O ciclo da pobreza impõe mais uma barreira na vida de quem menstrua

Como o preço dos absorventes impacta negativamente as vidas das brasileiras em situação de vulnerabilidade
por
Fernanda Travaglini
Giovanna Takamatsu
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18/09/2023 - 12h

Algo escorre nas pernas. A temperatura é quente, o cheiro é forte. Não há como controlar. Trata-se de sangue. Aquele que, quando uma vida não é gerada, escapa – e é um fluído tão incontrolável, natural – humano – como qualquer outro. É o sangue menstrual. 

Rodeada de tabus, dos tempos remotos aos atuais, a menstruação é um processo humano e ligado ao feminino, mas ainda não é tratado com a dignidade que deveria ter aos olhos da sociedade e do Estado. 

No Brasil, ¼ da população (52,7 milhões de pessoas) está na ou abaixo da linha da pobreza, de acordo com os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Menstruar e ser pobre acarreta outra barreira: não ter acesso à higiene necessária. Um problema que toca em questões de acesso à saúde, à educação e à emancipação financeira de mulheres cis, homens trans ou pessoas de demais identidades de gênero que menstruam. A situação tem nome: pobreza menstrual e é um problema de saúde pública. 

Através do séculos 

A experiência de homens e mulheres é diversa em aspectos da vida em sociedade.  O sangue da menstruação foi e é incompreendido, fruto da misoginia e visões centradas no que é masculino como um suposto normal. Na idade média, por exemplo, a menstruação era algo exótico, sujo, encarada como venenosa ou doença. 

O conhecimento científico desmistifica essas questões – mas o menor prestígio e invisibilização das questões femininas viaja na história e atinge em cheio o que, hoje, denomina-se machismo, "o comportamento que rejeita a igualdade de condições sociais e direitos entre homens e mulheres", de acordo com o dicionário Oxford Languages. 

É só em 2021 que um projeto de lei busca dar dignidade a este âmbito. Mesmo que aprovada no mesmo ano, a Lei 14.214/2021 não passou sem a manifestação do desejo de vetá-la, por parte do ex-presidente Jair Bolsonaro. A pressão popular reverteu a situação. 

Pobreza menstrual: mulheres do Amapá fazem ato contra veto – SelesNafes.com

Protesto no Amapá contra veto, em 2021. Imagem: Reprodução/Sales Nafes 

Mesmo diante da expectativa gerada pela agenda progressista do atual presidente, Lula, o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual (que prevê a distribuição gratuita de absorventes em postos de saúde) tem déficit na entrega de absorventes. “Todos esses projetos de fato são falados, eles de fato são promulgados, eles de fato são aprovados, mas eles não chegam até a população. Até hoje eu não vi isso chegar aqui (Goiás) e se chegou lá em São Paulo foi muito raramente”, diz a ativista e fundadora da ONG Nós Por Elas, Hellora Beatriz Lima Nascimento (20).    

Dar espaço para a discussão dos problemas menstruais implica colocar a figura da mulher no centro do debate. Em uma cultura que entende sangue menstrual como um tabu, sujo, não poder contê-lo torna-se sinônimo de não frequentar espaços públicos, em especial à escola ou trabalho. Vale a analogia: não ter o material correto para contenção da menstruação é ficar encoberto em secreções – assim como seria com a urina ou fezes. 

Menstruar com dignidade é um privilégio para poucas 

Durante sua vida fértil – período entre a puberdade e menopausa – uma pessoa que menstrua utiliza cerca de 10.000 absorventes. Essa conta baseia-se em uma estimativa de 20 absorventes por ciclo, em uma média de 240 por ano, aproximadamente 143 reais (valores estimados que podem ser reajustados). Isso resulta em aproximadamente 5 mil reais ao longo da vida. 

Segundo os dados divulgados pelo IBGE, mais de 13,72 milhões de brasileiros ainda vivem em situação de miséria (abaixo da linha de pobreza) vivendo com uma renda per capita igual ou abaixo do valor do salário mínimo. 

Assim, existem pessoas que precisam escolher entre comprar comida ou produtos de higiene menstrual, sendo que, na maioria das vezes, vão escolher o que é vital para sua sobrevivência. Isso coloca essas pessoas em situação de indignidade, caracterizando a pobreza menstrual. No Brasil, segundo o estudo “Pobreza Menstrual no Brasil”, feito pela UNICEF e UNFPA, existem 713 mil pessoas que menstruam que vivem sem acesso ao banheiro em suas residências e 4 milhões sem acesso a itens mínimos de cuidado menstrual nas escolas. 

 

A Taxa Rosa 

Deputada do PT quer proibir a 'taxa rosa' abusiva para produtos femininos

Prateleira com o mesmo produto, em cores diferentes, e preços também diversos. O produto rosa, tradicionalmente direcionado ao público feminino, é 35% mais caro. Imagem: Rede Brasil Atual/Reprodução. 

Denominada "Pink Tax", em inglês, a tributação de produtos destinados ao público feminino é historicamente maior do que os impostos aplicados em mercadorias semelhantes, porém destinadas a um público masculino. A justificativa: seriam “produtos supérfluos”. No entanto, itens ligados ao período menstrual, como os absorventes, destinados à higiene, também sofrem a taxação. São, então, considerados “dispensáveis”, de acordo com dados reunidos pela Moneyzine.

De acordo com a ativista entrevistada, há argumentos que apoiam-se em medidas arcaicas de contenção de menstruação: “existem pessoas que falam que 'ah, se no passado a minha vó, a minha mãe utilizavam o pano de chão em casa, se a mulher não tem condição [de comprar absorventes], ela pode usar isso', mas se a gente vive num mundo onde a ciência e a tecnologia evoluíram e a gente tem esse tipo de acesso [aos absorventes], esse absorvente tem que chegar até as pessoas que menstruam”, diz. 

A impossibilidade de adquirir produtos de higiene pessoal – absorvente, papel higiênico, sabão – residir em uma área sem infraestrutura de saneamento básico (sendo 35 milhões de brasileiros sem acesso a água tratada, segundo estudo do Instituto Trata Brasil) além da falta ao acesso à educação menstrual são alguns dos pilares deste problema estrutural, fruto de visões machistas de mundo, sociedade e políticas públicas que invisibilizam a existência feminina como é.    

 

"Mas e o meio ambiente?"

Um dos principais pilares de ação das ONGs de pobreza menstrual é a distribuição de produtos menstruais básicos, tais como sabão, absorvente e papel higiênico. Segundo os dados do Instituto Akatu, são produzidos 200 quilos de lixo por pessoa somente em produtos menstruais descartáveis, além de demorarem mais de 400 anos para se decompor. 

Tendo em vista um processo mais sustentável, seria possível a indagação: por quê distribuir absorventes comuns e não coletores menstruais ou absorventes de pano, que são tecnologias reutilizáveis, boas para a saúde menstrual? A resposta está, também, relacionada a outros problemas estruturais no país: o saneamento básico e a desinformação. 

A líder da ONG nós por elas, explica "se ela [a pessoa que menstrua] não sabe como higienizar [os coletores ou absorventes de pano], ela não tem água em casa para ela limpar esse item, para não causar uma infecção nela. Se ela nunca teve nem educação menstrual para ter acesso ao absorvente [convencional], imagina um coletor menstrual [que exige desinfecção, uso por horas limitadas, armazenamento adequado]”, enfatiza. 

File:Coletor GreenDonna 1.JPG - Wikimedia Commons

Foto de coletor menstrual. Imagem: Wikimedia Commons/Reprodução 

 

Voluntária organizando absorventes
Voluntária da ONG Nós por Elas, criada pela entrevistada Helloara, organizando absorventes para doação. Imagem: @nosporelas, via Instagram. 

Direito à educação e menstruação 

 

Ir à escola sem absorvente não é uma opção. Seja pelo estigma do sangue vazando na roupa, seja pela secreção, incômoda. De acordo com a ONU, uma em quatro estudantes deixam de ir à escola por falta de absorvente. “Se a menina não tem acesso ao absorvente, (ou) ela usa outros itens, não tem como ela ir pra escola (...) imagina essa menina que já é socialmente vulnerável e ela ainda falta escola e não tem acesso às matérias, ela perde aquilo tudo. Imagina a menina que precisa ir para a escola se alimentar e não pode porque ela menstrua”, afirma a Helloara Nascimento. 

Dados revelam uma realidade que é excludente com mulheres. Veja: 

Gráfico com estatísticas sobre a pobreza menstrual
Absorventes são peça-chave para o acesso pleno ao direito à educação. Imagem: Blog sextante - UFRGS/Divulgação 

 

A situação fica ainda pior se é considerado doenças ginecológicas, como, por exemplo, a Síndrome do Ovário Policístico (SOP; acomete de 6% a 10% da população em idade fértil) e Endometriose (acomete 1 em 10 brasileiras), que fazem com que o ciclo menstrual seja desregulado. Isso associado com a desinformação e o não acompanhamento médico faz com que exista uma ausência escolar ainda maior. 

  

Menstruar com dignidade é ter acesso à saúde, à escola e à emancipação financeira. 

 

Esta reportagem foi produzida como atividade extensionista do curso de Jornalismo da PUC-SP.