"Heartstopper" aumenta busca pela representatividade LGBTQIA+ não-fetichizada

Série da Netflix desperta interesse e ascende a discussão pela representação em conteúdos.
por
Giulia Aguillera
Ricardo Dias de Oliveira Filho
|
07/06/2022 - 12h

A série Heartstopper, lançada no final de abril pela Netflix, chamou a atenção do público - principalmente dos jovens - no último mês. A produção tem como foco o relacionamento de Charlie Spring (Joe Locke) e Nick Nelson (Kit Connor), além de trazer diversas discussões sobre homofobia, autoconhecimento, bullying e representatividade. Fora das telonas, a série também despertou, em especial nas redes sociais, debates sobre a importância da representatividade LGBTQIAP+ não-fetichizada em obras cinematográficas e literárias.

Em entrevista à AGEMT, membros da comunidade LGBTQIAP+ relataram suas experiências com esse tipo de conteúdo. "Eu vejo essa representatividade sem fetichização de extrema importância, pois vamos parar de ser vistos, e de nos vermos, apenas como objeto de prazer, juntamente com a descontração de todo um estereótipo em cima de pessoas LGBTQIAP+ de serem promíscuas, pois essa fetichização sempre coloca nossos corpos em situações extremamente sexuais e muitas vezes em contextos totalmente idiotas, fora que corpos de pessoas trans foram o principal alvo dessa fetichização”, contou Nico Angel Faria. Thomas Costa também afirma que falta representatividade no cinema e, quando existe, vem de forma sexualizada. "Isso faz com que a gente se sinta sujo, inferiorizado, nos faz acreditar que nunca vamos ser amados de verdade porque não somos 'dignos' de merecer. A comunidade já sofre muito nas ruas e dentro da própria casa, não precisamos de mais um preconceito disfarçado de apoio", desabafou ele.

Para esses jovens, Heartstopper representa uma nova esperança de serem vistos e de se identificarem com os famosos personagens do mainstream. Karen Arruda, responsável pela Casa Miga - Acolhimento LGBTQIAP+, comenta que esse tipo de conteúdo ajuda também no autoconhecimento. “Eu acho muito importante esse trabalho, essa série […] porque dificilmente a gente fala do romance. A gente fala só do sexo. E o romance existe, então eu acho interessante falar das duas coisas.”

De acordo com a sinopse oficial da série, a obra adaptada das graphic novels da autora Alice Oseman aborda as temáticas de autoconhecimento, descoberta sexual e identitária e relações amorosas. Os adolescentes Charlie Spring e Nick Nelson descobrem que são mais do que apenas amigos e lidam com as dificuldades amorosas e sociais. O primeiranista Charlie se apaixona pelo Nick, veterano popular pelo rugby, dando origem a sentimentos diversos, desde amor até mesmo insegurança e medo. Em oito capítulos, a série conta com 100% de aprovação da crítica especializada no site Rotten Tomatoes.

Nick Nelson (Kit Connor) e Charlie Spring (Joe Locke) em Heartstopper. Foto: Divulgação/Netflix
Nick Nelson (Kit Connor) e Charlie Spring (Joe Locke) em Heartstopper
(Foto: Divulgação / Netflix)

Beatriz Marina, membro da comunidade, conta a importância dos produtos culturais no processo de identificação. "Acho que a gente só precisa de coisas pra se espelhar, 'né'? Tipo aqueles romances que te fazem suspirar. [...] Sendo lésbica, é muito difícil ver qualquer romance não-fetichizado. Então, ver filmes ou séries que não fetichizam ou sexualizam mulheres lésbicas e tratam o assunto com naturalidade é muito importante para nós, porque muda a concepção das pessoas sobre nós”, explica ela.

Segundo Vinicius Grossos, jornalista e escritor, a fetichização dos personagens é maléfica, pois contribui com a criação de estereótipos. "[...] O problema de consumir esses conteúdos que fetichizam relacionamentos LGBTQIAP+, principalmente quando a gente é muito novo e não temos referência, é que a gente pode acabar criando um ideal de relacionamento que não é alcançável e nem saudável."

Perguntado se algum paciente já chegou à clínica relatando que não se sente tão bem representado pelas obras em geral, Dr. Airton Rocha, psicólogo clínico da Pride Mind, clínica de Saúde Mental e Emocional LGBT+, responde que principalmente os adultos resgatam a própria história por meio dessas representações. "Metaforicamente, imagine uma argila. Talvez o produto cultural venha como uma água que amolece a argila, mas o trabalho que ele vai fazer ali, para dar uma forma para aquilo, não depende tanto assim do estímulo. O estímulo é um início, um pontapé, ele é como uma energia de ativação, mas não sustenta o processo como um todo."

Por outro lado, obras como Heartstopper têm um papel importante para produções culturais , de forma geral. Isso porque abre espaço para mais produções LGBTQIAP+ na indústria e contribui para a diversidade das representações. Karen ainda ressalta que trata-se de uma comunidade plural e, por isso, quanto mais representatividade, melhor. "Nós somos várias coisas: nós temos profissões diferentes, somos pessoas diferentes vindas de contextos diferentes [...] Então, quanto mais dessa diversidade estiver presente nesses conteúdos, melhor é", explica. O escritor Vinicius complementa: "[...] a armadilha da fetichização é colocar todo um grupo de pessoas dentro de uma caixinha para uma grande massa, como se fossemos só isso ou aquilo."

Tornando-se mais que uma série, Heartstopper ganhou espaço e atenção de jovens de dentro e fora da comunidade. Thomas Costa relata a importância do conteúdo para si. "Um exemplo de conteúdo LGBTQIAP+ com representação sem fetichização é a série Heartstopper, que aborda várias sexualidades e identidades de gênero de uma maneira leve e super tocante, que faz a gente se sentir acolhido e perceber que somos muito mais do que imaginamos. É desse tipo de coisa que precisamos, não de um bando de séries e filmes onde o foco é nos transformar em bonecos sexuais."

O cinema e a literatura, assim como qualquer outra manifestação artística, têm o papel não só de representar a realidade, mas também de trazer enfoque para os problemas e pautas presentes na sociedade. Mesmo que fictícias, elas estabelecem diálogos com temas atuais, como violência, política e outros movimentos sociais. Por isso, é comum que séries e outras obras - sejam elas escritas ou audiovisuais - sejam assunto de discussões que permeiam as redes sociais e as rodas de conversa.

Quanto a isso, Dr. Airton relata: "Quanto mais a sociedade, como um todo, vai tendo abertura para ir sendo diluído, conversado e questionado, formas diferentes de ser. Não só formas de praticar sexualidade ou de expressar a identidade de gênero, a gente vai conseguindo ter público, não só dentro da própria comunidade, mas de curiosos, pessoas que simpatizam e buscam compreender melhor. É aí que eu entendo que é quando a gente começa a chegar em representações culturais no estilo de Heartstopper, onde você consegue ampliar a discussão mas por uma conquista antropológica e sociológica de conseguir ser melhor comunicada com a população em geral."

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