A fome se manifesta sorrateiramente no Brasil

A insegurança alimentar no Brasil ultrapassou quatro vezes a média global em 2021, fazendo com que cerca de 15,4 milhões de brasileiros estivessem dentro das estatísticas de vulnerabilidade
por
Victoria Leal
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19/11/2022 - 12h

De acordo com um relatório das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) publicado em julho deste ano, o número de brasileiros que passaram a integrar o cenário da insegurança alimentar passou de 60 milhões, dos quais cerca de 15,4 milhões se enquadram na classificação grave.

Uma pesquisa global realizada pela empresa de pesquisa de opinião dos Estados Unidos, Gallup, mostrou que, dentre 120 países (desenvolvidos e em desenvolvimento) a crise de gestão alimentícia do Brasil passou quatro vezes a média global do ano de 2021.

O que é “Insegurança Alimentar”?

Além da fome, pobreza ou da desnutrição, a insegurança alimentar é a condição do indivíduo que não tem acesso regular e consistente a alimentos que satisfaçam suas necessidades, seja dentro da esfera física, social ou econômica. Essa condição diminui a variedade nutricional das refeições e interrompe o padrão tradicional da alimentação.

Esse cenário pode ser categorizado em três níveis:

  • Insegurança Alimentar Leve: quando se tem acesso aos alimentos, mas com a incerteza de sua constância;
  • Insegurança Alimentar Moderada: quando a variedade e qualidade dos alimentos que antes eram consumidos é comprometida, de forma que se tenha uma redução ou corte de refeições;
  • Insegurança Alimentar Grave: quando o indivíduo chega ao estágio de passar fome, não há condições para uma alimentação minimamente nutritiva e há o intervalo de mais de um dia entre as refeições.

Essa circunstância se dá pelo agravamento das condições socioeconômicas causadas pela pandemia, de maneira adicional aos problemas que já eram estruturalmente nocivos para a sociedade, como a fome, a desnutrição, a pobreza e uma série de fatores que ainda hoje impedem a parcela mais vulnerável da sociedade de firmar estabilidade.

Em entrevista, o estudante Pedro Henrique, de 19 anos, afirma que após o início da pandemia, quando a inflação começou a subir mais rápido que o reajuste salarial e a mãe ficou desempregada, um salário-mínimo já havia deixado de ser suficiente: “conforme a nossa renda foi diminuindo, nós fomos deixando de consumir a maior parte dos alimentos que consumíamos antes, a variedade foi de um prato minimamente balanceado para outro que se resumia a arroz com ovo”.

Pedro ainda reforça que os efeitos causados pela insegurança alimentar são muitos e vão desde um sentimento de injustiça até uma apatia com a vida. Vale ressaltar que as pessoas nessas condições convivem com tamanho desamparo ao ponto de distribuírem sua pouca renda em despesas urgentes e que nem sempre conseguem se equipar de insumos básicos para a vida cotidiana, como produtos de limpeza, higiene, roupas e alimentos: “Era extremamente difícil ir dormir, às vezes, com fome, sabendo que o dia seguinte seria igual e que os meus amigos estavam em uma situação melhor que a minha [...] A falta dos produtos de higiene e a falta de comida me davam o sentimento de humilhação”.

Brasil, um copo meio cheio ou vazio?

Por se tratar de um país com condições continentais, o Brasil possui um sistema de “Estoques Reguladores”, que funcionam como reserva de emergência em casos de altas demandas sazonais para que o mercado possa minimizar os efeitos da inflação e incertezas socioeconômicas. Disponível no site da Companhia nacional de abastecimento (CONAB), é possível acessar o portal de transparência da Gestão dos Estoques Públicos e através disso ver a posição, venda, doação, aquisição e remoção das reservas, como também monitorar perdas e armazenamento.

Durante sua atividade política, o ex-presidente Michel Temer propôs acabar com os estoques reguladores e deixar o mercado se autorregular, o que proporcionaria danos irreversíveis aos brasileiros economicamente desamparados, tendo em vista os reflexos da inflação. Entretanto, mesmo com o não cumprimento da proposta, o Brasil se encontrou em uma situação extremamente sensível com o início da pandemia, na qual o número de pessoas em situação de rua aumentou exponencialmente, junto a questões sociais de desamparo populacional.

A voluntária Jô Mainardi, formada em relações públicas, junto a dezenas de outras pessoas, deu sequência a um projeto de iniciativa privada, anterior à pandemia, para ajudar pessoas em situação de rua, entretanto com a COVID-19, Jô e outros colaboradores notaram o aumento do número de pessoas que precisavam de auxílio socioeconômico, então reformularam o projeto de maneira que cada um deles passasse a produzir marmitas em sua própria residência, de acordo com o volume e as condições que pudesse.

“Quando trabalhamos juntos antes da Pandemia, nós nos juntávamos uma vez por semana para cozinhar, isso rendia algo em torno de 150 marmitas. Com o isolamento e cada um cozinhando na sua casa, nós conseguimos juntar ainda mais colaboradores! Conseguimos chegar a uma produção de 4 mil marmitas semanais nesse esquema. Um trabalho de formiguinha, mas que no final ajuda muita gente!”, explica ela, posteriormente a iniciativa se transformou na ONG “O Amor Agradece”, responsável pela distribuição de alimentos, roupas, produtos de higiene e calçados, além de fornecer apoio para famílias carentes que passam pela insegurança alimentar em São Paulo.