Pandemia escancara deficiências do SUS

por
Beatriz de Oliveira
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12/05/2020 - 12h

A debilitada estrutura do SUS (Sistema Único de Saúde) prejudica o enfrentamento à Covid-19. As deficiências passam pela falta de equipamentos, de profissionais e de testes. Isso devido à condição de subfinanciamento que é imposta a esse sistema desde sua criação. 

Estimativas apontam que haverá falta de leitos nos cenários mais diversos. Se 20% da população for afetada em um período de seis meses, por exemplo, faltarão 100% dos leitos. Se uma parcela muito menor, de 0,1% da população, for afetada, faltarão 44% dos leitos.   

Note-se que 0,1% da população equivale a 210 mil pessoas. Até 13 de abril, o país tinha 20.964 casos confirmados.  Mas é preciso colocar nesta equação a falta de testes e a consequente subnotificação no número de confirmados da doença. E, levando isso em conta, previsões apontam que a infecção de 0,1% já havia chegado até aquela data. Diferentes estimativas previam infecção de 313 mil casos confirmados até o dia 11 de abril e 235 mil casos até o dia 10 de maio. 

Num país em que quase 70% da população depende exclusivamente do SUS, essas e outras previsões são preocupantes.

 

Entenda  
Segundo levantamento do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps) 72% das regiões cobertas pelo SUS tem número de leitos abaixo do mínimo recomendado, de dez por 100 mil habitantes. Cento e quarenta e duas regiões não possuem nenhum leito. O estudo aponta ainda que, em um cenário com 20% da população afetada em um período de seis meses, seria necessário o dobro de leitos disponíveis. 
Pesquisadores do Cedeplar (Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional) apontam que em um cenário com 0,1% da população infectada faltariam leitos em UTIs (Unidades de Terapia Intensiva) em 44% das regiões cobertas pelo SUS. O percentual da população considerado na simulação (0,1%) equivale a 210 mil pessoas. Até 13 de abril eram 23.430 casos confirmados. 
Estimativa da Covid-19 Brasil - iniciativa que reúne estudantes e cientistas de várias universidades - indica 313 mil casos confirmados até o dia 11 de abril, número 15 vezes maior que os dados oficiais desta data. Já o Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS) - grupo formado por pesquisadores da PUC-Rio, Fiocruz, USP e IDOR - aponta 235 mil casos até o dia 10 de maio, 12 vezes maior do que os dados divulgados no dia. 
Pesquisa do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) e Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) indica que 69,7% dos brasileiros não possuem plano de saúde, seja individual ou empresarial.
 
                                      
                                                               
Hospital de campanha no Estádio do Pacaembu, em São Paulo. Por: Reuters
Hospital de campanha no Estádio do Pacaembu, em São Paulo. Por: Reuters 

 

Expectativa x realidade 

A doutora em Saúde Pública e professora associada da Universidade de São Paulo Laura Camargo Macruz Feuerwerker diz que, se o Brasil tivesse o  “SUS ideal” (com todas as capacidades previstas em sua criação), o cenário seria diferente. Antes de a doença se espalhar, haveria um plano articulado de enfrentamento, considerando as diferentes realidades das regiões brasileiras. O país teria também laboratórios públicos para fabricação de insumos e testes, o que é muito útil quando o mundo todo quer comprar as mesmas coisas. 

O que se observa hoje, no entanto, são ações individuais e demora de respostas. Sobre a coordenação entre estados e municípios, Feuerwerker afirma que, embora haja exceções, “existe muito mais tensão do que trabalho em conjunto”. Ela dá o exemplo da Grande São Paulo, onde há, em sua visão, uma tendência de centralização da secretaria estadual, com pouco diálogo, o que faz com que os municípios atuem por conta própria. Soma-se a isto a lentidão em pedidos de testes e nas compras de equipamentos de proteção individual (EPIs) e respiradores. 

Feuerwerker considera importante a ampliação de leitos que vem sendo implantada, mediante, por exemplo, a criação de hospitais de campanha. Mas qualifica como “tímidas” as ações em territórios mais vulneráveis. As UBSs (Unidades Básicas de Saúde) têm feito trabalho de organização de fluxos dentro de seus espaços, mas há poucas ações fora deles, nas comunidades. Isso permitiria um mapeamento das necessidades dessa parte da população, mas é impossibilitado em grande medida pela falta de estrutura e pessoal. 

A professora chama atenção ainda para as desigualdades presentes ao longo do território brasileiro. Em São Paulo, por exemplo, a capacidade instalada nas regiões mais pobres é menor, e as pessoas terão que ser transferidas para outros pontos da cidade. O Amazonas, que já chegou a até 95% de leitos para Covid-19 ocupados, foi o primeiro estado a entrar em colapso na saúde. 

Entenda 
Pesquisa divulgada em abril pela Rede Nossa São Paulo revela uma distribuição desigual de leitos nas UTIs (Unidades de Terapia Intensiva) na capital paulista. De acordo com o estudo, três subprefeituras localizadas em regiões mais ricas concentram 9,3% da população do município e mais de 60% dos leitos públicos de UTI. E em sete subprefeituras localizadas em regiões mais pobres da cidade, que concentram 20% da população, não há nenhum leito. 

O ano de 2020 começou com uma redução de R$ 6 bilhões no orçamento do gasto público em saúde. No mês de março, o governo federal anunciou uma adição de R$ 5 bilhões para o combate ao novo coronavírus. Ou seja, ainda há uma perda de R$ 1 bilhão do orçamento esperado para um ano típico (sem o advento da pandemia). É o que aponta José Alexandre Buso Weiller, doutor na área de economia política da saúde e diretor-geral da Fundação Juquery, entidade pública que desenvolve serviços de saúde e assistência social. 

Ele aponta que o descumprimento da destinação de no mínimo 30% do Orçamento da Seguridade Social (OSS) para o SUS, como previsto na Constituição, é um dos fatores que explicam o atual sucateamento desse sistema. Nota-se também a facilitação aos planos de saúde privados, com a criação da Agência Nacional de Saúde (ANS), o crescimento de subsídios públicos e o não ressarcimento ao SUS pelos serviços públicos prestados aos seus consumidores.  

Todo esse incentivo à saúde privada ajudou a criar a imagem de que o problema do SUS é a gestão e não a falta de recursos. Empresas ganham isenção fiscal ao oferecer planos de saúde privados aos empregados. Em 2018, a União deixou de arrecadar R$ 39 bilhões no setor da saúde devido a gastos tributários. Há ainda a Lei 8.666 de 1993, que prevê normas para licitações e contratos. Na prática, faz com que compras de equipamentos para saúde demorem meses, além da paulatina diminuição de pessoal. Esses e outros embargos tornam a gestão privada mais atrativa e fortalecem o discurso liberal. 

Weiller aponta também a Desvinculação de Receitas da União (DRU) como fator gerador de déficit no OSS. Em 2018, o valor retirado deste orçamento foi de R$ 170 bilhões. Se considerado um gasto de R$ 116 bilhões com o SUS (valor previsto para 2020), o valor retirado equivale a “1,5 SUS”.  A DRU permite que o governo retire parte dos recursos destinados a áreas prioritárias para usar, por exemplo, no pagamento de juros da dívida pública. 

O Brasil é o segundo país do mundo que mais paga juros da dívida pública. A dívida está estimada, neste ano, em R$ 1,6 trilhão, dos quais R$ 415 bilhões relativos a juros. Weiller diz ser necessária uma auditoria cidadã da dívida pública, mobilizando a população na cobrança de transparência. Entre os objetivos, estaria o alongamento dos prazos para pagamento da dívida e seus juros (os quais podem ser definidos pelo Estado) e o maior investimento em áreas  prioritárias, como a saúde. 

Com a Emenda Constitucional 95/2016, que estabeleceu o teto dos gastos públicos, o SUS passou do subfinanciamento para o desfinanciamento, afirma Weiller. A emenda prevê o congelamento de gastos sociais por 20 anos (até 2036). O valor das despesas primárias só é reajustado pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), sem levar em conta crescimento populacional e inflação, por exemplo. Isso faz com que a saúde pública receba menos recursos  a cada ano. 

Na atual pandemia, a sociedade necessita ainda mais do sistema público de saúde. Como medidas que poderiam ser tomadas de imediato para evitar um colapso e garantir amplo atendimento, Weiller elenca: revogação da Emenda Constitucional 95, extinção da isenção fiscal na área da saúde, supressão da DRU e de despesas inconstitucionais, não privilégio ao pagamento dos juros da dívida pública. Propõe ainda a estatização temporária de leitos de hospitais privados e de fábricas, para produção de EPIs.