A lei 11.645 promulgada em 2008 exige que a cultura e história indígena sejam ensinadas nas escolas. Apesar de tal legislação, os ensinamentos são passados por visões mais eurocêntricas. É o que afirma o professor da UFRR, Devair Fiorotti em entrevista ao blog Escrevendo o futuro. “Para trabalhar com literatura indígena na escola é preciso reconhecer a diferença: entender que se trata de uma outra cultura e não tentar enquadrá-la nos nossos conceitos”.
Um dos tópicos enquadrados na cultura indígena é sua literatura, que engloba cantos, poemas, versos e preces. A professora da PUC-PR e doutorada Janice Thiél explica para o portal “Escrevendo o futuro” que: “literatura é muito associada à palavra escrita, mas desde Homero há uma presença da oralidade nos textos. Nas culturas indígenas também: desde sempre elas produzem artes verbais, literatura oral.”
Como Thíel declara, Homero, escritor de a Ilíada e a Odisseia, narra a história em que os personagens são heróis gregos que participaram da Guerra de Tróia. Na primeira fase do Romantismo Brasileiro, José de Alencar trazia na literatura a figura indígena como o herói nacional, assim representados pelos personagens Peri, Iracema e Ubirajara nas obras O Guarani, Iracema e Ubirajara respectivamente.
Tradicionalmente, a figura do indígena sempre teve sua história narrada por terceiros, como no romantismo e no folclore. Um grande exemplo é o seriado da Netflix “Cidade Invisível'' (2021), a trama é baseada nas histórias folclóricas do Saci, Cuca, Curupira, Boto-Cor-de-rosa etc. A série causou controvérsias pois o folclore é indígena e o elenco em sua maioria era composto por personagens brancos e com pouca representatividade.
Apesar das críticas, o seriado é significativo quanto à representatividade a nível mundial que a plataforma de streaming elevou. A própria Janice ressalta a importância da ligação dos mitos com os ancestrais e com o sagrado para os indígenas, muito diferente da forma como lemos os mitos gregos hoje, por exemplo.
É importante que a sociedade possa refletir sobre esse significado: “para o indígena, essas histórias são verdadeiras, não são simplesmente ficção. Trata-se de um gênero diferenciado de literatura, que pode fazer parte de rituais, inclusive, mas também é colocado nos livros para nós conhecermos.”
Segundo previsão do Itaú Cultural, organização voltada para pesquisa e produção de conteúdo, há cerca de 40 autores autodenominados indígenas que produzem material literário frequente. Thíel explica, em entrevista ao site MultiRio, que a produção de textos por indígenas é algo recente, pois floresceu na década de 1990 e entrou neste século como movimento literário reconhecido. "A produção textual indígena ajuda a recontar a história do Brasil a partir de uma perspectiva diferente da narrativa oficial."
Shirlei Arara, de 33 anos, é uma de muitas mulheres indígenas da aldeia Karo-Arara. Ativista, estudante e foragida pelos que perseguem os protetores da floresta, ela faz parte da coordenadoria da associação AGIR (Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia), uma associação das mulheres que representam o estado de Rondônia. E desde que a aldeia existe, há um histórico de luta muito presente. Em entrevista concedida via Google Meet, Shirlei fala: “Nós já nascemos lutando”. De acordo com ela, o meio ambiente e os povos indígenas são como um só. “A mãe que cuida, a mãe que gera. Nós, povos indígenas, temos a floresta como nossa mãe protetora.”
Os índios Arara se localizam no estado de Rondônia, região norte do Brasil, e também são conhecidos como Arara Tupi ou simplesmente Karo. A aldeia possui vários projetos e Shirlei é responsável por coordená-los: “Tudo relacionado a projetos, eu coordeno e escrevo”.
Com um histórico de lutas muito grande, as mulheres da tribo estavam sempre na linha de frente. Além de serem artesãs, vigilantes de seus territórios, cozinheiras, curandeiras e parteiras, elas também são as primeiras a irem atrás de políticas públicas, de garantir seus direitos e de proteger a floresta. “Chamo as mulheres indígenas de mulheres maravilha, nós vamos para o mato, vigiar, fiscalizar, denunciar, plantar, colher, olhar, ouvir e ler a natureza”. Shirlei termina a frase com um quê de ternura: “Eu amo ser mulher indígena”.
A ativista também revela que há sim um machismo dentro da comunidade, mas que as próprias mulheres de lá vem lutando para ganharem sua voz. “O fato de nós mulheres termos essa autonomia e voz ativa é uma conquista”. Ela reforça também a criação da associação das mulheres da aldeia, que foi uma conquista para a aldeia por terem políticas públicas feitas por elas mesmas.
Ao longo de nossa conversa, a indígena conta que seu povo sofre sim de ameaças constantes, principalmente com questões envolvendo a retirada ilegal de madeira, grileiros e garimpo. Por isso, Shirlei diz: “Nossos filhos são crianças que já lutam”.
Também conversamos sobre a dinâmica de gestação, e Shirlei nos conta que os cuidados com a mulher são quase os mesmos que os cuidados com o pai da futura criança, pois os dois estão ligados, "A mulher gestante é servida pelas outras mulheres da sua comunidade, e o marido também”. Quando um casal está esperando um bebê, o homem não caça pois, de acordo com ela, outros seres-vivos podem estar passando pelo mesmo estado de gestação e cuidado com seus parceiros e parceiras. “Ferindo um animal, fere também o corpo da sua mulher, e de seu bebê, porque ninguém sabe se o animal que ele mata é pai ou mãe, e pode estar na mesma situação que ele ou sua mulher.” Essa informação apenas ressalta a questão humana com a natureza feminina, uma relação tão presente e viva na cultura e também na ética dos povos indígenas.
Apesar de enaltecer as mulheres, Arara também reconhece o quão importante os homens são para a aldeia: “Os homens são fundamentais. Nós mulheres temos nossa voz, buscamos nossa autonomia, mas temos muito respeito por eles, pela proteção do nosso território, pelo sangue que deram por isso.”
Vanuza Kaimbé, filha das terras do sertão baiano é uma das milhares de indígenas espalhadas por Pindorama, é guiada por forças ancestrais que lhe concedem coragem para curar a Terra e reflorestar mentes. Atravessou o sertão até a capital de São Paulo para estudar enfermagem e também graduar-se em Serviço Social. Liderança indígena que auxiliou na criação da aldeia Filhos Dessa Terra, participou das duas marchas das mulheres indígenas em Brasília e ganhou destaque na mídia por ser a primeira mulher indígena a tomar a vacina da Covid-19 no Brasil. Enfrenta discriminação, resiste ao descaso do sistema e luta por seu povo e por um mundo igualitário.
É uma das milhares de mulheres originarias que germinam na Amazônia, Caatinga, Cerrado, Pantanal, Mata Atlântica, Pampa, atravessam matas, rios e estradas para retomar tudo aquilo que lhe foi roubado, invadido. Mulheres originárias que não se contentam com a marginalização causada por um sistema capitalista. Guardiãs das florestas e dos rios, são elas, mulheres sementes que doam suas vidas para curar e regenerar a Terra para que ela possa continuar florescendo a vida.
“Reflorestando mentes para a cura da terra” é o lema da mobilização das mulheres originarias do Brasil, que traz como símbolo uma mulher indígena gestante, que também pode ser lida como uma árvore, cheia de raízes e folhas. A luta pela demarcação das terras indígenas vai muito além da delimitação de um território, é sobre preservar a ancestralidade, a identidade e a biodiversidade. “Nós (povos indígenas) não cuidamos só das terras cuidamos da vida de todo o planeta porque não há vida sem floresta, não há vida sem água, os rios estão poluídos, estão secando. nós somos os guardiões da vida.” Salienta Vanuza Kaimbé.
A ativista nos convida a sermos todos guardiões e guardiãs das florestas, das poucas árvores que sobreviveram nas cidades, dos animais; sermos defensores da diversidade de existências e a sabermos escutar e a sentir Abya Yala (Terra Fértil), pois todos temos esse potencial.
O Caminho do Reflorestar:
|
|
|
|
|
|
|
|
|
A indígena Txai Suruí foi a única brasileira a discursar na COP-26. Em sua fala, no dia 1 de novembro, ela expõe que “os indígenas estão atuando na linha de frente da emergência climática” e denuncia que um colega seu foi assassinado enquanto reivindicava seu direito de posse por uma terra. Discursos de povos originários em organizações internacionais são cada vez mais comuns, visto que o governo brasileiro, principalmente a partir da atual gestão, pouco oferece políticas públicas que auxiliem os direitos territoriais dos povos indígenas, sendo assim, a visibilidade que conferências como essa trazem, são uma forma de denúncia no âmbito internacional.
Em agosto deste ano, um grupo de manifestantes indígenas ocuparam a Esplanada dos Ministérios protestando contra medidas que dificultam a demarcação de terras e beneficiam garimpeiros, o chamado “marco temporal”. Os líderes do movimento comentaram que a mobilização é “pela garantia dos direitos dos povos originários" e também denunciam “o agravamento da violência contra os indígenas, dentro e fora dos territórios tradicionais”. Anilton Braz da Silva Kokama, liderança da aldeia Porto Praia, em entrevista para o UOL, comentou durante o ato: “que o Supremo Tribunal Federal possa olhar para a causa indígena com humildade. A gente acredita que a nossa situação será resolvida, a situação dos ribeirinhos e daquelas pessoas que vivem e lutam no dia-a-dia para sobreviver. Nós somos contra o ‘marco temporal’ e o PL 490, que tira os nossos direitos. Mas iremos conseguir e vamos até o final”.
Manifestação contra a PL 490. Disponível em: https://www.seculodiario.com.br/direitos/indigenas-protestam-em-vitoria-nesta-quarta-feira-contra-o-marco-temporal
O Projeto de Lei 490 cria um ‘’marco temporal’’ em que são consideradas terras indígenas os locais ocupados até a data de 5 de outubro de 1988, ano da promulgação da Carta Constitucional. Tal procedimento acontece somente nos casos de uma comprovação feita pelos moradores e, se não houver, o processo será negado. Além disso, o aumento no número de reservas indígenas é proibido segundo esse PL. Desse modo, com o apoio dos ruralistas, os donos dos grandes latifúndios, as novas regras permitem o uso livre do governo para a entrada da polícia federal e forças armadas, mesmo sem a permissão das etnias que ali moram.
A exploração energética, hídrica, da mineração e cultivo de plantas geneticamente modificadas também serão permitidas. Portanto, há o impacto nos direitos humanos, uma vez que há a inviabilização de novas demarcações de terras indígenas e permite que essas terras sejam usadas para grandes empreendimentos. É fundamental a garantia desses locais para a sobrevivência física e cultural desses povos.
Mas, agora, não cabe só ao Estado brasileiro legislar e garantir os direitos dos povos indígenas. Instituições internacionais, como é o caso da ONU (Organização das Nações Unidas) e da OEA (Organização dos Estados Americanos) podem sim fazer recomendações aos países e aplicar restrições a esses, caso o país opte por não segui-las. A OEA inclusive, reserva uma parte de seu site para falar somente de questões indígenas se pronunciando a favor da adoção do Projeto de Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
A OEA foi a quem os indígenas da Amazônia Boliviana recorreram na construção de uma estrada que atravessaria um parque ecológico. No Brasil, tivemos um caso parecido com a construção da Usina Belo Monte, em que as populações indígenas e ribeirinhas tentaram reverter a decisão do Estado indo até a OEA; eles não foram bem sucedidos, mas abriram portas para futuros processos parecidos, tendo agora os indígenas mais uma instituição a recorrer, caso o Estado não cumpra sua função.
Hoje a construção da Usina Belo monte é reconhecida pela Justiça Federal em Altamira, no Pará, colocando que a usina produziu mudanças significativas “nos traços culturais, modo de vida e uso das terras pelos povos indígenas, causando relevante instabilidade nas relações intra e interétnicas".
De acordo com o Atlas da Violência 2021, a comparação do número de homicídios contra indígenas é desigual entre homens e mulheres. Enquanto elas representam 0,8% da taxa nacional deste tipo de violência, eles compõem 0,3%. Essa diferença demonstra que o machismo está estruturado em toda a sociedade e compactua com um movimento que fere os direitos humanos. Para a representante do movimento indígena wayrakunas, Aline Kayapó, a luta contra o machismo é essencial e existe há muito tempo: “Antes dos colonizadores entenderem a nossa humanidade, nós já lutávamos contra tudo que vinha nas caravelas, inclusive o machismo”.
Outro fator preocupante para essa parcela da população é o assédio sexual. Em agosto de 2021, uma menina de 11 anos, da etnia Kaiowá, foi vítima de um estupro coletivo antes de ser jogada de um penhasco de mais de 20 metros de altura. O crime que ocorreu no Mato Grosso do Sul tem como principal suspeito o tio da criança, que confessou à polícia que assediava sexualmente a garota há anos.
A ativista Kayapó explica que a cultura do estupro está relacionada à fetichização do corpo da mulher indígena. Segundo ela, essa perspectiva existe por conta da romantização desses povos por parte da sociedade que criou diversos estereótipos opressores. Além disso, Kayapó afirma que denunciar casos de assédio é difícil, principalmente por conta da descriminação: “Às vezes não temos uma boa relação com a polícia, porque ela sempre foi omissa quanto à defesa dos nossos direitos. Por isso, muitas indígenas mulheres ainda se sentem acuadas para denunciar casos de assédio”.
Em meio a essas violências, o amparo do Estado é de extrema importância para assegurar os direitos das indígenas. No entanto, a legislação específica para combater as violações contra mulheres, a Lei Maria da Penha, não contribui de maneira plena para essa parcela específica da população, como explica a antropóloga Paola Gibram: “No Brasil ainda não existem políticas públicas específicas voltadas às mulheres indígenas. A Lei Maria da Penha não contou com a participação delas para sua elaboração, e não contempla as realidades indígenas”.
No entanto, a disparidade entre a realidade das mulheres indígenas e das brancas não se limita à violência doméstica. Desde a colonização, as demandas têm se mostrado diferentes entre os grupos étnico-raciais. O feminismo branco lutou, por exemplo, pelo direito ao trabalho, enquanto mulheres originárias lutavam pelo direito de continuar existindo.
Gibram explicita que, para o movimento feminista indígena, os valores não estão no indivíduo, e sim na comunidade, nas ações para o bom convívio social, e nas relações com o território e com a ancestralidade. “O movimento das mulheres indígenas é coletivo, luta pela vida e, assim, envolve crianças, idosos e até homens", diz a antropóloga.
Em setembro de 2021, ocorreu em Brasília a Marcha das Mulheres Indígenas, organizada pela ANMIGA – Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade – na qual a deputada Joênia Wapichana, primeira mulher indígena na câmara dos deputados, se reuniu com mulheres para debater e dar início à elaboração de um projeto de lei voltado aos direitos das mulheres indígenas.
Um dos problemas sociais contra o qual elas lutam é a perspectiva do corpo indígena como exótico. Segundo Gibram, esse aspecto reforça o racismo: “O exotismo é o gatilho ativado para que o outro seja absorvido como objeto, como algo que, por ser visto como tão diferente do padrão branco, acaba se personificando nas diferenças. Por isso, é uma das formas mais fortes de expressão do etnocentrismo”.
A antropóloga salienta a importância de reunir essas mulheres para que haja um fortalecimento delas e das suas lutas pela transformação da realidade. Dessa forma, seria possível contribuir para uma existência digna, junto ao seu povo e território, garantindo o direito de transitar entre o mundo indígena e não indígena, se assim elas quiserem.