Projetos no Senado autorizam mineração, petróleo e garimpo e provocam debate sobre direitos indígenas, impactos ambientais e segurança das comunidades
por
Juliana Bertini
Juliana Salomão
Maria Eduarda Cepeda
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10/09/2025 - 12h

A Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado aprovou, nos dias 13 e 20 de agosto, dois Projetos de Lei que discutem sobre a exploração econômica em terras indígenas. As propostas seguem agora para análise no Plenário.

Os Projetos de Lei que tratam da exploração econômica das Terras Indígenas têm avançado no Congresso e despertado forte mobilização dos povos originários. O primeiro, o Projeto de Lei nº 6.050/2023, relatado pelo senador Marcio Bittar (União-AC), autoriza a extração de gás, petróleo e minérios. O segundo, o Projeto de Lei nº 1.331/2022, sob relatoria da senadora Damares Alves (Republicanos-DF), prevê pesquisa e garimpo por terceiros em áreas delimitadas, desde que haja consentimento das comunidades.

E o PL 191/2020, enviado pelo Executivo, também permanece como referência no debate. O projeto abre a possibilidade de mineração, exploração de hidrocarbonetos e aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia em terras indígenas. Desde sua apresentação, tem sido alvo de duras críticas de entidades como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que apontam riscos de devastação ambiental, agravamento de conflitos territoriais e violação de direitos constitucionais. As críticas também estiveram presentes no próprio Senado, com manifestações dos senadores Augusta Brito (PT-CE) e Paulo Paim (PT-RS). 

A legalização do garimpo e da mineração em terras indígenas é um tema que tem gerado intensa discussão no Senado. A polêmica é grande, especialmente considerando o levantamento da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) que revelou a contaminação por mercúrio de moradores de nove aldeias Yanomami, em Roraima, e relacionou a atividade a casos de insegurança e violência.

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Projetos de Lei são tramitados no plenário para a autorização do garimpo. Foto: Vinícius Mendonça/Ibama

"Os desastres, porém, são multidimensionais, e já atingiram níveis alarmantes em muitos territórios indígenas, como no Yanomami. Essas atividades econômicas exploratórias geram uma insegurança generalizada nas terras indígenas, marcada por conflitos, aumento de assassinatos e crimes em geral", diz Loren Lopes, advogada Indigenista especialista em direito fundiário do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), formada pela Universidade Federal de Minas Gerais. 

A discussão sobre a legalização do garimpo e da mineração em terras indígenas esbarra na rejeição dos projetos, que enfrentam sérios obstáculos legais. O Artigo 231 da Constituição é claro ao reconhecer os direitos originários dos povos indígenas sobre suas terras. Além disso, a Convenção nº 169 da OIT, ratificada pelo Brasil, exige a consulta livre, prévia e informada às comunidades antes que qualquer medida que possa afetar seus territórios seja implementada.

"As propostas tentam regulamentar uma matéria que constitucionalmente carece de Lei Complementar preexistente. Essa Lei Complementar não foi elaborada e, para que fosse aprovada, seria preciso um quórum de maioria absoluta dos membros da Câmara e do Senado. Além disso, as propostas não observam, em sua tramitação, o direito à consulta livre e prévia dos povos indígenas afetados, conforme dispõe a Convenção 169 da OIT", aponta a advogada.

O resultado dessa aceleração, segundo especialistas, é o alto risco jurídico de que as propostas, caso aprovadas, sejam declaradas inconstitucionais pelo STF por apresentarem vícios. "Infelizmente, nem sempre o que é juridicamente correto é, de fato, realizado. Quando se trata de interesses de grandes companhias, que exercem expressiva influência na política nacional, o político se sobressai ao jurídico, e o resultado são as transgressões aos direitos humanos que os povos indígenas já vivenciam hoje", completou.
 

A batalha pela garantia dos direitos indígenas diante do Marco Temporal

Em paralelo, segue em discussão o PL 490/2007, que incorpora a tese do marco temporal. A proposta restringe a demarcação de novas áreas às comunidades que estivessem em posse da terra na data da promulgação da Constituição, em 1988. Essa limitação é vista por juristas e lideranças indígenas como uma tentativa de inviabilizar processos de reconhecimento territorial, além de abrir brechas para a contestação de terras já homologadas.

O marco temporal, tese que limita a demarcação de terras indígenas às áreas ocupadas em 5 de outubro de 1988, divide juristas, parlamentares e movimentos sociais. Criada pela Advocacia-Geral da União em 2009, no caso da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, a interpretação voltou ao centro do debate nos últimos anos e hoje mobiliza disputas no Congresso e no Supremo Tribunal Federal (STF).

Em 2023, a Câmara aprovou o Projeto de Lei 490/2007, transformado na Lei 14.701/2023 após a derrubada do veto presidencial. O governo argumentou que a norma contraria decisão do STF e restringe direitos originários. O Supremo, por sua vez, rejeitou a tese em setembro do mesmo ano, afirmando que a análise deve ser feita caso a caso. Pouco depois, suspendeu todos os processos sobre a constitucionalidade da lei até decisão definitiva.

Enquanto isso, organizações indígenas e a Funai denunciam aumento de ameaças e violência nos territórios. A presidenta Joenia Wapichana afirma que a lei legitima ocupações ilegais e enfraquece a proteção ambiental. Já parlamentares ligados ao agronegócio defendem o marco temporal como forma de dar segurança jurídica a proprietários rurais e evitar disputas indefinidas sobre terras.

No Congresso, senadores pressionam por novas medidas que reforcem a tese, mesmo após a decisão do STF. Lideranças indígenas e juristas sustentam que mudanças só poderiam ocorrer por meio de uma Proposta de Emenda à Constituição, e não por lei ordinária, o que mantém aceso o conflito institucional.

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Indígenas se mobilizam há anos contra o marco temporal, em defesa dos direitos previstos na Constituição. Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

No centro da controvérsia estão duas visões: a que impõe limite cronológico às demarcações e a que reconhece o direito originário dos povos indígenas, sem restrição de data. O resultado desse embate definirá o futuro da política indigenista e o equilíbrio entre preservação ambiental e expansão agropecuária.

O debate sobre o marco temporal de demarcação de terras indígenas envolve também implicações ambientais. As terras indígenas estão entre as áreas mais preservadas do Brasil e funcionam como barreiras contra desmatamento, grilagem e exploração ilegal de recursos naturais. Levantamentos de entidades socioambientais apontam que esses territórios apresentam índices de conservação mais altos do que outras áreas protegidas e propriedades privadas.

A adoção do marco temporal pode impedir comunidades expulsas antes de 1988 de recuperar seus territórios. Nesse cenário, atividades agropecuárias, mineradoras e madeireiras permaneceriam em locais de ocupação tradicional, ampliando a pressão sobre florestas e ecossistemas estratégicos, como Amazônia e Cerrado.

Organizações ambientais afirmam que a medida enfraquece compromissos do Brasil em acordos internacionais, como o Acordo de Paris. A redução de áreas passíveis de demarcação tende a estimular a expansão de fronteiras agrícolas, o aumento do desmatamento e a perda de biodiversidade.

Para os povos indígenas, a questão é também cultural e social. Os territórios garantem práticas tradicionais de manejo sustentável, responsáveis pela preservação de florestas e pela manutenção de espécies.

Divulgado no último sábado (9), projeto deve atender cerca de 25 mil indígenas
por
Maria Mielli
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12/08/2025 - 12h

No dia internacional dos povos indígenas, 9 de agosto, o ministro da saúde, Alexandre Padilha, anunciou em suas redes sociais a inauguração do primeiro Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU 192) indígena. A iniciativa disponibiliza atendimento 24 horas na região de Dourados, em Mato Grosso do Sul. O projeto conta com profissionais da saúde bilíngues em português e guarani, e pretende atender cerca de 25 mil indígenas. Os grupos Guarani-Ñandeva, Guarani-Kaiowá e Terena receberão assistência do SAMUI, como foi nomeado o projeto.

Segundo anúncio realizado no site oficial do governo, GOV.BR, a estimativa é diminuir pela metade o tempo de espera para atendimento. Também foi declarado que, anualmente, o Ministério da Saúde fará o repasse de R$ 341 mil para o custeamento do serviço. A ideia, portanto, é universalizar o SAMUI até o fim de 2026. 

O SAMUI, chamado em Guarani TEMBIAPO PY'AE OMỸI VA'E TE'YI MBA'E ETE VA'E, contará com 14 profissionais: cinco técnicos de enfermagem; cinco enfermeiros e quatro condutores-socorristas. Sete, dos quatorze, são profissionais indígenas que falam guarani. Os pacientes serão encaminhados para hospitais referências da região, alguns deles bilíngues também, como é o caso do Hospital Universitário da Grande Dourados (HU-UFGD). Segundo o Ministério da Saúde, o objetivo é aprimorar o entendimento entre paciente e profissional, para assim, promover um atendimento digno para os povos originários, muitas vezes negligenciados no governo anterior.

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Secretário Weibe Tapeba realizando a cerimônia de inauguração do SAMUI/ Foto: João Risi, Ms

A cerimônia de entrega ocorreu em Dourados (MS). O secretário de saúde indígena (SESAI), Weibe Tapeba, foi o responsável por apresentar a conquista. “Essa ação, realizada em uma data muito simbólica e em um local de alta densidade demográfica, integra um conjunto de esforços para garantir atenção integral à população indígena, começando pela atenção primária à saúde.", afirmou o secretário em nota oficial.

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Placa de inauguração do primeiro Samu indígena do país/ Foto: Reprodução X Alexandre Padilha
'Nosso marco é ancestral, sempre estivemos aqui' protestam indígenas contra tese do Marco Temporal.
por
Vitor Simas
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26/04/2024 - 12h

Na quinta-feira (25), uma marcha indígena tomou conta da Esplanada dos Ministérios, em Brasília. 

Povos de diversas etnias no Brasil fizeram com que todos ouvissem seus cantos e vissem seus cocares, demandando a demarcação das terras de seus territórios. Sob o lema "Nosso Marco é Ancestral: Sempre Estivemos Aqui!", a manifestação foi uma resposta à tese do Marco Temporal, que contesta a existência de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas antes da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.

 

mulheres indígenas se preparando para a marcha - Foto: Vitor Simas
Mulheres indígenas se preparando para a marcha em Brasília - Foto: Vitor Simas 

Demarcação

Cerca de 200 povos, representados inclusive por mulheres e crianças, partiram do Acampamento Terra Livre (ATL), localizado no gramado do Eixo Cultural Ibero-Americano, antiga Funarte, em uma mobilização organizada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) ao encontro das lideranças originárias com o presidente Lula, que na semana do dia 19 de abril, data alusiva à resistência dos Povos Indígenas, assinou decreto de homologação de apenas 2 das 14 Terras Indígenas, que havia prometido demarcar. 

Além do apoio da Apib, a mobilização recebeu o respaldo de três grandes movimentos sociais: o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ) e o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS).  "A luta pela terra não é só dos povos indígenas", afirmou Dinamam Tuxá, coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

 "O que estamos pedindo é o direito ao acesso à terra e ao território, não só dos povos indígenas, mas também de outros segmentos que fazem essa luta. Essa marcha marca um momento histórico dessa união de forças que lutam pela vida, que são todos os movimentos sociais que estão lutando e militando em favor da vida".

Eleições 

As lideranças indígenas ainda aguardam a confirmação de reuniões com grandes autoridades políticas, como o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, e o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) e Tribunal Superior Eleitoral (TSE). A expectativa é que se possa discutir a cota de candidaturas indígenas nas eleições.

Os povos originários ocupam cerca de 13% do território nacional, com 724 áreas definidas como territórios indígenas. Além disso, esses povos somam aproximadamente 900 mil pessoas, reúnem 305 etnias diferentes e falam mais de 274 línguas. Contudo a quantidade de representantes indígenas na política ainda é muito pequena. Apenas em 2018, foi eleita a primeira mulher indígena no Congresso nacional, a deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR). 

Recentemente, já sob o atual governo do presidente Lula, houve a criação do Ministério dos Povos Indígenas, o que representa um passo importante na inclusão da pauta indigenista na discussão política do país. Classificado como algo “inédito e histórico”, a pasta tem como ministra Sônia Guajajara, eleita deputada federal pelo PSOL e primeira indígena na história a ocupar um ministério.

Desafios

Segundo dados da (Apib), houve um aumento alarmante de 44% nas invasões de terras indígenas e de 21% nos casos de violência contra essas comunidades em 2023.  Desta forma a demarcação das terras indígenas é fundamental para os povos indígenas por diversos motivos:

  • Proteção contra invasões e pressões externas: Os povos indígenas enfrentam constantes ameaças, como a exploração ilegal de recursos naturais por garimpeiros e madeireiros. A demarcação é fundamental para garantir a segurança territorial e a integridade das comunidades.
  • Redução da violência: O aumento alarmante nas invasões de terras indígenas e nos casos de violência contra essas comunidades evidencia a necessidade urgente de demarcação para proteger os direitos humanos e a segurança dos povos indígenas.
  • Preservação da cultura e identidade: As terras indígenas são espaços onde as comunidades mantêm suas tradições, línguas e práticas culturais. A demarcação é essencial para garantir a continuidade dessas culturas ancestrais e a transmissão de conhecimentos para as futuras gerações.
  • Conservação da biodiversidade: Muitas áreas indígenas abrigam ecossistemas ricos e diversos. A preservação dessas terras contribui para a proteção da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos essenciais para o equilíbrio ambiental e a sustentabilidade.
  • Respeito aos direitos indígenas: A demarcação das terras é um direito garantido pela Constituição brasileira e por tratados internacionais. Negar ou retardar esse processo é uma violação dos direitos humanos e da autodeterminação dos povos indígenas.

Em resumo, a demarcação das terras indígenas não apenas protege os direitos e a segurança das comunidades, mas também desempenha um papel fundamental na preservação da cultura, da biodiversidade e do meio de vida dos povos indígenas.

A aprovação da Lei nº 14.701/2023, lei do Marco Temporal, portanto, é um alerta vermelho à negociação da vida dos Povos Indígenas. Desde sua promulgação já foram registrados pelo menos  9 assassinatos de lideranças indígenas e mais de 23 conflitos territoriais. 

Enquanto não for declarada inconstitucional pelo STF, a mencionada lei permanecerá em vigor, gerando preocupação e insegurança para os povos indígenas do Brasil.

No Dia dos Povos Indígenas, ela debate sua história e as lutas de seus ancestrais
por
Luísa Ayres
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19/04/2024 - 12h
jaci
Jaci mostra sempre em suas redes sociais os eventos e festividades de seu povo / Reprodução: @jaci.martins_

Jaci Guarani é uma mulher, indígena, estudante bolsista e mãe de quase meia dúzia de filhos, em outras palavras, de cinco. Ela vem da etnia Guarani, e atua como militante das causas indígenas no estado de São Paulo. O nome de seu povo significa guerreiro, e talvez ela nunca tenha precisado ser tão guerreira quanto nos últimos anos. 

Segundo pesquisadores do Instituto Socioambiental (ISA), apenas no Mato Grosso do Sul, mais de 530 indígenas de sua etnia foram assassinados nos últimos 16 anos. Somado a isso, as invasões, a poluição ambiental, o estupro e a pedofilia a que são submetidos os indígenas, levam a pauta da demarcação de terras a ser uma das mais urgentes para os povos – não só pelo direito ao espaço, mas pelo direito à vida. 

Além disso, entre 2000 e 2020, houve um aumento de 167% nos números de feminicídio de mulheres indígenas, segundo o Instituto Igarapé.  

“A gente tá vendo que os não indígenas estão desmatando a Mata Atlântica, o pulmão aqui de São Paulo”, desabafa Jaci Guarani. Mesmo assim, nada parece ser forte o suficiente para abater a ancestralidade da neta de indígenas nômades, que saíram lá da fronteira do Uruguai. A caminhada foi longa, mas ainda não acabou. 

Akângatu

Jaci conta que seu avô ficou internado por 7 anos na Santa Casa. Nesse tempo, aprendeu a escrever e começou a anotar suas lembranças e ensinamentos em um diário, guardado por um Instituto que já não existe mais. Quer dizer, não existe mais no papel, mas resiste no coração de Jaci, que não só guarda histórias, mas as constrói. Afinal, neta da primeira mulher cacique do Brasil, ela garante que para seu povo “não existe só o homem”. “Se eu sou essa mulher que luta pela tekoa (aldeia), é porque essa mulher veio primeiro pra me inspirar”, garante ela. 

Apesar de todo o racismo, preconceito e machismo que enfrentou em sua vida, aprendeu na dor a força que tem a união. Foi contra a exclusão de tantas crianças indígenas que a avó de Jaci lutou pelo ensino regular dentro das aldeias, direito conquistado posteriormente em 2002. Apesar da educação euro centrada, a língua materna é de ensino obrigatório para as crianças de cada  tekoa. No seu caso, seu tronco linguístico é o Tupi, o que permite uma maior identificação entre os povos. 

“É preciso ter a língua materna e o ensinamento cultural voltado para a natureza, plantio e rituais ancestrais”, pontua Jaci, em um tom de preocupação, como o de quem não pode mais deixar que as lembranças e lutas de seu avô sejam novamente perdidos em papéis brancos, tão brancos quanto a pele daqueles que os silencia. A esses, talvez, tenha faltado o que para Jaci Gurani jamais faltou: “A gente aprende o respeito a todos os tipos de vida, o amor, o zelar, o estar cuidando”, conta, relembrando que aprender não e se limita a contas matemáticas e verbos de línguas estrangeiras. 

Além da educação, sua avó cacique também foi peça fundamental na conquista de postos de saúde para as aldeias, o que só aconteceu em 2005, apesar dos primeiros centros básicos de saúde no país terem sido criados por volta do ano de 1918. Não surpreende que as primeiras assistências, preocupações e direitos jamais sejam dados em primeiro lugar aos que já estavam aqui antes.  

aldeia
Casas na tekoa de Jaci, localizada próxima ao Pico do Jaraguá, em São Paulo / Reprodução: Jaci Guarani


Mãe Natureza

Jaci é mãe de 5 crianças. Ainda assim, para que pudesse tomar qualquer tipo de anticoncepcional, precisava da autorização de seu marido e de sua avó, que jamais concordou com essa ideia de pedir a ela permissão. “O corpo é dela, a decisão é dela. Não quero mais nenhuma mulher precisando de assinatura minha para não engravidar”, disse a cacique para todas as outras indígenas de sua tekoa naquela ocasião. 

Se para poucas decisões precisava da aprovação da avó, não a teve em uma de suas mais importantes. Jaci saiu da aldeia para casar-se com um não indígena. E quase deixou que a aldeia também saísse dela. 

“Eu não gosto que você vá para a aldeia ou que fale em idioma indígena”, dizia seu ex marido. Assim foi também com o nome de uma das filhas do casal, Taquá. Para ele, nada agradava ter uma descendente batizada com as  águas e ervas sagradas da floresta, abençoadas pelas divindades. Por isso, Jaci lutou muito pelo nome dessa criança. Não o de papel e documentos. O de alma. 

Outra parte da aldeia Guarani no Jaraguá. Para eles, é fundamental que as crianças brinquem e não reproduzam os vícios da internet e dos jogos / Reprodução: Jaci Guarani. 

Jaci conta que na hora que nasce uma criança indígena, um espírito vem à terra. O nome desse espírito, no entanto, só é sussurrado nos ouvidos do cacique cerca de 5 anos depois, se a criança ainda estiver viva, já que não se sabe se ela ainda estará feliz na terra ou se subirá antes aos céus. Esse nome, em todo caso, será o seu novo dali por diante. 

Pelo nome de suas filhas e pelo seu próprio, Jaci largou mão de seu  casamento e voltou à sua aldeia. Sem as repressões da sogra, sem as ofensas vindas do ex marido, apenas com a doçura daquilo que seu nome sempre significou. “Mel”. 

Nascida na região do pico do Jaraguá, terra demarcada em 1988, Jaci vive em uma aldeia de cerca de 1,7 hectares. Que deveria ser bem maior. 

O parque e as construções ao redor de sua casa, ameaçam a cada dia mais o seu povo. Para ela,  isso decorre de toda uma história de desprezo, violência e invasão, já naturalizados em nossa sociedade. 

“Nunca se falaram dos povos indígenas, nunca passamos na televisão”, protesta, chamando atenção também para o silenciamento e apagamento dessa luta.  

Tempo

Apesar disso, Jaci decidiu mostrar sua verdadeira face para quem quisesse olhar. E a quem não, paciência. A mesma enorme paciência que ela teve para acreditar que conseguiria se formar na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a PUC, uma universidade das mais elitistas do país. 

Aqui, começa sua história com o Pindorama, programa de bolsas de estudo fornecidas a estudantes indígenas - mediante prova e obtenção de nota como em qualquer outro processo seletivo. Isso, 11 anos antes das cotas para estudantes indígenas serem de fato sancionadas no país. 

Ainda assim, como para qualquer outro estudante bolsista, estar lá dentro não significa pertencer, ser aceito ou visto da mesma forma pelos outros alunos. Guarani guerreira, batalhou muito, mas essa não foi uma das lutas, dentre tantas outras, que pode vencer naquele momento. 

“Você não tem tempo para estar aqui”, ouviu da sua professora. Falar de tempo para Jaci, porém, é complicado. Para ela, isso é coisa de gente branca. Gente essa que manda e desmanda nas universidades – que acha que sabe do tempo de cada um.  

Como quem já não se preocupava mais com tempo nenhum a perder, afinal já tinha perdido muita coisa nessa vida só por ser quem realmente era, Jaci desceu as rampas da universidade em lágrimas depois de escrever sua carta de desligamento da graduação. Naquele dia, não perdeu só tempo. Perdeu chances, perdeu suas forças e sua esperança. 

“Eu passo muito preconceito aqui na PUC. Eu ando pintada e o racismo já começa dentro do ônibus”, desabafou. Afinal, a trajetória de sua aldeia até sua universidade, não era dolorosa só pela longa viagem. 

Jaci está falando do tempo da mulher indígena, ainda que esteja sendo contado nos relógios do sistema capitalista, que só marcam as horas de des(matar) e exterminar. Esse não é o tempo da colheita, nem o tempo da fertilidade, tampouco o  tempo dos rituais e pedidos atendidos. Porque se fosse, Jaci saberia muito bem. E esse tempo, teria de sobra. 

Ainda assim, voltou a estudar nesse mesmo lugar anos mais tarde. Como se o tempo a tivesse dado forças para tentar de novo. Recebeu uma ligação de um dos padres da mantenedora da universidade que leu sua carta com todos os motivos que a fizeram desistir de estudar. E pela primeira vez na história, tornou-se uma estudante indígena aceita de volta no Programa Pindorama. Isso porque, dentre tantas centenas de indígenas que desistem da universidade, nenhum pode, pelo regulamento, voltar a estudar com sua bolsa depois da desistência. 

Segundo o Inep, as mulheres indígenas representam apenas 0,5% dos estudantes universitários. 

Mesmo assim, Jaci voltou. Como quem ressurge das cinzas, mas ainda sente as feridas arderem em fogo. Fogo vermelho como tinta de pau-brasil. 

Felizmente, a doçura que Jaci carrega no significado de seu nome não amargou. Quem sabe, dessa vez, Jaci consiga contar o tempo, ou melhor, contar ao tempo que ele é só uma abstração, porque tudo muda e a natureza muda junto. E que para isso, não existe tempo, existe união, amor e fé. Existe muita reza, muita força e muita festa. Existe um caderninho de memórias eterno de seu avô que o tempo jamais poderá apagar. E toda uma história que nem o tempo é capaz de mensurar. 

Se guarani significa guerreiro, Jaci é canto de guerra, disfarçado de amor, doçura e paz. 

Não falemos de tempo para Jaci. Falemos de Jaci em todo o tempo, para todo o mundo. 

Para que um dos povos mais antigos desse continente, com ainda cerca de 51.000 sobreviventes de todos os massacres e extermínios a que foram submetidos no Brasil, no Paraguai, na Bolívia e na Argentina, continuem fazendo da Terra um lugar melhor para se estar. Que tudo seja aldeia e que a aldeia a tudo resista! 

Nhanderu tenondeguiae

Jaikuaa nhanderekorã'i

Ãyreve jareko'i aguã

Ãyreveve hareko'i aguã

Ãyreve ãyreve. 

(Todas sabedorias que mantemos vem do nosso pai supremo e assim mantemos até hoje, e assim mantemos até hoje). 

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Jaci ressalta a importância das tradições e rituais de seu povo com orgulho / Reprodução: Jaci Guarani
Fala de Ailton Krenak foi destaque durante 13 aniversário da Pública
por
Kimberlly Ramos
Victória Rodrigues
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25/03/2024 - 12h

A Agência Pública completou 13 anos no último dia 13 de março. Em comemoração, organizou um evento na PUC SP, para debater “Condições Climáticas e o Antropoceno”, entre outros temas mais do que necessários. A celebração contou com a presença do ativista e escritor Ailton Krenak, o climatologista Carlos Nobre e a jornalista Daniela Chiaretti. Durante a conversa, Krenak trouxe uma importante reflexão, em que enfatiza o fato de as mudanças climáticas recentes afetarem principalmente os mais pobres. Confira no link

Dayana Molina, estilista, ativista e criadora da iniciativa que tem como missão refletir e alterar o olhar eurocêntrico na moda
por
Laura Naito, Giovanna Rahhal e Rafaela Dionello
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17/11/2021 - 12h

A moda sempre foi um espaço muito exclusivo. A Europa, considerada o berço desta área, ainda hoje é - na maioria das vezes - o padrão. O olhar, as tradições, roupas, modelos, todos advém do ponto de vista eurocêntrico. Pensando em mudar essa situação a estilista indígena Dayana Molina se tornou uma ativista da causa, criando o movimento #DescolonizeAModa.

Molina, que hoje tem sua própria marca de roupas, busca abrir o olhar das pessoas para valorizarem a beleza nacional “Precisamos ver aquilo que é original desse país como algo belo. É importante que haja diversidade para que todas nos sintamos bem e representadas enquanto mulheres e indivíduos humanos" — disse ela em entrevista à revista Vogue.

Ela ainda comentou, em entrevista ao O Globo, sobre o impacto da indústria fashion no mundo: "A moda é um dos mercados que mais empregam pessoas no mundo. Mas também é um grande agente de poluição ambiental e exploração humana. Além de ser um ambiente hostil, elitista, excludente e consumista.”. Sobre a falta de representatividade no meio ela comentou: “Isso tudo me faz entender por que não existem muitas pessoas indígenas e negras nas universidades de moda. Consequentemente, também não há professores indígenas e negros ensinando moda”. 

Em janeiro de 2021, fundou a primeira escola de design descolonial, Aldeia Criativa Design do Futuro. Com o objetivo de capacitar profissionalmente e conectar novos talentos indígenas com o mercado de moda. A Aldeia Criativa, é uma parceria da estilista com o Coletivo Indígenas Moda Br, onde juntos visam capacitar 100 jovens por ano de diferentes territórios do Brasil e América Latina.

Dayana está inserida nesse meio há 14 anos, tempo no qual se consolidou como a mulher indígena mais bem sucedida da indústria e conta que na maioria das vezes era também a única indígena nesses espaços. Em uma entrevista para o Uol, ela diz: "Nunca me senti feliz por ser a única mulher indígena nesses espaços. Muitos nunca me perceberam assim, preferiram me olhar como mestiça. Ou uma mulher morena bonita, mas não uma mulher indígena." 

Cansada das referências eurocêntricas, em um continente originalmente indígena, questiona o mercado da moda, branco e elitizado, Dayana vê seu ativismo fundamental para seu trabalho e utiliza suas plataformas nas redes sociais para a conscientização de outros sobre a falta de representatividade no mundo fashion. 

Apesar de se tratar de uma discussão antiga, como Dayana pontuou que desde o início de sua carreira, não há mudanças significativas acontecendo na indústria da moda sobre a questão social. A falta de corpos diversos durante as Semanas de Moda de 2021 em todo o mundo levantou diversas críticas negativas  e mostrou que a indústria da moda ainda tem um longo caminho a seguir para a descolonização da moda.

É o que defende Lamarr Oksasikewiyin, repórter fotográfico que cobriu o evento em duas edições: 2015, em Palmas, no Brasil, e em Alberta, no Canadá, em 2017
por
Arthur Pessoa, Bruna Damin e Gabriel Albert.
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16/11/2021 - 12h

A ideia da criação do World Indigenous Games (WIN), ou Jogos Mundiais dos Povos Indígenas (JMI), em português, surgiu primeiramente em 1977, pelo Willie Littlechild, um respeitado advogado canadense e líder da tribo indígena Cree. Littlechild pregava que jogos indígenas seriam benéficos para as tribos de todo o mundo, promovendo assim a integração entre os povos através dos esportes, mesmos princípios observados nas Olimpíadas. O fotógrafo e professor Lamarr Oksasikewiyin, indígena originário de Sweetgrass First Nation, reserva no Canadá, divide o mesmo pensamento que Littlechild: “esses jogos mostram para os colonizadores que nós ainda estamos aqui, mostram a cultura que eles estavam tentando se livrar, a nossa cultura”.

Os povos indígenas frequentemente sofrem repressão pela sociedade, não apenas nos dias de hoje, mas desde os primórdios do contato entre os europeus ocidentais com as outras civilizações. Suas culturas nunca foram respeitadas em todos os parâmetros, inclusive os esportivos. Buscando o devido reconhecimento, os povos indígenas reuniram-se em prol da criação dos Jogos Mundiais dos Povos Indígenas, o qual teve sua existência em 2015, com a primeira edição ocorrendo em solo nacional, na cidade de Palmas, capital de Tocantins.

O fotógrafo contou que, por sorte, conseguiu uma vaga para participar de última hora: “de um modo foi um sonho que se tornou realidade, e quando isso aconteceu foi irreal”. Porém, não deixou de criticar a organização da 2ª edição do evento, “vários países não conseguiram ir por ser longe de tudo”. Já sobre o ocorrido no Brasil, Lamarr elogiou as cerimônias de encerramento: “eles ficaram mostrando os jogos de diferentes tribos para todos, e isso foi emocionante e incrível”, além de ressaltar as interações entre as tribos.

O canadense realçou a importância de mostrar as peculiaridades de cada tribo e de seus jogos: “se eu pudesse dar uma sugestão, seria dar mais oportunidades para todos se concentrarem em compartilhar seus próprios jogos”. Lamarr contou então, sobre a experiência que teve assistindo um jogo chamado “Fireball”, onde os jogadores usam suas próprias mãos para passar uma bola de fogo: “é um jogo de cura, quando jogam eles convidam pessoas que eles sabem que estão com problemas para elas pensarem em tudo de mal e passarem para a bola durante o jogo”.

 

Um dos pontos altos do evento, segundo Oksasikewiyin, foram os jogos de futebol das tribos indígenas. Em uma dessas partidas (Tocantins vs Canadá) ele teve a oportunidade de jogar lado a lado com o ex-jogador Cafu, um dos melhores laterais direitos da história do futebol: “eu também tive a oportunidade de jogar com o Cafu, e nós tivemos que driblar a bola com ele”.

 

“Os colonizadores não gostam de ser incomodados” diz Lamarr sobre os protestos indígenas de 2015 contra projeto que alterava a demarcação de terras, além de pedir o impeachment da ex-presidente. O fotógrafo diz que: “se realmente tivesse uma maior mídia sobre os jogos, eu deixaria eles falarem e protestarem, mas não por muito tempo. Exatamente para não tirar o principal foco dos jogos, que é mostrar para o mundo a nossa cultura”. 

 

“Eu não sei como o mundo nos vê, mas o Canadá é na verdade um país muito racista com os povos indígenas, o Brasil e os Estados Unidos também” adiciona Oksasikewiyin. Além de terem sido massacrados, escravizados e exterminados, os mesmos não recebem quase nenhuma visibilidade, principalmente nos Jogos Mundiais, cujo principal objetivo é dar esperança de um futuro melhor. 

 

“A produção textual de povos originários ajuda a recontar a história do Brasil a partir de uma perspectiva diferente”, revela Janice Thiél, professora da PUC-PR.
por
Maria Eduarda Frazato
Maria Eduarda Mendonça
Vicklin de Moraes
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16/11/2021 - 12h

A lei 11.645 promulgada em 2008 exige que a cultura e história indígena sejam ensinadas nas escolas. Apesar de tal legislação, os ensinamentos são passados por visões mais eurocêntricas. É o que afirma o professor da UFRR, Devair Fiorotti em entrevista ao blog Escrevendo o futuro. “Para trabalhar com literatura indígena na escola é preciso reconhecer a diferença: entender que se trata de uma outra cultura e não tentar enquadrá-la nos nossos conceitos”.

            Um dos tópicos enquadrados na cultura indígena é sua literatura, que engloba cantos, poemas, versos e preces. A professora da PUC-PR e doutorada Janice Thiél explica para o portal “Escrevendo o futuro” que: “literatura é muito associada à palavra escrita, mas desde Homero há uma presença da oralidade nos textos. Nas culturas indígenas também: desde sempre elas produzem artes verbais, literatura oral.” 

            Como Thíel declara, Homero, escritor de a Ilíada e a Odisseia, narra a história em que os personagens são heróis gregos que participaram da Guerra de Tróia. Na primeira fase do Romantismo Brasileiro, José de Alencar trazia na literatura a figura indígena como o herói nacional, assim representados pelos personagens Peri, Iracema e Ubirajara nas obras O Guarani, Iracema e Ubirajara respectivamente. 

 

Tradicionalmente, a figura do indígena sempre teve sua história narrada por terceiros, como no romantismo e no folclore. Um grande exemplo é o seriado da Netflix “Cidade Invisível'' (2021), a trama é baseada nas histórias folclóricas do Saci, Cuca, Curupira, Boto-Cor-de-rosa etc. A série causou controvérsias pois o folclore é indígena e o elenco em sua maioria era composto por personagens brancos e com pouca representatividade.

            Apesar das críticas, o seriado é significativo quanto à representatividade a nível mundial que a plataforma de streaming elevou. A própria Janice ressalta a importância da ligação dos mitos com os ancestrais e com o sagrado para os indígenas, muito diferente da forma como lemos os mitos gregos hoje, por exemplo. 

É importante que a sociedade possa refletir sobre esse significado: “para o indígena, essas histórias são verdadeiras, não são simplesmente ficção. Trata-se de um gênero diferenciado de literatura, que pode fazer parte de rituais, inclusive, mas também é colocado nos livros para nós conhecermos.” 

            Segundo previsão do Itaú Cultural, organização voltada para pesquisa e produção de conteúdo, há cerca de 40 autores autodenominados indígenas que produzem material literário frequente. Thíel explica, em entrevista ao site MultiRio, que a produção de textos por indígenas é algo recente, pois floresceu na década de 1990 e entrou neste século como movimento literário reconhecido. "A produção textual indígena ajuda a recontar a história do Brasil a partir de uma perspectiva diferente da narrativa oficial."

Shirlei Arara, indígena e ativista, nos conta como é a relação com a natureza, além de revelar também a constante luta que é estar em busca de seus direitos
por
Fabrício Gracioso, Majoí Costa e Lucca Andreoli
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11/11/2021 - 12h

 

Shirlei Arara, de 33 anos, é uma de muitas mulheres indígenas da aldeia Karo-Arara. Ativista, estudante e foragida pelos que perseguem os protetores da floresta, ela faz parte da coordenadoria da associação AGIR (Associação das Guerreiras Indígenas de Rondônia), uma associação das mulheres que representam o estado de Rondônia. E desde que a aldeia existe, há um histórico de luta muito presente. Em entrevista concedida via Google Meet, Shirlei fala: “Nós já nascemos lutando”. De acordo com ela, o meio ambiente e os povos indígenas são como um só. “A mãe que cuida, a mãe que gera. Nós, povos indígenas, temos a floresta como nossa mãe protetora.” 

Os índios Arara se localizam no estado de Rondônia, região norte do Brasil, e também são conhecidos como Arara Tupi ou simplesmente Karo. A aldeia possui vários projetos e Shirlei é responsável por coordená-los: “Tudo relacionado a projetos, eu coordeno e escrevo”. 

Com um histórico de lutas muito grande, as mulheres da tribo estavam sempre na linha de frente. Além de serem artesãs, vigilantes de seus territórios, cozinheiras, curandeiras e parteiras, elas também são as primeiras a irem atrás de políticas públicas, de garantir seus direitos e de proteger a floresta. “Chamo as mulheres indígenas de mulheres maravilha, nós vamos para o mato, vigiar, fiscalizar, denunciar, plantar, colher, olhar, ouvir e ler a natureza”. Shirlei termina a frase com um quê de ternura: “Eu amo ser mulher indígena”. 

A ativista também revela que há sim um machismo dentro da comunidade, mas que as próprias mulheres de lá vem lutando para ganharem sua voz. “O fato de nós mulheres termos essa autonomia e voz ativa é uma conquista”. Ela reforça também a criação da associação das mulheres da aldeia, que foi uma conquista para a aldeia por terem políticas públicas feitas por elas mesmas.

Ao longo de nossa conversa, a indígena conta que seu povo sofre sim de ameaças constantes, principalmente com questões envolvendo a retirada ilegal de madeira, grileiros e garimpo. Por isso, Shirlei diz: “Nossos filhos são crianças que já lutam”. 

Também conversamos sobre a dinâmica de gestação, e Shirlei nos conta que os cuidados com a mulher são quase os mesmos que os cuidados com o pai da futura criança, pois os dois estão ligados, "A mulher gestante é servida pelas outras mulheres da sua comunidade, e o marido também”. Quando um casal está esperando um bebê, o homem não caça pois, de acordo com ela, outros seres-vivos podem estar passando pelo mesmo estado de gestação e cuidado com seus parceiros e parceiras. “Ferindo um animal, fere também o corpo da sua mulher, e de seu bebê, porque ninguém sabe se o animal que ele mata é pai ou mãe, e pode estar na mesma situação que ele ou sua mulher.” Essa informação apenas ressalta a questão humana com a natureza feminina, uma relação tão presente e viva na cultura e também na ética dos povos indígenas.

Apesar de enaltecer as mulheres, Arara também reconhece o quão importante os homens são para a aldeia: “Os homens são fundamentais. Nós mulheres temos nossa voz, buscamos nossa autonomia, mas temos muito respeito por eles, pela proteção do nosso território, pelo sangue que deram por isso.”

O caminho do reflorestar, mulheres indígenas doam suas vidas pela Terra.
por
Vitor Simas
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09/11/2021 - 12h

Vanuza Kaimbé, filha das terras do sertão baiano é uma das milhares de indígenas espalhadas por Pindorama, é guiada por forças ancestrais que lhe concedem coragem para curar a Terra e reflorestar mentes. Atravessou o sertão até a capital de São Paulo para estudar enfermagem e também graduar-se em Serviço Social. Liderança indígena que auxiliou na criação da aldeia Filhos Dessa Terra, participou das duas marchas das mulheres indígenas em Brasília e ganhou destaque na mídia por ser a primeira mulher indígena a tomar a vacina da Covid-19 no Brasil. Enfrenta discriminação, resiste ao descaso do sistema e luta por seu povo e por um mundo igualitário.


Vanuza Kaimbé

 


 

ilustração da Marcha das Mulheres Indígenas É uma das milhares de mulheres originarias que germinam na Amazônia, Caatinga, Cerrado, Pantanal, Mata Atlântica, Pampa, atravessam matas, rios e estradas para retomar tudo aquilo que lhe foi roubado, invadido. Mulheres originárias que não se contentam com a marginalização causada por um sistema capitalista. Guardiãs das florestas e dos rios, são elas, mulheres sementes que doam suas vidas para curar e regenerar a Terra para que ela possa continuar florescendo a vida.

“Reflorestando mentes para a cura da terra” é o lema da mobilização das mulheres originarias do Brasil, que traz como símbolo uma mulher indígena gestante, que também pode ser lida como uma árvore, cheia de raízes e folhas. A luta pela demarcação das terras indígenas vai muito além da delimitação de um território, é sobre preservar a ancestralidade, a identidade e a biodiversidade. “Nós (povos indígenas) não cuidamos só das terras cuidamos da vida de todo o planeta porque não há vida sem floresta, não há vida sem água, os rios estão poluídos, estão secando. nós somos os guardiões da vida.” Salienta Vanuza Kaimbé.

A ativista nos convida a sermos todos guardiões e guardiãs das florestas, das poucas árvores que sobreviveram nas cidades, dos animais; sermos defensores da diversidade de existências e a sabermos escutar e a sentir Abya Yala (Terra Fértil), pois todos temos esse potencial.


O Caminho do Reflorestar:

 

 

•	Foto: mulher indígena com roupa em uma árvore anciã
Foto 1: Germinar – Onde o solo é fértil há a chance de germinar, florescer para perpetuar a vida. Não há vida em terras oprimidas, pois ganância e egoísmo sufocam as florestas.

 

•	Foto: centralização no rosto da indígena
Foto 2: Olhar – há muita expressão no olhar, o olho é boca que grita calado as emoções, são janelas que mesmo fechadas expressam tudo o que a alma está repleta, anseia e teme.

 

•	Foto:  corpo inteiro com a árvore de fundo
Foto 3: Corpos de pé – As mãos que executam as árvores, executam povos indígenas, executam biomas inteiros; excutam a vida. Corpo de pé é liberdade para viver.

 

pés e raizes
Foto 4: Raízes – Pés descalços no solo para ouvir os tambores e cantos que emanam do ventre da Terra. O corpo que menospreza suas raízes não se desenvolve.

 

mãos da indígena tocam a árvore
Foto 5: Conectar – Não existe o meio ambiente, existe o ambiente todo. Nossos corpos estão conectados, não desassociam, somos microcosmos do organismo Terra. 

 

mulher indigena toca e contempla a árvore
Foto 6: Reconhecer – Reconhecer a humanidade presente em cada ser, a sabedoria que cada um guarda é entender que não há espaço para individualismo, há muita vida além de nós.

 

 

Mulher indígena ao lado da árvore olhando para cima
Foto 7: Sonhar – Sonhos são locais de aprendizado, cura e de inspiração, através dos sonhos se acessa outros mundos que expandem o olhar sobre a percepção da vida. Estamos o tempo todo sonhando.

 

mulher indígena de braços abertos, árvore de fundo
Foto 8: Voar – Voar para expandir o horizonte, resgatar a liberdade roubada; escancarar nas asas o apagamento histórico, cantar para denunciar os gritos abafados pelo colonialismo.

 

árvore anciã
Foto 9: Corpo Maduro – Anos de luta das guardiãs da floresta, fecundação e manutenção da terra mantiveram a Árvore preservada. A vida é livre para fluir, livre para existir não precisa mais resistir.