Neste ano, dois fatos geraram reflexão sobre o apagamento da mulher: em Brasília, no dia 9 de março, Sandra Nara traiu seu marido com Givaldo Alves (morador de rua) que foi agredido após ser flagrado com ela. Depois, em 27 de março durante a cerimônia do Oscar, o comediante Chris Rock ofendeu Jada Pinkett através de uma piada. Como um meio de defendê-la, seu marido, Will Smith, respondeu a piada batendo no rosto do comediante.
A professora da PUC-SP e cientista social, Carla Cristina Garcia, disserta sobre a origem desse apagamento: “Ocorre porque nós temos, no ocidente, uma história androcêntrica, que é centrada no homem. Então, qualquer fato e qualquer coisa que você vai falar, escrever e refletir será feito através da figura do homem”. Assim, a mulher, mesmo que participe do evento, é posta como coadjuvante enquanto o elemento masculino é posto sob holofote.
Em conformidade com o exposto, a mídia hegemônica ao noticiar os recentes fatos protagonizou os homens envolvidos. "Dentro do jornalismo, durante muito tempo, o entrevistado principal de uma matéria era um homem, quem segurava o microfone era um homem e quem refletia a respeito de um grande fato era um homem. " aponta a entrevistada.
Givaldo Alves, por ter sido o foco das notícias, ascendeu às custas do quadro clínico de Sandra, que ficou internada por 30 dias por causa do surto psicótico. Conhecido hoje como “mendigo pegador”, está sendo considerado para cargos políticos.
A situação de Jada Pinkett, a qual foi noticiada sem considerar a ridicularização da saúde dela, foi reforçada no dia 1 de abril. Segundo Bill Maher, apresentador de “Real Time with Bill Maher”, ela não tem risco de vida, apenas queda de cabelo e podia usar uma peruca.
Após a cerimônia do Oscar, a filósofa Djamila Ribeiro se manifestou nas redes sociais, apontando a frequência com que a mulher negra é motivo de piada e como presenciar a defesa dela incomoda a sociedade. A entrevistada Rozana Barroso, presidente da UBES, também se manifestou: "Naquela cena do Oscar, eu vi várias cenas que eu já vivi na minha vida também, de ser exposta ao ridículo por ser mulher."
Durante uma palestra feita no 11 de abril por Manuela Ávila na PUC-SP, Rozana e outras mulheres foram vítimas de um vídeo enganoso. "Os comentários dos apoiadores dele eram 'Vai emagrecer', ' O que que essa menina está fazendo aí?', 'Ai que cabelo feio', 'Macaca'... Estamos sempre expostas ao ridículo." diz a estudante, expondo o mesmo sentimento que Djamila.
Para Rozana, o governo Bolsonaro contribui para o machismo. De acordo com ela, o presidente nunca aceita reuniões com movimentos sociais para levantar pautas importantes para as minorias e, por isso, a existência de uma bancada feminista é necessária para garantir que a voz dessa parcela da sociedade seja ouvida.
Conforme dito por Carla Cristina Garcia, os movimentos feministas, em 1970, passaram a estudar a mulher como sujeitos ativos e não objetos, como antes. Com a importância dos movimentos feministas no ambiente acadêmico, as organizações estudantis englobam esses assuntos.
A presidente da UBES disse que o movimento estudantil atua na construção dos estudantes para viverem em sociedade. Dessa maneira, a organização trabalha pela permanência das mulheres nas escolas e universidades, sendo elas as mais afetadas por crises sociais e econômicas.
O Feminismo age com diversas vertentes em meio à sociedade, como o feminismo liberal, marxista, negro, radical, interseccional, Indígena, trans e decolonial. Esses movimentos, durante a história brasileira, são responsáveis pelas conquistas de direitos e leis que defendam a mulher, como:
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1946- Direito ao voto;
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1962- Direito de trabalhar sem pedir autorização ao marido;
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1977- Lei do divórcio;
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1988- Proibição da diferença do salário;
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1990- Igualdade no exercício do pátrio poder;
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2006- Lei Maria da Penha;
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2015- Lei do feminicídio e registro de filhos em cartório sem o pai;
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2018- Criminalização da importunação sexual;
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2019- Prioridade do divórcio para vítimas de violência doméstica.
A desigualdade e segregação social sobrevivem à morte. A partir de análise comparativa em documentos históricos e relatos atuais observa-se que não é apenas o custo de vida que pesa no bolso do brasileiro, mas também o custo de morte. Dizem que a morte iguala a todos…Ledo engano, ao menos no plano material, pois a desigualdade social e até socioespacial mantém-se no post mortem, a mesma condição observada em vida nas metrópoles, estende-se e reproduz-se nas necrópoles.
A segregação social nas necrópoles são históricas e nem sempre ocorriam por motivos econômicos, pessoas em condições de escravidão eram enterradas do lado de fora das igrejas, conhecidas como "campo santo", enquanto pessoas ricas, senhores de escravos eram enterrados no espaço interno, simbolicamente mais próximas ao céu. Historicamente, não apenas escravos, mas judeus, suicidas e prostitutas também eram enterrados nos muros dos cemitérios, demarcando o locus da exclusão e estigma.
No estado de São Paulo, cidade de Cubatão, existe um espaço mortuário cujo os sepultados são protagonistas de histórias marcadas por segregação e esquecimento que perduraram até o fim, o Cemitério das Polacas. Fundado em 1929 pela Associação Beneficente e Religiosa Israelita de Santos, que ocupa um pequeno espaço no cemitério municipal, as lápides em sua maioria são de mulheres, conhecidas como polacas, que eram judias que chegaram à América do Sul por volta do século XIX e XX, com promessas de melhoria de vida e assim que chegavam eram exploradas e prostituídas, e caíram nas graças da negligência, descaso e por fim esquecimento social.
Discriminadas em vida e também em morte, esquecidas e escondidas como uma história que se prefere acobertar. Apesar de ser o primeiro cemitério israelita no Brasil a ser considerado como patrimônio histórico, o espaço vive abandonado e esquecido, reflexo da realidade vivida por essas mulheres, que viviam em condições miseráveis e exploração desregrada. Registros históricos relatam que por conta da rotina de se relacionarem com dezenas de homens por dia, contraiam doenças e possuíam baixa expectativa de vida e por conta do desprezo por parte da comunidade não podiam ser enterradas em cemitérios.
A historiadora Beatriz Kushnir, conta no livro “Baile de Máscaras: mulheres Judias e Prostituição” a história dessas mulheres que viveram marginalizadas e que para diminuírem o sentimento de exclusão social, fundaram ONG’s que procuravam ajudar essas mulheres até seus últimos dias . Eram mulheres consideradas impuras e pecadoras por uma comunidade que as excluíram, adoeceram e mataram, e por conta disso uniram forças e fundaram sinagogas e até cemitérios, para que pudessem ter direito a um fim digno, para que tivessem na morte a honra que lhes tinham sido negada em vida.
Atualmente, a segregação social expandiu-se, e com o advento da pandemia da Covid-19, observou-se o fenômeno de mortalidade entre classes mais vulneráveis socioeconomicamente, através de propagandas fomentadas com dinheiro público de que “O Brasil não pode parar’, grande parte dos trabalhadores expunham-se ao vírus desde o início para garantir o sustento e o pão na mesa, e terminaram por engordar as estatísticas de mortalidade do vírus, muitas famílias vivem a saudade de entes que perderam.
Mesmo que não escolha o alvo, o vírus exige isolamento. No início quando aplicou-se o conceito de “novo normal", com atividades desde trabalho à lazer de forma remota, o aumento de atividades home office e lives, empregadas domésticas, entregadores de aplicativo, e porteiros arriscaram suas vidas em troca de subempregos, a fim de assegurar um isolamento às classes privilegiadas, enquanto uns temiam sair de casa e perder suas vidas por conta da COVID-19, outros expunham-se diariamente porque o medo da fome era mais palpável que o medo da doença.
Famílias inteiras foram perdidas, corpos e almas não puderam chorar os seus, vidas negligenciadas, mortes esquecidas, histórias que se construíram em um Brasil profundamente desigual, desde a chegada dos escravos, polacas até os dias de hoje, em que a segregação se mantém estampada na distribuição territorial que empurrou seus descendentes às margens da sociedade e áreas ambientalmente mais degradadas e vulneráveis. Ainda como seus ancestrais, os direitos de sepultamento muitas vezes foram negligenciados, famílias não puderam sequer ter o direito e condições para isolamento social e nem para despedidas de seus entes, o desrespeito aos direitos fundamentais em relação ao morto, condena-o à segregação espacial, dada a sua classe social, tornando as vítimas cada vez mais em números estatísticos e desonrando o legado, sofrimento e dor vivenciados.
O ano de 2022 está repleto de eventos que podem mudar o destino do Brasil, dentre eles, as eleições para presidente, governadores, senadores e deputados. Mas um fato negativo chamou a atenção do TSE (Tribunal Superior Eleitoral): o número de adolescentes que tiraram seu título de eleitor bateu recorde negativo, sendo o menor já registrado de todas as eleições, 141.168 jovens, o que representa 11,6% dos que podem tirar o documento.
Um dos fatores de desinteresse em adquirir o título é a falta de representatividade. É o que afirma João Marcos Aquino, 16, que apesar do voto ser facultativo nesta faixa etária, já obteve seu registro. “Na minha visão os jovens perderam a vontade de votar porque eles não têm mais esperança em relação a política no Brasil. E muitos não se sentem representados pelos que estão se candidatando”.
Após a ditadura militar em que o povo teve seu direito de escolha de representantes abolido, os adolescentes se mobilizaram em prol da democracia e obtiveram seu documento eleitoral. Em 1990, o número de jovens votantes foi 2,9 milhões, que representava 2,07% do eleitorado nacional.
É válido ressaltar que após crises políticas os jovens tendem a votar menos. Os dados do TSE apontam que desde a eleição de Fernando Collor de Melo - 1º presidente que sofreu mpeachment - os jovens perderam o interesse pelas eleições, registrando quedas de 3,2 milhões em 1992 para 2,1 milhões de eleitores em 1994 e 2,3 milhões em 1996 nos cartórios eleitorais.
Outro ponto que afasta o interesse político dessa faixa etária é a polarização ideológica, que desde as eleições de 2018 se tornaram evidentes. Essa divisão é uma das causas que vem afastando os adolescentes. É o que afirma a adolescente Larissa Yukari Bianchini, 16, que não tem vontade de votar até que seja obrigatório. “A minha falta de interesse em votar vem muito das discussões políticas atuais. Assim como a divisão de direita e esquerda evidente. E essa ideia de ter que escolher um lado me fez perder a vontade e curiosidade de ir votar. E também ser uma participante política, que sempre está buscando o que os seus representantes estão propondo.”
Ainda sobre a polarização, Bianchini acrescenta que “todo mundo diz que os jovens são o futuro, e realmente são. Mas a questão política é algo, na minha percepção, que você decide um lado e acaba dividindo sua vida”. Ao ser questionado sobre o valor de seu voto, Aquino diz: "Ainda que pareça insignificante a soma do meu voto com a de várias pessoas é o que vai definir o futuro do país .Eu espero que as pessoas votem com mais clareza e tenham mais certeza na hora de tomar essa decisão”.
Após o TSE divulgar o baixo número de títulos emitidos por adolescentes, famosos iniciaram uma campanha em suas redes sociais a fim de incentivar os jovens a emitirem seus documentos. Depois dessas iniciativas, cerca de 100 mil inscrições ocorreram entre 14 e 18 de março.
O festival Lollapalooza Brasil foi palco de muita música e também de muita manifestação política durante os três dias. O rapper Emicida abriu seu show dizendo “Se você tem de 15 a 18 anos, tira a p**** do título de eleitor.” O cantor Jão também se manifestou durante sua apresentação: "Esse ano nós batemos recordes de ausência de título de eleitor. Por favor, não adianta estar aqui no show e não votar. Vai votar, p****"
No festival, além da pauta sobre o documento eleitoral, a maior parte dos artistas puxou vaias contra o atual presidente da república, Jair Messias Bolsonaro. Coros de “Fora Bolsonaro” eram frequentes no evento. A cantora Pabllo Vittar desfilou com uma bandeira com o rosto do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.
As manifestações ultrapassaram fronteiras, pois a cantora galesa Marina and the Diamonds também se pronunciou contra Bolsonaro: "F***-** Bolsonaro. Estamos cansados dessa energia. Vocês são a nova geração e as coisas vão mudar. Eu tenho orgulho de vocês serem meus fãs."
Após as manifestações constantes no Lollapalooza, o ministro Raul Araújo do TSE definiu que o festival vetasse protestos eleitorais, por partes dos cantores que se apresentassem no domingo,27. Em caso de descumprimento, a multa foi estipulada no valor de 50 mil. Contudo, o TSE notificou a empresa errada, e a organização Time 4 Fun recorreu, anulando o pedido.
O prazo para quem ainda deseja tirar título eleitoral é 4 de maio de 2022. Para emiti-lo basta acessar o site https://cad-app-titulonet.tse.jus.br/titulonet/novoRequerimento. Os documentos necessários são: RG, passaporte ou carteira de trabalho, comprovante de residência e uma selfie segurando o documento.
Por Isabel Bartolomeu Simão, Inara Novaes e Sabrina Legramandi
AgeMT: Como você lida com a exposição da sua vida pessoal na mídia? O fato de você ser mulher, interfere, de alguma maneira, nisso?
Soninha: O fato de ser mulher significa que vão querer saber algumas coisas ao meu respeito que não teriam interesse em saber sobre um homem. É um tipo de curiosidade, até de bisbilhotice mesmo. Se um homem viaja muito a trabalho, ninguém pergunta para ele “como ficam seus filhos?” porque supõe-se que não é problema dele. Agora, para uma mulher, vão perguntar se é difícil conciliar trabalho e filhos.
Eu sempre me perguntei “o que eu quero da minha vida pessoal que seja público e o que eu não quero?”. Nas primeiras vezes que eu fui procurada para dar uma entrevista, tive que lidar com isso e o critério que estabeleci para mim é: quando saber de um aspecto da minha vida pessoal puder ser útil na vida de alguém, então, tudo bem, eu aceito falar sobre isso. Se for só uma curiosidade boba, de fuxico, eu prefiro não contar.
Quantas vezes na minha vida me ajudou ler uma entrevista de alguém e saber que a pessoa estava vivendo um puta de um drama, porque tinha filhos pequenos, teve os filhos muito cedo, demorou muito para conseguir fazer faculdade e fez. Eu tinha vinte anos e tinha duas filhas já, às vezes eu entrava em umas de achar que minha vida estudantil parou, que nunca mais iria conseguir voltar a estudar. Nesse sentido, assim como eu já me impactei por entrevistas, alguma coisa pessoal que eu diga pode ser impactante para alguém também.
AgeMT: Você se formou em cinema e ficou muito conhecida pelo seu trabalho como VJ na MTV. Por que você decidiu trocar a área da comunicação pela política? Foi realmente um desejo de mudar ou, para você, uma área complementa a outra?
Soninha: Eu pensava em fazer política antes de pensar em trabalhar em televisão, porque, quando eu era pequena, acompanhava política por influência da minha mãe. Ela não tinha uma militância externa, não fazia parte de nenhum movimento organizado, mas era muito atenta, interessada, crítica. Então esse interesse e essa indignação vinham para dentro de casa.
Com o passar dos anos, eu olhava para a política e falava “Deus que me livre, eu não quero, eu quero ser uma pessoa engajada politicamente, mas não disputar um cargo político”. E, assim, eu toquei minha vida na escola, no teatro amador, na faculdade e na TV sempre com a política presente.
Se eu tivesse que abandonar a política para ser apresentadora de televisão, não teria dado certo. Tirar a política da minha vida era impossível, o que aconteceu depois foi que eu tirei a televisão da minha vida, decidi ser candidata a vereadora. Porque, naquele momento, concluí que eu queria ter mais poder e, para ter mais poder, teria que disputar um cargo eletivo. Conciliei a vida na área política e o trabalho em televisão enquanto deu. O resumo da história é: eu não conseguiria abrir mão da política para trabalhar em televisão, cinema, mídia esportiva, no que quer que fosse.
AgeMT: Você possui uma vasta participação na política. Como esses anos de atuação contribuíram para sua visão sobre o papel e o exercício da cidadania?
Soninha: Eu achava que entendia muito de política antes de me eleger vereadora, porque, afinal de contas, fiz política a vida inteira. Sempre fui militante, ativista, engajada, leitora, consumidora de noticiário político e foi só quando me elegi que descobri o quanto que eu nem imaginava. A gente tem que decorar a tabela periódica para passar no vestibular, mas não precisa saber quantos vereadores tem a capital, quantos deputados tem a Assembleia Legislativa. A gente não sabe nem o básico, nem a regra do jogo, muito menos como o jogo é jogado.
Eu sofri muito no primeiro mandato, porque era tudo muito diferente do que eu imaginava. Me preparei para confrontos diretos de ideia e achei que era isso que ia me fazer sofrer. Na verdade, enquanto você tinha duas ideias aqui em debate, o que influenciava a vitória de uma sobre a outra era tudo que estava acontecendo em volta.
Esse compromisso com o que realmente pode transformar a realidade é o que eu tenho mais claro hoje. Como a gente pode se engajar em alguma coisa de modo que aconteça a transformação que a gente espera? Então, acho que é coisa que só dá para aprender mesmo com o tempo, a idade e a experiência na pele.
AgeMT: Como você descreveria sua experiência na política considerando que este é um espaço ocupado majoritariamente por homens brancos? Como essa desigualdade de gênero é percebida no exercício da profissão?
Soninha: Quando eu me elegi a primeira vez, éramos cinco vereadoras num conjunto de 55 parlamentares. Então, imagina, uma mulher para cada dez homens. O resultado disso é espacial, sabe? Era muito comum você estar num ambiente e só ter homem. Era muito frequente você ser a única mulher em determinado lugar. Isso é totalmente artificial, antinatural, o mundo não é assim. A gente estava num espaço que é para ser representativo por definição e não era nada representativo em vários sentidos: o do gênero, muito marcante, mas não tinha nenhuma pessoa trans, ninguém que se afirmasse homossexual, jovens, éramos apenas dois.
Quando eu me elegi da segunda vez - teve 8 anos de intervalo entre um mandato e outro - no segundo, nós já éramos onze mulheres. Isso foi muito significativo e agora o número aumentou. Hoje é mais difícil acontecer esse retrato básico e absurdo: você aponta a câmera para um lado e só tem homem, mas ainda acontece, pode reparar. Os homens ainda são em número maior e, claro, que não é uma questão só do impacto visual e espacial, é a presença dos temas, a visão dos temas, a postura em relação aos temas, aos temas todos da sociedade.
AgeMT: Nas suas entrevistas – principalmente as mais antigas – você sempre se definiu como socialista. Você ainda se define assim? Se sim, de que forma? Se não, qual modelo político você defende hoje e por quê?
Soninha: Eu sou uma pessoa com visão de esquerda, o que significa o seguinte: o coletivo precede o individual. Eu não acho que o direito individual é o que vem primeiro. Então, como isso reflete na política municipal? Quando a gente discute transporte coletivo versus transporte individual, né? Os usuários de transporte individual ficam revoltados com qualquer tipo de restrição que você impõe à circulação de veículos, e eu acho que a gente tem que privilegiar o transporte coletivo, que atende a um número muito maior de pessoas e atende muito mais ao interesse da população de modo geral. Então, a visão se reflete em coisas práticas até.
O Estado tem um papel decisivo para garantir o acesso a direitos: moradia, educação, saúde. Eu acredito, também, muito mais nos modelos baseados em cooperação, colaboração e solidariedade do que nos modelos de competição. Muita gente acha que esse é o melhor jeito. Eu não acredito nisso. Agora, isso não quer dizer que eu defenda que o Estado tem que fazer tudo. Eu acho que existem vários modelos interessantes de parceria: setor público - setor privado - terceiro setor - sociedade organizada, que podem garantir o acesso a serviços públicos de qualidade, que podem garantir o acesso a direitos, sem ser tudo estatal.
AgeMT: Até meados de junho deste ano, você ocupava o cargo de chefe de gabinete da Secretaria de Relações Internacionais da Prefeitura de São Paulo, que tem Marta Suplicy como titular da pasta. Após a liberação de verba para a Motociata de Bolsonaro, que ocorreu na cidade, você foi exonerada do cargo. Esse evento repercutiu e recebeu críticas de grande parte da população paulista. Você pode falar um pouco sobre o assunto? O que ocorreu?
Soninha: Eu fiquei arrasada. Eu odiava saber que teria uma motociata do Bolsonaro sem nem imaginar que, por causa daquilo, eu perderia o meu emprego. Já era horrível a perspectiva do Bolsonaro desfilando de moto pela cidade de São Paulo, mas, o que aconteceu foi: por força das circunstâncias burocráticas, o dinheiro que seria originalmente da Secretaria de Turismo estava, vamos dizer, numa conta da Secretaria de Relações Internacionais, porque a Secretaria de Relações Internacionais foi criada no lugar da Secretaria de Turismo, que deixou de existir.
Então, era uma fase de transição, sabe quando você muda de endereço, mas não mudou as contas ainda? Estão no nome do antigo proprietário? Era mais ou menos isso. A gente estava lá, na casa que era da Secretaria de Turismo e os recursos da Secretaria de Turismo continuavam ali, na nossa conta. Quando eles precisavam de dinheiro, eles mandavam um processo dizendo “sabe aquele nosso recurso que está aí com você? A gente vai precisar dele agora para um evento assim, assado”. Era um mero trâmite burocrático, o dinheiro era deles, não era meu.
E, aí, eles precisavam do dinheiro porque seriam os responsáveis por alugar os gradis de proteção ao longo do percurso onde haveria a Motociata Para Cristo, que contaria com a presença do Presidente da República. Isso é o tipo de coisa que ninguém tem o direito de não fazer, não tem como dizer “eu discordo desse negócio, não vou colocar gradil porra nenhuma, se morrer alguém, que se dane”. Não existe isso, qualquer corrida de rua tem gradil protegendo o trajeto, quanto mais um passeio de motocicleta, quanto mais com a presença do presidente da República.
Então, a Secretaria de Esporte, Lazer e Turismo, mandou lá o pedido e eu disse “sim, claro” e autorizei o repasse. Quando aconteceu o diacho da motociata, algumas pessoas começaram a dizer assim: olha lá, quem deu dinheiro para motociata do Bolsonaro, a secretaria da Soninha e da Marta, a Marta Suplicy está dando dinheiro para o Bolsonaro desfilar de moto. Olha o caos, a distorção absurda: ninguém deu dinheiro para ninguém. A prefeitura, como órgão público, tinha o dever de fornecer estrutura mínima, básica de segurança, para um evento daquele porte, com aquelas características.
O dinheiro foi autorizado por mim, num despacho de um processo em que eu não tinha nem poder de decisão. Só que repercutiu tanto, virou um discurso do tipo: a Marta ajudou o Bolsonaro, a Marta ajudou o Bolsonaro e aí ela falou “olha, eu não admito, eu não suporto ser associada ao Bolsonaro e, para quem está vendo de fora, a culpa é sua. Estão dizendo que eu ajudei o Bolsonaro, porque você assinou o despacho”. Eu fiquei arrasada, eu fiquei indignada, eu fiquei revoltada. Eu queria muito que a Marta, que era minha chefe, dissesse para o mundo “vocês estão enganados, vocês estão malucos”, mas ela optou por fazer esse gesto para demarcar posição.
AgeMT: Quais são as expectativas para as eleições do próximo ano? Você acredita que, com o aumento da rejeição popular de Bolsonaro, é possível esperar a eleição de candidatos mais progressistas?
Soninha: Eu espero apaixonadamente que Jair Bolsonaro não chegue ao segundo turno. A eleição do Bolsonaro foi um desastre que se abateu sobre nós. Ela é um dos piores políticos da história do Congresso Nacional. Ele é medonho. Há muitos parlamentares cuja atuação eu desaprovo totalmente, mas eu não me lembro de ninguém pior do que o Bolsonaro. Até os políticos mais canalhas conseguem se comportar dignamente em um velório, em uma cena de desastre. Pode ser o pior patife, mas ele tem um pingo de humanidade para dizer: “meus sentimentos, minha senhora”. É uma coisa hedionda o que a gente viu durante a pandemia.
Felizmente, uma boa parte do eleitorado dele já enxerga isso. Muitas pessoas que rejeitaram Fernando Haddad se propõem a votar no Lula porque viram a catástrofe que foi. Eu sou uma dessas pessoas. Eu fui do PT (Partido dos Trabalhadores) e saí do PT com profundíssimas divergências, mas eu votei no Haddad contra o Bolsonaro no segundo turno de 2018. Contra o Bolsonaro, eu também voto no Partido dos Trabalhadores, eu voto no Lula. Mas eu espero, sinceramente, que Bolsonaro não chegue nem para o segundo turno. Eu espero que tenhamos cinco boas alternativas no primeiro turno para debater o país seriamente e, aí sim, no segundo, tomar a decisão necessária.
AgeMT: E quais foram as suas divergências em relação ao PT? Já que ainda estamos pensando em 2022, qual seria a melhor opção no primeiro turno?
Soninha: Eu tenho a felicidade de o meu partido ter um pré-candidato de quem eu gosto muito, o senador Alessandro Vieira. Ele é muito ponderado, é muito correto e tem uma qualidade: a honestidade intelectual, defender aquilo que ele acredita de verdade. Inclusive, esse foi um dos problemas que eu tive com o meu ex-partido.
Eu percebi que algumas coisas que o PT defendia não convergiam com a conduta do partido. Ele tem a dissonância de ter um discurso radical, mas, durante o governo, ter um discurso moderado.
Se o Alessandro Vieira não confirmar, eu digo que a candidatura do Lula, para mim, é a candidatura do segundo turno. É a minha opção ao Bolsonaro. Gosto muito de algumas proposições e algumas experiências de Ciro Gomes e, ao mesmo tempo, desaprovo alguns arroubos dele. Ele é muito inteligente, mas muito errático. Por isso, ele não tem meu voto para o primeiro turno. O Alessandro Vieira, por enquanto, tem o meu voto e, depois, veremos.
AgeMT: E você pretende concorrer a algum cargo nas próximas eleições?
Soninha: Eu estou cogitando seriamente em ser deputada federal no ano que vem. Mas, se eu pudesse escolher o cargo que eu quero exercer na minha vida, é como prefeita de São Paulo. Fui candidata duas vezes, fui nos debates, mas é impossível saber se eu vou ter a oportunidade de ser candidata de novo. Só isso já é um desafio.
Imagem de Capa: Reprodução/ Facebook.
Deborah Duprat é jurista e foi membro do Ministério Público Federal de 1987 até o ano passado, quando se aposentou. Atuou em prol de temas como a preservação ambiental; ao lado do Instituto Socio-Ambiental, ISA, pelos povos indígenas; populações colocadas às margens - dos Direitos Humanos como um todo -, que marcam sua história.
Na mesma semana em que o Ministro Luis Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, determinou que o Planalto esclarecesse a situação dos povos Yanomami e quase um mês após a entrega do relatório da CPI da covid-19 - que retirou do Presidente a responsabilização por genocídio, a Ex-Subprocuradora Geral da República Dra. Deborah Duprat entrega denúncia ao Tribunal Popular, que ocorrerá na próxima quinta-feira (25) no TUCA. O Julgamento será presidido pela desembargadora Kenarik Boujikian, e contará com a defesa do advogado Fábio Toffic.
Na entrevista, realizada no dia 20 de novembro de 2021, a jurista esclarece o papel do Ministério Público Federal na defesa do Estado Democrático e suas atribuições, alerta para a fragilidade das instituições da República e ressalta a importância do “exercício permanente de indignação” para a manutenção da democracia e da Justiça no país.
Para começar, nos últimos tempos a figura da Procuradoria Geral da República tem sido bastante questionada, principalmente na mídia, na cobertura política. A PGR e a Subprocuradoria, cargo que a senhora ocupou, são partes do Ministério Público Federal, constitucionalmente independente e que tem por objetivo fiscalizar os demais poderes. Mas como funciona essa estrutura na prática?
Primeiro, o Ministério Público brasileiro é uma jabuticaba. Ele é único no mundo e é interessante, porque foi uma aposta dos movimentos em luta, uma aposta de transformação institucional, colocando numa única instituição a defesa, promoção e defesa dos Direitos Humanos, o controle externo da atividade policial e a promoção da ação penal pública. Essa é a atividade típica dos Ministérios públicos no mundo. E aí há esse arranjo, que tem uma inteligência, mas o Ministério Público, próximo da Constituição, promoveu transformações extremamente importantes, até antes disso, no período da redemocratização. Agora, ao longo do tempo, ele foi perdendo muito a dimensão dos Direitos Humanos, digamos assim. Não é essa categoria de Direitos Humanos, na verdade Direitos Humanos são a forma como se estrutura a sociedade brasileira. Mas ele foi se distanciando desse projeto constituinte e foi ampliando muito o direito penal. E a gente sabe que toda vez que você amplia o direito penal, as vítimas são as vítimas históricas da discriminação: são pretos, pobres, indígenas, favelados, mulheres, o encarceramento feminino, que explodiu nos últimos anos. E o que é a Procuradoria Geral e a Subprocuradoria Gerais? Elas são o topo da carreira. No topo da carreira está, não só o Procurador Geral da República, mas as câmeras de coordenação, que são uma maneira de você atuar coordenadamente. E tem a procuradoria federal dos direitos do cidadão. Eu tive a felicidade de ser por muito tempo membro desta última. Muitos anos, eu acho que oito mandatos seguidos, como coordenadora da sexta câmara que data de povos indígenas e comunidades tradicionais, e fui por quatro anos, que é o prazo máximo, procuradora Federal dos direitos do cidadão, que é um órgão que funciona como uma espécie de ombudsman.
E qual é a atuação específica do cargo de Procurador, quais são as atribuições além da fiscalização denúncia recebimento...?
O Procurador Geral da República, eu acho que é uma das figuras mais importantes, digamos, da República. Não tem nenhum poder alguém que concentre individualmente tantos poderes quanto o Procurador Geral da República. É o único cuja decisão sobre a promoção da ação penal não tem recurso. Ele decide se alguém vai ser processado ou não. Então, a partir do momento que ele decide isso, ninguém pode alterar esse entendimento. Já é uma disfuncionalidade. Nós temos que ter de alguma maneira um controle sobre algo tão absoluto. E o Procurador Geral da República tem poderes de transformação social absurdas, porque ele tem as ações do controle concentrado de constitucionalidade. Por meio dessas ações já foram decididas, por exemplo, cotas raciais, união homoafetiva, marcha da maconha, regularização fundiária na Amazônia, Registro Civil de população trans, Lei Maria da Penha, constitucionalidade. Então, tem um espaço de trânsito muito grande. E lembrando que a principal função do Procurador Geral da República é a defesa do Estado democrático.
A gente está falando muito Direitos Humanos, ação penal, mais a defesa do Estado democrático. Essa última é uma grande atribuição que a constituição confere ao Ministério Público brasileiro e com forte acento nessa figura central do Procurador Geral da República.
Recentemente, o Ex-Procurador Rodrigo Janot sinalizou uma possível candidatura, acompanhando ex-membros da lava-jato rumo à carreira política. E relembrando a independência do Ministério Público Federal, essa partidarização não é perigosa? E não soa estranho ser o presidente da República quem indica a figura de Procurador Geral?
Eu acho que qualquer carreira quando se encerra, tem que haver um período de quarentena para você ter esse distanciamento, você não fazer a sua carreira pensando na ascensão política, pensando em algo fora da carreira. Eu achava que, inclusive, Procurador Geral da República não poderia ser indicado Ministro do Supremo Tribunal Federal enquanto estivesse no cargo. Teria que ter um período de quarentena. Você não pode fazer da carreira do Ministério Público trampolim para outras, porque perde a capacidade de agir com Independência. E o que a gente está vendo é como a fragilidade disso, quando a instituição é capturada por essa partidarização. Eu não digo que não seja político, eu acho que todos nós temos uma dimensão política. Quando atuamos, atuamos politicamente. O Procurador Geral tem uma capacidade de atuação política absurda. O que eu recuso a aceitar é essa partidarização, essa ambição por poder.
A senhora, primeira mulher a comandar a PGR, interinamente em 2009, enviou uma representação em janeiro pedindo que o presidente fosse investigado pela condução da pandemia. O pedido foi arquivado. Logo após, deu-se início à CPI da covid que tomou os noticiários e deu luz a grandes escândalos e crimes cometidos pelo governo Federal. O relatório em si foi votado no último dia 26 indiciando o presidente por crimes como epidemia com resultado de morte, crimes contra a humanidade e de responsabilidade. O que podemos esperar do sistema judiciário, do PGR, sobre esses indiciamentos?
Nós estamos vivendo um período de anormalidade. É preciso que a gente acentue isso, porque as instituições não estão funcionando adequadamente. Se estivessem, o Procurador Geral da República já teria instaurado uma investigação. Porque não foi a CPI que deu início, vamos dizer, à claridade dos fatos que vinham sendo praticados pelo Presidente da República no contexto da pandemia. A CPI organizou aquilo que já estava expresso. A gente tem que lembrar aqui, nós temos na atualidade, eu já perdi a conta, mas muito mais do que 100 pedidos (de impeachment) por crime de responsabilidade, e perante o PGR, antes da CPI, uma infinidade de representações por crimes comuns principalmente no contexto da pandemia da covid-19. Enfim, nós temos que apontar o dedo para duas responsabilidades centrais: uma do PGR, a quem compete a ação penal pública exclusiva contra o Presidente da República. Então, cabe a ele, com exclusividade, determinar a investigação e determinar a responsabilização; E a outra: o presidente da Câmara dos Deputados, não só o atual, mas também o anterior, é preciso que se diga isso, essa noção de que o presidente controla a pauta do impeachment. Isso está errado. Não está na Constituição, não está na Lei do impeachment, e não está no regimento interno da Câmara. O presidente faz uma análise só de adequação da petição, a adequação formal, se ela tem assinaturas, se as assinaturas têm firma reconhecida, se tem rol de testemunhas, se os fatos estão com o mínimo de prova. Só isso. A Constituição determina que quem decide sobre a abertura de um processo de impeachment é a Câmara dos deputados, é o plenário, não é o presidente (da Câmara). Então está tudo errado. E diante desse quadro, a minha expectativa sobre algo ocorrer depois do relatório da CPI, que é um relatório preciosíssimo, é um documento que a gente tem que guardar e no futuro a gente fazer uma espécie de Justiça de transição, por toda minha expectativa em relação a esse documento, ela é muito baixa. Eu acho que ela fica como documento histórico, mas em termos de responsabilização, no momento, enquanto Bolsonaro for Presidente, eu tenho dúvidas severas, fortes, sobre a possibilidade de gerar algum efeito.
Além desses caminhos constitucionais, caso não percorridos devidamente ou não haja prosseguimento, quais são os dispositivos alternativos que a Constituição dispõe para que esses crimes não fiquem impunes?
Tem um que é objeto de muita polêmica, que é ação penal privada subsidiária. O que que é isso? Se o procurador-geral da República não age, não propõe a ação, se ele demora muito tempo, ou se nega a propor a ação, tem uma possibilidade de as vítimas proporem uma ação subsidiária. Seria esse o sentido da ação penal privada. É um instituto objeto de muita crítica porque significa mais uma expansão do Direito Penal. Se o Direito Penal já é grande, você imagina isso nas mãos das vítimas, principalmente de vítimas difusas, como é o caso de uma pandemia. Você não tem uma, duas, três vítimas você tem, enfim, os familiares das mais de 610.000 mortes. Você tem aqueles que ficaram incapacitados. de alguma maneira. Você tem um conjunto enorme, então imagina a explosão do Direito Penal. Então vejo isso com muita crítica. Então, eu espero que a gente consiga em algum momento fazer o país voltar a funcionar. E ainda resta uma possibilidade, que eu acho que ela não pode ser jamais abandonada, de Bolsonaro, uma vez fora do cargo, vir a responder por todos esses crimes. Você tem que lembrar que, por exemplo, o crime de pandemia com causa morte, que é a maneira como ele foi imputado a Bolsonaro pela CPI, é um crime hediondo. A pena dele é severa. Todas as restrições relativas às possibilidade de responsabilização nunca podem ser abandonadas. A gente não pode abandonar nunca a possibilidade de responsabilizar Bolsonaro fora do cargo porque aí ele responde perante a um juiz de primeiro grau, não tem foro privilegiado, e você tem uma um conjunto de Procuradores e Procuradores da República que podem propor essa ação. Então, não se concentra mais no Procurador-Geral da República, só não poderá responder por crimes de responsabilidade, porque eles pressupõem o exercício do cargo.
Genocício é uma das atribuições que a acusação faz a Bolsonaro na sua denúncia encaminhada à desembargadora Kenarik Boujikian, que presidirá o Tribunal do Genocídio na próxima quinta-feira. Qual é o intuito dessa nova denúncia e o que ela difere das atribuições da CPI?
Não difere em nada. A CPI resolveu não fazer a imputação por uma conveniência política do crime de genocídio, mas se você ler o relatório, no próprio relatório há atribuição do crime de genocídio. Não há na conclusão, mas quando ele vai narrar os fatos em relação aos indígenas, há sim o crime de genocídio. É uma coisa muito impressionante as pessoas pensam que genocídio é só quando há uma morte em massa de um segmento da população, não é isso. O crime de genocídio foi pensado a partir dos grandes holocaustos europeus, ignorando os holocaustos americanos, o que foi o holocausto indígena, depois o que foi a escravidão. E ele tem por princípio assegurar o pluralismo nos Estados Nacionais. Então, permitir que as minorias religiosas, étnicas, culturais, enfim, de todos os tipos de gênero, de orientação sexual, sigam existindo de acordo com as suas concepções de vida, que não seja imposta a elas condições diferentes ou sejam propostas a elas medidas de assimilação a uma cultura considerada mais valiosa. Essa é a ideia que o crime de genocídio busca suprimir. Em relação a nossa legislação interna, a gente tem uma lei que reproduz a convenção de 1948 e o estatuto de Roma também reproduz a convenção de 48, e tem um dispositivo que ele diz que é retirar as condições que permitem a existência desses grupos. Uma das condições centrais para a existência dos povos indígenas, como povos, são as terras. Então, nessa denúncia perante tribunal de genocídios, se mostra o quanto Bolsonaro não só falou, como ele desmobilizou todo o aparato administrativo para a proteção das áreas indígenas e como estimulou a invasão. Há um relatório do Cimi, Conselho Indigenista Missionário, que mostra que essas invasões cresceram no período da pandemia, com todas as implicações. Além da fragilidade territorial, as invasões foram vetores de transmissão da doença. Há quatro medidas cautelares concedidas pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em relação a quatro povos, a quatro etnias: Yanomami, Munduruku, Guajajara e Awá, salvo engano. E todas essas áreas havia uma explosão da mortalidade, todas elas com áreas de invasão ou de garimpo ou de madeireiros muito grande, muito acentuado. A gente tem que lembrar que a única condenação que o Brasil tem genocídio é num Garimpo em área Yanomami, garimpeiros que mataram indígenas. Então eu tenho a absoluta certeza que há sim crime de genocídio. É preciso só atentar que genocídio não é só matar fisicamente, é você obrigar o povo a viver de acordo com regras externas.
Com relação ao Tribunal do Genocídio, isso seria uma das formas de Ação Penal Privada, que a senhora comentou e quais são os possíveis encaminhamentos posteriores?
Um tribunal Popular ele é tribunal de denúncia. Eu não digo que ele só tenha feito no plano simbólico, porque eu sempre acho que o simbólico e o real têm uma implicação entre si, então, algum efeito produz, algum efeito de mobilização, um sentimento de, pelo menos, indignação. Ele não tem de fato efeito concreto no mundo jurídico. Ele tem esse caráter performativo e toda a performatividade tem capacidade de incidir no real. Eu acredito, Gramsci diz isso, que as hegemonias podem ser vencidas porque elas têm rotas de fuga, só que você não sabe antecipadamente quais são, você tem que ir construindo possibilidades. Eu acho que o Tribunal é uma dessas possibilidades. Ele vai dar o resultado? Não sabemos. Nós temos que existir, temos que tentar. Eu acho que é esse exercício permanente da indignação que nos move.