“Ela foi o ‘nosso Martin Luther King’” diz Bruno Paes Manso

Em novo livro o pesquisador traz detalhes sobre a milícia brasileira e a relação desses grupos com a morte da vereadora Marielle Franco
por
Artur Ferreira, Gabriela Neves e Natasha Meneguelli
|
09/12/2020 - 12h

O jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), Bruno Paes Manso, acaba de lançar seu novo livro “A república das milícias: Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro”.

Na obra ele explica diversos aspectos das pessoas que entram para a milícia, a construção desses grupos e seus embates no estado do Rio de Janeiro. Além isso, conta detalhes das investigações do assassinato da vereadora Marielle Franco.

Em entrevista, o pesquisador afirmou que a política brasileira foi o nosso Martin Luther King ao lutar e mostrar para a população das comunidades cariocas que o futuro poderia ser diferente e menos violento. Principalmente, para os jovens que não deveriam se render ao sistema do crime organizado.

Bruno também fala do envolvimento da família do atual Presidente da República com  milicianos e da guerra aos excluídos da sociedade: “O Bolsonaro disse isso na televisão, a solução pro Brasil é uma guerra civil […] Essa guerra ao crime, essa guerra aos bandidos, é guerra aos negros, aos pobres, às pessoas que são vistas como perigosas”, afirma o pesquisador.

Além deste livro, o jornalista também escreveu “A guerra: A ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil” (Todavia, 2018), em parceria com a pesquisadora Camila Nunes Dias.

 

Confira a entrevista na íntegra:

Artur, Gabriela e Natasha: Bruno, acho importante pontuar para o leitor sobre quem é o miliciano, qual o perfil de alguém que entra para a milícia e o que difere do tráfico? E necessariamente todo miliciano é um policial?

Bruno Paes Manso: Quando começaram as milícias, esse modelo miliciano, por volta dos anos 2000, eram policiais, ex-policiais, e pessoas ligadas à segurança privada, os chamados penteados, que eram pessoas que circulavam nesse mercado de proteção, de segurança, tanto público como privado. Na polícia militar, civil, exército, corpo de bombeiros, como na segurança privada, que também é imensa. Um dos que eu entrevisto no primeiro capítulo, inclusive, tentou ser policial, não conseguiu, ele entrou no setor de segurança privada e foi para as milícias. Com o tempo isso vai mudando um pouco, principalmente quando tem uma série de prisões. Os grupos começam a brigar, a matar entre si, o que começa a mudar mais esse perfil, e pessoas ligadas aos territórios que as milícias dominam passam a entrar, sendo policial ou não. Mas sempre a conivência dos batalhões e das delegacias é importante. Mesmo não sendo policial, existe um modelo de negócio que inclui a participação da sociedade, a parceria, de membros da segurança pública nos territórios.

AGN: Outro ponto que é crucial para entender esse cenário que nasceu no Rio de Janeiro é o modelo de negócio da milícia. Se existem registros de milicianos que também traficam drogas, então qual é a diferença entre o tráfico e a milícia?

B: A polícia começa a ganhar muito dinheiro com tráfico. Primeiro nos anos 80, porque o tráfico de drogas é um negócio muito rentável, que gera muito lucro. A partir do momento que o cartel de Cali passa a exportar cocaína na América do Sul pelo Rio de Janeiro, São Paulo, num mercado interno importante aqui no Brasil, mas também no corredor de exportação, essa commodity passa a fazer parte da cultura urbana nessas cidades. Os grupos de tráfico começam a ganhar muito dinheiro, principalmente por conta da venda do varejo, da droga, e tudo o mais. Com o passar do tempo a polícia descobre formas de também lucrar com isso, tanto com a venda de armas, no Rio isso é bem importante, como no desvio de munições para esses armamentos. E com as operações de guerra, eles passam também para o modelo de policiamento no Rio, ao contrário dos demais estados, em São Paulo também não é assim, de invasões a morros, para supostamente fragilizar o tráfico. Mas muitas vezes eles pegam droga e arma para vender no mercado paralelo, e para chantagear e extorquir os traficantes, no pedido de arrego, que é justamente pra evitar que certos grupos sejam mais ou menos visados. Uma espécie de leilão. No caso da polícia civil, também muito próxima dos jogos de azar, das máquinas de caça níquel, que é um tipo de parceria que rende muito dinheiro para eles. Isso começa a mudar a partir dos anos 2000 quando ao invés de chantagear os criminosos eles começam a protagonizar o crime e dominar os territórios, para extorquir os moradores com taxa de proteção, de segurança, os comerciantes vendendo terrenos em áreas protegidas, imóveis em áreas irregulares, mercado de gás, de internet e tudo isso que a gente vai conhecer. Desde o kit churrasco até o cigarro do Paraguai. Tudo vira receita nesses territórios dominados pelos grupos milicianos, e aí o tráfico de drogas entra nessa também. Eles passam a organizar mais essa fonte de receita, nesses territórios que eles dominam. E é o tráfico de drogas principalmente, com uma parceria do TCP, Terceiro Comando Puro.

AGN: As características da milícia, ela vai se assemelhar com outros grupos criminosos ao redor do mundo? No contexto da América Latina. Você citou o próprio cartel de Cali, o cartel de Medellín. Também surgem grupos paramilitares na Colômbia nessa mesma época. Esses grupos têm comparações com outros ou eles são muito únicos do contexto carioca.

B: Eles são muito próprios do contexto carioca, mas é possível fazer alguns paralelos, porque eles ganham legitimidade e apoio da população por se venderem como o inimigo atual do tráfico de drogas. No caso da Colômbia e do México os grupos paramilitares passaram a ter influência nos governos como oposição e como exército inimigo dos cartéis.  Como uma forma de você enfrentar os cartéis. No caso do Rio também, as milícias têm esse discurso. Essa autodefesa comunitária feita pela polícia, os policiais moradores dos bairros que eles passaram a controlar. Sempre com essa justificativa de que o tráfico de drogas é um problema que eles vão ajudar a livrar a população. E assim também que eles vão se infiltrando no governo, no Ministério Público, na justiça, tem uma aceitação maior das instituições do estado que tem uma dificuldade maior em lidar com o tráfico. Então esse paralelo é possível.

AGN: É importante também citar que no livro, no início, você fala da relação do tráfico com a consolidação da milícia. Em um momento do livro, você usa um conceito criado por traficantes que era o de apelidar a milícia de o “Comando Azul”. Essa simbologia de nomes mostra o que dá visão que o tráfico possui da milícia? A relação entre ambos é sempre de conflito?

B: No caso do Terceiro Comando Puro com as milícias não, eles são próximos. Mas tem, não fui eu que chamei, circulou, os policiais, os jornalistas de lá, que apelidaram de “Comando Azul” em determinado momento. Por causa da cor das fardas da Polícia, já o Comando Vermelho, o nome surgiu também em 1979 quando a Falange Vermelha surge também pela imprensa com uma conotação meio ligada aos grupos guerrilheiros, porque eles tinham trocado informação, conversas em Ilha Grande com outros grupos, então os delegados apelidaram de Comando Vermelho, Falange Vermelha. No caso do Terceiro Comando a cor é verde. Mas é interessante – o ADA [Amigos dos Amigos] é amarelo, porque tem alguns aspectos simbólicos que são interessantes porque no fundo eles, apesar dessa rivalidade muito profunda e violenta que existe, eles são muito parecidos na essência. A principal diferença são os paramilitares, que usam farda. Basicamente a diferença é essa, são igualmente violentos e criminosos. Uma tirania violenta que quer ficar rica por meio da venda de drogas, impondo o terror para tentar estabelecer o seu poder territorial.

AGN: E Bruno, entrando principalmente na linha narrativa do livro, você primeiro começa com a entrevista com o Lobo que você dá o apelido pra esse esse miliciano, esse ex-miliciano, [Bruno confirma a informação]. E você vai explicando que existe um conceito de justiça nessas comunidades, e que não é só no Rio de Janeiro, aqui em São Paulo também, a gente muito por conta do contexto do PCC. E lá você vai explicando esse contexto, citando episódios da vida do Lobo. E você poderia explicar o que leva o jovem a crer que entrando no grupo que gera violência, ele vai ter paz, vai ter ordem na comunidade dele.

B: O que levou 60 milhões de pessoas a votarem em um candidato que durante 27 anos defendeu a morte e a violência paramilitar contra bandidos? A gente não está mais falando de justiceiros localizados territorialmente nas periferias, como eram nos anos 80, como aconteceu na Baixada Fluminense. A gente tá falando agora de um país, que apesar de ao longo da história, e se imaginou que com o passar e o fortalecimento das instituições democráticas iria mudar, que iria ter um processo civilizatório que diminuísse a violência, os homicídios e a violência policial, a gente chega em 2018 elegendo o grande apologista dos justiceiros. O cara que falava que os grupos de extermínio da Bahia tinham que ser importados pro rio, o filho tentava legalizar as milícias, ele falava que no Carandiru tinha morrido pouca gente, tinha que morrer mais de mil presos, ele sempre foi um apologista dessa violência paramilitar. Por quê? Por que as pessoas engolem isso e por que isso persiste há tanto tempo? Eu venho entrevistando homicidas, né, e depois eu pesquisei o PCC, é uma coisa que é muito presente em territórios ou em sociedades com instituições políticas e demonstrativas frágeis, é uma constante sensação de vulnerabilidade e a crença de que o resgate da autoridade só pode ser feito por meio da violência. Então o homicídio e a violência nesses casos eles não são um problema em si, nesses casos é uma solução para o problema da ameaça de desordem, da ameaça de caos. Isso é muito forte. Eu lembro uma vez que eu fui fazer uma palestra nos Céus, Centros de Educação Unificados, tinham várias professoras, era um ambiente que eu imaginava muito amigável. Estava o Suplicy nessa conversa, tinha um rapper do Hip hop, e eu falando dos direitos humanos, uma audiência muito grande. E de repente uma senhora levantou, quando acabou a palestra, levantou a mão e perguntou: “olha, é o seguinte, meu filho foi assassinado em um roubo aqui na periferia e você tá falando de direito humanos. Eu queria saber o que você fala pra uma mãe como eu que perdeu o filho dela assassinado por um ladrão”? E a audiência inteira começou a bater palma, e eu fiquei com cara de otário no palco, é muito difícil eu falar e responder nessa situação. Mas é como se ela estivesse falando, “falar é fácil, mas se a gente não matar o ladrão, se você ficar defendendo o ladrão, a situação não se resolve”. Você desconstruir essa crença pra pessoa que vive uma imprevisibilidade cotidiana, uma violência, assaltado no ponto de ônibus. Esse tipo de ação covarde dos ladrões, e essa sensação de vulnerabilidade, ela acaba demandando algum tipo de solução, e o homicídio passou ao longo do tempo a seduzir as pessoas que acreditavam equivocadamente que isso podia ser uma solução para o problema. E a gente não conseguiu desconstruir isso, até achava que estava conseguindo, a Nova República vinha avançando e a democracia se fortalecendo. E a gente chega em 2018, com o grande defensor dessa forma de enxergar as coisas, sendo eleito presidente do Brasil com 60 milhões de votos.

AGN: E Bruno, ainda dentro esse imaginário popular de justiça e de “o bandido bom é o bandido morto”, essa mensagem acaba aparecendo também. Você vai falar de uma das milícias mais importantes nesse contexto, que é a Liga da Justiça. E eu como uma pessoa que cresceu vendo desenhos animados de Batman, Superman, Mulher Maravilha, lendo quadrinhos e queria saber isso de você, como foi analisar alguém que usa o símbolo do Batman e é um executor dependendo da situação...

B: É engraçado! Não, super legal essa sua pergunta! Primeira vez que me fazem, e eu tô dando muita entrevista, ela é boa! Não deixa de ser interessante que o Batman é um justiceiro, é um vigilante, ele tem toda uma moralidade própria, ele não deixa de ser um representante dessa ideia de vigilante, porque é numa cidade, Gotham, em que você não acredita em ninguém, não acredita no governo, na polícia, nas instituições, então o Batman que tem uma moralidade, o herói, super da elite tradicional de Gotham City, um cara muito bem educado, que tem esse lado sombrio e essa busca por justiça. E ao mesmo tempo ele não ultrapassa certos limites, ele evita matar, tem uma nobreza também. E, você sabe que um dos primeiros matadores e a Liga da Justiça ela surgiu porque tinha um policial matador que chamava “Batman”, e tinha um outro policial que as pessoas apelidaram de “Robin” e ele era um cara muito famoso na Liga da Justiça, e muito violento, inclusive, e por causa disso se ganhou o apelido. O Jerônimo e o Natalino, que eram dois dos chefes, me contaram e disseram que não era nada disso a história, e que na verdade eles ganharam esse nome porque quando eles eram candidatos a vereador eles saíam com esses trios elétricos para fazer campanha nas comunidades, nas favelas, tipo essas charangas com super herói, para atrair as crianças, pra fazer festa, e eles me disseram que era por causa disso. Mas, tem essa outra versão, que era por causa do Batman, que era super violento e tinha um parceiro que chamava Robin. O primeiro livro que eu escrevi, quando eu comecei a entrevistar os homicidas, quando eu comecei essa pesquisa 20 anos atrás, esse livro foi lançado em 2005, se chama o “Homem X”. E ele partia de uma entrevista que eu fiz com vários matadores, mas um deles, eu perguntei, “não vou poder usar o seu nome, você tá me contando sobre vários homicídios que você cometeu, então como é que eu posso te chamar”? E ele sugeriu “Wolverine”, “me chama de Wolverine”. E eu o entrevistei em 99, o X-Men não era muito conhecido ainda, tava começando, tinha o desenho na Record, e era por isso que ele sugeriu, não tinha o filme, não tinha toda essa franquia, tinha os quadrinhos, óbvio, mas não toda a franquia ainda que se tornaria popular. E eu achei uma metáfora super legal, por isso inclusive que eu usei o Homem X eu fiz referência a esse apelido, que ele se enxergava. E ele já tinha matado mais de 40 pessoas, já tinha perdido a conta, entrevistei ele porque eles praticavam chacinas, numa época que tinham 100 chacinas por ano em São Paulo, e chacinas é quando tem mais de três pessoas mortas, então era uma cena caótica. E eles ficavam matando entre si, porque tinham vinganças que começavam a acontecer a partir do momento em que um amigo deles era morto, eles iam lá e matavam o que matou o amigo, e o amigo do que morreu matava, então eles ficavam 10 anos se matando. Às vezes entrava uma terceira quebrada, e o “Zé povinho”, que era a galera que morava no bairro mas que não fazia parte em absoluto desse cenário, a não ser como mãe, prima e tal, mas estavam completamente de fora, eles eram o Zé povinho pra quem eles estavam pouco se lixando. Então um deles chegou a me descrever um tiroteio num parquinho de diversão num domingo a noite e ele me contou: “e tal pessoa correu pra lá e eu atirei”, mas eu falei, “esse parque tava vazio?” “Não, tinha gente”, e eu falei “p*rra, você só tá me contando dos caras, mas alguém morreu, alguém foi vítima de bala perdida”?! E aí, esse X-Men ou esse Wolverine, de alguma forma a disposição para matar, fazia com que ele se enxergasse como um super herói mesmo, porque de fato é um super poder, é quase uma evolução da espécie você ter a disposição pra atirar em alguém, pra matar alguém, você passa a ser um ex-humano, praticamente, e você ganha um super poder que quem não tá disposto a matar não tem. E ele só se importava com os outros ex-humanos, e eles ficavam nesse universo. E o Zé povinho, que eram os frágeis, os pouco poderosos, não tinham muita importância nessa lógica, nessa dinâmica, nesse universo masculino, da guerra e da segurança pública, e do medo, e no fundo é a tônica do que vai ser esses conflitos em diferentes níveis, em diferentes tipos de organização, mas sempre com pessoas se enxergando nessa guerra, nesse conflito, e eles tão pouco se lixando pro resto.

AGN: Outro ponto importante é o cinema, o que ele já retratou essa relação, você cita no livro o lançamento do “Cidade de Deus”, e você acabou de descrever um pouco da história do filme, que é esse ciclo de vingança, pode falar o que mudou nesse período? Você cita também a morte de Tim Lopes, que converge na mesma situação.

B: Cidade de Deus é um filme muito importante, tanto o filme quanto o livro do Paulo Lins, que inclusive escreveu na quarta capa do livro, sou “fanzaço” do livro, do Lins que é uma grande figura, do filme e do Meirelles também. O filme foi um divisor de água no cinema brasileiro, mas eles falam de um período do final dos anos 70, que no livro eu também descrevo, a partir da testemunha do Ailton Batata, que deu o testemunho pra Alba Zaluar em 2017. Alba Zaluar era uma orientadora, professora, uma antropóloga, que morreu no ano passado e que era orientadora do Paulo Lins quando ele começou a fazer o trabalho de campo na cidade de Deus, e era final dos anos 70, começo dos 80, quando a cocaína ainda estava começando a chegar, a venda de drogas ainda era pouco importante. Os ladrões de Caxangá, de casa, eram os principais criminosos do bairro, muito poucos, mas que já eram muito temidos. Mas, ao mesmo tempo o imaginário das pessoas, do medo e do fato de aquele bairro ter negros, pobres e pessoas perigosas, isso sempre foi a tônica da cidade e da violência da cidade. Esse medo, resultado do racismo estrutural histórico, um dos problemas raciais que a gente vive, os estigmas e tudo mais, justificava contra esses bairros uma ação violenta pela polícia nesses bairros, um abuso em todos os sentidos, de invasão de casa, de moradores, de esculachos constantes. As polícias passam, diante desse medo grande e muito profundo, enraizado, histórico e estrutural, a lidar com esses bairros como lugares onde vivem os inimigos, e passam a mandar, constantemente, tropas do exército para matá-los, prendê-los, e é quem vive nesses lugares passa a se enxergar como inimigo da cidade, é um drama grande, ainda mais que a maioria ainda tem que trabalhar. É muito disso que as facções vão usar pra seduzir a molecada que vivem nesses bairros, de “olha, o estado e o sistema te odeiam, eles querem te matar ou te trancafiar, te jogar numa jaula, vamos bater de frente contra esse sistema, você morre antes dos 25 ou você é preso, mas não vamos abaixar a cabeça”. Então, a gente começa a construir esses jihadistas típicos das periferias e dos grandes centros brasileiros. Pessoas que preferem morrer antes dos 25 anos mas que não querem baixar a cabeça pra esse sistema que os quer humilhar. Tudo isso é muito triste, é muito cruel, a gente produz isso, a gente acha que tá solucionando as coisas e tá criando problemas piores.

AGN: E, Bruno, acho importante pontuar isso também, que você fala no livro algumas vezes que o jovem vê a escolha na milícia, vê a escolha no tráfico e pouco lembra de viver de acordo com a lei, e achar outra maneira. E vão ter personagens na história do Rio que vão querer ver de outra maneira, achar outra solução e você cita a Marielle, uma pessoa que vai fazer uma carreira acadêmica, uma pessoa que vai militar contra isso, tem uma origem humilde e vai ser vítima disso [a violência]. Você pode contar como foi investigar o caso e contar isso, falar dos assassinos e dessa relação política.

B: Eu só acho o seguinte, eu não acho que poucos jovens vão pra esse lado. Respeitam as leis e muitos vão pro crime, mas, o que acontece, quando a gente é adolescente, principalmente homem porque isso tá muito ligado a masculinidade, você tem identidades a serem escolhidas e traçadas para virar adulto. E, o que o crime passou a usar para seduzir a molecada foi justamente esse discurso antissistema de: “olha, o seu pai decidiu abaixar a cabeça pro sistema, decidiu pegar ônibus e foi humilhado pela polícia e morreu como um tiozinho, zé ninguém e você pode ser o cara! Bater de frente! Você morre atirando porque esse sistema só quer te ferrar, só quer te fuder. Então vamos bater de frente com esse sistema, fazer uma carreira no crime porque pelo menos a gente mantém a honra”. E quando o garoto tá formando sua identidade, a gente tá disputando com esse discurso, e a gente tá tentando falar que isso é uma grande ilusão, pode ser sedutor, mas, as pessoas que foram seduzidas por ele e hoje estão com 40 anos, 45 anos, e estão presos. Porque tem um monte de gente querendo matá-lo, ele não tem nenhum amigo, não tem mulher, não tem filho, ou se tem ele precisou pisar na bola e ser egoísta. Porque é uma vida egoísta. Então é uma escolha de alguém que precisa abrir mão de alguém de vários laços sociais pra seguir um caminho material e egoísta, na essência. Então, quando o cara entrou na onda assim, quando ele estava no embalo e ele vive aqueles 4, 5 anos se achando o X-Men ele tá se achando, ele tá curtindo ainda, mas, ele começa a perceber que é uma puta de uma roubada. E todos que eu converso e que conseguiram sobreviver falam isso “se eu pudesse eu saia, se eu pudesse falar pra alguém não entra, é uma puta de uma roubada”! Só que a gente não consegue mostrar e não consegue ganhar muitas vezes essa molecada, e como é que a gente ganha? É abrindo portas, abrindo janelas, pela cultura, pela arte, pela construção de um estado que garanta uma certa sensação de segurança, que permita falar de amor, de solidariedade, com muito mais participação das mulheres. E a Marielle, acima de tudo, era essa voz feminina das periferias, ela era essa voz que vinha com esse discurso “olha, gente vocês estão errados, isso é um discurso masculino equivocado, a guerra não leva a nada, a violência não leva a nada”. E esse era um dos motes dela “quantas pessoas vão ter que morrer até que essa guerra acabe”? Ela tinha inclusive o lema da campanha “Ubuntu”, que vem da África do Sul, do Mandela, do 15º, quando o Mandela é eleito presidente no pós-apartheid e propõe uma solução política e revê a história do Apartheid e fazer uma espécie de “Comissão da Verdade” e falar dos problemas do que aconteceu, mas, não pra haver um grande racha da sociedade, mas, pra propor pra partir pela política e caminhar pra frente. Então, ela tinha muita essa visão conciliatória, essa visão ao mesmo tempo muito corajosa de uma mulher e de chega da guerra, a solução é a política. E ela era a representante desse discurso antiguerra, né, e por isso que eu acho que ela é tão significativa, ela representa tanto. E ela foi o “nosso Martin Luther King” simbolicamente de tudo que ela representava, num momento muito especial, pouco antes da eleição do Bolsonaro, ela era anti-mensagem do Bolsonaro, era outro tipo de visão.

AGN: E Bruno, ainda nessa estrutura política, nessa estrutura de incentivo a jogar milhares de jovens nesse cenário, você disse que teve um espanto ao analisar profundamente. Você citou que viu a estrutura da milícia e do tráfico se compararem por fuzis, pela quantidade de fuzis que eles tinham. E você como alguém que veio do contexto paulista, e tinha mais essa análise do PCC e desse contexto que a gente tinha em São Paulo, e como você vê essa estrutura, as diferenças entre cada uma, e você poderia citar outros espantos que te gerou essa investigação no Rio?

B: Lá no Rio tem muitos fuzis, e foi muito recorrente eu ouvir isso dos traficantes, e das pessoas que estão envolvidos nessa cena, essa comparação: “no meu morro tem 400 fuzis” ou “quando eu era chefe tinha 100 fuzis”, “as milícias tem 800 fuzis”, e todo poder criminal sendo medido por fuzis. Então, a compra, essa guerra fria, essa corrida quente e fria, mas, essa corrida armamentista faz parte da cena do Rio. O mercado de fuzis é estrutural pro problema da cidade. E, também como a polícia está completamente envolvida nessa cena e como acaba sendo protagonista dessa cena e tal. Aqui em São Paulo ainda existe essa divisão de “crime e polícia”, por mais que a polícia também tenha seus esquemas e também mate, e tenha vários problemas e muitas vezes, principalmente pós-Bolsonaro, você vê que tem uma série de notícias de negócios de policiais em algumas quebradas vendendo terreno, vendendo gás, será que é um princípio de milícia? Sempre na iminência de perder o controle da polícia. E, isso de fato acontece pela violência da polícia de São Paulo você corre esse risco, mas, ainda não, os próprios oficiais da polícia conseguiram por enquanto zelar, mas, estão sempre aí na iminência “será que perde o controle, será que não perde”? Mas, no Rio não, no Rio já foi, já foi embora, e precisa reinventar a polícia, porque a situação é muito complicada.

AGN: Bruno, aproveitando que a gente já falou da Marielle, eu queria falar mais desse contexto político. No livro, você relata a questão do Bolsonaro, a família Bolsonaro, com as milícias e queria que você comentasse um pouquinho se essa relação deles, política – temos aí um presidente eleito, é uma forma de institucionalizar a milícia e de levar ela para outros lugares do Brasil, você também citou um pouco agora de São Paulo.

B: Eu acho que apesar da milícia estar infiltrada na instituição, ela se caracteriza por ser paramilitar, e você ter um presidente que seja um defensor das milícias ou políticos que defendam essa violência paramilitar é o melhor dos mundos para eles, porque eles ganham dinheiro no mercado informal. Então, se eles virarem “Estado” eles entram pra formalidade e até perdem a característica que permite que eles fiquem ricos, que é justamente organizar e negociar no mercado ilegal, tanto armas, munições e tudo isso. Mas, você ter amigos “costas quentes”, e parceiros costas quentes, quando você consegue ter políticos simpatizantes é o melhor dos mundos, você consegue eleger pessoas, e manter essas pessoas no poder eles vão ficar fortes. E é algo que a gente tem visto com a eleição do Bolsonaro e o crescimento da violência policial no Brasil inteiro, foram 3 anos de recordes seguidos. O modelo de negócios do Rio já é uma fonte de inspiração pra outras ideias, para serem reinventados em outros estados, de acordo com as histórias e com as oportunidades criminais do estado. Agora, quem sabe, isso é um pesadelo de 4 anos que nós estamos vivendo e nas próximas eleições isso acabe? Eu acho que, enfim, a gente teve aí 33 anos de Nova República relativamente civilizada, uma democracia que com todos os problemas se manteve, um país que progrediu no ponto de vista civilizacional e cidadão e tal. Mas, que a gente entrou nessa imensa depressão coletiva em 2018 por uma série de problemas políticos, econômicos, fiscais e tal e que elegeu Voldemort, falando em personagens, né. E achou que o Voldemort era a solução, ou o Capitão Feio da minha época de Mônica e Cebolinha. Então, “vamos escolher o vilão para governar já que os heróis não conseguiram”.

AGN: E Bruno, e essa questão da pandemia e a família Bolsonaro estar envolvida com a milícia, você acha que eles continuam [juntos] ali ideologicamente ou mudou alguma coisa nesse contexto atual?

B: Não, eu acho que o Bolsonaro se tem assim uma grande qualidade, me parece assim quanto a isso não se pode negar, é a honestidade de falar tudo que ele pensa, inclusive coisas que os próprios militares sempre tiveram vergonha de assumir nos porões, como a tortura e o assassinato. O Bolsonaro defendia o pau de arara numa bancada do Congresso, em uma CPI do Banco Central ele falou que tinha que colocar no pau de arara o ex-presidente do Banco Central porque aí ele ia começar a falar, e defendia a tortura em plena sessão oficial de CPI. Defende assassinatos, defende guerra civil, ele sempre defendeu e foi um apologista da violência paramilitar e sempre desacreditou a constituição de 1988, tanto ele como uma série de pessoas no Exército inspiradas e norteadas pelo Carlos Brilhante Ustra, além de ser um dos principais combatentes e torturadores dos portões da Ditadura Militar, foi um dos ideólogos importantes desse grupo que dizia que a Nova República era a grande derrota do Regime Militar e dos militares, porque tinha colocado guerrilheiros nos postos de comando. E o grande desafio do Exército era vencer a batalha ideológica que eles estavam perdendo pros comunistas e esquerdistas que estavam nas universidades, nas escolas, nas artes, em todos os campos culturais, eles perderam a batalha da cultura, depois vai dialogar com Olavo de Carvalho e com esse loucões que a gente vai conhecer agora nos tempos de hoje, que antes pareciam figuras que a gente dava risada e viviam sozinhas no mundo, e que não ameaçavam e por algum motivo isso a criar uma força quase, voltando a falar do Voldemort, uma Sonserina se articulando e o “mundo das sombras” vindo à tona. Esqueci o que você tinha perguntado, e você vê, vou divagando e vou fugindo da sua pergunta.

AGN: Da questão da pandemia e se mudou alguma coisa.

B: Então, ou seja, eu tô dizendo tudo isso pra dizer que eles são muito convictos dessas bobagens todas e dessas teorias conspiratórias. Eles acham que eles são os vilões e eles são os mocinhos! E a gente votou neles. Votou nos caras que queriam destruir o Brasil, diziam que tinham que matar 30 mil pessoas, o Bolsonaro disse isso na televisão, a solução pro Brasil é uma guerra civil, “enquanto não morrerem 30 mil pessoas ou menos isso aqui não tem jeito”, é uma pessoa que despreza as pessoas que vivem no Brasil! Essa guerra ao crime, essa guerra aos bandidos, é guerra aos negros, aos pobres, as pessoas que são vistas como perigosas! Isso é uma coisa evidentemente racista! Isso é autodestrutivo, é uma pessoa que odeia os brasileiros. Isso é muito triste, a gente fazer essa escolha suicida, escolher o vilão, pra mandar na gente, né, e inverter as coisas, e ele justifica essa guerra dizendo que os vilões são os “outros” que não concordam com ele. E por alguma forma ou maneira, um motivo, que espero que passageiro e talvez muito veiculado a tristeza, muito veiculada ao desespero, a crise que houve em 2018 a tudo isso.

AGN: E, Bruno, indo para a reta final da nossa conversa que foi um prazer e nós gostamos muito de tirar essas dúvidas e bater esse papo, eu preciso fazer uma das perguntas que eu mais queria fazer para você que é ainda no imaginário popular e de “a gente eleger o vilão”, uma coisa que eu também cresci vendo foram os filmes de Máfia, como Scarface, Poderoso Chefão, entre outros clássicos do cinema. E você narra de uma forma muito cinematográfica, o que me lembra Tropa de Elite e Cidade de Deus, e você narra a prisão do Queiroz e fala que na sala em que ele estava quando foi preso havia um cartaz do AI-5 [Ato Institucional Número 5], e um boneco do Tony Montana do filme Scarface. O que o imaginário de um miliciano que tinha tanta influência tanto no governo quanto fora, mostra sobre o Brasil e sobre nós, e sobre o que este país está virando?

B: Precisa dizer alguma coisa?! Não precisa! O cara tinha um boneco do Tony Montana na lareira, assim o que mais?! Ele está dizendo o escárnio! Qualquer coisa que eu disser não vai chegar aos pés da imagem! As pessoas muito claramente podem tirar suas próprias conclusões, não há o que eu diga. O que eu disser vai atrapalhar, porque é muito forte a cena.

Tags: