parece não ser foco dos políticos brasileiros..
São necessárias políticas para solucionar esses problemas, como penas alternativas para crimes de menor gravidade ou acompanhamento obrigatório de prisioneiros em liberdade condicional. Precisamos evitar que os prisioneiros voltem a cometer crimes, então todo o sistema precisa mudar. A falta de apoio da sociedade também afeta essa mudança, já que em todo o mundo, e talvez em maior grau no Brasil, discursos políticos que apelam para um endurecimento do combate ao crime ganham votos, e não o oposto, como vimos nas eleições de 2018.
A cidade perdeu a sua praticidade, onde décadas atrás encontrávamos tudo o que precisávamos para ter qualidade de vida, agora se tornou uma estrutura sufocante, nos condenando a uma massa exausta, estressada e em busca da sobrevivência em um espaço carente de suporte social. O que realmente faz a cidade funcionar melhor? Uma coesão territorial ou uma fragmentação nivelada por classes? Uma cidade integrada ou segregada? A cidade em essência, é aglomeração. E deve ser movida por desejos coletivos.
Com o avanço das décadas, vimos surgir na região central de São Paulo quarteirões vazios, onde andar a pé se tornou algo remoto, desconfortável. Mas o que fez gerar este desconforto? Diversos fatores: ausência de investimento político, falta de espaços públicos, estruturas para receber o morador, ausência de suporte social para os moradores de rua, tráfico de drogas e uma arquitetura agressiva. O centro urbano paulistano tornou-se uma “fábrica” esquecida a céu aberto, onde antes pulsava o crescimento econômico, hoje está estagnada e atrasada no tempo. Prova que demonstra este esquecimento é quando vemos o centro de São Paulo ser classificado como “antigo centro”; Oras, se é o antigo centro, então ficou no passado, o que vale hoje é o “novo centro”, que é moderno, organizado e que atrai os olhos dos turistas e investidores.
O novo centro pode ser dividido em dois: o cultural (Consolação e Jardim Paulista) e o econômico (Faria Lima). Já os bairros que compõe o antigo centro: Sé, Luz, Bom Retiro, Anhangabaú e Campos Elíseos, são os que sofrem com este esquecimento. São bairros que nos dias úteis possuem um alto fluxo de pedestres graças aos pequenos comércios e estações de metrô, porém, aos finais de semana as calçadas tornam-se desertas. Estarem desertas aos finais de semana significa que quem sai para passear pela cidade não se interessa mais pelo antigo centro. Graças aos efeitos de uma má gestão política, o centro se tornou um símbolo da feiura. Antônio Garcia, 47, é atendente em uma padaria no Anhangabaú, e relata como é trabalhar na região. “Eu gosto do centro, sempre tem opções pra o que eu quero. Mas já faz um tempo que ele (o centro) está muito sujo, muita gente largada por aí. O que a gente vê é as vezes a Prefeitura jogando água para tirar o grosso da sujeira da rua e é isso.” É preciso lembrar que nesta região há museus e teatros, mas por ter se tornado uma região carente e violenta, faz com quem quer frequentar estes ambientes use o carro como principal meio de condução, pois é uma forma de “proteção”. Sempre estacionando o veículo dentro do espaço cultural, evitando de ter que caminhar pelas ruas do bairro. “Eu sinto falta da época que o centro era mais bem cuidado, que podia sair por aí e aproveitar até de madrugada. Hoje eu venho pra cá, trabalho e volto pra casa, não me sinto muito feliz em passear por aqui não, está largado.”, diz Antônio.
Infelizmente, não podemos mais depender unicamente do Estado como mediador para a resolução dos problemas urbanísticos, é necessário a busca por novos caminhos; dos quais um chama a atenção: o setor privado. Ao adotarmos regras nos projetos urbanos, o investidor que se interessou em construir em um espaço urbano, terá que investir uma parte do investimento em uma infraestrutura que seja usufruída por quem habita na região, fortalecendo-a.
Uma cidade manejada somente pelo poder econômico (empresas privadas, construtoras ou multinacionais), faz surgir uma cidade murada por milhares de prédios, o que resulta em uma cidade morta, cheia de sombras, hostil ao pedestre e como consequência, muito menos segura. Camila Martins, 35, é moradora e trabalha com vendas de roupas no bairro do Bom Retiro. “Para mim, a única vantagem daqui é que eu moro perto do trabalho, porque de resto. O aluguel até é razoável, , mas o apartamento não é bonito, não tem uma vista boa sabe? A janela só serve para entrar ar e um pouco de luz", declara Camila. O Parque da Luz, por exemplo, já fui algumas vezes, é bonito, mas não me sinto tranquila lá, só vou acompanhada. Prefiro passear em outros lugares”, acrescenta.
Precisamos entender que o poder econômico vê o território urbano como uma mercadoria, para ele é somente um espaço para a ação privada, do uso da terra, como meio para algo que lhe dê retorno. Outro fator que é comumente esquecido nos diálogos urbanos é sobre o estatuto da cidade. É preciso urgentemente incorporá-lo aos fins práticos. Com uma possível revitalização do centro velho, o preço do m² da região subiria consideravelmente, e com o efeito da oferta e demanda imobiliária (novamente), estes terrenos teriam uma grande valorização. Temos que entender que tais propriedades, sejam elas públicas ou privadas, precisam ser usadas; elas precisam cumprir a sua função social do uso. Por quê? Porque o terreno em uma região urbana é um bem escasso, contingente, que precisa ser usado para alguma causa ou propósito; além de ser um direito social, pela liberdade do seu uso.
É preciso compreender que as cidades não foram feitas para gerar pobreza, o seu propósito era o inverso. Em sua natureza, elas são polos de geração de riqueza, servem como uma nova oportunidade para quem vem de regiões carentes e terem uma nova oportunidade. Ou podemos reformular o seu conceito, e pensar na cidade moderna como um sistema econômico que é concentrador e cruel. Logo, pensando por essa perspectiva, a cidade se tornou uma máquina de concentração do capital, para um grupo específico. Se continuarmos deixando o poder econômico aplicar métodos como a contingência econômica, os preços imobiliários sofrerão aumentos abusivos, criando uma bolha imobiliária que poucos terão capacidade de ingressar, e que poderá explodir. Com essa imposição do mercado castigando a classe média, haverá uma tendência de inchar a pirâmide social para baixo. Por exemplo, já está começando um processo do retorno de moradores à bairros que ficam nas margens da nossa cidade, onde estes grupos ficarão isolados em fragmentos do território urbano, morando em lugares afastados ou perigosos; pois são os únicos lugares com um valor acessível para se pagar. Dificultando cada vez mais a chance de aquisição de um imóvel em regiões próximas onde há demanda de emprego; impedindo também que jovens profissionais consigam uma habitação com valores justos, tendo também que escolher por regiões mais afastadas ou irão optar em pagar aluguéis caríssimos (região oeste, por exemplo).
Não vemos surgir um novo território feito de forma planejada; o que permanece é uma repetição contínua da fragmentação das classes sociais dentro da cidade. Para que surja um novo acontecimento urbano, ele não pode se dar em um espaço preenchido pela competitividade puramente comercial, é preciso voltar os olhos para quem vive no muro ao lado, dialogar com os moradores, ouvir as suas realidades, criando um elo, um novo sujeito. Ao aprofundar os processos de escuta territorial, o sujeito que vive no espaço urbano irá sentir-se parte do meio no qual vive. Criando um dispositivo de unir a sociologia com a economia, para assim planejar uma cidade justa para todos que nela vivem; formando uma nova cidade gerada por uma ordem equilibrada.