Tudo é político quando você é uma mulher. Essa é a frase em um dos quadros expostos na parede roxa do restaurante Conceição Discos, localizado no bairro de Santa Cecília da capital paulista. Um fogão poderoso cercado por um balcão chama a atenção, por exalar o cheiro de comida brasileira vindo dali; a cozinheira, que usa um turbante, cozinha enquanto conversa com as pessoas que sentam à sua frente. Entre uma prosa e outra com os seus clientes, que são recebidos sempre com cumprimentos calorosos, ela prepara o prato do dia a ser servido no restaurante. E o cheiro… O cheiro exala a sua paixão por cozinhar, que pode ser sentida já ao entrar no local. É um lugar de cozinha afetuosa.
Talitha Barros é nascida na periferia da zona sul de São Paulo, neta de indígena e a chef que usa turbante por trás das quatro bocas do fogão, utilizado para preparar a comida do restaurante paulistano. A especialidade da casa é servir arroz em diferentes pratos: um ingrediente que parece simples, mas que se torna único a cada combinação – abóbora, costelinha, camarão, baião de dois… E por aí vai. Tudo isso, com a opção de complementar com um ovo frito, que também parece simples, mas é o que há de especial no restaurante.
O cheiro de comida boa e caseira ecoa pelo ambiente e antes mesmo de entrar no restaurante, já é possível ouvir os belos vocais de Nina Simone – uma das artistas escolhidas para compor a trilha sonora do Conceição Discos que, como o nome entrega, também vem da paixão pela música. O local dispõe, além da culinária brasileira, de uma bancada de discos de vinil à venda e de uma vitrola que toca durante o dia. A escolha da trilha sonora que traz resistência cultural, o ambiente caloroso e o cheiro de comida brasileira já dizem muito sobre o restaurante, e também sobre a chef.
Com o sonho de ser antropóloga para cuidar das heranças culturais dos povos nativos, Talitha Barros se encontrou na gastronomia – seguindo com o mesmo sonho, mas dessa vez, envolvendo a arte de cozinhar. Ela diz que sua paixão pela comida brasileira vem nos pequenos detalhes e na valorização de ingredientes que parecem básicos demais, mas que são versáteis: no Conceição Discos, por exemplo, um simples ovo frito é capaz de transformar a finalização de qualquer prato do cardápio.
Foi essa vontade de expressar sua própria identidade que a levou a criar um espaço onde a comida não é apenas uma receita, mas uma forma de contar um pouco de sua história. Ela começou como ajudante de sushiman e depois passou por restaurantes italianos e franceses, mas a vontade de ter algo com a sua própria identidade era maior. Decidiu abrir um restaurante que também contasse um pouco da sua história e de onde veio, e por isso a escolha da comida brasileira: rica em sabores, mesmo com poucos ingredientes; música boa e feita por artistas importantes da indústria musical, a maioria com um histórico de luta e resistência (como Nina Simone, que foi ativista pelos direitos de pessoas pretas nos Estados Unidos); e, ainda, um local formado totalmente por mulheres, desde a cozinha até as atendentes.
Ao sentar no balcão de frente para ela, os frequentadores assíduos costumam pedir um refrescante de hibisco para começar a jornada gastronômica no restaurante. O prato do dia? Arroz de carne assada. A chef, enquanto prepara a comida a ser servida, de frente para o fogão, ela compartilha um sorriso com um cliente; com outros que já conhece, compartilha histórias, ou até mesmo conta sobre a sua última viagem.
Após alguns minutos, a comida chega na mesa e todo o cheiro aconchegante espalhado pelo ambiente alcança o paladar. A reação dos clientes é sempre única e grande parte, até comem de olhos fechados. É como se estivessem se alimentando de uma história, como se a boa prosa com a cozinheira se transformasse em uma comida afetuosa, que acolhe. O arroz, que parece tão simples, ganha outra dimensão quando, enquanto é preparado, é acompanhado de boas conversas, regadas de histórias. Os pratos não são apenas comida; são uma continuidade de algo maior, que começa nas mãos de Talitha, que, ao colocar a comida na mesa, também coloca um pouco de si mesma.
Aqui, não se trata apenas de alimentar corpos, mas de nutrir a alma. E a alma, para Talitha, tem um gosto muito particular, um gosto que é, ao mesmo tempo, doce e amargo, forte e delicado. Esse é o gosto da resistência, também presente na história da chef: uma mulher periférica, que carrega um legado especial por parte dos seus avós e que ama a culinária de onde veio – a brasileira.
Porque tudo é político quando você é mulher. E, nesse espaço, o político está também em cada ingrediente escolhido por Talitha para colocar no prato e em cada história que ela traz para o balcão. O simples ato de cozinhar, para ela, não se limita a um gesto de sustento. Cozinhar, para ela, é a representação de um espaço de afirmação e empoderamento.
Como mulher, Talitha sabe que cada prato que sai da sua cozinha é também um manifesto. É uma resposta às desigualdades, um posicionamento sobre o valor da comida simples, mas sofisticada na sua raiz. A valorização do arroz e do ovo, ingredientes essenciais que muitas vezes são vistos como “básicos”, é a celebração de uma gastronomia que carrega uma identidade própria; para ela, cada grão de arroz é como um pedaço da história do Brasil, um pedaço de um país que está sempre tentando ser redefinido, mas que, através da comida, encontra uma maneira de se afirmar.
E quando ela coloca esse arroz no prato, acompanhado de uma costelinha de porco suculenta, ou de um bacalhau, ela nos ensina que a comida pode ser muito mais do que um simples ato de sustento. A comida é história, é luta e também é poesia. E isso é trazido por ela no dia a dia dentro da cozinha, na interação com os clientes e na visível paixão que tem por cozinhar.
Cada prato que sai do fogão de quatro bocas do Conceição Discos é uma maneira de afirmar sua identidade, de afirmar sua luta enquanto chef e principalmente, como mulher. Porque no fundo, o que Talitha oferece não é apenas o sabor inconfundível de um arroz bem feito, mas uma história de resistência e de afirmação. Uma história que é, antes de tudo, política, pois enquanto mulher, sua presença ali, seu espaço conquistado na culinária paulistana, não é só uma escolha de carreira. Mas um verdadeiro ato político.
Ao entrar no Conceição Discos, entra-se não apenas em um restaurante. Mas sim em um espaço onde a comida é política, onde o gosto é resistência, onde a música é história, e onde, acima de tudo, o acolhimento é feito de afeto – o tipo de afeto que transforma, que cura e que, em cada prato, conta a história de uma mulher que escolheu fazer da sua cozinha um lugar de potência.