Reconhecimento facial provoca incômodos na Segurança Pública

Experiências da tecnologia em diversas cidades têm poucos indícios de eficácia
por
Lucas Allabi
Guilherme Gastaldi
|
21/11/2023 - 12h

Por Lucas Allabi (texto) e Guilherme Gastaldi (audiovisual)

 

Há mais de 50 anos, uma equipe de pesquisa liderada por Woodrow W. Bledsoe realizou experimentos com o objetivo de verificar se computadores de programação seriam capazes de reconhecer rostos humanos. Apesar de não ter tido sucesso, Bledsoe deu o primeiro passo para uma “revolução tecnológica”, responsável pela criação de elementos imprescindíveis no nosso dia a dia. Hoje, por exemplo, os dispositivos móveis lançados já possuem o sistema de reconhecimento facial embutido, possibilitando que apenas o verdadeiro dono do aparelho possa acessar o equipamento.

Nos últimos anos, surgiram novas discussões em relação ao uso dessa nova tecnologia, a principal delas sendo o uso do reconhecimento facial como método de Segurança Pública. Utilizando algoritmos de processamento para identificar pessoas e verificar suas identidades com base nas características do rosto, governos ao redor do mundo enxergam o novo sistema como a solução de todos os problemas, capaz de evitar crimes, roubos e furtos. No entanto, quando vemos as reais implicações do sistema, principalmente no Brasil, começamos a questionar não apenas a sua eficácia, como também as verdadeiras intenções por trás daqueles que o operam.

Na última década, na medida em que avanços tecnológicos ocorreram, o debate ao redor do tema se intensificou. Sendo assim, sob o pretexto de modernizar a segurança pública, políticos da extrema-direita passaram a tomar para si o discurso das tecnologias de reconhecimento facial (TRF). Além de usar a temática como palanque político, o impacto negativo na sociedade causado por essa tecnologia se tornou evidente e esse cenário é facilmente observado no estado de Goiás. Desde o ano de 2014, verbas do governo estadual e emendas parlamentares financiam a instalação de câmeras de videomonitoramento em Goiânia. Em 2019, com a disponibilização de recursos para a instalação de TRFs, municípios goianos tiveram 37 projetos aprovados pelo Ministério, acumulando 50 milhões de reais destinados ao uso da tecnologia em apenas dois anos. Coincidentemente, na época, conhecido por ser o principal articulador e apoiador das TRF, o ex-deputado federal Delegado Waldir (PR e PSL) multiplicou por dez seu patrimônio e conseguiu se reeleger, escancarando o uso da pauta como manobra política.

Além disso, sob a justificativa de proteger a população, Goiânia priorizou o investimento em câmeras de segurança e deixou de gastar com áreas essenciais para a sociedade. No ranking de Competitividade dos Municípios, realizado em 2023 pelo Centro de Liderança Pública, Goiânia caiu 50 posições. De acordo com o instituto houve queda em indicadores importantes, como qualidade da educação, capital humano, telecomunicações, saneamento, meio ambiente, funcionamento da máquina pública e acesso à saúde.

Em conversa com Yasmin Rodrigues, pesquisadora associada ao Núcleo de Justiça Racial e Direito da FGV/SP e ao site Panóptico, quando questionada sobre a má utilização da tecnologia, usou especificamente o exemplo do estado de Goiás. Em suas palavras, milhões de reais foram destinados à implementação de câmeras com reconhecimento facial em locais onde a população sequer tem acesso a esgotamento sanitário. "Se isso não é um erro, não sei o que é”, respondeu a pesquisadora.

Fazendo parte do mesmo movimento, a prefeitura de São Paulo assinou no dia 7 de agosto deste ano um contrato para instalar 20 mil câmeras de reconhecimento facial nas ruas da cidade. A concorrência do edital fugiu da norma e das leis corriqueiras de uma licitação nestes moldes. A empresa que ganhou o edital, o Consórcio Smart City SP, liderado pela CLD Construtora, ficou em terceiro lugar com o custo médio de 600 mil reais a mais que as outras entidades.

Uma demonstração da tecnologia da Smart Sampa na Consumer Electronics Show de 2019
Uma demonstração da tecnologia da Smart Sampa na Consumer Electronics Show de 2019.
Imagem: David Mcnew AFP

De pronto, se formou uma oposição a esse projeto. Um dos fronts, formado contra os percalços jurídicos do processo suspeito, foi formado pelas investigações do Ministério Público estadual e federal.

Lado a lado, ONGs como a Lapin e a Coding Rights se organizaram contra o projeto pelos moldes em que foi feito. Na primeira versão do edital previa-se que o sistema deveria reconhecer pessoas pela cor da pele, que poderia descambar a tecnologia em puro racismo, e identificar comportamentos suspeitos como “vadiagem”, uma posição elitista e retrógrada sobre a vida social dos indivíduos.

As suspeitas em torno desse projeto se fortaleceram quando informações antigas da CLD Construtora voltaram à tona. Quando ainda chamava-se Consladel, os donos da empresa, Auad e Moura, se envolveram em uma série de denúncias de corrupção em fraudes de licitações públicas, em grande parte na prefeitura de São Paulo.  Em 2013 a empresa foi denunciada no caso “Máfia dos Radares”. Eles foram acusados pelo MP de pagar propina a funcionários da prefeitura de São Paulo, de cidades do interior e de outros estados para que comprassem os radares que eles fabricavam a preços superfaturados. 

As movimentações contra o projeto Smart Sampa, entretanto, não foram suficientes para demover os planos do prefeito. A Smart Sampa foi aprovada e já começou a ser implementada. Ricardo Nunes, prefeito de São Paulo, justificou o projeto em nome da segurança pública dos cidadãos. Em contrapartida ele foi contra uma política muito elogiada por especialistas em segurança e violência urbana, as câmeras em fardas de policiais e guardas civis. 

Não resta dúvida sobre a inclinação política do prefeito. Se ele adotou uma ferramenta e outra não, é só ligar os pontos para presumir o viés da tecnologia. Yasmin Rodrigues afirmou que sob a redoma discursiva da inovação que acompanha o uso de reconhecimento facial, têm sido implementadas políticas orientadas pelas velhas práticas: perseguição a jovens negros, desrespeito a direitos fundamentais e muito dinheiro destinado a prender, prender e prender como se isso resolvesse alguma coisa

A IA, entretanto, não é de todo mal para a segurança. A pesquisadora do Panóptico relembra que os usos da tecnologia dependem muito mais dos seus objetivos e nós não podemos ser deterministas sobre seus usos: “Certamente, a tecnologia pode ser nossa aliada. A tecnologia é isso: uma aliada. Ela não é a solução para nada. Desenhando bem a forma como ela será utilizada, a gente caminha. Veja como as ‘bodycams’ têm sido importantes para as polícias. Em relação a monitoramentos automatizados, por que não monitoramos a circulação das armas, por exemplo? É uma pergunta que sempre fazemos.”