Logo que a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou a situação sanitária global como pandêmica, no dia 11 de março de 2020, a primeira medida anunciada para evitar a contaminação de Covid-19 foi a do ‘fique em casa’. Conforme estudo produzido em junho de 2020, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), a estimativa do número de pessoas em situação de rua no Brasil é de 221.869, um crescimento de 140% desde 2012. Diante dos entraves que a crise trouxe nas questões socioeconômicas da população, especialmente aos mais vulneráveis, a tendência é de um crescimento da população de rua, segundo Jorge Broide, psicanalista e professor de psicologia da PUC-SP. “As pessoas estão perdendo suas casas, toda essa miséria e a crise social aumentando, a população de rua aumenta”.
Circulando pela região central da capital paulista, é evidente a grande quantidade de pessoas morando nas ruas. De acordo com pesquisa realizada em 2019, pela Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo em parceria com a Qualitest, o total da população em situação de rua é de 24.344, contabilizando 12.651 pessoas em situação de ‘rua’, conhecido também como ‘calçada’, e 11.693 na condição de ‘acolhido’. Desse total, 83,7% se identificam pelo sexo masculino e 14,8% pelo feminino. Se consideram pardos 35%, brancos 21%, pretos 16% e indígenas e amarelas somam 2%. Das 32 subprefeituras da cidade, Sé e Mooca, que se localizam na Zona Central, somam 65,01% do total de pessoas morando na rua, respectivamente, 45,38% e 19,63%.
Quando se pediu que as pessoas ficassem em casa, Darcy Costa, coordenador do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR), exigiu do poder público medidas emergenciais “como acesso à água potável para lavar as mãos, instalação de banheiros ao redor da cidade, kits com máscaras, sabonete e álcool em gel". Essas medidas visavam um único propósito, “evitar a devastação da população em situação de rua”.
Depois de um ano do atual cenário, Costa relata os principais problemas que se agravaram a respeito das políticas públicas adotadas. “Centros de acolhimento começaram a superlotar, [estão com] um número [de usuários] acima da sua capacidade em todos os serviços, inclusive até aqueles que foram abertos; banheiros públicos fechados; diminuição de pontos de distribuição de alimentos”.
Em junho do ano passado, a gestão de Bruno Covas (PSDB) registrou 28 óbitos e 289 infecções pela covid-19. Já o MNPR, no mesmo período, contabilizou 40 óbitos pela doença. Para o coordenador, o número oficial é baixo devido a uma “subnotificação”, ao passo que “a prefeitura, a secretaria de saúde e a assistência social se negam a apresentar esses dados”.
Em relação a situação dos equipamentos para a população de rua, constata que “estão com os leitos lotados e uma fila de espera para acessá-los”. “A gente sabe de casos, de ambulância saindo com dois, três dentro dos centros de atendimento, indo para os hospitais e essas pessoas não voltam mais”. Lembra do Comitê Intersetorial da Política Municipal para a População em Situação de Rua, Comitê PopRua, que segundo ele, “ficou um ano desativado”. “Brigamos durante um ano para poder retomar esse GT (Grupo de Trabalho), que jamais deveria ter sido desativado”.
No dia 12 de fevereiro de 2021, a prefeitura de São Paulo anunciou a vacinação para pessoas em situação de rua acima de 60 anos. O coordenador do MNPR relata que foi uma demanda apresentada pelo Conselho Nacional de Saúde ao Ministério da Saúde. Em um primeiro momento, o ministério colocou a população de rua na 16º posição para a vacinação, indo na contramão no que dizia o MNPR, “que era colocar a população de rua como um grupo prioritário, como os quilombolas e os indígenas”.
Por conta do decreto que prioriza a vacinação de pessoas acima de 60 anos, o MNPR conseguiu viabilizar a vacinação para a população de rua. Para Costa, “já é uma vitória” a vacinação dessas pessoas, mas que “um negacionismo muito resistente em não admitir as medidas cabíveis, por parte do governo federal”, além da “pressão que os governadores vêm sofrendo por parte do empresariado”, dificulta a contenção da crise. Ressalta também a falta de um calendário claro “para a vacinação da população, muito menos para a população em situação de rua”.
Na opinião de Broide, “fazer política pública, abrangente e séria”, é o que falta para amenizar a situação em que estamos. “Construir espaços onde as pessoas que estão na rua possam elaborar e construir projetos de vida. E o cuidado sanitário e a questão da moradia, evidentemente”. Costa, no entanto, lembra de ações executadas pelo terceiro setor, que diante “da falta de vontade política [da prefeitura], cai sobre as ONGs”. Sobre isso, ele nota que se enquadra dentro de um “contexto de caridade”, mas alerta que esse contexto “acaba assumindo prerrogativas que deveriam ser garantidas pelo governo”. “Isso já está na Constituição, têm leis, são eles que recebem os impostos. Não que a sociedade civil não possa ter as suas iniciativas, mas isso não pode ficar à mercê de ações paliativas”.