Desigualdade socioespacial histórica afeta o direito cemiterial

A histórica e falsa ideia de igualdade entendida com a morte, e a forma que as implicações socioespaciais e econômicas influenciam nos direitos cemiteriais no estado de São Paulo.
por
Ana Kézia Andrade
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22/06/2022 - 12h

A desigualdade e segregação social sobrevivem à morte. A partir de análise comparativa em documentos históricos e relatos atuais observa-se que não é apenas o custo de vida que pesa no bolso do brasileiro, mas também o custo de morte. Dizem que a morte iguala a todos…Ledo engano, ao menos no plano material, pois a desigualdade social e até socioespacial mantém-se no post mortem, a mesma condição observada em vida nas metrópoles, estende-se e reproduz-se nas necrópoles.


A segregação social nas necrópoles são históricas e nem sempre ocorriam por motivos econômicos, pessoas em condições de escravidão eram enterradas do lado de fora das igrejas, conhecidas como "campo santo", enquanto pessoas ricas, senhores de escravos eram enterrados no espaço interno, simbolicamente mais próximas ao céu. Historicamente, não apenas escravos, mas judeus, suicidas e prostitutas também eram enterrados nos muros dos cemitérios, demarcando o locus da exclusão e estigma.

No estado de São Paulo, cidade de Cubatão, existe um espaço mortuário cujo os sepultados são protagonistas de histórias marcadas por segregação e esquecimento que perduraram até o fim, o Cemitério das Polacas. Fundado em 1929 pela Associação Beneficente e Religiosa Israelita de Santos, que ocupa um pequeno espaço no cemitério municipal, as lápides em sua maioria são de mulheres, conhecidas como polacas, que eram  judias que chegaram à América do Sul por volta do século XIX e XX,  com promessas de melhoria de vida e assim que chegavam eram exploradas e prostituídas, e caíram nas graças da negligência, descaso e por fim esquecimento social.

Discriminadas em vida e também em morte, esquecidas e escondidas como uma história que se prefere acobertar. Apesar de ser o primeiro cemitério israelita no Brasil a ser considerado como patrimônio histórico, o espaço vive abandonado e esquecido, reflexo da realidade vivida por essas mulheres, que viviam em condições miseráveis e exploração desregrada. Registros históricos relatam que por conta da rotina de se relacionarem com dezenas de homens por dia, contraiam doenças e possuíam baixa expectativa de vida e por conta do desprezo por parte da comunidade não podiam ser enterradas em cemitérios.

A historiadora Beatriz Kushnir, conta no livro “Baile de Máscaras: mulheres Judias e Prostituição” a história dessas mulheres que viveram marginalizadas e que para diminuírem o sentimento de exclusão social, fundaram ONG’s que procuravam ajudar essas mulheres até seus últimos dias . Eram mulheres consideradas impuras e pecadoras por uma comunidade que as excluíram, adoeceram e mataram, e por conta disso uniram forças e fundaram sinagogas e até cemitérios, para que pudessem ter direito a um fim digno, para que tivessem na morte a honra que lhes tinham sido negada em vida.

Atualmente, a segregação social expandiu-se, e com o advento da pandemia da Covid-19, observou-se o fenômeno de mortalidade entre classes mais vulneráveis socioeconomicamente, através de propagandas fomentadas com dinheiro público de que “O Brasil não pode parar’, grande parte dos trabalhadores expunham-se ao vírus desde o início para garantir o sustento e o pão na mesa, e terminaram por engordar as estatísticas de mortalidade do vírus, muitas famílias vivem a saudade de entes que perderam.

Mesmo que não escolha o alvo, o vírus exige isolamento. No início quando aplicou-se o conceito de “novo normal", com atividades desde trabalho à lazer de forma remota, o aumento de atividades home office e lives, empregadas domésticas, entregadores de aplicativo, e porteiros arriscaram suas vidas em troca de subempregos, a fim de assegurar um isolamento às classes privilegiadas, enquanto uns temiam sair de casa e perder suas vidas por conta da COVID-19, outros expunham-se diariamente porque o medo da fome era mais palpável que o medo da doença.

Famílias inteiras foram perdidas, corpos e almas não puderam chorar os seus, vidas negligenciadas, mortes esquecidas, histórias que se construíram em um Brasil profundamente desigual, desde a chegada dos escravos, polacas até os dias de hoje, em que a segregação se mantém estampada na distribuição territorial que empurrou seus descendentes às margens da sociedade e áreas ambientalmente mais degradadas e vulneráveis. Ainda como seus ancestrais, os direitos de sepultamento muitas vezes foram negligenciados, famílias não puderam sequer ter o direito e condições para isolamento social e nem para despedidas de seus entes, o desrespeito aos direitos fundamentais em relação ao morto, condena-o à segregação espacial, dada a sua classe social, tornando as vítimas cada vez mais em números estatísticos e desonrando o legado, sofrimento e dor vivenciados.