Transformando a vida de milhões de pessoas todo ano, merece mais reconhecimento e recursos para manter o Brasil vivo
por
Vítor Nhoatto
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28/11/2025 - 12h

Por Vítor Nhoatto

 

Uma das poucas certezas de todo ser humano, tal qual a morte, é a doença. Sabe aquele resfriado que vem junto ao seco do frio, uma ferida que infecciona depois de cair de bicicleta, até aquelas mais sérias que podem aparecer. Fato é que sem saúde não se vive, sendo um direito constitucional não por acaso. Sendo assim, é preciso que o acesso a essa necessidade tão básica quanto respirar e se alimentar seja universal, e não um bem a se comprar apenas por aqueles que podem.

Para isso então que existe o Sistema Único de Saúde (SUS), tão falado e muito mais presente na vida do que alguns podem sequer imaginar, ou querer. Para se ter uma ideia, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão regulador dos medicamentos disponíveis no país, de controle alimentar e hídrico, faz parte do SUS. Regulamentado em 1990, é responsável pelas vacinas e desenvolvimento científico ainda, e sabe os planos de saúde, a Agência Nacional de Saúde (ANS), que os regula, também é integrante do sistema.

Para falar dessa diferença real na vida, antes é preciso até olhar nos papéis para lembrar já a quanto tempo ele é médico, enfermeiro, farmácia. De cabelos curtos hoje, depois de uma repaginada no visual devido ao câncer de pulmão que teve justamente na pandemia de COVID-19, Léia Marisa celebra que há dois anos consegue receber na AME Maria Zélia o micofenolato de Mofetila. Pois é, muitas vezes quando o nome é chique o preço é alto, uns R$500 por caixa, mil reais por mês gastos antes da papelada ficar pronta e ser aceita em 30 de novembro de 2023, já que a doença não espera os trâmites e filas.

A ex-professora, atual dona de casa e empresária a distância do seu restaurante, conta como o período de descoberta e tratamento do câncer, que levou até questões reumatológicas, e ajudou a descobrir uma artrite reumatoide, foi muito difícil. Entre dezenas de idas ao hospital de 2020 até 2023 até chegar ao diagnóstico, foram dias desgastantes, assustadores, e toda ajuda foi essencial, principalmente com os custos de sobreviver à doença. No caso dela, o tratamento do tumor foi feito em rede privada graças ao seu plano de saúde empresarial, que custa salgados R$5 mil reais ao mês. Só aqui são quase quatro salários mínimos, um privilégio muito grande, como ela destaca, olhando para um país em que apenas 7,60% da população ganha entre 5 e 10 salários como o Censo de 2022 do Instituto brasileiro de Geografia e Estatística revela. 

Se aprofundando mais ainda nos fatos, de acordo com o estudo “Quanto custa o câncer” de 2023 do Observatório de Oncologia, do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE) e do Movimento Todos Juntos Contra o Câncer, os custos de tratamento da doença quadruplicaram nos últimos três anos. Uma sessão de radioterapia ou quimioterapia custava quase R$800 em 2022, e dezenas são necessárias na maioria das vezes. Acrescentando nessa conta, consultas, tomografias e biópsias, mil reais ali e cinco acolá, o custo chega facilmente ultrapassa dezenas de milhares de reais. Isso é ainda mais preocupante tendo em conta a incidência do câncer na população, que segundo o Instituto Nacional do Câncer (INCA) entre 2023 e 2025, 704 mil pessoas terão a doença como Marisa. 

E com isso que o SUS se mostra como algo tão relevante, oferecendo tratamento integral e gratuito contra todos os tipos de cânceres. Claro que muitos problemas existem, como destaca Marisa ao lembrar que quando estava no meio do tratamento enfrentou problemas com o plano de saúde, mas que só o medo de depender da demora do SUS caso fosse preciso, a preocupava muito. A saúde é o bem mais precioso para, o que para todos provavelmente deva ser, e por isso justamente que em 2012 a lei 12.732/12 obriga que o tratamento contra o câncer tem que ser iniciado em até 60 dias após o diagnóstico. 

Mas além disso, com os olhos marejados depois de navegar novamente no mar agitado que foi a jornada até a vida que tem hoje, curada e com o diagnóstico da sua doença crônica, ela volta e lembra que a diferença que não ter que pagar pelo Micofenolato que a mantém respirando faz.  Quando tinha que arcar com as despesas era como um fardo a mais imposto a ela, que considera a saúde hoje como o bem mais valioso. As idas mensais  ao posto são um alívio hoje para ela, destacando que o seu medicamento nunca faltou até então, mas que já presenciou pessoas na situação contrária e que não tinham como arcar pessoalmente com os gastos. Essa é uma realidade infelizmente, segundo fiscalização de 2023 da secretaria de contas do Estado de São Paulo, em quase metade dos postos visitados faltavam algum medicamento.

papéis
A cada seis meses Marisa tem que renovar a receita e toda a papelada para solicitação do seu medicamento junto a AME - Foto: Vítor Nhoatto

Milhões de uns

Mesmo que falte muito, afinal, só 4,16% do orçamento federal foi destinado à saúde em 2024 segundo o Painel do Orçamento Federal, a porcentagem vem aumentando desde 2022, e milhões de brasileiros são atendidos todos os dias. O Brasil é o único país do mundo com mais de 100 milhões de habitantes com um sistema universal de saúde, e 213 milhões dependem diretamente do SUS, segundo o Ministério da Saúde, que contabiliza em média 2,8 bilhões de atendimentos por ano, empregando 3,5 milhões de profissionais.

E mais um desses uns é Valdir Sousa, que do alto de seus 63 anos de idade é um típico caso brasieleiro. Com diabetes do tipo II há 20 anos e hipertenso, conta que se não fosse o acesso ao sistema gratuito, sua vida seria muito diferente, obviamente pelo lado financeiro, e muito também pelo bem-estar. O mineiro nascido em São João do Paraíso e que vive em São Paulo há décadas já viu tanto na vida, e com o passar do tempo o que todos querem e merecem é justamente qualidade de vida. Essa no caso, em grande parte possível graças a insulina que busca no posto na Freguesia do Ó e os comprimidos que cuidam do seu coração acelerado.

Justamente essa hipertensão que é a doença mais presente nos peitos animados dos brasileiros, e 52% da população é diagnosticada com alguma DCNTs, como revela a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019. Além disso, segundo dados de 2020 da Organização Mundial da Saúde (OMS), as doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) como as de Valdir são tecnicamente chamadas, são as mais comuns no mundo e no Brasil, com o diabetes inclusive tendo aumentado 70% entre 2000 e 2019. 

Para contextualização, nos Estados Unidos existe há alguns anos o movimento nas redes sociais insulin4all, criado pela organização sem fins lucrativos T1 International, que denuncia os altos custos da insulina no país, onde um frasco de 10ml gira em torno de U$330. Tal situação vem levando inclusive pessoas a racionarem o medicamento, o que pode levar a complicações e até a morte em casos mais graves. Já no Brasil, o mesmo remédio é disponibilizado pelo SUS, e o preço máximo permitido por lei é de R$125,30. 

Diante desses dados e o envelhecimento da população fica claro como a saúde vai ser cada vez mais necessária, tal qual destaca o jovem de espírito Valdir, que já foi pedreiro e auxiliar de manutenção geral em uma lanchonete, justamente no Hospital das Clínicas. As histórias que já viu na maior referência de saúde pública brasileira enchem a sua mente, e as palavras saem inquietas sobre as melhorias que o SUS precisa e as pessoas merecem. Ele conta em meio a suspiros que quando precisa de exames mais urgentes, ou consultas em meio a crises, tem que recorrer ao plano de saúde da sua esposa, do qual é dependente, já que as unidades de saúde estão sempre cheias e a fila de espera passa de meses algumas vezes. 

Foi nessas passagens obrigadas pela rede privada que ele inclusive descobriu mais um integrante do seu pacote, a doença renal crônica há um ano. Porém, é no SUS que o acompanhamento com nutricionista, nefrologista e endocrinologista foi possível, uma rotina de cuidados essenciais para uma boa qualidade de vida para quem tem a condição. É graças a essa rede de profissionais e a farmácia popular que Valdir vai aproveitando com os dois filhos e a mulher os seus dias, frisando com a voz até meia trêmula, que sem isso não poderia se ter o seu direito de viver com saúde exercido plenamente.

medicamentos
São graças a compostos como esses que tanto Marisa ou Valdir, e os mais de 100 milhões de brasileiros com doenças crônicas podem viver bem tal qual a constituição garante - Foto: Vítor Nhoatto

 

ONG Jardim das Borboletas se destaca no acolhimento e na luta por dignidade
por
Manuela Dias
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27/11/2025 - 12h

A falta de diagnóstico precoce, o preconceito e a dificuldade de acesso ao básico ainda moldam a dura rotina de quem convive com a Epidermólise Bolhosa (EB) no Brasil. A doença genética rara, caracterizada pela extrema fragilidade da pele e pela formação de bolhas internas e externas, permanece pouco conhecida até mesmo entre profissionais de saúde.  


Em meio a essa realidade, a ONG Jardim das Borboletas, fundada em 2017 por Aline Teixeira, tornou-se um dos principais pilares de apoio a pessoas com EB no país. Hoje, a instituição acompanha 162 famílias, atua em 24 estados e no Distrito Federal e oferece atendimento totalmente gratuito, humanizado e multidisciplinar.

Cuidado começa pela informação

Com sede em Caculé (BA) e uma casa de apoio em São Paulo (SP), o Jardim das Borboletas nasceu da sensibilização de Aline ao conhecer uma criança com EB. A história, inicialmente marcada por uma campanha de ajuda individual, tornou-se a semente de um projeto nacional. “Eu vi a necessidade daquela criança e quis ajudar. Mas percebi que existiam muitas outras na mesma situação ou até pior. Então a gente segue acolhendo outras crianças”, lembra Aline.

Hoje, a ONG dispõe de uma equipe composta por assistente social, enfermeira, nutricionista, psicóloga e advogada. O atendimento remoto acontece de segunda a sexta-feira, sempre de forma individualizada.

O processo de inclusão de novos pacientes passa por um setor assistencial estruturado: “Nós temos uma assistente social que faz toda a triagem, conhece a família, avalia a situação e identifica como podemos ajudar”, explica.


O peso do preconceito

Além da fragilidade da pele, as pessoas com Epidermólise Bolhosa enfrentam outra ferida: o preconceito. A desinformação sobre a doença faz com que muitos pacientes sejam olhados com estranhamento, evitados em espaços públicos e, em alguns casos, até impedidos de frequentar escolas ou ambientes comunitários.


Para Aline Teixeira, essa é uma das barreiras mais dolorosas: “A segunda maior dificuldade é o preconceito da sociedade pela falta de conhecimento. Isso machuca muito”, afirma.

A aparência das lesões costuma gerar medo e julgamentos equivocados, reforçando o isolamento das famílias e agravando o sofrimento emocional. Muitas mães relatam episódios de exclusão, como pessoas que mudam de assento ao lado de seus filhos ou que se afastam por acreditar, erroneamente, que a doença é contagiosa. Por isso, a informação é um dos pilares do Jardim das Borboletas: “Nossa principal frente é divulgar a doença para o máximo de pessoas possível. Quando a sociedade entende o que é a EB, o preconceito diminui e isso já transforma vidas”, explica Aline.


A falta de conhecimento público, combinada com a invisibilidade da doença rara, aprofunda desafios que vão além da saúde física. Enfrentar o preconceito significa também lutar por pertencimento, inclusão e respeito.

 

 A ONG busca ser reconhecida como referência e destaque na área de reabilitação e assistência a crianças com Epidermólise Bolhosa e outras doenças raras de pele.

A ONG busca ser reconhecida como referência e destaque na área de reabilitação e assistência a crianças com Epidermólise Bolhosa e outras doenças raras de pele. Foto: Divulgação


Caixinha do Amor

Todos os assistidos recebem mensalmente a “Caixinha do Amor”, que inclui itens de higiene, curativos especiais, suplementos e medicamentos. O acesso a esses materiais é vital, já que a manutenção da pele exige curativos específicos e de alto custo. Para Aline, mais do que suprimentos, a ONG entrega dignidade: “Quando você tem acesso ao tratamento, você se sente uma pessoa mais digna. O projeto dá dignidade não só às crianças, mas às famílias inteiras.”


Ao mesmo tempo, a ONG enfrenta suas próprias batalhas: “Nosso maior desafio é conseguir padrinhos que nos ajudem a manter a assistência. E precisamos construir nossa sede para ter um espaço próprio e realizar ações ainda mais assertivas.”


Como ajudar a ONG

O trabalho do Jardim das Borboletas só é possível graças à solidariedade de pessoas e empresas que entendem o impacto transformador de cada gesto. 


Contribuir com a ONG é simples e acessível: é possível fazer doações mensais ou avulsas, que garantem a compra de curativos, suplementos e outros materiais essenciais; também é muito bem-vinda a doação de itens de higiene e curativos especiais, indispensáveis para o cuidado diário e para a prevenção de infecções. 


Quem deseja se envolver ainda mais pode atuar como voluntário, oferecendo tempo e conhecimento em áreas como saúde, comunicação, direito, administração ou educação. Outra forma poderosa de ajudar é compartilhar a causa, divulgando informações sobre a Epidermólise Bolhosa e sobre o trabalho realizado pela ONG, contribuindo para combater o preconceito e ampliar o alcance do projeto. Para conhecer todas as formas de participação e apoio, basta acessar o site do Jardim das Borboletas.

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Os efeitos que o TCC causa nos universitários expõem a fragilidade do cuidado com o psicológico diante da pressão no encerramento da graduação
por
Olivia Ferreira
Sofia Morelli
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18/11/2025 - 12h

 

A fase final da faculdade é uma época de ansiedades e pressões que vêm tanto do ambiente acadêmico quanto social e, o Trabalho de Conclusão de Curso, o famoso TCC, é visto por muitos como o grande desafio da vida universitária. Ele representa o encerramento de um ciclo, a consolidação de anos de estudo e o primeiro grande passo em direção ao mercado de trabalho. Mas, por trás das apresentações de sucesso e das bancas avaliadoras, há um lado pouco falado: o impacto que o processo de criação do TCC tem sobre a saúde mental dos estudantes.

 

Mulher mentalmente esgotada diante livros de estudo
Foto: Vestibular Brasil Escola UOL 

 

Ao longo do processo do trabalho é comum os graduandos se concentrarem totalmente nesse projeto, deixando para segundo plano sua saúde mental e até mesmo a saúde física. Além do encerramento da fase universitária, estudantes lidam com o início da vida profissional, causando ainda mais estresse durante esse período e diversos problemas graves de saúde que atingem diretamente o bem-estar do profissional, como o conhecido “burnout” e crises de ansiedade e pânico. Uma pesquisa feita pela Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) revelou que quanto maior a percepção de relação com professores e colegas, conciliação dos estudos e do lazer, pressão das disciplinas, provas, trabalhos e conciliar o estágio profissional, maior o índice da Síndrome de Burnout em estudantes.

 

 

Causas principais 

Essa vivência dramática- a primeira experiência angustiante com grande peso emocional- muitas vezes ocasiona o “burnout”, um termo utilizado para designar um trauma de longa exposição gerado quando o corpo é continuamente informado de perigo. Esse problema derivado de uma alta carga de estresse e exaustão compromete sua capacidade de concentração e produtividade. Ele se manifesta por meio de sintomas emocionais que atravessam a psique, impactando o físico. Essa pressão transforma o processo de aprendizagem em um ciclo de sofrimento e desmotivação, o que evidencia a urgência de se discutir e promover práticas de cuidado e prevenção dentro do ambiente educacional.

Mapa mental sobre os sintomas do burnout
Foto: Infográfico/ Laura Urbano

As pressões externas e internas que acorrentam discentes- e que ocasionam diversos sentimentos maléficos tanto para o desempenho didático quanto para a saúde mental- reproduzem discursos de esgotamento marcados por cobranças, falta de tempo e medo do fracasso. Além disso, a carga de tarefas é intensa: aulas, estágio, trabalho, relatórios e reuniões com o orientador,  o que resulta em  um cotidiano sobrecarregado e sem espaço para descanso ou autocuidado.“É importante equilibrar essa época da vida com atividades relaxantes e que tirem o foco do trabalho e até mesmo do tema. Saiba até onde você consegue ir, você é limitado.” afirma o psicólogo Paulo Scholze. 

Praticar atividades físicas, buscar suporte emocional e fazer coisas que sejam prazerosas são maneiras que auxiliam para um processo mais leve. Segundo Scholze, o apoio emocional é o ponto chave para lidar de forma mais calma na criação do trabalho. Os orientadores devem  escutar o aluno, e caso isso não seja possível, deve-se procurar pessoas que já passaram por essa fase e que possam oferecer apoio.

Paulo Scholze conta sua experiência com o TCC, durante a pandemia. Apesar do prazer de dar espaço para “sua própria voz”, como o mesmo explica, de poder se descobrir como autor desta pesquisa e do trabalho final —“Me descobri um pouco nesse lugar de autoria”—, o psicólogo também sofreu com a angústia costumeira. Explica como as tensões se agravam conforme se aproximam do prazo de entrega. 

Para lidar com a pressão, cada estudante cria sua própria estratégia. Alguns se apoiam em grupos de amigos, outros buscam terapia, e há quem recorra ao café e à força de vontade. “É difícil falar sobre como pacientes em geral lidam com essa fase da vida, porque todos vivem de forma muito distante. Mas, posso afirmar que acho difícil que seja algo muito tranquilo, sempre tem uma dose de angústia.” diz o psicólogo. 

Uma forma de evitar o peso maciço de demandas como a do TCC, foi descrita pela escritora inglesa, Virgínia Woolf. A mesma dizia intercalar seus romances complexos e profundos com narrativas mais simples e mais facilmente prazerosas, “livros de férias”,  como uma forma de escape da pressão que sentia na escrita dos livros mais difíceis. 

Se pode trazer este conceito para perto do assunto do TCC, ideia desenvolvida por Paulo Scholze, que usou essa analogia para exemplificar uma orientação que ajuda a lidar com a complexidade do trabalho, usando os hobbies e outros interesses como um escape para os formandos.

 

Prevenção do estresse excessivo

Algumas orientações e indicações gerais de Scholze para levar o desenvolvimento do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de maneira mais equilibrada são:

  • Fazer com que não seja um esforço contínuo: pensar no projeto com calma e tentar um ritmo menos intenso;

  • Escolher um tema que lhe agrade para manter o interesse;

  • Encontrar uma voz: não precisa ser perfeito e se auto cobrar menos;

  • Ter alguém que te escute e auxilie nessa fase desafiadora; 

  • Encontrar paz;

  • Refletir sobre como o projeto é algo que irá se concluir, algo passageiro;

  • Fazer coisas que te interessam;

  • Falar de temas que instigam algo dentro de você.




 

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Os hormônios chamados bioidênticos têm sido usados no tratamento de sintomas da menopausa.
por
manuela schenk scussiato
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17/11/2025 - 12h

Por: Manuela Schenk

 

Maria Rosa é moradora de um bairro tranquilo em Belo Horizonte e tem 58 anos. Vivia dias que pareciam sempre nublados. A menopausa havia chegado silenciosa, mas dominando cada detalhe de sua rotina: noites interrompidas por ondas de calor, cansaço persistente e um humor tão instável quanto o clima da cidade. Professora aposentada, ela se viu pela primeira vez incapaz de organizar sua própria vida, como se o corpo tivesse assumido o comando sem pedir permissão.

Os meses seguintes foram marcados por idas e vindas a médicos, tentativas de adaptar a rotina e conversas demoradas com amigas que compartilhavam experiências semelhantes. Nada parecia surtir efeito, até que ouviu falar de uma abordagem que ganhava espaço em consultórios especializados: a terapia com hormônios bioidênticos. Curiosa e cansada de sentir que estava vivendo apenas no piloto automático, Maria decidiu buscar uma avaliação completa para entender se aquela alternativa poderia ser adequada para ela.

A equipe médica analisou seu histórico e, após uma explicação detalhada sobre os possíveis benefícios e limitações, apresentou a reposição hormonal bioidêntica como uma opção. Maria aceitou iniciar o tratamento, não como uma promessa de solução mágica, mas como a possibilidade de reencontrar a si mesma. Nos dias seguintes, seu ceticismo dividia espaço com uma esperança tímida, que ela mal ousava verbalizar.

As mudanças começaram de forma sutil. As noites tornaram-se menos turbulentas, os suores repentinos diminuíram e, com o sono mais estável, veio também uma energia que Maria acreditava ter perdido para sempre. Pequenas vitórias foram se acumulando: a disposição para caminhar pela manhã, o prazer em preparar o próprio café e até a vontade de retomar projetos que havia abandonado quando os sintomas apertavam.

Com o passar dos meses, a melhora deixou de ser apenas física, ela sentiu seu mundo voltando a ter cor. Amigos próximos notaram o brilho renovado no olhar, e Maria passou a falar abertamente sobre sua experiência, sempre destacando que cada mulher tem sua trajetória e que o acompanhamento profissional é indispensável. Para ela, a reposição hormonal bioidêntica representou mais do que um tratamento: foi a reconquista de uma vida que parecia ter escapado pelas frestas do tempo.

Hoje, Maria Rosa caminha pela praça do bairro com passos firmes, como quem recuperou não só o controle do próprio corpo, mas também o entusiasmo pelos dias que virão. Sua história é uma entre tantas que ilustram a complexidade da menopausa e a importância de abordar o tema com informação, cuidado e sensibilidade. E, enquanto observava o movimento ao redor, ela resumiu sua jornada com simplicidade dizendo que a menopausa tentou paralisá-la mas aos poucos ela aprendeu que existe sempre um caminho para voltar a florescer.

Com o tempo, Maria foi percebendo que a melhora não se refletia apenas no cotidiano, mas também em suas relações. Ela voltou a frequentar rodas de leitura, retomou encontros semanais com antigas colegas de profissão e até se animou a planejar pequenas viagens. “Parece que eu reencontrei minha própria companhia”, comentou certa vez, rindo com a naturalidade que havia deixado de sentir. O que antes era medo de enfrentar os dias transformou-se em vontade de ocupar novamente os espaços que sempre foram seus.

Seu marido, Antônio, também testemunhou essa transformação de perto. Ele lembra que, antes do tratamento, as noites eram marcadas por inquietação e cansaço, e as conversas acabavam ofuscadas pela exaustão. Agora, o casal redescobre uma rotina mais leve, com caminhadas ao entardecer e longas conversas na cozinha. Para ambos, a mudança de Maria representou não apenas um avanço individual, mas uma renovação de laços, mostrando como o bem-estar de uma mulher reverbera por toda a família.

Os hormônios desempenham papéis essenciais no equilíbrio do organismo, regulando funções como metabolismo, humor, sono e, quando falamos em reposição hormonal, especialmente para mulheres na menopausa, é comum surgirem dúvidas sobre a diferença entre hormônios tradicionais (sintéticos) e hormônios bioidênticos. Embora ambos tenham o objetivo de aliviar sintomas decorrentes da queda hormonal, eles se distinguem principalmente pela estrutura química e pela forma como o corpo os reconhece.

Os hormônios tradicionais, frequentemente chamados de sintéticos ou não bioidênticos, são produzidos em laboratório, mas não necessariamente possuem a mesma estrutura molecular dos hormônios humanos. Apesar de eficazes para muitas mulheres, podem apresentar respostas variáveis no organismo porque sua interação com os receptores hormonais nem sempre ocorre da mesma forma que com os hormônios naturais. Isso pode influenciar tanto os efeitos desejados quanto o perfil de efeitos colaterais.

Já os hormônios bioidênticos são formulados para terem estrutura molecular idêntica à dos hormônios produzidos naturalmente pelo corpo humano. Por esse motivo, o organismo costuma reconhecê-los e metabolizá-los de maneira mais semelhante aos hormônios endógenos. Essa similaridade é o principal argumento de profissionais e pacientes que relatam maior tolerabilidade e adaptação, embora a resposta possa variar de pessoa para pessoa.

A reposição hormonal feita com hormônios bioidênticos pode oferecer benefícios para mulheres na menopausa, como alívio de ondas de calor, melhora da qualidade do sono, redução da irritabilidade, maior lubrificação vaginal e, em alguns casos, melhora da vitalidade e do bem-estar geral. Algumas mulheres relatam que os bioidênticos promovem um equilíbrio mais suave, possivelmente por serem metabolizados de forma mais natural pelo organismo.

Além disso, especialistas ressaltam que os hormônios bioidênticos podem ser formulados de maneira personalizada, ajustando dosagens e combinações conforme as necessidades individuais de cada mulher, sempre com supervisão de profissionais qualificados. Essa possibilidade de personalização é um dos pontos que costumam atrair pacientes que buscam uma abordagem mais adaptada ao próprio corpo, embora continue sendo fundamental o acompanhamento regular, exames periódicos e avaliação cuidadosa dos resultados.

Apesar das vantagens relatadas, é importante lembrar que qualquer terapia hormonal exige acompanhamento médico, independentemente de ser feita com hormônios sintéticos ou bioidênticos. A combinação adequada de hormônios, a forma de administração e o monitoramento regular são fundamentais para garantir segurança e eficácia. Cada mulher possui necessidades individuais, e somente um profissional qualificado pode orientar a melhor abordagem para cada caso.


 

É importante saber até onde ela esbarra no limite da ética científica
por
Chloé Dana
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18/11/2025 - 12h

Por Chloé Dana

 

Em "A Condição Humana", Hannah Arendt analisa de que maneira a época moderna alterou a centralidade da experiência humana. No passado, a política era o ambiente onde as pessoas se reuniam para construir um mundo compartilhado, um espaço vibrante de debate, divergências e criação coletiva. Atualmente, ela afirma que a política se transformou na gestão da vida orgânica. O foco mudou para a preservação do corpo, aumentando sua longevidade e minimizando seu sofrimento. Assim, a vida pública foi substituída pela luta pela sobrevivência. É nesse cenário que a bioética surge como uma resposta aos desafios que reconfiguram a visão que a humanidade tem de si mesma. Ela facilita discussões sobre o começo e o término da vida, a qualidade da vivência humana, os limites éticos dos experimentos científicos e as implicações das decisões relacionadas ao corpo. Baseia-se em valores como autonomia, dignidade e justiça, tornando-se um guia essencial em um mundo em que a ciência pode interferir de maneira cada vez mais profunda na nossa essência.

A vastidão desse domínio reflete a complexidade da vida atual, envolvendo discussões sobre aborto, euthanasia, objeção de consciência, maternidade substitutiva, tecnologias reprodutivas, decisões médicas influenciadas por crenças religiosas, modificações genéticas e os efeitos ambientais sobre os organismos vivos. A bioética surge porque a ciência contemporânea ganhou a capacidade de editar genes, escolher embriões, manipular dados pessoais, prolongar vidas e transformar corpos. Questionar “até onde a ciência deve ir” é, na essência, perguntar como proteger a humanidade que reside por trás das inovações. É assegurar autonomia, privacidade, proteção dos vulneráveis e igualdade no acesso aos benefícios da biotecnologia. Contudo, essas questões não se restringem apenas à filosofia. Elas se materializam nos consultórios, onde ciência e vulnerabilidade humana se encontram diariamente.

É nesse contexto que a vivência do geneticista Elias Monteiro ilumina, com seu corpo e voz, aquilo que muitas vezes permanece no abstrato. Uma pessoa que carrega, sem alardear, a serena responsabilidade de lidar diariamente com escolhas complicadas. Seu dia inicia cedo, sempre com exames dispostos sobre a mesa, fragmentos de DNA organizados como se fossem pequenas cartas enviadas pelo corpo humano. Cada laudo gera indagações, cada sequência genética oferece uma nova possibilidade, cada variante pode alterar o rumo de uma vida.

Entre esses documentos, aparecem histórias concretas: famílias que buscam esclarecimentos após anos de dúvidas, casais que tentam planejar o futuro com menor temor, adultos que carregam desde a infância incertezas que nunca foram nomeadas. A rotina dele é composta por precisão técnica, mas também por gestos sensíveis. A genética, em suas mãos, não se restringe à análise molecular; se transforma também em tradução, convertendo a linguagem científica em algo que alguém possa utilizar para respirar melhor, entender mais e viver de forma mais plena.

E ao discutir os limites éticos na ciência, é perceptível uma leve alteração em sua perspectiva. Não se trata de medo; é clareza mental. Ele percebe que a tecnologia vigente tem o potencial de modificar estruturas que antes eram imutáveis: realizar edições genéticas, selecionar traços, alterar direções que vão além da vida de quem está na sua frente. Para ele, tal poder requer mais cautela do que entusiasmo. Interferir no DNA de um indivíduo afeta também o futuro de gerações que ainda estão por vir. Por essa razão, ele argumenta que todo progresso deve ser acompanhado por dignidade, autonomia e justiça, pilares fundamentais para que a ciência mantenha sua integridade moral.

A genética, em sua visão, representa um domínio onde a precisão se alia à sensibilidade. Não há imparcialidade diante de um diagnóstico que pode reconfigurar a vida de uma família inteira. Cada explicação, cada resultado e cada previsão traz um impacto emocional que um algoritmo não consegue prever. Para ele, sua função não se encerra ao descobrir uma mutação; é aí que realmente começa. E talvez seja isso que faz sua presença parecer a de alguém que transita entre dois mundos: a exatidão dos dados e a fragilidade humana, a rigidez do código e a empatia da experiência. Seguindo suas considerações, torna-se claro que a bioética não é um território isolado da vida cotidiana, mas uma demanda urgente que permeia cada exame, cada consulta e cada decisão. Pois enquanto a ciência evolui, a ética deve avançar simultaneamente, não como entrave, mas como salvaguarda.

A manipulação genética em humanos traz à tona esse desafio em sua forma mais intensa. Alterar o código que forma a identidade de um ser envolve riscos imprevisíveis e consequências que podem se estender por gerações. Há também a tentação de empregar essas tecnologias para fins não terapêuticos: melhorar a aparência, a capacidade cognitiva, a força física, aumentando desigualdades, criando distinções artificiais, convertendo diferenças em produtos. Portanto, estabelecer limites éticos e legais se mostra essencial para resguardar a dignidade humana e assegurar que o futuro não fique moldado apenas pelos anseios dos mais favorecidos.

Ao considerar todos esses aspectos, desde as inquietações filosóficas de Arendt até os dilemas éticos que a genética contemporânea propõe, torna-se claro que estamos em um ponto crucial da trajetória humana. Nunca tivemos tanta influência sobre a vida e nunca fomos tão responsáveis por decidir como utilizá-la. A ciência avança, rompendo barreiras que antes eram sagradas; a bioética tenta acompanhar esse movimento, lembrando que nenhuma descoberta é isenta de influência, e que qualquer intervenção na vida deve ser feita com cuidado, prudência e compaixão.

O debate acerca da edição genética transcende uma mera questão técnica. é uma reflexão sobre a humanidade que almejamos ser. É nossa responsabilidade, tanto como indivíduos quanto como coletividade, determinar se iremos criar um mundo impulsionado pela urgência de aprimorar a existência ou pela compreensão de sua preservação. Nesse contexto, a bioética aparece não como um obstáculo, mas sim como um guia: uma ferramenta para assegurar que, ao alterarmos elementos do código da vida, não negligenciamos a conservação daquilo que nos caracteriza como seres humanos.

 

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Os centros acadêmicos mobilizaram um ato de paralisação do corpo estudantil, com apoio da bateria Psicolata e de professores, para reclamar os direitos de formação na Reitoria e em frente à Fundasp
por
Artur dos Santos
Giuliana Zanin
João Curi
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20/10/2023 - 12h

Na última quarta-feira, 18, estudantes e professores dos cursos de Psicologia, Fonoaudiologia, Fisioterapia e Engenharia Biomédica da PUC-SP se mobilizaram contra o bloqueio dos estágios nos equipamentos de saúde do SUS (Sistema Único de Saúde) para o próximo ano. Em nota informativa, formalizada pela Comissão Aberta sobre os Estágios no SUS, estudantes independentes lideram a reivindicação de acesso, com apoio do corpo docente - com direito a aula pública - e a presença de figuras políticas no ato. 

 

É nosso dever reivindicarmos nossos direitos de formação, que é o estágio no SUS, [...] é nosso dever garantir, através da luta política, investimentos pesados em saúde, seguridade social e um ensino popular, pensado pela e para a classe trabalhadora”, declara a Comissão Aberta, em nota.

 

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Alunos dos cursos de saúde da PUC-SP se reuniram na prainha. Foto: Giuliana Zanin

 

Enquanto ecoavam “A nossa luta é todo dia, o nosso estágio não é mercadoria”, os manifestantes estenderam faixas e cartazes em frente ao prédio da Fundasp e também ocuparam a Reitoria da universidade. 

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Os universitários protestam contra a precarização da educação e do sistema de saúde. Foto: Giuliana Zanin

O problema foi gerado a partir de um impasse entre a PUC-SP e a Secretaria Municipal da Saúde (SMS) quanto às contrapartidas oferecidas por instituições de ensino ao órgão. Apesar da entrega de R$176.162,23, a Secretaria determinou que a PUC-SP, por ser uma universidade privada,  deveria pagar R$306.000,00 em materiais e equipamentos hospitalares. A medida vai contra o que normalmente é requisitado de instituições filantrópicas, como é o caso da Pontifícia. 

 

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Estudantes se concentram em frente à Fundação São Paulo (Fundasp). Foto: Giuliana Zanin

Numa tentativa de negociação, a Universidade promoveu a ampliação dos serviços acadêmicos, incluindo disciplinas de graduação, pós-graduação e cursos de educação continuada, além de eventos e projetos educacionais. O objetivo é atender aos requisitos da Escola Municipal de Saúde/SMS, responsável pela promoção dos estágios dos cursos focados no segmento.

Segundo  o atual presidente do Centro Acadêmico de Psicologia (CAPSI), André Sanches, o bloqueio de estágios no SUS é parte de um projeto maior de precarização da saúde pública, que visa colocar o ensino em uma lógica mercantilizada. Para ele, isso “vai contra tudo que nós defendemos aqui na PUC”. O estudante também afirmou à Agemt que a mobilização estudantil no ato representa a urgência do assunto e o descontentamento com o atual ritmo das negociações por parte da Reitoria e da Fundação São Paulo, mantenedora da PUC-SP.

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Os estudantes percorreram as ruas de Perdizes com cartazes e cantos de união. Foto: Giuliana Zanin

A presença de preceptores nos estágios de psicologia também é uma problemática reivindicada pelos estudantes. No início deste ano, os estágios do curso passaram a ser obrigatoriamente acompanhados por preceptores - que atuam na supervisão das sessões realizadas por estagiários -, sob ameaça de processo aos administradores que não os incluíssem em seus turnos. Além disso, os estudantes reclamam da perda de autonomia e da interferência nos métodos utilizados no acompanhamento de pacientes na e condução de casos.

A assessoria de comunicação da PUC encaminhou a reportagem para a Direção da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde (FCHS) da universidade, que declarou em nota ter retomado as negociações com a Secretaria Municipal da Saúde.

"Informamos que reestabelecemos, com bom entendimento, o contato com a Prefeitura Municipal de São Paulo e Secretaria Municipal de Saúde e, ao longo da próxima semana, teremos reuniões para solucionar a questão dos estágios nos campos da SMS".

Procurada, a pasta municipal não respondeu até o fechamento desta edição. O espaço segue aberto para a SMS. 

O estigma social dos medicamentos antidepressivos
por
Cristiane Santos Gabriel
|
18/09/2023 - 12h

Por Cristiane Gabriel (texto)

 

Quando se examina a trajetória histórica, desde tempos antigos até o presente, torna-se evidente a existência de analogias entre o que era denominado "melancolia" e a atual definição de depressão. Antes, a melancolia era conceituada por Hipócrates como "melankholia," que se originava de "mêlas," significando negro, e "kholê," referindo-se à bile. Ela era vista como um dos humores presentes no corpo humano, ao lado da bile amarela, do sangue e da fleuma. Qualquer desequilíbrio entre esses elementos corporais poderia potencialmente resultar em "distúrbios."

Se antes era considerada apenas uma alteração de humor, hoje, a depressão é reconhecida como uma questão de saúde pública e denominada a “Doença do Século”, se manifesta por meio de sintomas como perda de interesse e falta de energia, afetando diretamente o bem-estar do paciente e podendo gerar obstáculos no ambiente de trabalho, nos estudos e nos relacionamentos interpessoais. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que um mínimo de 121 milhões de indivíduos sofrem com essa condição.

Os antidepressivos surgiram como uma abordagem terapêutica para a depressão, porém, não representam a única solução para essa situação. Esses medicamentos agem nos neurotransmissores, uma vez que há evidências de que desequilíbrios nesses compostos estejam associados à depressão.

São muitos os sintomas de quem tem depressão. Alguns podem ter vários, outros podem sentir apenas alguns. Mas, talvez o mais comum seja a indiferença repentina. “Eu me sentia constantemente triste e desmotivado, e até mesmo as atividades que costumavam me trazer alegria não pareciam mais ter significado”, diz um paciente que relutou a usar antidepressivos.

Além do estigma que as doenças mentais carregam, com o medicamento acontece o mesmo. Pacientes têm medo de usar pela disseminação de informações erradas, acreditando que um medicamento diário e que atinja seus neurotransmissores pode mudar sua personalidade: “No início, tomar antidepressivos foi um desafio. Lembro-me de sentir preocupação sobre os efeitos colaterais possíveis e sobre como isso poderia afetar minha identidade”. Não há comprovação científica de que os efeitos colaterais da medicação podem alterar a personalidade de um ser humano.

Outro ponto levantado por pacientes que necessitam dos antidepressivos, é o medo de parecer “fraco” perante a sociedade, como se eles tivessem perdido uma batalha para a própria mente: “É como se fosse um exagero o uso de medicamento, algo psicologicamente ruim, que fosse tirar a realidade do paciente, tirar a limpeza. Usar medicamentos parece fraqueza”, relata a psicóloga Cinthia Souza.

Além do preconceito social para com o uso de medicamentos contínuos, há também quem use os antidepressivos na esperança de que ele, sozinho, vá resolver todos os problemas do paciente: “A medicação destina-se a modular as sensações, mas se a causa do problema segue ativa, o efeito será sempre passageiro. Isso sem falar nos efeitos colaterais. É como você tomar um analgésico, e porque a febre fica controlada, achar que a infecção vai desaparecer. A psicoterapia apoia e provoca mudanças, estas sim, capazes de curar definitivamente os sintomas”, completa a Dra Ana Luiza Ferreira, psiquiatra residente em São Paulo.

Em conversa informal com outra paciente em estado depressivo, ela conta que por acreditar que o antidepressivo por si só resolveria seus problemas, quase desacreditou do tratamento psicológico: “Eu estava convencida de que os antidepressivos eram a solução mágica para todos os obstáculos que enfrentei, no entanto, à medida que os meses passaram, percebi que minha vida não estava se transformando da maneira que eu esperava”, disse ela.

Bloquear canais de recaptação dos neurotransmissores para que eles não voltem ao neurônio que os secretou para a fenda sináptica, que é como agem os antidepressivos, apenas proporcionam a remissão completa dos sintomas, isto é, mantêm a depressão controlada.“Foi nesse momento que minha terapeuta me fez perceber que os antidepressivos eram apenas uma parte do tratamento. Eles eram uma ferramenta valiosa para estabilizar meu humor, mas eu precisava abordar os aspectos fundamentais da minha vida que estavam contribuindo para minha depressão”, seguiu relatando a paciente.

“Com o apoio da terapia, comecei a trabalhar nas áreas problemáticas da minha vida, buscando soluções práticas para meus problemas financeiros e aprendendo habilidades de enfrentamento para lidar com o estresse no trabalho. Gradualmente, percebi que a combinação de tratamento medicamentoso e terapia era o caminho certo para minha recuperação”, finalizou ela.

Podemos dizer que a psiquiatria se iniciou no final do século 18, quando o médico francês Philippe Pinel começou a classificar os doentes separando o que seria um desvio social de uma enfermidade mental. Ele passou a criar uma linguagem que configuraria a nova especialidade da Medicina. Mesmo com centenas de anos de  desenvolvimento e pesquisas, ainda há muita desinformação e discriminação social com as doenças psicológicas, o que atrasa o diagnóstico e tratamento de muitos, perpetuando um sofrimento desnecessário.  A educação e a compreensão são fundamentais para romper esse ciclo prejudicial e proporcionar às pessoas que sofrem com a depressão o apoio necessário para uma recuperação completa e sustentável.

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Os jogos de azar se tornaram um vício recorrente entre os que utilizam esse meio
por
Cristian Buono
Matheus Pogiolli
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02/10/2023 - 12h

Por Matheus Pogiolli (texto) e Cristian Buono (audiovisual)

 

Frequentador do “bar do Pica-Pau”, em São Paulo, Moisés, um homem de 57 anos costuma apostar nas máquinas enquanto joga partidas de sinuca. Ele diz que não pensa em parar de jogar, já que costuma apostar pouco dinheiro e fica satisfeito com o lucro recebido, ainda que pequeno. “Sorte” essa que os amigos do mesmo não possuem, já que muitos apostam o salário nos jogos de azar presentes no bar. Para Moisés, o vício começa na curiosidade.

Segundo o dicionário Aurélio, a definição de vício é "tornar mau, pior, corrompido ou estragado; alterar para enganar; corromper-se, perverter-se, depravar-se". A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica o vício como uma doença de impactos físicos e psicoemocionais. Para muitas pessoas, não é algo que possa ser definido ou explicado, mas sim uma necessidade, algo sobre o qual não se tem controle. É sempre uma forma de compensação ou até mesmo a busca de um falso prazer imediato.


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Foto: Reprodução / Internet

 


Como funcionam os caça-níqueis,,,


As apostas acontecem todos os dias...


Como pensar em parar...


Para Patrícia Pilan, 29 anos, psicóloga, esse comportamento diz muito sobre a necessidade da busca de prazeres, pois, segundo explica, nosso cérebro sempre buscará ter algum tipo de compensação mediante a esforços realizados e, quando isso não acontece de forma equilibrada, natural e saudável, o indivíduo passa a buscar isso em atividades que estimularão esse prazer, seja de forma induzida, através do uso de drogas lícitas ou ilícitas, ou através de atividades que ativam no cérebro o circuito de recompensa e liberam dopamina, gerando sensação de bem estar e prazer.

Uma rotina desequilibrada, a ausência de gestão emocional e a falsa promessa de um ganho rápido financeiro, no geral, são os grandes estimulantes para que uma pessoa entre no vício e permaneça nele. Assim, o que era de vez em quando apenas, acaba se tornando uma necessidade e a atividade causadora do vício vira o tema central da vida do indivíduo. Sobretudo quando se trata de apostas em tempo real.

Com o avanço tecnológico e as incertezas financeiras que tomaram conta de muitas famílias durante e pós-pandemia, os jogos de azar chegaram com mais força nas plataformas online

 

Foto: Reprodução / Internet

Mesmo com a grande frequência de pessoas em bares ou locais de apostas, a Internet também fez com que muitas pessoas se viciassem nesse âmbito sem ter que sair de casa: Um dos tópicos mais presentes no momento, são as apostas esportivas. Para Santa Fé, Beatriz e Arthur, assim como Moisés, o problema foi a curiosidade. Ela fez com que todos eles ficassem viciados em apostar, não importa qual fosse o esporte/tópico.

Com Santa Fé, de apenas 22 anos, o ponto inicial do vício foi apostar em equipes desconhecidas no futebol, puramente com o intuito de lucrar, não importa se com uma análise ou não. Segundo o mesmo, o vício foi aflorado por observar outros amigos ganhando muito dinheiro com apostas. Ele fala, inclusive, que se “emocionou” com os pequenos ganhos, fazendo que o "sarrafo aumentasse" e, consequentemente, ele perdesse dinheiro com tentativas mais ousadas. 


Como tudo começou...


Quanto tudo se aflorou...

 
Foto: Reprodução / Internet

Indo em direção do que disse Santa Fé, Arthur, de 23 anos, confirmou que a emoção por ganhar no começo, fez com que a vontade de apostar mais, aumentasse. Facilidade. Essa foi a palavra definida por ele. Isso porque com a evolução tecnológica, a facilidade em apostar aumentou. Arthur diz que, além de futebol, apostas em basquete, tênis e até mesmo corrida de cavalos se tornou recorrente, aumentando seu vício compulsivo em jogar esses tipos de jogos. 


Facilidade em apostar...


Para Beatriz, de 23 anos, a facilidade também definiu o vício. Sem tanto tempo para análises, a mesma se viu em "grupos de sinais", feitos por diversas pessoas que vendem seu trabalho de mentoria nas apostas esportivas, a fim de trazer diversas pessoas para seus grupos. Por conta desse caminho, aumentou seu tempo de apostas, sem sequer saber no que estava injetando seu dinheiro. O ponto de certeza no vício foi a falta de atenção com outras situações do cotidiano, como trabalhar, estudar ou dormir, por exemplo. 


Quando percebeu que estava viciada...


Facilidade em apostar...


Patrícia explica que a vivência do período pandêmico, o agravamento das incertezas financeiras, juntamente com o aumento do uso da Internet e da divulgação de tais jogos de atividades, aliados com o fácil acesso às formas de jogos que prometem um ganho após a sua utilização, aumentou a busca das pessoas por tais atividades. Hoje vê-se o uso sendo estimulado até mesmo em propagandas de TV aberta, induzindo o indivíduo, mesmo que seja por mera curiosidade, a buscar por esses aplicativos e, o que era para ser apenas uma diversão momentânea, torna-se um problema. 

Um ponto comum a ser ressaltado entre todos é a busca de um ganho financeiro fácil em um curto espaço de tempo, ademais, o indivíduo com a falsa ideia de perpetuar seus primeiros ganhos, os que muitas vezes são permitidos e estimulados por esses sistemas de apostas, e a busca por mais, acaba por convencer-se com a ideia errada de que, se prolongar sua permanência em tais aplicativos ou locais que possuem instrumentos de apostas, conseguirão mais ou, pelo menos, recuperar o dinheiro perdido.

Foto: Reprodução / Internet

Isso também pode ser explicado de forma neurológica, visto que, em sua maioria, seja em ambientes físicos e virtuais, esses sistemas de apostas utilizam de estímulos cerebrais como músicas, atividades, imagens, entre outros, que manterão a pessoa cada vez mais fixada naquela atividade, fazendo com que a mesma perca não só o dinheiro, mas parte de seu tempo ali. Assim sendo, outras atividades da vida desses indivíduos começam a serem afetadas e é assim que o impacto do vício começa a ser sentido por quem o vive. É importante ressaltar que o vício, em sua maioria, é gerado por algum desequilíbrio vivido pela pessoa e não identificado, muito menos, tratado por ela, seja ele emocional ou financeiro, o que acarreta e contribui para que essa falsa compensação financeira e ideia de realização, prenda cada vez mais o indivíduo nisso.  No geral, esses aplicativos e ambientes de apostas, colocam essa atividade como uma “mera” tentativa, ou algo banal, mascarando o grande problema que eles têm gerado na vida de muitos indivíduos e famílias. 


Afim de buscar se desprender do vício, Moisés, Santa Fé, Arthur e Beatriz definem sua fase final no “mundo dos jogos”, como em uma palavra. 


Moisés, diz que continua, tendo em vista o baixo risco financeiro que impõe nos caça-níqueis. Perseverança.


Santa Fé diz que saiu dos jogos de azar por observar que mais perdia do que ganhava. Consciência.


Arthur relata que não conseguia, por muitas vezes, pagar contas. As apostas estavam complicando sua vida financeira. Complicações. 


Beatriz descreve que perdeu tempo com família e amigos, além de citar a perda de dinheiro.


Patrícia Pilan ressalta o fato de os indivíduos não conseguiram reconhecer que tais atividades são danosas até que elas comecem a gerar impactos nocivos que, em sua maioria, são no âmbito financeiro. É necessário alertar que o primeiro passo para o tratamento do vício é que o indivíduo reconheça que há um problema e que o discurso “eu paro quando quiser”, não é a realidade vivida pelo mesmo, visto que a intensidade do acesso aos aplicativos e ambientes de apostas aumenta de forma gradativa e rápida. Ademais, quando os assuntos são apostas online, os aplicativos seja através de aumento das promessas de ganhos e, alertas enviados aos usuários com falsos créditos para as apostas. 

Uma vez que esse problema passa a ser enfrentado pela pessoa, cabe ressaltar que ele jamais será vencido de forma solitária e não passará de um dia para o outro, discurso esse muito utilizado pelos que vivenciam tais problemas. Se não buscar a ajuda de um profissional competente, a chance dele voltar para o vício é significativa. 

O vício entra como uma forma de compensação e, na primeira dificuldade vivida pelo indivíduo, qualquer que seja ela, a tendência do mesmo a buscar aquela fonte de “prazer” novamente é altíssima, fazendo com que ele volte para os mesmos problemas vividos anteriormente. Com o auxílio de um profissional, a pessoa será devidamente instruída e capacitada lidar com todos os gatilhos que a fizeram e fazem buscar por esses programas de apostas e, assim, possa eliminar os mesmos e a pessoa volte a ter uma vida saudável e equilibrada. 

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Tema passou a ser mais abrangido nos últimos anos
por
Gabriel Dalto Borelli
|
18/09/2023 - 12h

A saúde mental é algo que passou a ter maior valorização e tratamento especial nos últimos anos, envolvendo maior procura de especialistas na área, juntamente com a busca por conhecimento e compreensão de transtornos. Com isso, causas relacionadas ao assunto foram escancaradas com a crescente do interesse popular.

Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), a definição de saúde mental se concentra em ser um estado de bem-estar no qual o indivíduo realiza suas próprias habilidades, é capaz de lidar com o estresse normal da vida, pode trabalhar de forma produtiva e frutífera e é capaz de fazer uma contribuição para a sua comunidade. A partir disso, se têm os transtornos mentais, algo que é entrelaçado com a saúde mental, porém se trata de um aspecto “distinto” do ser-humano; são condições clínicas diagnosticadas que afetam o funcionamento psicológico, emocional e comportamental de uma pessoa. Alguns exemplos incluem depressão, ansiedade, esquizofrenia, transtorno bipolar, transtorno obsessivo-compulsivo, entre outros. Esses diagnósticos são caracterizados por sintomas específicos que podem causar sofrimento, disfunção e impactar negativamente a qualidade de vida de um indivíduo, geralmente requerendo intervenção médica.

Desde o surgimento da última pandemia de Covid-19, no Brasil, houve uma maior tendência de busca por saúde mental e o que a abrange. Segundo pesquisa realizada com dados provenientes da plataforma “Psicologia Viva”, entre junho de 2020 até o mesmo mês em 2021, foram feitos aproximadamente 925 mil agendamentos de consultas psicológicas, sendo que, dentre esses atendimentos o tema mais abordado foi o de ansiedade, com índice de procura acima de 20%. Além disso, também foram objeto de acompanhamento a depressão, com 6,5%; desenvolvimento pessoal (4,93%); psicologia clínica (3,27%) e finalmente, saúde mental de uma maneira geral fecha o ranking dos 5 tópicos mais buscados entre todas as idades.

Mesmo com a evidente valorização de temas relacionados ao bem-estar mental, ainda há um tabu quanto a esse assunto, e uma “omissão” por parte de chefes de estado e sociedade. Isso se dá devido ao tratamento para buscar compreender o funcionamento da mente humana, e o que a engloba além dos prós e contras que existem no processo. Um desses fatores que abrangem essa omissão, é o fator preconceito, que encara transtornos mentais, por exemplo, como algo “bobo”, ou até mesmo de “insano”, e que merece tratamento manicomial, um jeito de conduzir situações que se tornou ultrapassado. Uma alternativa no tratamento de situações como a de transtornos, é a realocação de indivíduos com diagnósticos do gênero que passaram a morar em ambientes onde a pessoa é tratada de forma mais humanizada, em que se busca compreender o lado emocional e as vontades do paciente. Esse ambiente é o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), órgão erguido pelo governo brasileiro que tem como objetivo substituir hospitais psiquiátricos - antes manicômios e hospícios - e vem sucedendo na missão, algo que era previsto desde a reforma psiquiátrica no Brasil, realizada no fim da década de 80.

Mayara Maria Bermonte Rocha, 24, acompanhante comunitária em residências assistidas em São Paulo, relata satisfação com todo trabalho imposto pelo governo e CAPS: “As questões de medicamento, auxílio, tratamento com moradores e PTS’s (Projeto Terapêutico Singular) são muito satisfatórias e positivas”. Ao ser questionada sobre eventuais melhorias que podem ser praticadas na área, Rocha, natural de São Paulo menciona: “Seria necessário um maior número de empregados nesse setor, muitas vezes ocorrem imprevistos que impossibilitam a pessoa de vir trabalhar, férias e outros fatores, e esse serviço muitas vezes exige um maior acompanhamento. Também é preciso uma maior seleção por parte do governo ao escolher pacientes para serem acompanhados em residências como a que eu trabalho, pois alguns deles não tem condições de residir nesse local, são casos diferentes que requerem outro tipo de local assistido para essas pessoas”.

No Brasil, os direitos humanos das pessoas com transtornos mentais são protegidos pela Lei da Reforma Psiquiátrica, divulgada em 2001 e expressa como Lei nº10.261. O estatuto prevê um avanço significativo na proteção dos direitos humanos das pessoas com tais diagnósticos, e regula uma nova norma de tratamento à época; “Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”.

Esta reportagem foi produzida como atividade extensionista do curso de Jornalismo da PUC-SP.

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Ivo Vilela nunca foi assaltado no bairro da zona sul de SP, exaltado nas músicas dos Racionais MC´s
por
Livia Machado Vilela
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22/06/2023 - 12h

“Eu nunca fui assaltado no Capão Redondo, em quase 20 anos. A lama e o tomar tiro que eles diziam, sempre foi por parte dos fascistas”. Ivo Vilela (60), hoje dono de um laboratório ótico, conta a perspectiva de alguém que sobreviveu na periferia por 18 anos como um trabalhador sem a arte como válvula de escape.

Em Novembro de 2022 estreou a produção da Netflix “Racionais: Das ruas de São Paulo para o mundo”,
que conta a historia dos 30 anos do grupo de rap Racionais MC’s. No documentário, os integrantes
relembram a vida difícil no Capão Redondo, na Zona Sul da capital. “O Capão não tinha nada para oferecer
nessa época. A não ser lama e tomar tiro”, disse Mano Brown.

Como exemplo, Ivo lembrou a história de ‘Macaquinho’, que era como um ‘Robbin Wood’, roubava do
rico e ajudava o pobre. Estava sempre nos bailes, tomando Whiskey e ouvindo Al Green. Depois, o
noticiário anunciou que o Macaquinho, ladrão de banco, foi executado pela polícia. “Ninguém tinha medo do macaquinho dançando blues no baile, todos temiam ir embora e encontrar a ROTA no caminho de casa. Eu
conheci um ex-policial da ROTA, ele mesmo dizia que eram treinados para matar. Paravam algum jovem
voltando de uma festa, entregavam uma arma na sua mão e falavam: ‘ Você tem uma chance, troca tiro com
a gente pra ver se escapa’. Mas não tinha chance nenhuma. E isso tudo saía no dia seguinte no jornal com outra narrativa.”


Em um momento do filme Mano Brown relata: “A gente pegava o ônibus e demorava uma hora e meia pra
chegar até o centro. Era uma viagem quase espiritual, mano. Você saía da condição de miséria pra ir pra
onde todas as luzes tão acesas.” Ivo, que sempre trabalhou no centro de São Paulo, acrescenta: “É natural, você sentia que estava em outro mundo. Ele era músico e eu era um trabalhador mas nós sentíamos a mesma pobreza. Mas a galeria do rock era ponto de música, quem curtia era músico.”


Seus momentos de lazer não eram no centro, mas de volta à periferia, jogando futebol. “Eu não tinha
ambição nenhuma naquela época, meu prazer era ir pra várzea de final de semana jogar bola.” Explica que o dono de uma granja recrutava os melhores jogadores da periferia e realizavam torneios entre os bairros. Era
tudo pelo conforto que ele oferecia, algumas laranjas, o transporte, a chuteira que era providenciada.
Em conversa filmada para o documentário, o grupo dizia que não sabia de onde veio a consciência política
para compor suas letras. “Eles simplesmente cantavam o que eles viam, e eles viam o que eu tô te narrando
aqui”, acrescentou Ivo. A sua própria ideologia veio apesar do Capão, a cultura da periferia na época não era
estruturada, não era ainda formadora de opinião entre os jovens. O primeiro contato com seus ideais sociais
foi o movimento das Diretas Já, mas a maior influência é a Democracia Corinthiana. “Eles tinham poder de
voto, coisa que eu com 20 e poucos anos não conhecia como cidadão ainda”.


“Ninguém convivia muito com musica, o rap ainda não era acessível para a minha geração, e quase ninguém
tinha esse senso de revolução dos Racionais”. Na verdade, Ivo, que presenciou a mesma realidade que os
Racionais MC’s não consumia sua arte. “Eles viveram na mesma época que eu vivi, a vida deles era a minha.
Eu escuto e logo penso: A história do Guina deles, é o Macaquinho que eu conheci, em cada canto do Capão
tinha um. Mas quando o sucesso deles veio, eu já era adulto, e eles estavam cantando para a nova geração. É
a partir desses jovens que as coisas foram mudando.”

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