Iiihhh, deu zebra...

O Mundial no Catar trouxe surpresa aos amantes do futebol e gerou o debate sobre esta ser "a Copa das zebras".
por
Bianca Novais
Bruno Scaciotti
Gustavo Zarza
Luan Leão
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19/12/2022 - 12h

As zebras são mamíferos herbívoros comuns da savana africana, costumam viver em bando e tem velocidade. A velocidade é uma forma de defesa dos ataques dos leões, um dos seus principais predadores. Além da velocidade, a força do coice também é uma ferramenta de proteção. Um coice de zebra é capaz de quebrar a mandíbula de um felino, por exemplo. 

Expressões como "deu zebra", "vai dar zebra", "que zebra!", não se referem a uma fuga de um animal do ataque de seu predador - mas, poderia. No futebol, a expressão é constantemente utilizada para descrever um resultado inesperado, pouco aguardado. Para entender a expressão "dar zebra", precisamos voltar a 1964 e conhecer o histórico técnico Gentil Cardoso. É do técnico pernambucano a autoria da frase que utilizamos até hoje para classificar resultados surpreendentes no futebol ou em outros esportes. 

Em 1964, Cardoso chegou para comandar a Portuguesa-RJ. O time carioca estava em má fase e desacreditado por grande parte dos que acompanhavam futebol. Na véspera de um confronto contra o poderoso Vasco da Gama, que também não vinha de bons resultados, Gentil Cardoso deu a letra ao ser perguntado sobre o resultado: "Pode dar zebra!". 

O técnico fazia uma referência ao jogo do bicho, criado pelo Barão de Drummond no final do século XXI, onde a zebra não existe entre os 25 animais citados. Ou seja, é inesperado que dê zebra no jogo bicho, afinal, não tem o animal entre as opções. O recifense queria dar o recado de que uma surpresa poderia acontecer. E de fato aconteceu, naquele jogo a Portuguesa venceu o Vasco por 2 a 1, com gols de Inaldo e Tião. 

Mas, afinal, essa foi a Copa das zebras ? Vamos observar os números e desempenho de algumas seleções a partir da Copa de 2002.



2002 - Copa do Mundo no Japão e Coreia do Sul

A Turquia surpreendeu e conquistou o terceiro lugar, somando 13 pontos, com 4 vitórias, 1 empate e 2 derrotas, em um total de 7 jogos, fazendo 10 gols e sofrendo 6, assim terminando com um saldo positivo de 4 gols.

 

Outro resultado inesperado foi a Coreia do Sul que terminou na quarta posição, com 11 pontos em 7 jogos, tendo 3 vitórias, 2 empates e 2 derrotas, marcando 8 gols e sofrendo 6, ficando com um saldo positivo de 2 gols. Donos da festa, os coreanos eliminaram as favoritas Itália e Espanha durante a fase final do mundial.

O Senegal foi outra surpresa em 2002. A seleção acabou sendo eliminada nas quartas de final, ficando na sétima posição, somando um total de 8 pontos em 5 jogos, com 2 vitórias, 2 empates e 1 derrota, marcando 7 gols e sofrendo 6, terminando com o saldo positivo de 1 gol. Senegal eliminou o Uruguai e a França na primeira fase do mundial, se classificando em segundo lugar em seu grupo.

2006 - Copa do Mundo na Alemanha 

O mundial com menos surpresas dessa nossa série. A zebra ameaçou dar o ar da graça com a Austrália, que foi eliminada nas oitavas pela Itália com uma ótima atuação. Os australianos ficaram na décima-sexta posição com 4 jogos, somando 4 pontos depois de 1 vitória, 1 empate e 2 derrotas, marcando 5 gols e sofrendo 6, ficando com -1 de saldo. 

2010 - Copa do Mundo na África do Sul 

A seleção de Gana superou as expectativas e foi eliminada nas quartas de final, após um jogo histórico e memorável contra o Uruguai. Gana terminou na sétima posição com 8 pontos, depois de 2 vitórias, 2 empates e 1 derrota, fazendo 5 gols e sofrendo 4, terminando com um saldo positivo de 1 gol. 

No mesmo mundial, uma das surpresas foi a Eslováquia que eliminou a Itália na fase de grupos, mas deixou o mundial nas oitavas de final, ficando na décima-sexta posição depois de 4 jogos, com 1 vitória, 1 empate e 2 derrotas, marcando 5 gols e sofrendo 7, finalizando com um saldo de -1.  

2014 - Copa do Mundo no Brasil 

No Brasil, a seleção da Costa Rica foi a sensação do mundial, ficou em primeiro lugar no chamado grupo da morte, que contava com Uruguai, Itália e Inglaterra. Conseguiu avançar das oitavas de final, mas acabou sendo eliminada nas quartas, ficando na oitava posição, depois de 5 jogos, somando 9 pontos, com 2 vitórias, 3 empates e 0 derrotas, fazendo 5 gols e sofrendo 2, terminando com um saldo positivo de 3 gols. 

Costa Rica 2014
Bryan Ruiz foi o autor do gol da vitória da Costa Rica contra a Itália por 1 a 0. Foto: Ruben Sprich / Reuters 

2018 - Copa do Mundo na Rússia 

Na Copa de 2018 a maior surpresa foi a Croácia que conquistou o vice-campeonato. Depois de 7 jogos a seleção croata fez 14 pontos, com 4 vitórias, 2 empates e 1 derrota, marcando 14 gols e sofrendo 9, ficando com um saldo positivo de 5 gols.

O resultado conquistado pela Suécia também foi uma novidade neste mundial, sendo eliminada nas quartas de final, terminando na sétima posição após 5 jogos, somando 9 pontos, com 3 vitórias, 0 empates e 2 derrotas, fazendo 6 gols e sofrendo 2, finalizando com um saldo positivo de 4 gols.

A Rússia, sendo a anfitriã, também fez bonito em 2018, deixando a Espanha no caminho e sendo eliminada nas quartas de final, ficando na oitava posição, somando 8 pontos em 5 jogos, com 2 vitórias, 2 empates e 1 derrota, marcando 11 gols e sofrendo 7, terminado com um saldo positivo de 4 gols. 

2022 - Copa do Mundo no Catar

Neste mundial do Catar a maioria das surpresas ficaram pelas oitavas de final. É o exemplo da Coreia do Sul, Austrália e Japão.

A Coreia ficou na décima-sexta posição, após eliminar o Uruguai na fase de grupos, somando 4 pontos em 4 jogos, com 1 vitória, 1 empate e 2 derrotas, fazendo 5 gols e sofrendo 8, ficando com o saldo de -3.

Os australianos terminaram na décima-primeira posição depois de deixar a Dinamarca pelo caminho, ainda na fase de grupos, somando 6 pontos em 4 jogos, com 2 vitórias, 0 empates e 2 derrotas, marcando 4 gols e sofrendo 6, finalizando com o saldo de -2.

O Japão foi uma das grandes surpresas do mundial, ganhando da Alemanha e da Espanha e eliminando os alemães ainda na fase de grupos. Os japoneses terminaram na nona posição, com 7 pontos em sete jogos, depois de 2 vitórias, 1 empate e 1 derrota, fazendo 5 gols e sofrendo 4, ficando com o saldo positivo de 1 gol.

Seleção de Marrocos
Jogadores de Marrocos comemoram e agradecem segundo gol contra a Bélgica. Foto: Manan Vatsyayana / AFP

A maior surpresa dessa Copa foi o Marrocos. A seleção marroquina conquistou o feito de ser a primeira seleção africana a chegar a uma semifinal de Copa do Mundo, eliminando potências como Bélgica, Espanha e Portugal. Marrocos jogou 7 jogos, conquistando 11 pontos, depois de 3 vitórias, 1 empate e 2 derrotas, marcando 6 gols e sofrendo 5, com um saldo de 1 gol.

Um resultado um pouco esquecido foi a vitória da Tunísia contra a França por 1 a 0, na última rodada da fase de grupos. O gol não mudou o destino dos tunisianos, que acabaram eliminados, mas o resultado foi uma zebra e histórico para eles, que venceram pela primeira vez uma seleção europeia em Copas do Mundo. 

Quem explica as zebras ?

Para entender melhor a razão dos resultados no Catar, obtidos por seleções de pouca tradição, a equipe da AGEMT conversou com Ricardo Picoli, doutor e mestre em psicobiologia pela Universidade de São Paulo (USP), psicólogo pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e coordenador do curso de especialização em psicologia do exercício e do esporte da UFSCar. 

Também conversamos com Lucas Tavares, educador físico pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em ciências do exercício pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e chefe do departamento de análise de desempenho (CIAM) do Fluminense entre 2016 e 2017.

Como já mostramos, seleções como Costa Rica, Croácia e Coreia do Sul, por exemplo, superaram as expectativas quando jogaram perto da terra natal. Segundo Picoli, alguns estudos apontam a existência da "home advantage", ou seja, a vantagem de jogar em casa. Apesar disso, para o psicólogo isso não explica de que forma exatamente afeta o resultado ou desempenho do time ou seleção. "As hipóteses mais fortes são: torcida a favor, arbitragem mais favorável ao time da casa, habituação sensorial ao campo de jogo da própria equipe e clima meteorológico", afirma.

Sobre casos específicos das "zebras" durante esse mundial, o analista Lucas Tavares aponta para um aspecto mais técnico e tático, unindo planejamento e motivação. "Alguns trabalhos já indicam uma maior probabilidade de sucesso em modelos de jogo agressivos ofensivamente e de ciclos curtos. [...] Um segundo ponto muito relevante é a motivação dessas seleções com menor expressão. O fato de não ser esperado resultados relevantes, especialmente contra seleções campeãs, gera um fator motivacional fundamental para o bom desempenho de uma tática defensiva como a que foi proposta por eles", comenta. 

No aspecto motivacional, seleções menos tradicionais acabam caindo nas graças de grande parte do público que acompanha a Copa do Mundo, atraindo para si a torcida não apenas de seus compatriotas. Isso também ocorre com algumas seleções de maior tradição em Copas, como o Brasil, por exemplo. "É fonte de incentivo para os jogadores da equipe com torcida a favor. Isso pode gerar sentimentos positivos de confiança, entusiasmo e alegria que são fortemente relacionados a bom desempenho. Em segundo lugar, a arbitragem tende a favorecer (ou ser mais condescendente) ao time "da casa", o que impacta diretamente no desempenho de ambas equipes em campo. Na mesma medida que a torcida a favor ajuda o time que tem a torcida, atrapalha o time adversário, afetando principalmente a concentração", explica Ricardo Picoli. 

Seleção Marrocos
Torcida marroquina encheu os estádios durante a Copa no Catar. Foto: Dylan Martinez / Reuters

A Copa do Mundo no Catar mostrou ao mundo a força dos coletivos, diminuindo distâncias técnicas com aplicação tática. Seleção campeã, a Argentina mostrou o poder de seu grupo durante toda a competição, mesmo tendo Lionel Messi em exibições de gala. O Marrocos, grande sensação do Mundial, mostrou concentração e aplicação tática de todo o time em todos os confrontos, até na derrota para a França, quando jogou melhor. "Muito interessante. Particularmente me agrada muito que equipes taticamente melhores superem outras individualmente mais fortes. Isso evita que outras seleções se acomodem com o status que já têm por conta do histórico", analisa Tavares. 

O fato de grandes nomes técnicos do esporte como Kylian Mbappé, Harry Kane, Cristiano Ronaldo, Neymar e Messi, para citar alguns, estarem no confronto, pode estimular os adversários na avaliação de Picoli. "Boa parte das melhores seleções da Copa tem jogadores que jogam na europa, mesmo não sendo europeus. Certamente há um estímulo em jogar com equipes tradicionais ou fortes e isso independe da qualidade da sua equipe ou do seu favoritismo ou não. Os atletas geralmente relatam preferir jogar contra os melhores, então, esse tipo de estímulo deve haver", diz o mestre em psicobiologia. 

Seleção Tunísia
Khazri foi o autor do gol da vitória da Tunísia contra a poderosa França de Mbappé.
Foto: Franck Fife / AFP

Para o ex-chefe do Departamento de Análise e Desempenho do Fluminense, a evolução no conhecimento científico é um ativo para a diminuição das diferenças técnicas. O uso da ciência somada a tecnologia, para Lucas Tavares, faz com que clubes e seleções possam melhorar seus resultados. "Já existe muito conhecimento científico de qualidade que pode ajudar a qualquer pessoa entender e buscar estratégias melhores de treino e jogo. Além disso, também existe o conhecimento científico gerado por cada equipe sobre seus jogadores que possibilitam definir estratégias melhores de treino e jogo. Todo esse conhecimento gerado só é possível através de recursos tecnológicos que possibilitam monitorar quantitativamente as ações dos jogadores durante o treino, jogo e até no sono e alimentação. Esses recursos tecnológicos são de fácil acesso, o que possibilita que essas seleções façam uso e melhorem seus resultados", diz o analista de desempenho.

Assistir a um resultado inesperado é um dos fatos marcantes no futebol. Se pararmos para pensar, a Argentina perdeu apenas para a Arábia Saudita na campanha do tricampeonato. A tetracampeã Alemanha foi superada pelo Japão. Apesar de muita ciência em seus processos, o futebol continua sendo imprevisível. Ou como disse o comentarista Benjamin Wright em uma das frases mais famosas do mundo da bola: "Uma caixinha de surpresas".