Arroz e feijão

O Brasil se prova, mais uma vez, um país paradoxal.
por
João Curi
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13/11/2022 - 12h
Prato fundo com apenas uma colher dentro, sustentado por duas mãos ilustrando a fome.
(Foto: Reprodução/Agência Brasil)

 

Quanta cultura cabe num prato? Essa pergunta me prendeu em pensamentos nacionalistas, daqueles seguros de se alimentar. Busquei no PF do bairro alguma identidade brasileira, mas só encontrei São Paulo naquele pernil. Rendi-me ao impulso de procurar mais longe, pousando no açaí com farofa que amortece o pirarucu. Foi convincente, mas enxerguei mais o Amazonas e o Pará do que quaisquer outras terras. Segui reto toda vida e cheguei na carne de sol. Se eu não fosse um juiz tão sério, poderia jurar que o sal me cantava na boca um forró qualquer. Fiz-me rigoroso e contornei o litoral, encontrando bolo de rolo, acarajé, vatapá, torta de caranguejo e o bom bacalhau da colônia. Não me deixei convencer por nenhum porque senti que seria injusto com as terras que o mar não quis encostar. A culpa me fez menos teimoso e decidi dar uma chance ao Centro. Quando pisei na terra cerrada, receberam-me com galinhada e arroz aninhados no sabor dos pequis. Não satisfeitos, ofereceram mojica de pintado numa cumbuca, que de tão farta já não me sobrava espaço para terceiras avaliações. Disseram que este era parecido com o Norte, por isso a insistência para que ganhasse. Dispensei a sugestão e deixe-me voltar às origens. Na Cidade Maravilhosa, cantei cardápio com o meu nobre-campeão-garçom e ele me trouxe canja da boa, mas não vencia a panela de Dona Marly. Como bom brasileiro, porém, não me deixei desistir. Cedi ao chimarrão para agradar nossos irmãos quase “hermanos” e dali provei sagu, pinhão, ambrosia. Então lembrei que Brasil não era um nem dois, mas tudo junto e misturado num prato só, que também pode ser dois, três - e ai daquele que não deixar espaço pro pudim. Bem verdade que aqui sentido nunca fez Direito e a mistura é a mãe, filha e irmã de nossa antropologia. A Terra Dourada também é a terra do brigadeiro, do cajá, pão de queijo, pamonha, arroz carreteiro e do caldo de piranha. Por isso incomoda tanto saber que Brasil é fartura reduzida a prato vazio. O país que se gaba de alimentar mais de 800 milhões de pessoas ao redor do mundo não deveria permitir que seu povo sequer conhecesse o que é fome. E, na falta de um para justificar, são 33 milhões de brasileiros. Quem diria que de uma cultura tão rica e heroica, também nasce a pobreza retumbante. Nossa desigualdade está ilustrada nos pratos plácidos, rendida ao desperdício de tanta mistura. Com isso, confesso que comecei esta busca já sabendo a resposta. De Roraima ao Rio Grande do Sul, da Paraíba ao Acre, não há variedade neste país que vença o arroz e feijão. Essa combinação é insubstituível porque representa nossa cultura como um todo: sobreviver à fome, à miséria e estender a permanência dos negligenciados. É a união e o sustento do que nos faz brasileiros, em todas as suas instâncias e sotaques, e a certeza de que nosso grito não veio do Ipiranga. Ele bate na terra.