PL da pedofilia: deputados revogam diretrizes que garantiam aborto legal

Projeto de Decreto Legislativo revoga diretrizes de proteção a meninas vítimas de estupro e exige boletim e aval judicial para aborto legal
por
Carolina Zaterka
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12/11/2025 - 12h

Entrou em discussão no Congresso Nacional, na última semana, o Projeto de Decreto Legislativo 3/2025 (PDL 3/2025), que tem como objetivo sustar a Resolução nº 258/2024 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). A resolução, editada no final de 2024, estabeleceu diretrizes para atendimento humanizado e acesso ao aborto legal para crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, buscando garantir direitos já previstos em lei.


Em votação polêmica na última quarta-feira (5), a Câmara dos Deputados aprovou o PDL 3/2025, texto que agora segue para análise do Senado. O projeto é de autoria da deputada Chris Tonietto (PL-RJ), representante da ala ultraconservadora do Congresso, com coautoria de mais de 30 parlamentares, principalmente de partidos das bancadas religiosa e de direita (como PL, Republicanos, PP, MDB). Tonietto e seus apoiadores argumentam que a resolução do Conanda “extrapolou” as atribuições do conselho ao modificar procedimentos sem passar pelo Legislativo, citando, por exemplo, que a norma dispensou a apresentação de boletim de ocorrência policial para o aborto de menores que sofreram estupro.
 

Deputada Chris Tonietto - Reprodução: Câmara dos Deputados
Deputada Chris Tonietto - Reprodução: Câmara dos Deputados

Conforme o texto aprovado na Câmara, todas as orientações do Conanda sobre casos de estupro de vulnerável seriam canceladas. Na prática, isso altera o protocolo atualmente adotado nos hospitais e unidades de saúde: a resolução vigente do Conanda dispensa a exigência de boletim de ocorrência, de autorização judicial e até do consentimento dos responsáveis para realização de aborto legal em crianças e adolescentes, nos casos em que essas exigências representem risco ou impedimento ao procedimento ou à proteção da vítima. Também prevê que, havendo conflito entre a vontade da criança e a dos pais/responsáveis (por exemplo, se o agressor for o próprio pai ou parente), a Defensoria Pública e o Ministério Público devem ser acionados para garantir os direitos da menor. O PDL 3/2025 cancela essas diretrizes, o que na prática restabelece barreiras burocráticas: passa a exigir registro policial da ocorrência e aval do Judiciário para que meninas estupradas acessem o aborto previsto em lei, além de presumir a necessidade do consentimento dos pais ou responsáveis. Essas exigências adicionais revitimizam as meninas e atrasam o atendimento médico, muitas vezes inviabilizando a intervenção dentro do prazo adequado. Outro efeito do projeto é proibir ações informativas e preventivas: o texto impede que profissionais de saúde orientem as vítimas sobre seu direito ao aborto legal e também veda campanhas públicas de conscientização contra o casamento infantil (uniões entre adultos e menores), iniciativas que haviam sido recomendadas pelo Conanda como parte da estratégia de proteção à infância. 


Os proponentes do PDL 3/2025 defendem que a medida visa proteger crianças e punir estupradores, argumentando que a resolução atual facilitaria a “impunidade” ao não exigir prontamente uma denúncia formal. Em discurso no plenário, a deputada Chris Tonietto afirmou que “a violência sexual não pode ser combatida com o aborto”, o qual ela classificou como “outra violência”, dizendo que o caminho para enfrentar o abuso de menores é o fortalecimento da segurança pública e da investigação policial, e criticou o fato de a norma do Conanda dispensar até mesmo o boletim de ocorrência do estupro. Na mesma linha, a deputada Bia Kicis (PL-DF) argumentou que não obrigar a notificação policial favoreceria os estupradores, pois muitos casos poderiam deixar de ser investigados sem o registro formal: “Quando você libera o boletim de ocorrência, você está favorecendo o estuprador. Não está defendendo as crianças”. Já o deputado Otoni de Paula (MDB-RJ) foi além e acusou a resolução de “viabilizar o aborto sem autorização dos pais, sem exame de corpo de delito, sem B.O. ou limite de tempo de gestação”, declarando que o Congresso precisava “frear a indústria do aborto, a cultura da morte” no país. Segundo esses parlamentares, a prioridade deve ser punir agressores e evitar “incentivos” ao aborto, cabendo aos pais ou responsáveis, e não ao Estado, a decisão final nos casos envolvendo meninas menores de 14 anos grávidas em decorrência de estupro. 
Os autores do projeto também sustentam um argumento legalista: afirmam que a resolução do Conanda usurpou competências do Legislativo ao detalhar procedimentos que, em sua visão, extrapolam o Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). O trecho da norma que retira dos pais a decisão sobre interromper a gravidez da filha (quando há suspeita de abuso intrafamiliar) foi citado como contrário ao Código Penal, já que este atribui aos representantes legais a responsabilidade por menores incapazes. Outro ponto contestado por Tonietto e aliados é que a resolução, segundo eles, não estabeleceu um limite gestacional para o aborto em vítimas mirins, o que “na prática autorizaria abortos até perto de 40 semanas” de gravidez, uma interpretação questionada pelos críticos, mas usada pelo relator Luiz Gastão (PSD-CE) para justificar a sustação da medida. “Admitir que um órgão do Executivo desconsidere por completo a viabilidade fetal e estabeleça a possibilidade de abortos em gestações avançadas […] revela-se incompatível com o Código Penal”, argumentou Gastão, citando que mesmo países onde o aborto é legal impõem prazos de corte. Em suma, na  justificativa oficial do PDL 3/2025 consta a alegação de que “o aborto não constitui um direito” propriamente dito, e que a orientação do Conanda estaria flexibilizando excessivamente a prática ao dispensar requisitos formais.


A reação de diversos setores ao projeto foi imediata e contundente. Parlamentares da oposição, organizações da sociedade civil, órgãos governamentais de direitos humanos e especialistas em direito qualificam o PDL 3/2025 como um enorme retrocesso legal e humanitário, acusando-o de punir as vítimas em vez dos agressores. A Bancada do PT na Câmara votou contra a matéria e vem se pronunciando fortemente a respeito. A deputada Maria do Rosário (PT-RS), ex-ministra de Direitos Humanos, classificou o projeto como “cruel e inconstitucional”, por violar o princípio da proteção integral à criança previsto na Constituição e no ECA. “Trazer esse tema para o plenário é atrasar os procedimentos adequados diante de crianças que foram violentadas. Manter uma criança estuprada em condição de violência permanente é inaceitável”, declarou Rosário durante o debate. Érika Kokay (PT-DF) salientou que a resolução do Conanda “não cria novos direitos, apenas detalha como aplicar a lei para salvar vidas”, já que o aborto em caso de estupro já é permitido por lei há décadas, e criticou os setores conservadores que tentam obrigar meninas a levar adiante gestações resultantes de estupro. “Há quem queira forçar uma criança de 9 ou 10 anos a ser mãe, mesmo que isso lhe custe a vida. […] Quem ataca essa resolução está atacando a vida das crianças e adolescentes deste país”, protestou Kokay em plenário.


Entre os órgãos governamentais, tanto o Ministério das Mulheres quanto o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) emitiram notas oficiais condenando a aprovação do PDL. A pasta das Mulheres afirmou que “ao anular essa orientação, [o PDL] cria um vácuo que dificulta o acesso dessas vítimas ao atendimento e representa um retrocesso em sua proteção”. Já o MDHC destacou que a resolução do Conanda tinha por objetivo garantir celeridade e atendimento integrado às vítimas, conforme já previsto em leis como o ECA, a Lei da Escuta Protegida (13.431/2017) e a Lei do Minuto Seguinte (12.845/2013), todas normas que dispensam a exigência de B.O. ou autorização judicial para o aborto em caso de estupro justamente para evitar revitimização. Suspender seus efeitos constitui grave retrocesso na política de proteção à infância, cria barreiras ao acesso a direitos fundamentais e fragiliza o atendimento especializado previsto em lei, alertou a secretária nacional da criança do MDHC em nota à imprensa. 


Entidades da sociedade civil e especialistas independentes endossam as críticas. Diversos movimentos de mulheres e direitos humanos apelidaram o PDL 3/2025 de “PL da Pedofilia”, numa inversão irônica, sugerindo que a proposta, em vez de combater abusadores, acabaria por “beneficiar pedófilos” ao forçar meninas violentadas a manterem gestações indesejadas. “Chamamos essa medida pelo nome que ela merece: a PL da Pedofilia. Porque quem obriga uma criança violentada a parir defende a continuidade da violência sexual infantil; quem nega o aborto legal a uma menina estuprada protege o agressor e pune a vítima”, escreveram Rafaella Florencio e Jenni Dantas, do coletivo feminista Pão e Rosas, em nota pública divulgada logo após a votação . Juristas e defensores de direitos da criança também apontam possíveis ilegalidades e conflitos constitucionais no projeto: ao negar efetividade a direitos assegurados (como o atendimento de saúde emergencial a vítimas de estupro, previsto na Lei 12.845/2013) e contrariar o princípio do melhor interesse da criança, o PDL pode ser alvo de ações judiciais. “É ferir de morte o Estatuto da Criança e do Adolescente e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário”, opinou a advogada Giovana Verdura, especializada em direitos sexuais, em entrevista ao portal Jota.info (em referência às obrigações do país de proteger crianças da tortura e tratamento degradante, categorias nas quais a gravidez forçada de meninas se enquadraria). Integrantes do Ministério Público e da Ordem dos Advogados do Brasil também discutem a possibilidade de acionar o Supremo Tribunal Federal caso a medida seja definitivamente aprovada, por afronta a cláusulas de direitos fundamentais (até o momento, entretanto, não há confirmação de ação judicial concreta). 


Além do impacto direto sobre vítimas de violência sexual, analistas alertam para o uso político da pauta da “pedofilia” como pretexto para censura e ataques a direitos de expressão e informação. Organizações de direitos digitais e coletivos LGBTQIAP+ destacam que um discurso moralizante em torno do combate à pedofilia vem sendo empregado para justificar projetos de lei que cerceiam discussões sobre gênero, sexualidade e arte, sob a alegação de “proteção da infância”. Um levantamento do portal CartaCapital mostra que, de 2019 a 2024, foram apresentados mais de 100 projetos de lei nas esferas federal e estaduais mirando crianças e adolescentes LGBTQIAP+, muitos deles promovendo censura em salas de aula, proibição de materiais didáticos sobre diversidade, veto a eventos culturais e restrição de publicidade com temática LGBT para o público jovem. Esses projetos frequentemente tramitam sob títulos genéricos de proteção infantil, mas entidades como a ONG Observatória e a Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos têm denunciado que acabam por excluir e silenciar minorias, ao confundir educação sexual ou reconhecimento da diversidade com “ameaça” às crianças.


No contexto atual, novas proposições legislativas ligadas ao tema pedofilia também suscitam preocupação entre defensores da liberdade de expressão. Exemplo: o PL 2685/2025, de autoria do deputado Julio Cesar Ribeiro (Republicanos-DF), que tramita na Câmara, busca tipificar como crime a “apologia à pedofilia” por meio de conteúdo audiovisual com personagens de aparência infantil. Embora o objetivo seja coibir a divulgação de material que sexualize crianças (como animações, bonecos ou deepfakes envolvendo menores), críticos temem que conceitos vagos possam dar margem à censura de obras artísticas ou educativas legítimas. Representantes do campo cultural lembram casos em que exposições de arte, peças de teatro e até livros foram alvo de ataques sob acusação infundada de “pedofilia” ou “pornografia infantil”, em geral, motivados por grupos ultraconservadores. “Há uma paranoia sobre a pedofilia que acaba atingindo produções culturais de forma indiscriminada”, afirmou o cientista político Luis Felipe Miguel, ao analisar episódios recentes de censura moral no país. Educadores também receiam que programas de educação sexual nas escolas, essenciais para prevenir abusos, sejam prejudicados: “Chamar qualquer debate sobre corpo e sexualidade de ‘erotização precoce’ ou ‘incentivo à pedofilia’ impede que crianças aprendam a se proteger de fato”, observou uma representante da ONG Mães pela Diversidade. Em suma, os especialistas alertam que, se não houver definições precisas e salvaguardas, o “combate à pedofilia” pode virar instrumento de perseguição a conteúdos pedagógicos, comunidades LGBTQIA+ e manifestações artísticas, sob o manto de uma suposta defesa da moral e dos bons costumes. 


A aprovação do PDL 3/2025 provocou forte repercussão nacional, com manifestações de repúdio em redes sociais, abaixo-assinados e pronunciamentos de figuras conhecidas. Celebridades e ativistas denunciaram o projeto, destacando o impacto sobre meninas vítimas de estupro. A cantora Anitta afirmou que o país “precisa de mais mulheres na política”, enquanto a atriz Luana Piovani chamou o texto de “PDL da pedofilia” e lembrou que “criança não é mãe, criança não é esposa”, lema que viralizou nas redes como #CriançaNãoÉMãe.

Ato em favor da descriminalização do aborto. Foto: Rovena Rosa - Reprodução: Agência Brasil
Ato em favor da descriminalização do aborto. Foto: Rovena Rosa - Reprodução: Agência Brasil

Organizações da sociedade civil também reagiram com uma petição online que reuniu milhares de assinaturas, pedindo ao Senado que rejeite o projeto. Hashtags como #PDLdaPedofilia e #CriançaNãoÉMãe dominaram as redes, impulsionadas por vídeos explicativos e manifestações de repúdio. Entidades de direitos humanos publicaram notas denunciando o retrocesso e cobrando que o texto seja arquivado.
 

Arte compartilhada por Manuela D’Ávila em protesto contra o PDL - Reprodução: Instagram Manuela D’Ávila

Arte compartilhada por Manuela D’Ávila em protesto contra o PDL - Reprodução: Instagram Manuela D’Ávila

Enquanto isso, grupos conservadores e religiosos celebraram discretamente a aprovação, tratando-a como vitória “pró-vida”. Em contrapartida, especialistas em saúde e direitos da infância alertaram que obrigar meninas estupradas a manter gestações é uma forma de violência institucional, reacendendo o debate sobre o que realmente significa proteger as crianças.


Se o PDL 3/2025 for aprovado também no Senado, as diretrizes do Conanda deixarão de valer imediatamente, mudando o protocolo de atendimento a vítimas de estupro. Hospitais e profissionais de saúde passarão a exigir registro policial e autorização judicial antes de realizar o aborto, mesmo em casos de meninas de 10 a 13 anos. Isso reduzirá o acesso ao aborto legal, aumentando o número de partos infantis forçados.


Entre 2013 e 2023, o Brasil registrou mais de 232 mil nascimentos de bebês cujas mães tinham até 14 anos, a maioria decorrente de estupros. Em 2023, apenas 154 meninas conseguiram realizar o aborto legal. Sem as diretrizes do Conanda, o acesso tende a se tornar ainda mais difícil. A médica Paula Viana, da ONG Curumim, resume: “Sem essa proteção, mais meninas serão obrigadas a parir seus estupradores”.