Relações e impactos da pandemia com o sistema educacional brasileiro

Apenas 9% das famílias das classes D e E possuíam computador em casa. Enquanto a classe A, apresenta um número de 98%. A situação gerada pela pandemia reforça a grande desigualdade do Brasil e acarreta complicações no ambiente educacional.
por
Anna da Matta, Beatriz Loss e Fernanda Fernandes
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11/07/2020 - 12h

                

                             Aluno estudando via celular-Créditos: USP imagens

 

De repente, a COVID regressou ao século XXI ganhando um novo nome, Covid-19. A maioria dos brasileiros estava convencida de que a epidemia não atingiria o país, já que no início surgiram casos apenas em lugares isolados da China. Mas esta crença teve fim quando, em fevereiro, foi confirmado o primeiro diagnóstico positivo de coronavírus no Brasil. O paciente, de 61 anos, havia chegado de uma viagem feita à Itália, região bem afetada pela doença. Com a chegada da pandemia, mudanças tiveram que ser feitas. Transições tecnológicas que levariam décadas para serem instituídas voluntariamente foram inseridas em questão de meses, dada a surpresa enfrentada.

Para tentar controlar os casos, foram implantados de início critérios de isolamento e quarentena apenas para pacientes que estavam com suspeita ou confirmação de infecção por coronavírus. Posteriormente, essas medidas foram ampliadas para pacientes de risco, e depois para todos. A Covid-19 transformou vidas, não apenas na modificação do cotidiano, em que não há possibilidades de ir à festas, restaurantes, parques, encontros com a família e amigos, mas também altera mudanças que já estavam em andamento, como a busca por sustentabilidade, tanto por parte da sociedade como por parte das empresas, o trabalho se tornando Home Office, e principalmente, a educação sendo online. Tal cenário afeta estudantes e professores, com consequências tanto acadêmicas quanto psicológicas.

Logo que a quarentena se iniciou, um quadro de incertezas surgiu sobre os alunos, pais e professores. Com as aulas suspensas, começaram os debates sobre como ficaria o ano letivo e a qualidade do aprendizado dos estudantes, e uma das soluções para essa situação foram as aulas online. Diferente da educação à distância (EAD), esse ensino remoto não teve o mesmo planejamento e estrutura para funcionar de forma eficaz. Uma das razões que faz as pessoas optarem, geralmente, pela plataforma do EAD é para economizar tempo e dinheiro. Um dos privilégios, e diferenças, da educação remota é o contato direto com os professores, ainda que virtual. Esses ensinos são distintos e não podem ser confundidos, principalmente porque os estudantes neste momento não tiveram escolha, e não tem o controle de sua aprendizagem.

 

As diferenças e dificuldades nas redes pública e privada

 

          Com a suspensão das aulas, foi preciso buscar novas alternativas para conseguir cumprir o calendário escolar previsto para 2020. Todos os professores e alunos tiveram que modificar suas vidas, tanto os da rede pública como os do ensino particular. Desde o 1º semestre , eles estão tentando se adaptar e entender como ter um melhor aproveitamento das plataformas digitais. Porém está sendo uma experiência difícil e consequências negativas estão surgindo nessa nova fase.

É evidente que o ensino da rede pública está passando por maiores dificuldades, pois a classe social dos alunos influencia muito no momento do acesso aos novos recursos. O Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação realizou uma pesquisa sobre o uso de tecnologias de informação e comunicação em domicílios brasileiros e mostrou que, em 2018, apenas 9% das famílias das classes D e E possuíam computador em casa. Enquanto a classe A apresenta um número de 98%. A situação gerada pela pandemia reforça a grande desigualdade do Brasil e acarreta complicações no ambiente educacional.

Josiane Bezerra professora de Português, Eletivas e Tecnologias trabalha em duas escolas da rede estadual na periferia da Zona Norte de São Paulo. A professora relata que as aulas foram encerradas no dia 18 de março e que o governo não disponibilizou nenhuma plataforma obrigatória para os professores trabalharem, apenas uma apostila que contém o conteúdo de todas as matérias para os alunos retirarem nas escolas. Dessa forma cada, escola está trabalhando do modo que prefere com os alunos, no caso das escolas de Josiane, os professores estão passando as atividades e os conteúdos por meio do Blog das escolas e das páginas do Facebook. Josiane mantém contato com os alunos de outra forma: “Preferi criar um grupo no WhatsApp com meus alunos do 6º ano, estou passando as atividades por lá, acho que assim fica mais fácil minha comunicação com eles, mas ainda não consegui o contato de todos”, relata.

 Segundo ela, uma das escolas colou cartazes informativos no portão e espalhou alguns pela região para que os alunos pudessem saber o que fazer, a outra escola já teve uma comunicação melhor, pois já continha um grupo do diretor com todas as mães, então mandaram as informações por lá. Mas relata que a falta de acesso dos alunos  à internet está fazendo com que muitos não participem das aulas, “A situação dos alunos é precária, muitas das famílias são numerosas e tem apenas um celular”. Em relação a essa nova experiência a educadora diz “Não estou achando fácil, fico receosa de passar um tema, uma atividade nova e eles não conseguirem aprender, sei que tem alunos que têm muita dificuldade, sem estar presente com ele fica difícil saber se eles estão com dúvida. A falta do olho no olho faz muita diferença.”

Em relação à rede municipal de ensino, o professor de matemática Clóvis Sá, que trabalha na região da Brasilândia, em São Paulo, relata: “No primeiro momento orientamos os alunos a ficarem em casa, mas estávamos atendendo os que vinham. Muitos acabam indo por conta da alimentação ou porque não têm com quem ficar”. Com o tempo a quantidade de alunos foi diminuindo e a escola fechou. Os alunos ficaram sem aula por quase duas semanas, período em que a Secretaria da Educação mandou orientações e os professores tiveram reuniões por meio de vídeo para organizar os modelos de aula e aprender a utilizar a nova plataforma, além de conhecer o novo material. A prefeitura, ao contrário do estado, definiu a plataforma Google Classroom para todos os professores usarem, além de criar uma apostila contendo atividades e o conteúdo de todas as matérias e enviar por meio do correio na casa de todos os alunos. O professor comenta: “Infelizmente nem todos os alunos estão tendo acesso a este material, pois muitas famílias não atualizaram seus endereços na escola, ou colocaram errado”. Para avisar os alunos e mostrar como entrar no aplicativo foi usado a página do Facebook da escola, um cartaz no portão e os diretores estão fazendo atendimentos por meio do telefone da escola e da internet.

 “Os professores estão postando vídeos, atividades na plataforma. E estão ficando conectados no aplicativo no horário de aula, no meu caso das 7:00 às 11:50. Temos que ficar on-line para orientar sobre as atividades e tirar dúvidas dos alunos.”, diz o professor Clovis.

Por fim, o matemático desabafa: “Está sendo uma experiência complicada. Acho que a estrutura criada até que foi rápida, mas ainda não é eficaz, não depende só do professor, ela esbarra na dificuldade de o aluno de ter acesso e também na falta de interesse de muitos”.

Já no colégio particular são perceptíveis muitas diferenças, apesar de também apresentarem dificuldades por ser um processo inesperado, os professores e os alunos contêm um suporte maior. Simone Arcanjo é professora de História e Sociologia em um colégio particular na região da Lapa, em São Paulo, diz que assim que ocorreu a suspensão das aulas o colégio teve uma atitude prudente e cautelosa em procurar uma plataforma digital que seria ideal para todos. A instituição resolveu utilizar o aplicativo Microsoft Teams e a partir da decisão começaram a dar treinamento aos professores para aprenderem a usar, “O colégio já tem uma boa experiência com essa parte de tecnologia e dentro do nosso corpo de colaboradores temos os mentores [professores que trabalham diretamente com projetos ligados a tecnologia] e eles estão sempre nos ajudando, passando dicas e tirando dúvidas” comenta, com a presença dos mentores esse processo acabou sendo mais fácil e a professora afirma estar tendo uma experiência positiva. Os alunos ficaram sabendo do novo modelo de ensino por meio do site da escola e estão tendo aulas ao vivo durante o mesmo período que teriam no presencial. Simone relata “Percebo de uma maneira geral que todos têm acesso a internet e tem dispositivos para usar, por conta disso as aulas estão indo bem, em um dos dias conseguimos até fazer um debate durante a aula de história e funcionou”. As atividades estão sendo produtivas e ela comenta que uma das reclamações feitas pelos alunos é em relação a sobrecarga na internet, por conta de terem outros familiares também utilizando no momento.

 

Relatos dos estudantes

 

Ao entrevistar alguns estudantes de instituições distintas pode-se perceber que as experiências não estão sendo positivas, mas sim preocupantes.

O estudante de escola pública Lucas Barreto, de 15 anos, conta como foram os primeiros contatos com o ensino remoto e como sua escola tem procedido “No começo, estava sem computador e deixei de entregar algumas atividades por estar sem acesso” e completa “Cheguei a ficar com notas baixas”. Lucas, como muitos outros, é vítima dessa falta de suporte por parte das escolas “Não estão dando apoio para quem está sem acesso aos computadores, só estão dando um tempo maior para entregar as tarefas”. “Nas aulas presenciais dava para absorver melhor porque eu prestava mais atenção. Aqui [em casa] eu tenho que ficar procurando as atividades [nas plataformas]. Às vezes fico sem foco”. Ele também declara ter receio de como vai ficar sua educação “O ensino remoto não tem tanta qualidade quanto o presencial”.

“Tenho sete matérias, e só uma delas está tendo vídeo aula mesmo, então a professora passa [a vídeo aula] e eu assisto a hora que quiser. O resto dos professores está passando capítulos para lermos” conta a estudante de Estatística, Mariana Bastos de 18 anos. A aluna revela que pensou em trancar o curso quando começou a quarentena e chegou a abandonar duas aulas “São matérias muito importantes pro meu curso, que são Probabilidade 2 e Inferência. Eu optei em trancar porque teria consequências na minha carreira [caso fizesse online], então prefiro estudá-la mais pra frente, no presencial”. Mariana diz que sua experiência tem sido negativa por conta de não conseguir se concentrar no estudo e fala sobre como fazia antes da pandemia “Gostava muito de estudar com os meus amigos, a gente se juntava e tirava dúvida um com o outro, fazíamos uma rodinha de estudo”. Mas destaca como uma consequência positiva, a rotina criada por parte dos educandos.

A estudante do terceiro ano do Ensino Médio, Maria Luísa Montebelo de 16 anos, declara preocupação com a qualidade de seu ensino “Tenho muito esse medo de chegar no final do ano e sentir que não adiantou de nada”. “Acho um absurdo não mudarem a data do ENEM porque muitas pessoas dependem só dessa prova pra entrar em faculdades públicas. Em São Paulo ainda temos um leque de outras universidades públicas, mas essa não é a realidade de todos os estados, então pensando num viés mais social, uma coisa mais justa, seria importante reavaliarem a data para não prejudicar as pessoas” conta a aluna sobre a decisão do MEC de não adiar a prova. “A questão da saúde mental pega bastante, principalmente agora no terceiro ano, que já é meio pesado, com tudo isso que está acontecendo”. Maria Luísa relata que de início foi mais complicado lidar com as aulas online, mas que agora os educandos estão se adaptando melhor e que a escola tem se preocupado e está os ouvindo para fazer melhorias nesse ensino.

Ainda que o cursinho pré-vestibular não seja uma obrigação para os estudantes, é importante considerá-lo, pois muitos desses alunos também estão tendo dificuldades no momento do estudo. Felipe Holler, 18 anos, relata que começou o ano com a expectativa de aproveitar todas suas aulas, estudar muito e conseguir passar em uma faculdade, prestando engenharia de produção. Porém a situação atual está deixando-o preocupado, apesar de seu cursinho dar um bom suporte e disponibilizar muitas aulas online ele comenta “Eu gosto bastante dos vídeos, mas está sendo uma experiência ruim, pois não consigo assistir o mesmo número de aulas que assistiria presencialmente. E isso vai me afetar bastante na hora de fazer o vestibular”, ele relata que em casa é difícil manter a mesma concentração e que tenta se distrair fazendo outras coisas também para não prejudicar sua saúde mental.

 

Saúde mental

 

 Com a chegada da pandemia e com as aulas online, surgiram também questões em relação a saúde mental dos estudantes em um momento tão sério e complicado como esse. Sabemos que escolas e faculdades já sobrecarregam os alunos de atividades com as aulas regulares, agora, em que todos, ou grande parte da população, está em casa, professores entendem que o tempo se multiplica e acabam passando ainda mais atividades.

Em entrevista com a psicóloga Valéria Zold, ela afirma “Os estudantes estão sofrendo não só com a forma de ensino, mas com a mudança que toda essa situação acarretou, e a forma de aprendizado é mais um fator, porque tem uma sobrecarga que não aconteceria em uma situação rotineira”, a profissional ainda afirma que as aulas online prejudicam a qualidade do ensino na questão de que o professor não consegue perceber se o aluno está acompanhando, se ele [professor] está sendo claro o suficiente ou se é necessário fazer alguma adaptação e se atentar aos alunos que apresentam mais dificuldades, pois está conversando com uma tela e não existe o olho no olho que permite essas percepções.

A psicóloga faz ainda uma observação “Não poder sair de casa é um fator que gera estresse, e ultimamente percebo que tudo fica ligado aos estudos e a cabeça não consegue relaxar”. E sugere algumas saídas para que os estudantes consigam se organizar melhor e para não os afetar tanto mentalmente “É necessário estabelecer uma rotina e colocar nela algumas atividades que esteja ligada a um hobby”.

 

O pós pandemia

Todas as alterações nas formas de trabalho e estudo, que foram necessárias para que a população pudesse continuar a vida normalmente dentro do possível durante a pandemia do Covid-19, geraram também uma série de dúvidas sobre o futuro. Alguns dizem que as relações de trabalho serão as mais afetadas, mas ocorre também um questionamento sobre a área do ensino.

O projeto de transformar cursos presenciais em EAD acontece há alguns anos e com a chegada do vírus e a impossibilidade de aulas presenciais, a tendência é que esse processo que já estava em andamento se intensifique. Para os professores e estudantes existem muito mais fatores negativos do que positivos, e podemos citar entre eles, o aumento no número de desemprego no país, a queda da qualidade do ensino, a perda de um local adequado para os estudos, o estabelecimento de relações líquidas, entre outros. Transformar os cursos presenciais em EAD seria transformar também a educação em um negócio, visando apenas os lucros e descartando a importância do ensino.

Alguns questionamentos surgem nesse momento: como será o ensino quando a pandemia acabar? Será que acontecerão muitas mudanças definitivas?

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