Eu juro que entrei, que passei pelos arcos da entrada, e levantei os braços: “Estamos de volta!”. Lembrei de quando meu pai me trazia para ver os intermináveis filmes egípcios (com três horas de duração) em meio a "inteligentinhos" cinéfilos de boina. De qualquer forma, “Estamos de volta!”.
É uma afronta o desmonte cultural que estamos sofrendo nos últimos anos; como essas antigas paredes de tijolos (roídas pelo tempo), a cultura - assim como o samba, se me permitem - agoniza mas não morre. Confesso que engasguei durante os discursos de abertura, que engasguei quando vi as cenas do incêndio (de causas ainda não concluídas) consumindo a história do cinema nacional. A nossa história.
Lá fora, a praga que corrói nossa cultura; aqui dentro, "A Praga" de José Mojica, filme inédito, feito em português e dublado em português devido a seu áudio estar corrompido e perdido com os anos de esquecimento. Ali, voltamos à primeira vez em que vimos o Zé do Caixão amedrontar nossos sonhos e fazer com que cortássemos nossas unhas o mais curto possível, voltamos ao primeiro estranhamento do cinema perturbador que temos aqui no Brasil… todo mundo estava em novidade.
Quando Zé do Caixão abre o filme nos perguntando se somos supersticiosos ou se desafiamos o desconhecido, eu sabia que era de verdade.
Sexta feira 13. Ali, éramos as almas da cinemateca brasileira.
Nadismo.
É quase inequívoco que as artes em geral levam o ser humano à distração, ao relaxamento. Ficamos presos na série que maratonamos na madrugada, no livro que lemos no final da tarde, abusamos do repeat nos aplicativos de música, e é natural, e até esperado, que essas coisas venham trazer relaxamento para o corpo e a mente.
Quando falamos de sono, uma das dicas que sempre surgem é: “coloca uma música para relaxar”, confesso que sou apaixonado por música e não dispenso ouvir algo sempre que posso, mas, mais do que ouvir algo, não tem nada mais relaxante, prazeroso e cômodo do que não fazer nada.
Em uma entrevista no extinto Programa do Porchat, a jornalista e apresentadora Marília Gabriela foi perguntada sobre isso, o que ela gostava de fazer no tempo livre. A resposta foi imediata de bate e pronto, sem medo das reações: fazer nada!
É preciso coragem para admitir que fazer nada é um exercício, afinal, em um mundo que aparentar ser, vale mais que o ser, alguém que tem prazer em não fazer nada é um perdido na vida, alguém vadio, com tempo de sobra e sem compromisso com nada e nem ninguém. Errado! O não fazer nada exige do sujeito uma concentração ímpar.
Tem que estar ali, não só o corpo, a mente também, e é neste ponto que é preciso a atenção. A mente nunca está não fazendo nada, até porque sempre estamos pensando em alguma coisa, mas a mente de quando não fazemos nada ela pode até pensar coisas relevantes, mas a obrigação dela naquele momento é fazer nada, sem preocupações, sem dilemas, apenas, não fazer nada.
Podemos associar o não fazer nada a dormir, e de todo não estaria errado, mas não fazer nada vai além do exercício, é um estado de espírito que você decide estar.
Para fugir do caos, para descansar a mente, para recarregar as energias, a melhor escolha que fazemos, tendo apenas como compromisso o nosso relaxamento, é não fazer nada. E no final, não fazer nada, já é fazer alguma coisa.
Um dos principais capistas da MPB, Elifas Andreato nos deixou na manhã desta terça-feira (29), aos 76 anos. Com cores fortes e de traços únicos, as capas de Elifas expressavam a alma dos inúmeros discos, LP’s, CD’s e DVD 's. Existe despedida possível para artistas da grandeza de Andreato ?
Defensor da democracia e com obra marcada pela defesa dos direitos humanos, Andreato expande aquilo que entendemos como artista. Plural, histórico, belo, as obras de Elifas retrataram a vivacidade do Brasil em períodos que o dia era cinza, em que os anos eram chumbo.
O paranaense de Rolândia levava para as suas capas alma, uma alma multicolorida e musical. E Andreato fazia com uma sensibilidade que só alguém de alma grande conseguiria fazer, alguém que acreditava em um país daquela forma, um país multicolorido. Elifas criou a identidade visual das capas de discos do final do século XX, você talvez não saiba, mas já admirou a obra dele sem o conhecer.
O “Ópera do Malandro”, de Chico Buarque, é um dos trabalhos mais conhecidos de Andreato. Hoje o Brasil acordou cantando uma faixa desse disco, “Pedaço de Mim”.
“Ó pedaço de mim
Ó metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco”
Como vamos nos despedir de Elifas e de sua obra ? Não existe despedida possível.
As ilustrações de Elifas ficam como acalento para um país arrasado por perdas recentes. Um país que tem perdido a cor. Um país pintado de ódio. A cultura brasileira não perde um símbolo, ganha uma missão.
A missão de fazer o Brasil vivo, belo e multicolorido, como Elifas Andreato fez em toda a sua vida.
A morte inesperada nos mostra a fragilidade humana. Não que seja desconhecida, pelo contrário, todos sabem o quanto o ser humano é frágil e efêmero. Talvez a única certeza da vida seja a morte, e apesar de saber disso, não temos preparo para vivenciar esse processo.
Um artista não morre, porque sua obra não o deixa morrer. Artistas são eternos na memória cultural. Marília Mendonça nos deixou nesta sexta-feira (05), mas a sua arte não a deixará morrer. Marília foi um fenômeno da música brasileira, uma artista completa. Instrumentista, cantora, compositora, é quase impossível que alguém nunca a tenha escutado no Brasil. Às vezes escutou sem querer, pelo som alto do carro que passou na rua tocando: “apaixonadinha, você me deixou, apaixonadinha, você me deixou”. O Brasil se rendeu ao talento de Marília, estava encantado. Encantado não, apaixonadinho.
A goiana de 26 anos de idade era presença certa na trilha sonora das festas de muitas famílias. Rainha da sofrência, Marília nos fazia sofrer como ninguém. Aliás, sofrer pela voz de Marília não era sofrer. Até quem não tem motivo para sofrer, coloca a mão no peito e balança de um lado para o outro cantarolando: “Tá espalhando por aí que eu esfriei, que eu 'tô' mal, que eu 'tô' sem sal, realmente eu 'tô', sem saudade de você, eu já fiz foi te esquecer”. Obviamente, alguém que canta isso nas condições já ditas, não esqueceu, e sente muita saudade. Mas sofrer com Marília não é sofrer, virou quase um hobby.
Um dos principais nomes do cenário sertanejo atual, Marília empoderou mulheres, fazia da dor de um coração partido poesia, e com isso um afago nos sofredores.
Quando nos deparamos com uma situação assim, constatamos o que já é do conhecimento de todos: somos breves! Todos sentem, porque se foi uma mãe, uma filha, uma neta, um alguém que faz parte da memória afetiva do país. Esses fatores aproximam ainda mais todos da dor da perda, do sentimento de que precisamos cada vez mais valorizar o agora. A perda súbita deixa as lacunas do que não aconteceu, do que não vai acontecer, afinal, já foi.
Não existe manual de como lidar com o luto, cada um o vive à sua maneira. Idas repentinas nos deixam mais frágeis, porque passamos a refletir sobre como estamos vivendo. É doloroso quando vemos alguém deixar os seus sem ao menos se despedir, sem um último abraço, um último “eu te amo”. E dói porque estamos tão suscetíveis quanto. A incerteza amedronta, e tudo é incerto.
É incerto que viveremos o que planejamos. É incerto que teremos tempo de deixar para depois aquela conversa, aquele beijo, aquele abraço. É incerto. O escritor José Saramago escreveu que quando pudermos olhar, temos que ver. Quando pudermos ver, temos que reparar. Ao reparar, humanizamos o próximo, deixamos de ver de forma insensível o que acontece à nossa volta.
Somos breves demais para deixar para depois. O “depois” é um tempo que não temos controle, e nem sabemos se chegará. Breves demais para não aproveitar o agora.
Marília deixa filho, familiares, amigos e uma multidão de fãs e admiradores da sua música, do ser humano Marília Dias Mendonça.
É Marília, vai doer demais escutar o seu “bye, bye”.
A semana, norteada por aparatos tecnológicos, não poderia ser melhor descrita pelo envio e recebimento de e-mails. Abro a caixa de entrada: de segunda à sexta, entulhada por arquivos que chegam aos montes. No fim de semana, finalmente, dão uma trégua. E, quando aparecem no almoço de sábado ou jantar de domingo, certamente são para lembrar-me de finalizar a compra de um produto esquecido no carrinho da loja virtual.
O anseio gerado pela expectativa de determinada mensagem já me tirou noites de sono, me fazendo sonhar de olhos abertos pelas madrugadas. E, só quem viveu sabe, a decepção que é abrir a caixa de entrada e não encontrar nada ali para além das propagandas implorando para serem notadas. Ou, na pior das hipóteses, as contas do mês que chegaram...de novo! Não há tecnologia que nos salve dos boletos aguardando pagamento.
Encaro o correio eletrônico como metáforas que simbolizam a passagem do tempo, uma retrospectiva da vida moderna. Afinal, basta comparar os e-mails de janeiro aos de dezembro. O que aconteceu neste período? Histórias que tomaram outros caminhos, se apaixonaram, se despediram de entes e amigos queridos, se viram diante de episódios jamais imaginados. São tantos rumos que poderiam ser recontados a partir da narrativa deixada pelos substitutos das cartas. Não obstante, não raro incorporam os papéis de jornais ou livrarias, lhe recomendando autores nunca lidos anteriormente, te levando para a notícia tão fresca quanto uma melancia recém tirada da geladeira. Como leitora, me sinto plenamente derrotada pelos algoritmos quando sou obrigada a assumir que dada recomendação estava certa. “Por que eu não havia lido isso antes?”.
Como uma cronista amadora que se vê rascunhando acerca do mundo que tem à volta, faço da caixa de entrada um verdadeiro acervo de lembranças. Sendo incapaz de escrever sobre todas elas, me pego bisbilhotando os textos que exalam formalidade, sempre terminados em “abraço” ou “atenciosamente”. Dou risada. Mando cópia para outras pessoas. Me transporto para o passado enquanto recordo os momentos especiais cujos detalhes seriam apagados da memória se não fossem, claro, os e-mails.
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