Rechazo: chilenos rejeitam nova Constituição

Com 61,87% dos votos pela reprovação e 38,13% pela aprovação, o projeto foi recusado. Assim, continua em vigor a Carta elaborada na ditadura de Pinochet.
por
Giulia Aguillera
Sônia Xavier
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10/09/2022 - 12h
Manifestantes vão pra rua após resultado parcial da apuração do plebiscito
Manifestantes vão às ruas após divulgação do resultado parcial do plebiscito. Foto: Martin Bernetti/AFP

No último domingo (4), a população chilena votou em plebiscito pelo projeto de uma nova Constituição. Cerca de 62% das pessoas optaram pelo "Rechazo" (rejeição), contra os 38% dos votos no "Apruebo" (aprovação). 

 

O novo conjunto de leis, se aprovado, seria o primeiro após a Carta Magna elaborada durante a ditadura de Augusto Pinochet, em vigor desde 1980. Entre as principais mudanças propostas pelo texto, está a projeção do Chile como um "Estado plurinacional e democrático de direito". 

 

O governo de Gabriel Boric aguardava a aprovação do novo texto para colocar em prática as reformas sociais prometidas durante sua campanha eleitoral.

 

A decisão de mudar a Constituição surgiu após uma onda de atos contra a desigualdade social em 2019. Conhecido como Estallido social, as manifestações começaram contra o aumento da tarifa de transporte público e passaram a pedir, mais tarde, pela renúncia do presidente Sebastián Piñera, em exercício na época. 

 

Piñera assinou um acordo que propunha a reescrita da Carta, se fosse aprovado. Um ano depois, os chilenos foram às urnas para escolher entre a favor ou contra a reestruturação das leis. A eleição terminou com aproximadamente 80% dos votos dizendo "sim" ao projeto.

 

Em maio de 2021, foi eleita uma comissão responsável por redigir a nova Carta. O grupo era composto por 155 membros, com caráter paritário e progressista, e contava com a participação de 17 representantes indígenas. O texto foi concluído em julho e, se aceito, colocaria em prática uma série de modificações no sistema político chileno.


Os ares que o Rechazo não permitiu que chegassem ao Chile

Fila de chilenos para votação no último domingo
14,7 milhões de chilenos votaram no domingo. Foto:Esteban Félix (AP)

Uma das principais propostas do texto era a eliminação do Senado. A Constituição vigente divide o poder em duas partes: a Câmara dos Deputados e o Senado. Esse segundo, que pode interferir no trabalho dos deputados, chegaria ao fim para dar origem a um modelo com duas Câmaras: o Congresso dos Deputados, cujo papel seria formular leis gerais, e a Câmara das Regiões, exclusiva para leis de acordo regional. 

 

Outra proposta de grande relevância do documento era a criação do Sistema Nacional de Saúde Universal, que destinaria 100% da despesa obrigatória em saúde - os trabalhadores formais, no Chile, são obrigados por lei a investir 7% do salário na área  - ao sistema público.  

 

Na proposta recusada, a interrupção da gravidez de forma voluntária seria permitida por lei. Na constituição de de 1980, é protegida a vida de quem está por nascer, embora, em 2017, o aborto tenha sido descriminzalizado em três circunstâncias: risco de vida da mulher, estupro e inviabilidade fetal. 

 

Direitos aos indígenas e meio ambiente também seriam assegurados. Cerca de 13% da população chilena, as leis vigentes não fazem nenhuma menção aos povos originários. Já o novo projeto reconhecia 11 povos e nações, além de conferir autonomia a eles. 

 

Além disso, o texto conferia um forte carácter ambiental, já que reconhecia a proteção da água e dos direitos dos animais e da natureza como um aspecto fundamental.

 

O projeto de democracia paritária estabelecia, também, que 50% dos cargos de poder e nos órgãos do Estado seriam ocupados por mulheres. Com isso, o Chile se tornaria o primeiro país no mundo a implantar essa medida de igualdade de gênero.

 

A Carta também apresentou proposta de um Sistema de Previdência Social Público, que seria financiado por trabalhadores e empregadores. Um avanço em contraponto ao modelo atual, no qual a aposentadoria depende exclusivamente dos trabalhadores em fundos de pensão privados com pagamentos abaixo dos US $400 dólares estipulado pelo salário mínimo ou 60% menores que o último salário.

 

O papel das fake news no Rechazo

 

Do começo do ano até as vésperas do plebiscito, a aprovação à nova Constituição caiu. Um dos fatores mais fortes que motivou o resultado da votação foi a disseminação de notícias falsas sobre o conteúdo do texto. 

 

Como consequência, a desinformação, somada ao conservadorismo, provocou uma onda de medo nos chilenos, que apresentaram reação negativa à mudança.

Entre as principais fake news que circularam nas redes sociais sobre a Carta, estão a legalização do aborto após os nove meses de gestação; a mudança de bandeira, hino nacional e até nome do Chile; a concentração total de poder nas mãos do líder do país, que possibilitaria a implementação de uma ditadura de esquerda; o fim do direito à propriedade e à herança e a conferência de mais direitos a indígenas e imigrantes do que ao resto dos chilenos.

 

A reação do povo chileno

 

Apesar de já se imaginar o Rechazo, o povo chileno agradou a apuração até ficar, numericamente, impossível a virada. O correspondente internacional no Chile, Rafael Carneiro, em entrevista para a AGEMT, notificou que as pessoas foram pra rua com bandeiras do Chile e fazendo buzinaço de carro para “celebrar o resultado”.

 

Carneiro diz ter tido manifestações contra o resultado no domingo, mas nada muito significativo. "O que eu vi na rua foi o povo celebrando, mesmo”, contou o correspondente.

Chilena beija a bandeira do Chile depois do resultado
População comemora Rechazo. Foto: Reprodução/BBC News

Carneiro ainda menciona as manifestações estudantis que estão ocorrendo desde o início desta semana, mas diz que elas refletem mais as insatisfações não atendidas desde os protestos de 2019, que foram o ponto de partida para a redação da nova Constituição, do que a rejeição da Carta de domingo.

 

“O que eles pediram naqueles protestos de 2019, porque foram eles que iniciaram o 'Estallido social’, não foram atendidos até agora”, explica.

 

Próximos passos

Desde a campanha, o presidente já havia sinalizado que, se houvesse rejeição ao texto, o processo constituinte iria continuar, o que foi assegurado assim que o resultado foi divulgado, na noite de domingo, em discurso para a nação.

 

“Me comprometo a fazer todo o esforço para construir, em conjunto com o Congresso Nacional e a sociedade civil, um novo itinerário constituinte que nos entregue um texto que, a partir dessa aprendizagem, consiga interpretar a maioria dos cidadãos", disse Boric.

Presidente do Chile em discurso para a nação
Gabriel Boric dá entrevista coletiva após a votação do plebiscito sobre o projeto de Constituição, em Punta Arenas, Chile. Foto: AP Photo/Andres Poblete

O governo não possui maioria dos votos na Câmara. A maior parte das cadeiras pertence à oposição, dividida entre centro-direita, direita e extrema direita. Para conseguir mais apoio dos partidos de esquerda dentro do Congresso, o presidente deu início, na terça- feira (6), a uma reforma ministerial.

 

A reforma foi marcada pela saída de Giorgio Jackson da Secretaria-Geral da Presidência, que saiu do comando da secretaria após críticas de diferentes setores políticos por supostamente ter contribuído para a rejeição da Constituição, por falta de diálogo com o Congresso.

 

O cargo foi assumido pela advogada Ana Lya Uriarte, que foi ministra da secretaria do meio ambiente no primeiro mandato da ex-presidente Michelle Bachelet (2007-2010) e chefe do gabinete presidencial no segundo mandato (2014-2018).

 

Outra mudança importante foi a saída da cirurgiã Izkia Siches do Ministério do Interior para a entrada de Carolina Tohá, cientista política, ex-presidenta do Partido pela Democracia, ex-ministra do governo Bachelet e ex-prefeita de Santiago.

 

Dando início às movimentações para construção de um novo itinerário para a Carta Magna, nesta quarta-feira (7), aconteceu a primeira reunião com os líderes dos partidos chilenos no Congresso para acertar as datas e a estrutura da nova Constituição. A ideia para a mesa de diálogo já tinha sido acordada nas primeiras horas após fracasso do plebiscito. 

 

"O diálogo vai se basear aqui no Parlamento, e nós, como governo, vamos acompanhar", disse à imprensa a nova secretária-geral da Presidência, Ana Lya Uriarte, na sede do Congresso na cidade costeira vizinha de Valparaíso.