Um ano de ensino remoto no Brasil. Foi no mês de março de 2020 que as escolas públicas e particulares de São Paulo fecharam as portas pela primeira vez em anos. Isso se dá em virtude de conter o avanço do vírus. A medida afetou mais de 5 milhões de crianças e adolescentes, segundo o Ministério da Educação. São Paulo foi o primeiro Estado brasileiro a fechar as instituições de ensino e naquele momento pouco se sabia sobre a Covid-19.
Passado um ano, no que é considerado o pior colapso hospitalar e sanitário da história, 18 estados brasileiros ainda se veem obrigados a manter o ensino em forma remota. 95% das nações conseguiram retomar o sistema híbrido, contudo,o Brasil não tem nenhum tipo de protocolo para a volta às aulas 100%. A empresa de Fonoaudiologia SIKAF indica que o apoio interdisciplinar nesse momento é imprescindível e a volta às aulas presenciais mesmo que com carga horária reduzida é algo que ajudaria nesse colapso da educação,“ O desenvolvimento foi totalmente prejudicado, e permanece com muitos déficits. Os anos de 2020 e 2021 comprometem o desenvolvimento escolar e social das crianças. As consequências já estão surgindo e alguns aprendizados não serão recuperados” explicam Katia Tzirnazoglou e Simone Maria, sócias-proprietárias da SIKAF.
A psicopedagoga Quézia Bombonatto reafirma que a falta de interação entre crianças e adolescentes no período escolar pode causar danos cognitivos profundos nos jovens, “mesmo com ações de ensino remoto bem estruturadas, a suspensão temporária das aulas presenciais deverá criar lacunas significativas no aprendizado e consequentemente no desenvolvimento cognitivo dos estudantes”.
De acordo com a profissional, o isolamento não favorece as nossas formas de vivências e de aprendizagens, uma vez que não passam só pelos aspectos cognitivos, mas pelas necessidades afetivo-emocionais encontradas na sala de aula. Portanto, o isolamento representou uma situação de privação, provocando danos significativos tanto para o desenvolvimento cognitivo quanto psíquico.
No entanto, Quézia explica que ainda é cedo afirmar que são danos permanentes, uma vez que as escolas estão buscando formas alternativas para suprir as lacunas no ensino geradas pelo isolamento. Porém, evidências mostram que o impacto é muito maior para aqueles indivíduos que se encontram em situação de vulnerabilidade. Que muitas vezes precisam dividir o cômodo com outras pessoas, não têm internet de qualidade capaz de suportar a transmissão da aula, moram em regiões violentas, e outros motivos, que só dificultam ainda mais o aprendizado e a absorção do conteúdo transmitido em aula.
Quando questionada sobre a volta às aulas, ou ensino híbrido, ressaltou, “tem que se considerar que o retorno às aulas presenciais, ao mesmo tempo que se faz necessário e é desejável, também gera certo grau de insegurança e medo. Para tanto, é importante contar com o preparo psicológico dos vários grupos envolvidos com a escolarização. Isto poderá ser realizado criando-se espaços para trocas, conversas sobre como foram as experiências impostas no período de isolamento, como uso de redes, de mídias diversas, as novas propostas de aprendizagens, as facilidades ou dificuldades que perceberam, os ganhos ou perdas que avaliam que tiveram.”
Em relação às propostas do Ministério da Educação, a psicopedagoga diz ter acompanhado alguns entendimentos feitos entre estados e municípios, por intermediação do Conselho de Secretários Estaduais de Educação e da União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação. Foram propostas que visam o desenvolvimento de soluções frente às demandas das escolas e em busca de adequações para o enfrentamento da crise em virtude das perdas decorrentes do fechamento das escolas levando em conta as situações econômico-sociais-culturais diversas por conta da extensão do nosso país, e as desigualdades que se tornaram mais evidentes ainda nesse contexto.
Sabe-se também, que a dificuldade do ensino remoto atinge professores na mesma medida. Não só os alunos perdem o interesse e sentem dificuldades, como o próprio docente também se vê em uma situação difícil. É o que Katiane Verazani, bacharel e licenciatura em história, com mestrado em história econômica pela FFLCH-USP, conta. “Na tela só há letras, e a sensação de que falamos para o vazio, ou para ninguém, pois muitas vezes não respondem as perguntas, há um silêncio mortal. Inúmeras vezes tive a certeza de estar sozinha, os alunos apenas faziam login e deixavam suas letras lá, mas não estavam, e numa sala de aula não é possível fazer isso, pois, por mais que os pensamentos não possam ser controlados, eu posso trazê-los de volta de alguma forma, mudando a dinâmica num piscar de olhos.”
Ouve-se com frequência que o ambiente doméstico gera distrações e inconveniências para os alunos, que muitas vezes escolhem não ligar as câmeras, mas Katiane aponta que o mesmo ocorre com professores, “Estar em frente a uma tela, expondo minha casa, minha família, meu universo privado... A invasão de privacidade é o que mais me incomoda e é algo que não se fala e não se pensa a respeito da vida do professor.” O mesmo vale para o aproveitamento das aulas, enquanto alunos não conseguem absorver o conteúdo ou sentem dificuldades, ela ainda diz que também não sente o rendimento das aulas, estando inserida em um sistema híbrido na escola privada onde trabalha.
A preocupação dos docentes e alunos com o sistema híbrido e remoto, segundo Katiane, está sendo pensada pela equipe das escolas e professores, mas em relação ao posicionamento do Ministério da Educação, não houve medida alguma que tenha alcançado a instituição que ela trabalha “Não mudou em nada minha realidade. Todas as mudanças foram resultados das ações da gestão escolar e dos professores, que agiram bravamente para se adaptar o mais rápido possível à nova realidade.”
Por Henrique Sales Barros
Certo dia, no início de março de 2021, a estudante de medicina Ana Júlia Araújo, de 20 anos, relata ter ido, acompanhada de uma professora, até o setor de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) do Hospital Geral de Carapicuíba, na Grande São Paulo, onde estagiava desde o começo de fevereiro.
Na ala, a jovem estudante avistou um paciente que não parecia ter muito além de seus 20 anos. O enfermo estava isolado em uma sala, que possuía diversas orientações na porta alertando sobre os cuidados ao se entrar no ambiente, como uso obrigatório de face shield, roupa de proteção etc.
— “Professora, o que aquele paciente tem?” — perguntou Ana Júlia.
Inclinando o rosto aos poucos, como quem quisesse evitar responder à pergunta, a professora suspirou e, por fim, deu retorno ao questionamento:
— “Olha… Aquele paciente ali é um ‘covidaço’.”
— “Mas qual é a história dele?”
— “Ele tem 23 anos.”
— “Mas como está o quadro dele?”
— “Não passa de hoje” — respondeu a professora, em tom de lamentação.
Aquele foi o último dia de Ana Júlia em Carapicuíba antes da suspensão dos estágios devido ao aumento no número de novas internações por covid-19 na unidade, e a estudante não teve mais notícias do jovem com “covidaço”. Era o reflexo do estouro da segunda onda da pandemia no hospital.
Iago Valoti, 24, estudante do quarto ano da graduação de medicina da PUC-SP, em Sorocaba, no interior de São Paulo, iniciou o primeiro semestre de internato no Hospital Santa Lucinda, ligado à universidade, também no início de março, aprendendo a realizar cirurgias em pacientes — mas algumas operações começaram a ser postergadas.
Materiais necessários para cirurgias, como kits de medicamentos sedativos, começaram a faltar nas mesas de cirurgias. O motivo: o número de pacientes com covid-19 com necessidade de intubação e ventilação mecânica cresceu exponencialmente, e a prioridade passou a ser atendê-los.
“A gente acaba vendo algumas cirurgias, mas algumas um pouquinho mais complexas, que teria que dar uma anestesia geral em algum paciente, a gente não está podendo realizar”, diz.
Em 2020, o pico da média móvel de novas internações de pacientes com suspeita ou confirmados com covid-19 no Departamento Regional de Saúde de Sorocaba, segundo dados do governo de SP, foi de 66 novos internados, registrado em 20 de julho. Em 2021, até agora, o pico chegou a 140, em 25 de março — 112% maior que o do ano passado.
As cirurgias que começaram a ser canceladas foram as consideradas eletivas, sem caráter de emergência. Ao fazer atendimentos pré-operatórios e agendar os procedimentos com os pacientes, o estudante passou a ser orientado a alertá-los de que nada garantia que as operações seriam realizadas nas datas previstas.
“A gente tenta deixar da maneira mais clara de que ele (paciente) precisa de cirurgia, mas que não é de urgência, então é difícil essa comunicação. A gente entende como aluno, entende que a atenção tem que ser voltada para a pandemia, mas às vezes o paciente pode acabar não entendendo isso”, relata.

Suspensões
Valoti não teve o internato no Hospital Santa Lucinda suspenso, o que o estudante avalia como positivo. Quando estiver formado, afinal, o futuro médico não poderá parar os trabalhos caso ocorra uma pandemia como a do novo coronavírus, de fácil transmissão e perigosamente mortal — muito pelo contrário.
A posição que a PUC-SP teve com a segunda onda da pandemia em 2021 foi o oposto da que a universidade tomou em março de 2020, quando optou por suspender não só as atividades presenciais e os estágios ambulatoriais como também os internatos. "A faculdade tentou proteger os alunos, parando tudo no ano passado”, avalia Valoti.
Ainda sim, o estudante passou a temer dois cenários de incerteza devido ao estouro da segunda onda da pandemia em Sorocaba: os internatos voltarem a ser cancelados ou, se continuassem mantidos, os internos passassem a atender pacientes com covid-19, prática que vem sendo evitada de forma generalizada pelas faculdades e hospitais.
Já Ana Júlia, que estuda no Centro Universitário São Camilo, em São Paulo, passou a ter atividades práticas em um centro de simulação no bairro da Pompeia, na zona oeste de São Paulo, no lugar do estágio. Por ser um ambiente controlado, ao invés de pacientes de carne e osso, a estudante passou a lidar com bonecos anatômicos.
“Eu vou para o centro de simulação e vou conversar com boneco, fazer exame físico em um boneco, vou avaliar tudo que tenho que avaliar em um boneco. É essa ‘prática’ que eu estou tendo, bem entre aspas, porque não substitui o paciente de maneira nenhuma”, ressalta.
As atividades em laboratórios e em centros de simulação são as únicas atividades presenciais que Ana Júlia vem tendo. As idas a estes lugares, por questão de segurança, não são feitas com a sala toda e nem sempre: ocorrem em grupos menores, de forma semanal ou em períodos de intervalo que podem variar de duas a três semanas.

Formação e aprendizado
Com dificuldades para se familiarizar com as aulas virtuais, Valoti avalia que 2020, em termos de aprendizado, foi um ano ruim. “Acabo me distraindo muito fácil. Foi um ano que não consegui aproveitar muito”, diz. Ainda sim, o estudante da PUC-SP enxerga que qualquer prejuízo de conteúdo que vem tendo pode ser recuperado no futuro.
“É o que os professores falam: a gente (estudantes) faz a nossa faculdade”, diz. “Nós vamos acabar tendo o conteúdo, isso eles (professores) não vão deixar passar, mas, às vezes, será de uma forma diferente: algo talvez mais reduzido, e aí nós vamos ter que buscar mais [conteúdo] por conta própria do que o professor ficar passando ali”, afirma.
Já Ana Júlia, por estar no início da graduação, pensa que ainda possui muito tempo pela frente para recuperar qualquer conteúdo perdido. Ainda há quatro anos de faculdade pela frente, afinal. "Eu vou ter tempo de aprender”, diz.
“Nós temos professores muito bons, conseguimos se adaptar muito bem ao modo EaD (Ensino à Distância), e a parte prática, que a gente teoricamente perdeu, nós não perdemos porque nós ainda temos quatro anos de curso. Acredito que nós não vamos ficar assim por muito tempo”, diz.
“Ou pelo menos não por quatro anos — pelo amor de Deus!”
Renato Aroeira produz charges para os principais jornais do país, com notoriedade por expressar críticas políticas em representações irônicas da realidade. No mês de abril, ele deu entrevista para estudantes de jornalismo da PUC-SP, na qual falou sobre a carreira desde o início até os desafios de fazer o que faz nos dias atuais.
Intermediada pelo professor e apresentador da TV Cultura Aldo Quiroga, a entrevista tinha uma proposta simples em que cada aluno participante teria a oportunidade de fazer uma pergunta dentro de um tempo limite. No geral a “conversa” foi muito fluida com um entrevistado experiente e entrevistadores principiantes.

A trajetória de Renato Aroeira
Renato Aroeira é um chargista e cartunista que desde muito novo exerce a profissão. Ele começou na coluna de esportes do pai, em Minas Gerais, mas antes disso já havia começado a desenhar profissionalmente com a mãe, em apostilas infantis que ela criava. Ele conta que ter trabalhado com educação antes de ir para o “cartoon” facilitou a vida profissional com relação às críticas, uma vez que com as apostilas muita vezes era necessário mudar algo, havia muitas normas.
E como você mudou do jornalismo esportivo para o político?
Quando comecei no Jornal de Minas o editor gostou das minhas charges e perguntou se eu queria fazer algo político, eu disse que sim. E eu fui fazendo conforme a linha editorial dos jornais, eles viam algo que eu tinha feito e perguntavam se me interessava fazer algo com política. Mas foi no movimento estudantil que eu realmente me interessei por política e a partir de lá, posso dizer que houve essa transição, pois daí em diante eu não desenhava o que o jornal queria e sim o que eu sabia.
Mudou muito o jeito de se fazer charge política com o tempo?
Eu achava, quando comecei, que o humor era a simplificação, mas fui percebendo que a simplificação acaba sendo mais injusta do que deveria. É possível dizer que em uma charge geralmente existe aquilo que você quis dizer, o que você disse e o que acharam que você disse, e raramente essas três coisas andam juntas no final, por isso ao longo do tempo eu fui enxergando que complicar uma piada era melhor do que simplificar, e hoje eu prefiro explicar um pouco mais do que cometer um equívoco. O humor simplificado costuma ser muito rasteiro e preconceituoso e o chargista e todo profissional da mídia deve ter cuidado com isso.
Como você lidou com a censura do governo atual com sua charge?
Primeiro eu fiquei incrédulo, eu recebia mensagens de solidariedade mas nem sabia o que tinha acontecido, não acreditava. Aí me explicaram que o Ministro da Justiça publicou no twitter que teria pedido à PF para que me investigassem pela charge e tudo mais. A segunda reação, então foi de pânico, eu não tinha nenhum advogado, mas aí logo grandes advogados entraram em contato comigo e eu descobri que há um tempo existe no Brasil essa rede de solidariedade para ajudar as "vítimas" desse tipo de arbitrariedade.
E como você está lidando agora? Você sente medo?
Eu sinto medo, porém eu sinto mais medo hoje do que na ditadura, em parte porque jovem não costuma temer muito mesmo, e em parte porque esse governo atual não premedita suas ações como no último regime militar. Só que ao mesmo tempo eu me sinto mais seguro agora, já que existe essa rede de segurança que eu mencionei e até aqui ela vem funcionando. E é evidente que eles não desistem porque mesmo depois do meu processo ter sido arquivado muitos outros chargistas depois estão sendo investigados. Eu tenho medo sim, tanto que parei de anunciar meus shows, eu também sou músico e desde que fui processado não anuncio mais onde vou tocar, imagina se alguém vai lá para causar algum fuzuê.

Disponível no Instagram de Renato: @arocartum
Qual sua intenção com as charges quando as publica? E o que espera do público?
É uma mistura de sentimentos, pois existe aquele sentimento de querer que as pessoas gostem daquilo que você fez, mas também de ter um papel social. O que eu espero quando as pessoas veem uma charge é que primeiro elas se divirtam e depois observem aquilo que estou apontando. Eu quero que elas gostem da arte, mas ainda assim, vejam do que aquilo se trata, pois geralmente desenho criticando incongruências do governo. Mas o que eu não espero de uma charge, acho que é mais fácil dessa maneira, é que elas resolvam algum problema ou que causem uma revolução. Eu entendi muito cedo que a charge numa sociedade é uma pecinha na engrenagem da mídia para ajudar a sociedade a seguir um bom rumo. É uma expressão muito comum entre os chargistas, eu quero de certa forma educar a população para que escolhas melhores sejam feitas. É claro que não tenho essa pretensão de querer mudar algo, nem de longe é o chargista é o responsável por mudar o mundo, o máximo que posso causar é uma provocação aqui e ali, mas esse é o papel da mídia na sociedade.
As redes sociais impactam no seu trabalho?
Quando eu comecei, recebia cartas, cartas sobre meu trabalho, algumas me xingando, outras não, depois eu comecei a receber e-mails, e olha bem, eu publicava em um jornal um desenho de algo que ocorreu no dia anterior ou um pouco mais cedo e quando ela saía era uma charge de pelo menos quatro dias atrás. Ontem quando eu soube do pronunciamento do Bolsonaro eu imediatamente fiz uma charge e publiquei. Então em menos de meia hora do final do pronunciamento eu tinha uma charge pronta e as pessoas já estavam comentando sobre. Antigamente só iriam comentar uma semana depois. Então nesse sentido mudou muito mesmo.
Voltando à censura, qual o próximo passo para a luta contra ela?
Na luta contra a censura a gente tem que ir com tudo que temos disponível porque o outro lado não vai parar nunca. Claro, dentro dos limites possíveis de cada um. Como eu disse, eu acho que a charge tem um papel social, mas que ali ela é acessória. Por exemplo, eu fiz parte da reconstrução da imprensa sindical fazendo a pequena parte da imprensa, que por sua vez é uma pequena parte da luta principal que era a luta sindical. Então é assim que eu entendo o nosso papel que, hoje em dia, eu penso que deva ser mais educacional, e não só educação formal, mas educação social e a mídia e a imprensa tem uma enorme responsabilidade nisso.
Por Suzana Rufino e Silvana Luz
Francisco, 43 anos, nortista, estatura mediana, desnutrido e cansado, anda de cabeça baixa, porque tem vergonha de olhar nos olhos das pessoas enquanto empurra seu carrinho de reciclagem pela região do mercado municipal em busca de restos de alimentos. Todos dias ele vai às ruas em busca de papelões, latinhas, ferros, eletrodomésticos quebrados, qualquer coisa que dê para ganhar algum dinheiro com reciclagem para sustentar seus dois filhos e esposa que vivem em meio à papelões e madeirites à beira do rio Tamanduateí.
Ao conversar com Francisco, percebe-se o olhar triste e agoniado, aquele que sabe o que é passar fome, sofrer por falta de oportunidade e indiferença das pessoas. “A fome dói, mas dói muito mais ver seu filho chorar e você não ter o que dar! Ver a criança ficar doente e não ter como socorrer! Eu e minha companheira deixamos de comer, tomamos água para enganar a fome para sobrar a nossas crianças que no melhor dia conseguem fazer uma refeição e preferimos que seja à noite para que consigam dormir. Além de buscar reciclagens também pegamos restos de comida no mercadão, lá sempre tem alguma fruta ou legume que não serve para vender, mas que salva a gente”, fala de Martins.
Todos migrantes saem de sua cidade/estado natal para buscar em outro lugar uma oportunidade de viver com qualidade. Porém não são todos que conseguem essa glória, e quando se depara sozinho(a) e sem ajuda, não ver outra saída que se sujeitar as ruas, a miséria e a fome.
Maria da Conceição é um exemplo de que a fome e a miséria não escolhe idade e nem sexo, aos 64 anos, a mulher conta com lágrimas nos olhos e ao lado de seu fiel e único companheiro (cão) sua dificuldade e abandono. “Eu vago pelas ruas com esse meu único amigo e além da fome e do medo carrego a tristeza, não tenho um lugar para viver e quando consigo um lugarzinho para dormir na rua ou em alguma praça sou expulsa. Não tive filhos e não tenho mais família, sou de Juazeiro do Norte e vim para São Paulo em busca de uma vida melhor, fugi da fome do sertão, mas ela veio junto comigo. As vezes eu vejo pessoas entregando marmitas nas ruas ou algum bar antes de fechar me dá algum resto de comida, aí fico feliz e divido o alimento com esse meu amigo e protetor” (disse abraçando seu cachorro).
José Gomes, 51 anos, nordestino, também se enquadra na lista de migrantes esforçados que saíram de suas cidades e infelizmente não tiveram uma oportunidade de mudar de vida. Desempregado e morador em uma ocupação no centro de São Paulo retrata muito bem o drama que o Brasil enfrenta há muito tempo, o da fome. “Em agosto do ano passado eu trabalhava como camelô, mas minhas mercadorias foram apreendidas e eu não tive mais nenhuma oportunidade de trabalho, agora venho aqui todos os dias em busca de auxílio e eles me dão comida e ajuda psicológica. Tenho esperança de conseguir algum trabalho, porém fico chateado porque as pessoas acham que já estou velho para qualquer função, por isso ainda descolo uns trocados pegando latinha e guardando carro na rua. Única coisa que eu queria era viver com dignidade”
Os anos de luta do País para sair desse cenário não é mais lembrado, porque o agravamento da situação alimentar não permite mais que a população sonhe com um Brasil sem fome. Hoje mais de 84 milhões de brasileiros enfrentam algum grau de inseguridade de alimento - número que tende a aumentar caso o atual governo e as políticas públicas voltadas a essa questão não agirem a curto e a médio prazo.
O quadro atual é alarmante, mesmo antes da pandemia da covid-19 o Brasil já apresentava uma diminuição na qualidade de vida, devido o aumento do desemprego e cortes nos programas sociais. Com isso, a fome que antes tinha diminuindo voltou à tona preocupando a população mais carente.
O ex-diretor-geral da FAO (agência da ONU para a erradicação da fome e combate à pobreza) José Graziano da Silva, afirma que em julho do ano passado 15 milhões de brasileiros se encontravam em um grau elevado de insegurança alimentar e que dependiam exclusivamente de projetos não-governamentais voltados a alimentação. Essa conjuntura se deu por várias razões, sendo uma delas a crise política-econômica que se aprofundou em 2015 e continua impactando a vida da população, que sofre com o desemprego, diminuição de leis trabalhistas e rendas familiares.
Para tenta driblar essa tensão, muitos projetos autônomos junto com uma parte da população tem se mobilizado e contribuído com doações de dinheiro e alimentos para ajudar as pessoas em situação vulnerável como a fome. O SEFRAS (Serviço Franciscano de Solidariedade) é um desses programas que atende indivíduos em situação de rua (e outras) há 20 anos e ficou popularmente conhecido como “Chá do Padre”, por ser um centro de acolhimento, escuta e partilha na cidade de São Paulo.
Além da entrega de “quentinhas” são realizados atendimentos psicológicos, auxílio a encaminhamento a trabalho entre outros, porém com o aumento da procura pelos serviços e por atender em um espaço pequeno, fez-se necessário a criação emergencial da “tenda”, relato esse contado por Frei João Paulo Gabriel, diretor-presidente do SEFRAS:
-- “É visível a mudança de perfil dessas pessoas, desde 27 de maio de 2020, quando se fez necessário montar a tenda na calçada em frente ao largo São Francisco. Aqui, além de dependentes de drogas e álcool, também vem famílias que perderam suas fontes de renda e até tem onde morar, mas não conseguem comprar comida e buscam essa ajuda. A fome atinge vários perfis, tendo em vista o preço dos alimentos comparado ao rendimento familiar das pessoas. A alimentação passa, então, a ser o eixo principal de atuação dos franciscanos do SEFRAS, em especial aos nossos públicos de atendimento: população em situação de rua, imigrantes e refugiados, idosos sozinhos e crianças de comunidades pobres e ocupações. A tenda se transformou em um espaço simbólico onde conseguimos encontrar o reflexo da vulnerabilidade da estrutura social em que vivemos, e também, a força que tem uma corrente de solidariedade. No início do isolamento, decidimos não fechar nossas portas para acolher, cuidar e defender aqueles que mais precisavam, como a população em situação de rua e de desemprego nas ruas de São Paulo e Rio de Janeiro. E nos deparamos com o cenário dramático da fome, que veio antes da pandemia da Covid-19”.
As refeições são distribuídas de domingo a domingo no almoço e jantar (em média de 1200). Para atender essa demanda, as quentinhas são feitas em cozinhas da própria igreja, sendo elas instaladas na sede do SEFRAS no bairro do Pari e a outra na região do Bixiga. Todo o mantimento vem de doações. As demais merendas são feitas e montadas por voluntários.
Com duas tendas franciscanas – uma segunda foi erguida no Largo da Carioca (centro do Rio de Janeiro) – cinco cozinhas sociais e outros seis polos de distribuição de alimentos, que incluíram 22 mil cestas básicas e kits de higiene e proteção. A Ação Franciscana de Enfrentamento à Pandemia foi uma resposta à emergência social, que está na base do SEFRAS como organização humanitária.
Embora fosse uma ação de emergência, os impactos duradouros da pandemia, em relação à desigualdade de renda e aumento da pobreza nos grupos já vulneráveis, demonstraram que a fome é um fator a ser combatido com ações de curto, médio e longo prazo.
A grande tenda, montada na frente da igreja no Largo de São Francisco, foi desmontada, porém o trabalho e a solidariedade continuam, agora organizadas no espaço do SEFRAS, conhecido pelos moradores de rua como “Chá do Padre”, que atende esse público há mais de vinte anos. Com a reorganização do espaço algumas vantagens foram destacadas:
•Ampliação da quantidade de pessoas atendidas no serviço – de 800 para mais de 1.000 diariamente;
•Distribuição de mais uma refeição no dia: o jantar;
•Os participantes podem receber a quentinha e levar embora, diminuindo a aglomeração de pessoas no espaço;
•Os participantes que não conseguem tirar a senha no início do dia, podem esperar e receber a quentinha;
•Os doadores entregam as doações direto no espaço e conseguem conhecer o serviço em funcionamento.
Todas as adequações feitas têm como objetivo maior atender à crescente demanda. É preciso seguir com a missão franciscana de garantir alimento para quem tem fome e continuar lutando para esperançar um mundo mais igualitário e livre da pandemia da fome.
Para contribuir com a doação de "quentinhas" e de alimentos não perecíveis, clique em https://fomebr.org.br/. E se deseja ser voluntario(a), acesse o formulário no site e receba as orientações ou entre em contato com a Central de Doações e/ou tire todas as dúvidas pelo telefone (WhatsApp) (11) 3795-5220.
Nos primeiros meses de 2021, três atentados foram noticiados contra parlamentares transexuais do PSOL da Câmara Municipal de São Paulo: Erika Hilton, Samara Sosthenes e Carolina Iara. Em entrevista realizada virtualmente com Carolina, a covereadora comentou sobre como tem lidado com as consequências do atentado e sobre como é ser uma mulher trans e intersexo em ambiente político.
Após a realização da conferência com Carolina, a polícia civil de São Paulo chegou à conclusão de que não houve disparos de armas de fogo em frente à casa, mas sim, lançamentos de explosivos de efeito sonoro. A covereadora afirmou: “O que aconteceu comigo me surpreendeu pelo nível de violência, porque o que eu tinha de mensagens que me incomodavam durante a campanha era de assédio sexual. Não havia nenhum tipo de mensagem que mencionasse qualquer violência física, ameaça de estupro ou de morte”.
Confira abaixo a entrevista com Carolina Iara concedida no dia 19 de março de 2021:
Como ocorreu o atentado?
Carolina Iara: O atentado foi na madrugada do dia 26 de janeiro. Eu estava escrevendo um artigo e ouvindo música então não escutei nada, minha mãe que veio afoita pedindo para eu tirar o fone e me contou que ela tinha ouvido dois disparos. Ela não sabia mencionar o que seriam esses sons, se era tiro ou bomba, mas foi muito clara que tinha sido na porta de casa. Ao amanhecer a gente confirmou com os vizinhos de que haviam ouvido os tiros e um deles nos deu o circuito de câmera que ele tinha, no qual vimos um carro branco parado em frente a minha casa naquele exato momento.

Qual motivação você acredita que tenha provocado o atentado?
Carolina Iara: Com certeza envolve a violência política de gênero. O que a gente não consegue responder é o que incomodou e provocou o ato de terror. Não sabemos se foi alguém que quis me amedrontar e dizer “não gostamos e não queremos uma muher transsexual e intersexo ocupando um cargo de poder”, porque pode ser qualquer um que se arvore a fazer ações transfóbicas e a gente sabe o quanto isso é comum. Há casos de travestis e transexuais morrerem na mão de seus clientes, de grupos de “amigos” que saem pra beber, zoar e matam, não é? A banalidade da transfobia é muito comum. Pode ser também algo motivado contra alguma ação política minha e da bancada feminista.
A Câmara negou o pedido de proteção para você e para a Samara Sosthenes alegando que as covereadoras não possuem o nome registrado oficialmente no sistema legislativo. Como você encara esse tratamento da Câmara? Você acredita que se trata, neste caso, de violência institucional?
Carolina Iara: Sim, uma violência institucional porque a Câmara é uma das instituições escravocratas do Brasil. Essas entidades são anteriores à república, então é um sistema ainda imperial e, portanto, escravagista. Há uma dificuldade enorme da estadia de mulheres negras nesses espaços e há também um impedimento desses ambientes se adaptarem à composição dos mandatos coletivos, justamente porque numa estrutura em que o poder está dividido entre várias pessoas, eles acham que é uma bagunça. Então, nos respondem com muita violência institucional. Muitos não concordam com os 46 mil votos na bancada feminista e somando com o quilombo foram 69 mil votos de pessoas que acreditaram no formato de mandato coletivo.
Não há uma abertura do parlamento para novas formas de se fazer política, não querem algum tipo de renovação ou de reforma. Mesmo não estando discutindo nada revolucionário, mas sim reformas muito pequenas com relação à participação política, já somos negados. É um desrespeito não a mim, Carolina somente, é um desrespeito à todas essas pessoas, à classe trabalhadora, aos povos oprimidos, às mulheres, à comunidade LGBTQIA+, aos negros e à todas as pessoas da cidade de São Paulo que votaram e confiaram na gente. Todos esses munícipes estão tendo o seu direito de participação política atingido. Eu acho um absurdo, mas não haverá nenhuma movimentação da câmara para a minha proteção ou para a da Samara.
Você recebeu apoio das pessoas ao seu redor depois do atentado?

Carolina Iara: Tenho recebido muito apoio da sociedade, em pé das instituições democráticas não me protegerem em nada. Não me ajudam, nenhuma das esferas de governo me ajuda. Por outro lado, a sociedade civil se mobilizou e eu tenho uma ajuda, seja do movimento LGBTQIA+, seja dos movimentos sociais como MST, MTST, e a própria corrente que eu faço parte do PSOL. Então esses têm sido os apoios que eu tenho tido, que têm dado certa conta das minhas necessidades e da minha segurança. Se eu fosse esperar pelo Estado eu não iria ter nada não, teria que com a cara e a coragem enfrentar sabe-se lá quem.
Você acredita que os defensores da classe trabalhadora e das minorias estão mais vulneráveis a atos de violência dentro dos espaços de poder?
Carolina Iara: Todos aqueles que defendem pautas coletivas, movimentos sociais e as pautas da classe trabalhadora estão muito mais vulneráveis a serem criminalizadas. Estar na defesa de direitos humanos e das lutas históricas da classe trabalhadora deixa mais vulnerabilizada a liderança. Mas, existe uma singularidade para as mulheres negras e mulheres trans. Somos muito mais ameaçadas do que o restante da classe trabalhadora que está nesses postos, isso é fato notório. Na câmara, quem são as ameaçadas? As três mulheres trans e negras. Quem são as vereadoras que estão reportando ameaças de morte no país todo? As mulheres negras.
"Ser de esquerda, ser socialista e ser pró classe trabalhadora faz com que as lideranças estejam sob mais ameaça"
Quais são os seus desafios como covereadora na câmara?
Carolina Iara: Ser covereadora trans e ser a primeira covereadora intersexo do país é um peso enorme. É muito trabalho, é muita denúncia. Eu entrei em um tempo histórico nada agradável para ser parlamentar, é um momento de muita dor. Recebemos mensagens de pessoas com fome, carentes, internados, funcionários públicos da saúde desesperados porque estão fazendo gambiarras terríveis por conta do coronavírus. O cargo parlamentar te dá algumas ferramentas para atuar na sociedade, mas ainda assim é muito limitado. Além de tudo, ainda tenho que cumprir meu trabalho: uma agenda lotada, com inúmeras reuniões, entrevistas e participações em atos, tendo até que me expor às vezes, porque há lugares sem acesso à internet. Então, é uma situação muito complicada e estressante.
"Eu nunca imaginei que eu iria sofrer tantos revezes. A gente vê nos livros de História sobre as lutadores socialistas, mas nunca pensei que viveria isso tão intensamente na carne"
Como tem sido sua rotina após o atentado? Você se mudou, não é?
Carolina Iara: Eu saí de casa, estou em outro lugar desde então, longe da família. Eu e minha mãe temos marcado visitas, mas de modo que ela não venha quando eu estou. Tem sido uma logística meio complicada mas eu tenho a visto às vezes. Não fiquei todo esse tempo sem vê-la, até porque eu teria enlouquecido. É muito complicado não ter o direito de visitar a minha família. Não tenho condições de fazer política como eu fazia antes, não posso me dar ao luxo de ir no ato, encontrar pessoas em um local de encontro marcado. Não posso. Eu tenho que ir com segurança, com motorista. Não posso fazer atividades de recreação, tudo bem que estamos na pandemia mas se não estivesse eu não teria o direito de ir aqui na esquina e sentar na padaria e pedir uma cerveja porque eu posso ser morta. É muito complicada a situação. E sendo o Brasil o país que não respondeu até agora quem matou Marielle, quem é que vai me responder sobre o meu atentado? Tem sido uma rotina muito desgastante, mas de muita luta também. Eu tenho feito muita coisa, não tenho parado, é denuncia na ONU, é articulação contra fechamento de hospital — porque está tendo fechamento de hospital nesse momento, sem razoabilidade nenhuma. Tem sido um momento muito produtivo, mas muito tenso. Não tem terapia que dê conta, tem dia que eu sou obrigada a tomar calmante para conseguir aguentar.
