O depressivo solitário de “Declínio de um Homem”

Livro septuagenário explora o interno do homem contemporâneo
por
Maria Eduarda Camargo
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20/09/2023 - 12h

 

"Existe a expressão ‘pária’, que no mundo dos homens é utilizada para se referir a pessoas derrotadas, miseráveis ou perversas. Mas sinto como se eu fosse um pária desde o momento em que nasci."

 

É assim que Dazai, ou seu alter ego Yozo, descreve a si próprio. Nascido em 1909, no interior do Japão, Shūji Tsushima – mais conhecido por seu pseudônimo Osamu Dazai – é reconhecido por ser um dos maiores escritores da literatura japonesa no século XX. Tendo uma vida curta, o escritor acabou não finalizando sua última obra, “Guddo bai”, ou “Adeus” em português. Sua obra mais conhecida, escrita nos últimos anos de vida, “Declínio de um homem”, aborda sua obsessão com o suicídio, além de suas complicadas relações com mulheres – em virtude dos abusos que sofreu quando criança.

Retrato fotográfico do autor Osamu Dazai
Retrato tirado do autor Osamu Dazai em 1948. Foto: Shigeru Tamura.

 

Durante as 148 páginas, Dazai sangra suas tripas entre as linhas de um estudante de artes em Tóquio, Yozo. Ele relata, por meio do alter ego, os problemas que enfrenta com a bebida e, mais tarde, morfina, além do que ele chama de "uma tristeza doente". E na efemeridade da tristeza é onde mora o bucólico brutal e descritivo de Dazai – seu poder de descrever algo que, naquela época, não se entendia: a depressão. Ele vê seu mundo cair por diversas vezes, fruto dos próprios atos (ou o que julga que sejam) e revolve-se em um redemoinho de solidão sem fim e sem escapatória. 

O personagem se envolve com diversas mulheres, que parecem intensificar seu modo de vida moribundo cada vez mais. Dentre prostitutas e bebidas, o que degringola o livro – e que pode ser considerado um clímax dentro de si mesmo – é a tentativa de suicídio duplo do personagem com uma garçonete de restaurante que ele conhece ao longo da trama, da qual apenas ele acaba sobrevivendo. Após ser indiciado pela cumplicidade ao suicídio, Yozo se vê preso mais uma vez na própria vida, vítima de um sentimento de inutilidade e de atrapalho que o circunda de todas as maneiras.

Existe, na literatura do autor, um certo aconchego na tristeza, que nos motiva como leitores a entrar na mente do personagem e compreendê-lo. Dazai vê na tristeza algo como um conforto sórdido; talvez até mesmo uma maneira de lidar com as adversidades que enfrenta e com os traumas pelos quais passa. É meio como a picada da anestesia, um amortecedor para a única certeza inevitável: a morte.

 

“A ideia de morrer não me incomodava, mas tinha horror da possibilidade de me ferir, perder sangue, tornar-me aleijado ou coisas do gênero”.

 

A leveza com que o autor declara seu desprezo pela vida – na linha tênue da aceitação da própria morte e do desgosto – nos leva a questionar, por muito, as relações sociais que cultivamos e a individualidade no modo de se enxergar a vida. É como um sapo que ferve lentamente em uma panela d’água e que só repara que vai morrer quando já é tarde demais. E nessa tristeza doentia e congênita que o autor se conforta, a alergia pela felicidade – como uma língua estrangeira, uma incapacidade de absorver qualquer emoção positiva. 

 

“É que os covardes temem até mesmo a felicidade”.

 

O que faz a literatura de Dazai atemporal – mesmo 75 anos após a publicação do livro – é justamente o exercício de descrever o mais profundo e primitivo dos sentimentos. Mudam-se as palavras; trocam-se os olhos, a língua, as mãos; remodelam-se os trens, ônibus, carros; as vestes, os sapatos; transmuta-se tudo: ainda nos sobra a inerente e inata tristeza de carregar o fardo de ser humano.