A reinvenção da leitura após um ano de pandemia no Brasil

Com o novo coronavírus ainda se alastrando pelo globo, o modo como as pessoas consomem livros se alterou
por
Ligia de Toledo Saicali
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21/06/2021 - 12h

No início da vida escolar, o aprendizado da leitura é um dos primeiros e mais essenciais desenvolvidos na faixa etária entre 5 e 7 anos. Apesar de sua relevância, dados apresentados pelo Instituto Pró-Livro apontam que o povo brasileiro ainda lê pouco conteúdo literário: uma média de 2,4 livros ao ano; baixa, se comparada à estimativa de 10 horas e 42 minutos semanais de leitura dedicados pelos indianos, líderes do ranking desde 2005, de acordo com dados da Biblioteca Parque Villa-Lobos. Com o advento da pandemia de Covid-19, a quarentena foi implementada em diversos países com a finalidade de frear o avanço da doença e desafogar o sistema de saúde público e privado.

O confinamento no ambiente doméstico lançou holofotes para a implementação de novos hábitos, e o resgate de outros. A leitura foi um dos costumes resgatados, sendo recentemente carregado pelo comércio online e livros no formato digital. De acordo com números divulgados pelo Painel do Varejo de Livros, a venda de livros em março deste ano saltou 38% em relação a março de 2020. Além disso, o consumo de e-books duplicou durante o período da quarentena brasileira, de acordo com levantamento feito pela Bookwire Brasil, indicando a migração cada vez maior das páginas de papel para o toque das telas. “O consumo de livros não está diminuindo. A questão é que ainda temos uma parcela muito pequena da população que tem esse hábito, sem contar os critérios utilizados pelas pesquisas na definição do que seria ‘ler’. Elas costumam considerar alguém que lê um livro inteiro no ano, ou até quatro livros, algo assim”, explica Laura Folgueira, tradutora, revisora autônoma e jornalista formada pela Cásper Líbero. “Quando você pergunta o que as pessoas mais leem, a grande maioria dos brasileiros cita a Bíblia. Não que tenha algum problema nisso, mas não é um dado que consideramos em relação ao mercado editorial”, diz Folgueira. Ao ser questionada sobre a crise financeira sofrida pelas livrarias físicas, ela aponta que essa complicação não é recente, já que o comércio eletrônico provê informações suficientes na descrição de determinados produtos.

“O livro não é necessariamente uma coisa que você precisa ver antes para comprar, como móveis, que algumas pessoas preferem ir até a loja e analisar. O livro não pede isso”, acrescenta. Com a onda ascendente das compras online e, consequentemente, dos livros eletrônicos, os estabelecimentos físicos passam a direcionar sua estratégia para um ramo relacionado ao ambiente. Similar ao processo de “gourmetização” das salas VIP de cinema para fazer frente ao boom dos streamings, com poltronas reclináveis, assentos exclusivos e cardápios com diversas opções gastronômicas, livrarias passam a investir ainda mais no conforto presencial e na experiência completa dos leitores. Associação a cafeterias, conceito a céu aberto e expansão do setor de papelaria são alguns exemplos que compõem a construção de um novo nicho na experiência presencial destes espaços, que aguardam  a retomada após pandemia. 

“A experiência da livraria física não vai desaparecer. Ela só terá um público mais restrito. Aqui eu nem estou pensando em pandemia, mas eu acho que a experiência de ir à livraria em tempos normais é muito voltada para os amantes de livros. Eu não imagino que a gente abra mão disso”, analisa Laura. A revisora também aponta como apoiar livrarias menores e serviços independentes de distribuição e encomenda (como livreiros) também é uma forma de inovação sem deixar de oxigenar uma área mais tradicional do mercado literário. “Eu estou morando em Santos, desde o fim do ano passado, e tem uma livraria aqui que se chama Realejo Livros, que começou um trabalho bem interessante chamado ‘livreiro em domicílio’. Você entra em contato com ele, pede o livro e ele te entrega no mesmo dia se tiver como, sugere outros. É muito legal essa troca, ele tem muito bom gosto. Um pouco essa ideia de livreiro a moda antiga, mesmo”, conta. 

No meio virtual, os clubes de leitura por assinatura também representam mais uma opção na extensa lista de caminhos que conduzem ao hábito, atualmente. A TAG Livros, empresa  brasileira mais famosa do ramo, apresenta opções diversas, como combos de obras inéditas ou de curadorias especiais personalizadas. Já o clube “Intrínsecos” está diretamente associado às publicações exclusivas da editora Intrínseca. As assinaturas também podem ser ferramentas direcionadas para além do lazer,  promovendo autoconhecimento e cuidado mental, como é o caso do clube do livro da plataforma Eurekka, voltada para o desenvolvimento pessoal e psicológico. “O que eu acho bacana dessas assinaturas é a experiência criada na caixa, com o fato de vir brindes, cadernos, não é só o livro. É o contexto, a própria TAG [Livros] também tem um aplicativo que permite você falar e interagir com outros leitores. Fora isso, eu acho especialmente interessante você receber livros que talvez não conheceria de outra forma”, opina Laura.

Apesar das inúmeras formas de popularização do livro e do aumento de sua procura no último ano, a falta de acessibilidade e poder de compra ainda são peças-chave para entender como o potencial de leitura do brasileiro não é aproveitado ao máximo. De acordo com informações reveladas na 4ª edição da pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil”, 30% de toda população do país nunca comprou um livro. No fim de 2020, o ministro da Economia, Paulo Guedes, imergiu em uma polêmica relacionada à intenção de aumentar tributos sobre livros, alegando que se trata de um “produto de elite”. 

Não dá para dizer que a literatura não é um privilégio. Uma forma de combater isso é a biblioteca. Dar acesso a cultura literária sem necessariamente passar por essa questão financeira é investir em mais bibliotecas, criar uma cultura de frequentar e ‘pegar livros’. E programas governamentais, que é uma coisa com a qual a gente vem sofrendo gravemente”, aponta Laura. “Quando a gente fala de literatura, é preciso expandir. Porque, se não, a gente vai deixar de conhecer uma parte do país. E também vamos deixar de estimular talentos, porque, para a pessoa ser escritora, ela precisa saber que aquilo também é para ela”, conclui Laura. 

Foto destaque: Reprodução Facebook /Powell's Book

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