A Copa no Catar: vale tudo pelo futebol ?

Mundo fingiu não ver as contradições que só alguns denunciaram quando a atual sede foi escolhida. Às vésperas da abertura, polêmicas ganham força.
por
Felipe Abel Horowicz Pjevac
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19/11/2022 - 12h

23 de novembro de 2010 - foi nesse dia que um almoço entre os presidentes da França, da UEFA e um príncipe do Catar desmontou um ‘acordo de cavalheiros’ realizado meses antes por FIFA, Rússia e Estados Unidos. Em dezembro daquele ano, as sedes oficiais para as Copas do Mundo de Futebol de 2018 e 2022 seriam anunciadas, e havia uma grande movimentação dentro dos bastidores da entidade internacional para que essas duas potências mundiais fossem as escolhidas, como um sinal de paz no quadro esportivo mundial. No entanto, escândalos de corrupção e compra de votos acabaram mudando esse cenário e trazendo diversas polêmicas acerca do torneio que se aproxima.

 

Na tarde daquela terça-feira, reuniram-se na capital francesa Nicolas Sarkozy, então presidente da França, Michel Platini, então presidente da UEFA, e Tamim al-Thani, príncipe catari que 3 anos depois assumiria o cargo de emir. Platini e Sarkozy apoiavam a escolha do país asiático em sequência à Rússia como sede, e houve nesse encontro um planejamento para desfazer o tratado da FIFA e convencer o comitê executivo da organização, que uma semana depois elegeria de forma oficial o local destinado a receber o torneio em 2022.

 

Alguns indícios apontam o porquê dessa ligação entre os franceses e o Catar: em agosto de 2011, a Qatar Sports Investments (grupo de investimentos catari fundado por al-Thani anos antes) adquiriu o Paris Saint-Germain, clube de coração do ex-mandatário francês, em uma transação bilionária. Além disso, uma enorme quantidade de caças franceses foi vendida aos líderes cataris por um valor de mais de 14 bilhões de dólares; esses aviões foram fundamentais para que Tamim al-Thani assumisse o poder do país em 2013 sem um golpe de Estado.

 

Essa escolha controversa pelo Catar como sede da próxima Copa trouxe consigo diversas polêmicas e temas delicados; o primeiro destes foi em relação ao clima. A Copa do Mundo é um torneio usualmente realizado entre os meses de junho e julho; durante essa época do ano, um forte verão atinge o país asiático, que chega a sofrer com temperaturas acima dos 40 graus celsius.

 

Esse fator fez com que a FIFA precisasse alterar o calendário da competição para o fim do ano, a fim de evitar o desgaste excessivo de jogadores com o calor. A mudança gerou atritos entre a entidade e as federações nacionais europeias, visto que as ligas e campeonatos de clubes do continente tem seu início no meio do ano, e terão que ser interrompidos no meio da temporada para a realização do Mundial.

 

Em protesto, humorista atira dinheiro no então presidente da FIFA Joseph Blatter; processo que elegeu o Catar como sede da Copa 2022 foi questionável e envolveu denúncias de corrupção. FOTO: Fabrice Coffrini/AFP - 2015

 

Desde o início das obras de infraestrutura para receber a Copa no Catar, milhares de denúncias eclodiram a respeito das condições de trabalho às quais os cidadãos empenhados especialmente na construção dos estádios foram expostos. Diversas violações de direitos humanos vêm sendo relatadas ao redor do país, com destaque ao tratamento a trabalhadores migrantes. Desde que as reformas começaram, as construtoras e empresas cataris buscam funcionários de fora do país e os abrigam em alojamentos pequenos na zona industrial de Doha, capital do Catar.

 

Além de situações como o calor excessivo, a jornada de trabalho exaustante e salários baixos, abusos como retenção de pagamentos, confisco de passaportes, agressões e até mesmo tortura chegaram a ser alertados, tanto de dentro desses alojamentos quando vindos dos estádios e locais de obras. Em 2016, um relatório de 48 páginas da Anistia Internacional, um dos maiores grupos de direitos humanos do planeta, acusou as lideranças cataris de empregarem trabalho forçado no processo de preparação para a Copa, mostrando indícios de um regime análogo à escravidão.

 

O documento apontava para a falta de condições básicas de saúde e moradia nos acampamentos das empresas, diversas deduções ilegais e sem critério de salários dos funcionários e a manutenção do sistema de kalafa, que impede a saída do trabalhador de um emprego sem o consentimento do empregador. Também, diversos cidadãos que foram de suas terras de origem ao Catar eram incapacitados de mandar ganhos financeiros para a família, já que as alfândegas do país confiscavam notas de dinheiro nas fronteiras do território catari.

         

Diversas entidades voltadas à garantia de direitos humanos ao redor do mundo lançaram juntas uma campanha para que a FIFA reserve 440 milhões de dólares - valor equivalente ao das premiações concedidas às federações nacionais participantes do torneio - para indenizar aqueles que foram lesados e explorados no processo de imigração e trabalho para a Copa do Mundo.

 

Com relação ao número de mortes, no entanto, é necessário ter cautela. Em fevereiro de 2021, por exemplo, o jornal inglês The Guardian afirmou em uma matéria, republicada no mundo inteiro, que 6.5 mil trabalhadores imigrantes haviam morrido nas obras da Copa. Alguns dias depois, o título da reportagem foi corrigido, informando que esse número de mortos era um total de imigrantes das cinco nacionalidades mais comuns que fornecem não de obra ao país, desde que este foi anunciado como sede do evento. Não há como determinar se todas as mortes estão diretamente relacionadas com construções de estádios. Também não há dados oficiais confiáveis sobre óbitos

 

Outra grande incógnita que assusta imigrantes que estarão no Catar para acompanhar o torneio é a postura do governo catari em relação a alguns aspectos de liberdade e da vida pessoal desses turistas. Um exemplo é o da homossexualidade, que é estritamente proibida nas leis do país conservador. Jogadores e membros de delegações pertencentes à comunidade LGBTQIA+ já chegaram a demonstrar sua preocupação por não saber como serão recebidos no país.

 

Enquanto organizadores oficiais da Copa afirmam repetidamente que todos serão bem-vindos independentemente de qualquer orientação sexual, declarações locais acabam gerando mais polêmica. Khalid Salman, ex-jogador da seleção catari e embaixador da competição, declarou que “a homossexualidade é uma doença mental” e que espera que “visitantes no país aprendam a respeitar as regras de lá”. O consumo de bebida alcoólica também é restrito a determinados locais e horários.

 

Essa falta de garantia de diversos direitos humanos vem gerando repercussão e manifestações por parte de algumas figuras populares. Um exemplo é o da cantora britânica Dua Lipa, que teve seu nome veiculado como um possível show de apresentação do torneio, mas negou a possibilidade em seu Instagram. “Espero visitar o Catar quando eles cumprirem todas as promessas relativas aos direitos humanos que eles fizeram quando ganharam o direito de sediar a Copa”, declarou a cantora.

 

Além disso, diversos jogadores e treinadores pretendem realizar atos a favor do respeito aos direitos universais dentro da Copa do Mundo. A seleção da Dinamarca pretendia jogar com uma camisa que trazia os dizeres “Direitos humanos para todos”, mas a iniciativa foi barrada pela FIFA.